A Academia Imperial de Belas Artes no Museu Mineiro

Rodrigo Vivas [1] e Márcia Georgina de Assis [2]

VIVAS, Rodrigo; ASSIS, Márcia Georgina de. A Academia Imperial de Belas Artes no Museu Mineiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/mm_aiba.htm>.

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A História da Arte em Belo Horizonte

A cidade de Belo Horizonte possui inúmeros acervos de artes visuais reunidos em instituições como o Museu de Arte da Pampulha, Museu Mineiro e Museu Histórico Abílio Barreto. A maior parte deles não está exposto ao público e as pesquisas realizadas não partiram do estudo dos acervos ou de obras individuais que os compõem. Os estudos, apesar de relevantes, estabelecem hipóteses mais genéricas, seja para compreensão da trajetória de um artista[3] ou uma discussão sobre as disputas entre acadêmicos e modernos[4] em Belo Horizonte. Por outro lado, as pesquisas desenvolvidas até o momento[5], do qual o presente texto faz parte, tem buscado analisar as obras em sua materialidade e, posteriormente, a confrontação dos dados em jornais, catálogos de exposições e fichas técnicas das instituições museológicas.

O Museu Mineiro

O Museu Mineiro é uma importante instituição que abriga mais de dois mil e seiscentos objetos históricos e artísticos dos séculos XVII ao XX. Previsto na lei nº 126, de 11 de julho de 1895, teve sua criação determinada pela lei nº 528, de 20 de setembro de 1910,[6] mas sua instalação só se concretizou em 1982 com a integração de três coleções: “Coleção Arquivo Público Mineiro”, “Coleção Pinacoteca do Estado” e “Coleção Geraldo Parreiras”.[7]

Entre 1895 e 1900, foram reunidos objetos históricos, constituindo a “Coleção Arquivo Publico Mineiro”. A historiadora Letícia Julião[8] afirma que existem poucos documentos de registro, o que dificulta mapear sua origem e procedência. Em 1928, o Arquivo recebeu os primeiros quadros, dando origem a Pinacoteca Oficial do Estado. Segundo Julião, é provável que “o recolhimento de acervo tenha-se orientado, de maneira mais sistemática, para as obras de arte”[9], assim a concepção museológica de um museu enciclopédico aos poucos foi se transformando em uma proposta de museu histórico.

A “Pinacoteca do Estado” foi inaugurada em 2 de março de 1971 no Palácio da Liberdade. Reuniu algumas obras do acervo do Arquivo Publico Mineiro e de artistas contemporâneos. Em 1978, o Governo adquiriu a “Coleção Geraldo Parreiras”, composta por imagens sacras, oratórios e objetos litúrgicos.

Na década de 1980, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), assumiu o projeto do Museu. Com a colaboração de Afonso Ávila e a superintendente de museus Myrian Andrade Ribeiro de Oliveira, “foi elaborado o anteprojeto do Museu, definindo-o não mais como histórico, mas dedicado à cultura mineira”.[10]

O casarão, sede do Senado mineiro e posteriormente da Pagadoria do Estado de Minas, passou por restauração, foi tombado e destinado ao Museu Mineiro. Em 1982, inaugurou-se a primeira exposição permanente. Nas palavras do diretor executivo do IEPHA, Galileu Reis: “Completa-se assim uma visão sintética do panorama cultural e artístico de Nosso Estado, através de obras que ilustram o gênio criativo do povo nosso em diversos momentos de sua história”.[11]

Apesar dos esforços iniciais, poucos pesquisadores se interessaram pelo estudo do seu acervo. A proposta inicial é realizar alguns recortes de obras fundamentais para a História da Arte de Belo Horizonte que fazem parte do Museu e que ainda não foram estudadas. Neste primeiro texto, serão analisadas obras de artistas que estudaram na Academia Imperial de Belas Artes.

A Academia Imperial de Belas Artes

O ensino artístico no Brasil iniciou com a vinda da Missão Artística Francesa, contratada por D. João VI em 1816, quando foi determinada a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios. Porém, as aulas não aconteceram. Apenas Jean-Baptiste Debret, “por iniciativa própria, teria lecionado suas aulas de desenho e pintura, já desde o ano de sua chegada”[12]. Após várias tentativas a escola é oficialmente inaugurada por D. Pedro I, como “Academia Imperial de Belas Artes” (AIBA), em 1927.

As Exposições Gerais de Belas Artes começam a partir de 1840, e a concessão de Prêmios de Viagem (bolsas de estudo) em 1845, durante a gestão de Félix Taunay.

Manoel de Araújo Porto-Alegre renovou o ensino com a chamada “Reforma Pedreira”[13]. Como diretor da instituição acrescentou disciplinas, entre elas história e teoria das artes, criou uma biblioteca, regulamentou as exposições, e reformou o edifício.[14]

Entre 1840 e 1884, foram realizadas vinte e seis Exposições Gerais, e quarenta entre 1890 e 1933. Segundo Fernandes[15], “a partir da segunda exposição até o ano 1864, os Salões foram divulgados pelas ‘Notícias da Academia’, mas depois foram realizados catálogos especiais com os registros, geralmente incompletos”. O pesquisador Carlos Levy reuniu em dois livros[16] grande parte da relação de obras e expositores, desde a primeira exposição até 1933.

Durante o Período Republicano, a Academia passa a se chamar Escola Nacional de Belas Artes e, a partir de 1971, Escola de Belas Artes da Universidade do Rio de Janeiro.

O Museu Mineiro coleciona algumas obras de artistas mineiros que estudaram na Academia Imperial de Belas Artes e, posteriormente, doaram obras à instituição.

Honório Esteves

Honório Esteves do Sacramento nasceu em 8 de abril de 1860 em Santo Antônio do Leite, em Minas Gerais. Morou em Ouro Preto, onde ainda criança, trabalhou como ajudante do pintor Cardoso de Rezende, que havia sido encarregado da pintura da capela-mor da Igreja Nossa Senhora do Pilar.

A formação acadêmica do pintor ocorreu após receber uma bolsa da Assembleia Mineira para estudar na Academia Imperial de Belas Artes. Foi aluno de Victor Meirelles, Pedro Américo, João Zeferino da Costa e Rodolpho Amoedo. Lecionou no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro durante os anos 1886, 1887 e 1888. Em 1890, retornou a Ouro Preto e trabalhou como professor da cadeira de Desenho na Escola Normal.[17]

Participou da Exposição Universal de 1904, em Saint Louis, Estados Unidos. Representando Minas Gerais, ao lado de Frederico Steckel e Alberto Delpino, Esteves apresentou mais de 40 obras, a maioria paisagens mineiras.[18]

No mesmo ano, no Salão do Rio de Janeiro, Gonzaga Duque comenta sobre a presença de Honório Esteves “com um interessante estudo da Estrada de Jurujuba, e um considerável grupo de senhoras ou senhoritas. As senhoras... (Como eu implico com esta palavra, neste particular! É fofa, tola, convencional”.[19] Na opinião de Bueno Amador haviam “poucos quadros, muitos estudos, muitíssimos retratos e quase nada de criação. [...] Esteves apresenta um pastelão narigudo como campônia mineira”.[20]

Diferentemente de Gonzaga Duque, Paulo Veroneso começa seu texto com uma pequena descrição sobre a contribuição mineira ao Rio de Janeiro. “

De Minas vem muita coisa apreciável como a Conjuração” que foi a precursora do “Grito do Ypiranga”; vieram já um vice-presidente da República e vários ministros e o eco ilustre das “alterosas montanhas”. Além dessa patriótica contribuição, preciosa para a vida brasileira, Minas, quando não tem talentos a exportar, manda com igual patriotismo, leite, lombo e queijos que são do mais fino sabor.[21]

Esta curiosa introdução teve o objetivo de apresentar o pintor Honório Esteves que teria sido “aluno da nossa antiga Academia de Belas Artes, donde saiu como um revolucionário e para onde volta como um conservador”.[22] Tal retrocesso, segundo Veroneso, seria fruto do tempo e “da vida e das voltas que o mundo dá”. A ironia dá o tom da matéria e o colunista afirma que “o Sr. Esteves trouxe uma Camponesa. É de crer que, ao mesmo para o seu gasto, trouxesse também alguns queijos. Esses, porém, não figuram na exposição”.

Sobre a exposição de 1906, Amador Bueno comenta:

Honório Esteves, que é da velha guarda, apresenta três estudos de paisagem, com algumas qualidades e regular dose de sentimento. Não concordamos, porém, com os títulos que procurou dar as telas. “Um cajueiro da Estrada do Morro do Cavalão”... “Uma rua do jardim do campo de Sant’Anna”... são títulos informativos demais, que fazem lembrar o [...] de Pedro Américo em seus primeiros tempos, quando punha títulos quatro vezes maiores do que os seus quadros. A parte essa prolixidade dos títulos, os quadros de Esteves são regulares, com toques felizes.[23]

Encontram-se no Museu Mineiro as seguintes obras: Auto-retrato (1886); Pastor egípcio (1887); Retrato do dr. Peter W. Lund (1903); Retrato de José Pedro Xavier da Veiga (1903); Retrato (190_); Retrato “Afonso Pena” (1900); Retrato “Guido Thomaz Maliare” (1904); e Retrato “Crispim Jacques Bias Fortes” (1898). Das obras em questão, analisaremos o seu Auto-retrato e retrato de Dr. Peter W. Lund. Tal fato se justifica tendo em vista uma certa recorrência estilística na feitura dos retratos.

A obra Auto-retrato [Figura 1] representa o pintor ainda jovem, com a sua mão esquerda apoiada na testa, com os dedos entreabertos, olhando para o vazio como se perdido no tempo e espaço ou em um gesto de reflexão. Está apoiado em uma superfície com aparência de um sofá ou cadeira recoberta com um tecido branco. O detalhamento da obra torna visível os fios do cabelo, as matizes do rosto, o bigode e pontos da barba no queixo. O contraste existente entre o preto do paletó com o branco das extremidades da camisa equilibra e proporciona a sensação de movimento ao personagem representado. Honório Esteves não se representa no momento do ofício como é comum em alguns pintores como Eliseu Visconti e Vicente Van Gogh. O único elemento que poderia caracterizar o seu ofício, mas que poderia confundir com outras profissões, seria as unhas manchadas de tinta.

O Retrato do Dr. Peter W. Lund [Figura 2] representa o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund[24] de perfil. Assim como na obra auto-retrato o fundo neutro contrasta com o terno preto deixando aparente uma blusa branca. Uma luz ao fundo, em diagonal, indicada por uma iluminação na gola do paletó e ombro, produz sombras na blusa, as quais Honório Esteves representa em tonalidades próximas às do rosto, como um reflexo. Com grande habilidade, mesmo com o uso de pastéis, consegue realizar a transparência das lentes dos óculos.

Alberto Delpino

Alberto André Feijó Delpino nasceu em 10 de agosto de 1864, em Porto das Flores, Minas Gerais. Foi aluno de José Maria de Medeiros, João Zeferino da Costa e Victor Meirelles na Academia Imperial de Belas Artes, e participou das Exposições Gerais entre 1890 e 1933.

Em 1891 tornou-se professor de desenho no Internato de Ginásio Mineiro e em 1884 na Escola Normal, ambas em Barbacena. Transferiu-se para Belo Horizonte em 1929, onde viveu até 1942.[25]

O artista também atuou como caricaturista, jornalista e ilustrador. Em 1910, é apresentado, como Elpino del Berto na edição da revista Novo Horizonte, devido ao seu “apreciado lápis”. Delpino passa a colaborar com a revista em todos os números, “o que constitue motivo de orgulho para quantos trabalham nesta casa”.[26]

Em 1907, recebeu menção honrosa de 1º Grau, com a obra Saudosa Marília [Figura 3] . Em nota sobre a exposição, Gonzaga Duque afirma que Delpino, que “há muito tempo não nos dá prova de sua aplicação”, expõe duas paisagens pequenas, “sumidas no meio dos muitos quadro”, e Saudosa Marília, “menos susceptível a ser esquecido”, e conclui:

Não sei porque saudosa nem porque Marília. É um meio busto de mulher, pouco mais de ombros sobre o fundo de paisagem cheia de sol. A cabeça tratada bem, tem característicos patrícios, mas não é bonita nem exprime o sentimento que se espera com o titulo.[27]

A obra Saudosa Marília, pertence ao Museu Mineiro, mas foi provisoriamente transferida para a Pinacoteca do Estado. A obra é uma representação de Marília de Dirceu que está no primeiro plano da cena, com traje preto indicando seu luto e solidão, sem um ponto fixo no seu olhar. A posição da mão encostada no rosto, assim como a flor que ela segura, dá à figura uma sensação de estar posando para o pintor. A personagem está encostada a uma janela, deixando entrever-se a rua que conduz o observador ao atual largo Marília de Dirceu onde ficava sua casa. Veem-se, ainda, trechos da cidade, além do caminho que conduz ao Pico do Itacolomi, juntamente com as igrejas, importantes ícones da cidade. Para valorizar a personagem em contraposição ao fundo, Alberto Delpino acabou por distorcer o corpo de Marília, o que se verifica pela observação do pescoço, do queixo e parte da face que leva até a orelha. O primeiro e o segundo planos parecem sobrepostos, sendo perceptíveis as separações entre as duas figuras com a diluição da tinta.

A tela Panorama de Mariana [Figura 4] está exposta no acervo permanente do Museu Mineiro e datada como de 1931. Após a pesquisa realizada em outras fontes, foi possível encontrá-la citada na Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes em 1895[28] e na Exposição Universal de Saint-Louis de 1904[29], onde, em ambas, o artista recebeu menção honrosa. Em 1895, Delpino apresentou doze trabalhos chamando a atenção por sua paisagem que seria de

entoação triste e sombria, mas reconhece-se que procurar ser justo, apesar de afigurar-se-nos que sente pouco a cor. [...] Igualmente de mancha e nota pitoresca é o “Panorama de Mariana” (n.126). Se este artista deixar de querer pintar “chic” poderá fazer carreira.[30]

Em 1935, Ovídio de Abreu, da Secretaria de Finanças, doou 11 quadros ao Arquivo Público Mineiro, entre eles a obra Panorama de Mariana. Em uma notícia sobre a XII Exposição de Belas Artes, em 1936, o colunista comenta que “o Arquivo não vai bem”, e que “está tanto desleixado em materia de pintura”. Alguns quadros foram solicitados e perceberam que Paisagem de Mariana, de Alberto Delpino, “aliás muito caracteristico de sua technica, foi dado como de autoria de Belmiro de Almeidae a tela de Renato de Lima, Igreja da Matriz de Nossa Senhora do Carmo, estava com um “cartão que atribuía a sua autoria a Honório Esteves”.[31] A falta de documentos e a desorganização das instituições que guardaram o quadro “Panorama de Mariana, como também a dificuldade, hoje, de identificação da data inscrita na obra, pode ter levado ao equivoco de sua datação.

A obra Panorama de Mariana realizada, portanto, antes de 1895[32], retrata a cidade histórica de Mariana. Em um plano mais distante, ao fundo, constrói-se o horizonte bem claro aproximando-se do branco, composto por uma sequência de vales e montanhas. A diferença é reconhecível pelas alternâncias de cores: montanhas azuis, verdes e cinza claro. A demarcação da cidade será realizada com uma pequena estrada com uma terra avermelhada, próxima do marrom, tendo duas mulas sendo conduzidas pelos seus cavaleiros em um caminho que levará à cidade. Mas porque intuir que são mulas e não cavalos? Esta hipótese justifica-se devido ao tipo de transporte comum a uma cidade como Mariana, em razão de ser historicamente realizado por tropeiros. Alberto Delpino construirá a cidade com suas casas detalhadas, demarcando as telhas, janelas e principalmente as fachadas com tom azul, que contrastam com o terroso. Na parte central, à esquerda do observador, reconhecemos a Igreja da Sé e o Seminário. É ainda possível reconhecer ao fundo, do lado esquerdo da tela, a Igreja de São Pedro. Na parte mais próxima do observador, como em primeiro plano, somos conduzidos por um rio tortuoso e notamos a presença de faiscadores na atividade de procura do ouro.

Belmiro de Almeida

Belmiro Barbosa de Almeida Júnior nasceu em Serro em 1858 e faleceu em Paris em 1935. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios e na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, e na École Beaux Arts e Acádemie Julien em Paris.

Foi professor no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes e trabalhou como caricaturista nas revistas cariocas Diabo a Quatro, O Malho e O Tagarela, e fundou os jornais Rataplan (1886) e João Minhoca (1901). Participou do Salão dos Humoristas em 1914/16.[33]

Em 1887, executa a conhecida obra Arrufos [Figura 5][34], que participa da Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes de 1890. Recebeu comentários calorosos de Gonzaga Duque[35] chegando ao ponto de mencionar que “ainda no Rio de Janeiro não se fez um quadro tão importante como é este”, visto que os pintores preferem os assuntos históricos, mas “não se ocupam com a época nem os costumes que devem formar os caracteres aproveitáveis na composição dessas telas”.

Arrufos representa um momento de desentendimento entre um casal. Gonzaga Duque o descreve como “o marido, um rapaz de fortuna, chega em companhia da esposa à bonita habitação em que viviam até aqueles dias como dois anjos”. A descrição contempla a análise do interior do ambiente onde “é presidido por um fino espírito feminino, educado e honesto”. O ambiente calmo, “fino e educado”, terá em contraposição à mulher, que é “subjugada por um acesso de ira, atira-se ao chão, debruça-se ao divã para abafar entre os braços o ímpeto do soluço”. Gonzaga Duque é tão detalhista quanto Belmiro ao descrever cada traço do quadro que merece ser apresentado:

Debaixo do seu vestido “foulard” amarelo percebe-se o colete, o volume das saias, os artifícios exteriores que a mulher emprega para dar harmonia à linha do corpo. Na fímbia do vestido a ponta do sapatinho de pelica inglesa ficou esquecido, sobre o tapete do assoalho, como se propositalmente, animado por estranho poder, tomasse aquela atitude para contemplar a rosa que caiu do peito da moça e jaz no chão, melancólica, desfolhada, quase murcha, lembrando a olorente alegria que se despegara do coração da feliz criatura naquele tempestuoso momento de rusga. E o esposo, um guapo rapaz delicado e forte, num gesto de indiferentismo, atende a tênue fumaça que se desprende do charuto, levantando-o entre os dedos, em frente do rosto.[36]

Arthur Azevedo, em visita ao Palácio do Governador (Palácio da Liberdade), em Belo Horizonte, em 1901, comenta sobre um espaço no salão de honra destinado a receber uma obra de Belmiro: “Se Belmiro visse, como eu vi, aquele espaço em branco, à espera da prometida obra apressar-se-ia em concluí-la com a brevidade possivel”.[37]

Em outubro de 1897 (mesmo ano da inauguração da Capital), Belmiro de Almeida, recém-chegado de Paris, trouxe para expor a obra Má Notícia [Figura 6] no Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto. “Esse quadro traz a triste nova da morte do ente querido. Atirada em desalinho sobre uma poltrona, tendo no chão a carta tarjada”.[38] A Exposição causou ótima repercussão: “Belmiro de Almeida tem sido muito felicitado por todos que já foram ver sua magnifica produção”. [39]

A obra foi adquirida pelo governo do Estado de Minas Gerais e colocada no Palácio do Governador. Segundo Barbosa[40], após a morte dos presidentes de Estado, João Pinheiro e Raul Soares, “o quadro passou a ser encarado como aziago”. Antônio Carlos ordenou sua transferência a Secretaria do Interior (atual Secretaria da Educação). Pouco tempo depois, o sobrinho de um funcionário faleceu, confirmando o “azar provocado pelo quadro”, posteriormente doado ao Arquivo Público Mineiro.

Arthur Azevedo afirma que esta obra foi o que mais lhe atraiu a atenção e comenta: “o quadro tem qualidades, mas está longe de ser a melhor produção do distinto pintor mineiro”. Arthur considerou que nem a “Aurora de 15 de Novembro”, nem a Má Notícia, dão “uma ideia exata do incontestável talento de Belmiro”. Completa sua crítica dizendo que em Belo Horizonte “queixam-se de não haver ali do estimado artista outra notícia além da Má Notícia”.[41]

A obra Má Notícia representa um recorte de um ambiente interno, composto por duas poltronas, um quadro e um tapete. Ao centro da tela deslocado em diagonal vê-se uma poltrona individual onde está uma mulher que parece ter se jogado desesperadamente na mesma, após ler uma carta que foi lançada ao chão. A mulher com cabelos longos e louros coloca a mão na testa não deixando visível seu olhar. A sensação é de completo desespero e a ação parece se desenrolar conjuntamente com o observador que, como voyeur, acompanha a cena sem ser notado. O formato da tela parece reafirmar essa sensação. A iluminação cumpre um importante papel no desenvolvimento da cena. Inicia-se em uma porta, possivelmente aberta, onde a carta foi recebida e agora foi jogada ao chão. Ilumina os braços, passando pelo cabelo e ganhando maior movimento nos sulcos do vestido que chega a mudar de cor.

Apesar das diferenças estilísticas e o próprio conceito de privacidade, é possível elencar obras, como dos artistas Vermeer, Walter Langley e Jean Baptiste Camille Corot, que possuem o mesmo tema: mulheres recebendo cartas. É o caso de Más Notícias [Figura 7], executada por Rodolfo Amoedo, professor de Belmiro de Almeida, em 1895. Gonzaga Duque descreve a obra como uma

senhora de lindas vestes e mais lindos olhos, umedecidos de lágrimas, diabolicamente negros, flagrante d'alma feminina, um instantâneo maravilhoso do tormento de um coração que a carta, amarrotada nas lindas garras de airosa dama, senão de deusa contrariada, acaba de sangrar.[42]

No entanto, nesse caso, a mulher com expressão séria, apresenta mais um desapontamento do que um desespero ou sofrimento, após receber uma “má notícia”, como é representado na obra de Belmiro.


[1] Doutor em História da Arte - UNICAMP. Professor de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

[2] Graduanda em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pela Universidade Federal de Minas Gerais.

[3] SANTOS, Cristina Ávila. Aníbal Mattos e o seu Tempo. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultura, 1991. VIEIRA, Ivone Luzia. Genesco Murta. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2000. ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Belo Horizonte, arraial e metrópole: memória das artes plásticas na capital mineira. In: RIBEIRO, Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro (Org.). Um século de história das artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte e Fundação João Pinheiro, 1997.

[4] VIEIRA, Ivone Luzia. O modernismo em Minas: O Salão de 1936. Belo Horizonte: catálogo da exposição, Museu de Arte de Belo Horizonte, 1986.

[5] ANDRADE, Rodrigo Vivas. Os salões municipais de belas artes e a emergência da arte contemporânea em Belo Horizonte: 1960-1969. (Tese de doutorado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, (Nelson Alfredo Aguilar), Campinas, SP. 2008. VIVAS, Rodrigo. Aníbal Mattos e as Exposições Gerais de Belas Artes em Belo Horizonte. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 3, jul./set. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/rv_am.htm>. Acesso em: 15 ago. 2012. VIVAS, Rodrigo. O que queremos dizer quando falamos em História da Arte no Brasil. Revista Científica/FAP (Curitiba. Impresso), v. 11, p. 94-114, 2011.

[6] INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Museu Mineiro. Belo Horizonte: IEPHA/MG, 19--, 1 v, sem página.

[7] Para maiores informações conferir: SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS (MG). Colecionismo Mineiro. Belo Horizonte: Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, 2002.

[8] JULIÃO, Letícia. In: SUPERINTENDÊNCIA DE MUSEUS (MG). Colecionismo Mineiro. Belo Horizonte: Superintendência de Museus do Estado de Minas Gerais, 2002, p.32.

[9] Idem, p.33.

[10] Idem, p.65.

[11] REIS, Galileu. In: INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Museu Mineiro. Belo Horizonte: IEPHA/MG, 19--, 1 v, sem página.

[12] GONZAGA DUQUE apud ALMEIDA, Bernardo Domingos de. Portal da antiga Academia Imperial de Belas Artes: A entrada do Neoclassicismo no Brasil. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_portalaiba.htm>. Acesso em: 18 ago. 2012.

[13] SQUEFF, Letícia Coelho A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista. Cadernos Cedes, ano XX, no 51, novembro/2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v20n51/a08v2051.pdf>. Acesso em: 10 set. 2012.

[14] Para maiores informações sobre a Academia Imperial de Belas Artes conferir os artigos disponíveis no site da revista 19&20. WANDERLEY, Monica Cauhi. História da Academia - diferentes nomes, propostas e decretos. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/academia_mcw.htm>. Acesso em: 10 set. 2012. CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial de Belas Artes e o Ensino Técnico. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/rc_ebatecnico.htm>. Acesso em: 10 set. 2012. FERNANDES, Cybele V. F. A construção simbólica da nação: A pintura e a escultura nas Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cfv_egba.htm>. Acesso em: 10 set. 2012.

[15] FERNANDES, Cybele V. F. A construção simbólica da nação: A pintura e a escultura nas Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cfv_egba.htm>. Acesso em: 8 set. 2012.

[16] LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e Escola Nacional de Belas Artes. Período Monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: ArteData, 2003. LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e Escola Nacional de Belas Artes. Período Republicano. Catálogo de artistas e obras entre 1890 e 1933. Rio de Janeiro: ArteData, 2003.

[17] GIANNETTI, Ricardo. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_he.htm> Acesso em: 17 ago. 2012.

[18] SOUZA AGUIAR, F. M, de. Brazil at the Louisiana Purchase Exposition. Saint Louis. 1904. Department of fine arts. p. 91. Disponível em: <http://archive.org/details/brazilatlouisian00loui>. Acesso em: 15 ago. 2012.

[19] DUQUE, Gonzaga. O Salão de 1904. Kósmos, Rio de Janeiro, set. 1904, n/p. Digitalização e transcrição de Arthur Valle. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=DUQUE,_Gonzaga._O_SALÃO_DE_1904._Kósmos,_Rio_de_Janeiro,_set._1904,_n/p.>. Acesso em: 15 ago. 2012.

[20] AMADOR, Bueno. O Salão de 1904. (Impressões Rápidas). A Noticia, Rio de Janeiro, 7-8 set. 1904, p. 2. Digitalização de Mirian Nogueira Seraphim. Transcrição de Vinícius Moraes de Aguiar. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=AMADOR,_Bueno._O_SALÃO_DE_1904_(IMPRESSÕES_RÁPIDAS)._A_Noticia,_Rio_de_Janeiro,_7-8_set._1904,_p._2.>. Acesso em: 15 ago. 2012

[21] VERONESO, Paulo. Impressões do “Salão”. A Notícia, Rio de Janeiro, 7-8 out. 1904, p. 2. Digitalização de Mirian Nogueira Seraphim. Transcrição de Vinícius Moraes de Aguiar. “Disponivel em”: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=PAULO_VERONESO._IMPRESS%C3%95ES_DO_%22SAL%C3%83O%22._A_Noticia%2C_Rio_de_Janeiro%2C_7-8_out._1904%2C_p._2.> Acesso em: 15 ago. 2012.

[22] Idem.

[23] AMADOR, Bueno. Belas Artes. O Salão de 1906. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25 set. 1906, p.2. Digitalização de Mirian Nogueira Seraphim. Transcrição de Andrea Garcia Dias da Cruz. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=AMADOR%2C_Bueno._BELAS_ARTES._O_SAL%C3%83O_DE_1906._Jornal_do_Brasil%2C_Rio_de_Janeiro%2C_25_set._1906%2C_p.2.> Acesso em: 15 ago. 2012.

[24] Peter Lund realizou pesquisas no Brasil em botânica e zoologia. Fez grandes descobertas arqueológicas e paleontólogas em Minas Gerais. Para mais informações biográficas conferir: LANGGAARD, Theodoro Johanis Henrique. O naturalista Dr. Lund (Peter Wilhelm) : sua vida e seus trabalhos. Rio de Janeiro: Typographia Universal de H. Laemmert & C, 1883.

[25] GIANNETTI, Ricardo. Alberto Delpino.  Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_delpino.htm> Acesso em: 18 de ago. 2012.

[26] Alberto Delpino. Novo Horizonte. Belo Horizonte, Anno 1, nº1, 7 set. 1910.

[27] DUQUE, Gonzaga. Salão de 1907. Pintura e esculptura. Kosmos. Rio de Janeiro, Anno IV, nº 9, set. 1907, sem página.

[28] LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Período Republicano. Catálogo de artistas e obras entre 1890 e 1933. Rio de Janeiro: ArteData, 2003, p. 52.

[29] SOUZA AGUIAR, op. cit.

[30] Notas Sobre Arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 18 set. 1895, p.3. Digitalização de Arthur Valle. Transcrição Vinícius Moraes de Aguiar. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=NOTAS_SOBRE_ARTE._Jornal_do_Commercio%2C_Rio_de_Janeiro%2C_18_set._1895%2C_p.3.> Acesso em: 15 ago. 2012

[31] Inaugurou-se, hontem, no Municipal a 12ª exposição de pintura organizada pela Sociedade Mineira de Bellas Artes. Folha de Minas. Belo Horizonte, 10 set. 1936, p. 12.

[32] Na ficha técnica do Museu Mineiro a obra está registrada como do ano de 1931. Catálogo da Exposição Geral de Belas Artes dos Rio de Janeiro do ano de 1895 consta o nome Panorama de Mariana como concorrente neste certame, já como propriedade de Doutor José Cipriano Ferreira.

[33] Mais informações sobre a biografia de Belmiro de Almeida conferir: <http://www.comartevirtual.com.br/belmiro.htm>. Acesso em: 15 ago. 2012.

[34] Imagem Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_ba_arquivos/ba_1887_arrufos.jpg>. Acesso em: 15 ago. 2012.

[35] DUQUE ESTRADA, Luís de Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, c1995, p. 212.

[36] Idem.

[37] AZEVEDO, Arthur. Um Passeio a Minas. Minas Gerais. Belo Horizonte, 05 dez. 1901 In: REVISTA DO ARQUIVO PUBLICO MINEIRO. Imprensa Oficial. Belo Horizonte, maio 1982, p. 5.

[38] Belmiro de Almeida. Estado de Minas, Ouro Preto, 6 out 1897, p. 1.

[39] Idem.

[40] BARBOSA, Waldemar de Almeida. “Má Notícia”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 24 out. 1980, p. 4.

[41] AZEVEDO, op. cit., p. 5.

[42] DUQUE ESTRADA, Luis Gonzaga. Rodolpho Amoêdo. O mestre, deveríamos acrescentar. In: ____. Contemporâneos - Pintores e esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929. Uma transcrição eletrônica pode ser consultada em: KUSABA, Andréia Costa (org.). Rodolpho Amoêdo, por Gonzaga Duque. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/gd_ra.htm>. Acesso em: 1 dez. 2012.