A teoria da expressão de Humbert de Superville e sua recepção no
meio artístico fluminense do início do Século XX *
Arthur
Valle
VALLE,
Arthur. A teoria da expressão de Humbert de Superville e sua recepção no meio
artístico fluminense do início do Século XX. 19&20,
Rio de Janeiro, v. IV, n. 4, out. 2009. https://www.doi.org/10.52913/19e20.IV4.08
*
* *
1. A
prática e a teoria dos artistas oriundos da Academia de artes do Rio de Janeiro
- no período Imperial, tanto quanto no Republicano - apresentam um caráter
essencialmente cumulativo: elas não procedem por rupturas, mas antes empenhando-se
em conciliar suas novas aquisições técnicas e estéticas ao legado de uma bem
firmada tradição. Não é de se espantar, portanto, que, a análise da maneira
como o importante tópico da expressão artística foi compreendido
nas décadas iniciais do século passado revele a convivência simultânea de
concepções oriundas de estratos temporais diversos.
2. De um
lado, pode-se perceber a vigorosa sobrevivência de concepções de expressão
bastante antigas, centradas essencialmente sobre a figura humana, sobretudo
sobre o seu jogo fisiognômico, como aquelas que, remontando ao menos à
Antiguidade Grega,[1] foram enunciadas pelos artistas e
teóricos renascentistas e que conheceram formulações bastante sistemáticas
ainda no século XVII, como testemunham os esforços de Charles Le Brun.[2]
De outro lado, observa-se o surgimento e a afirmação de concepções que eu
gostaria de designar 'formalistas', que compreendem a expressão como sendo
transmitida diretamente pelos elementos constitutivos da imagem - linha,
claro-escuro, valor, cor, textura -, cujo poder expressivo é entendido como
autônomo e independente dos objetos porventura representados.[3]
3. O
presente texto aborda uma concepção de expressão afinada com esse último
gênero, aquela defendida pelo artista-teórico holandês David Pierre Giottino Humbert
de Superville (1770-1849), em seu Essai sur les signes inconditionnels
dans l'art (Ensaio sobre os signos incondicionais na arte). Editado
seriadamente em francês, entre 1827 e 1832, na cidade de Leiden, o Essai
e algumas ideias nele contidas exerceram um influência
significativa na estética europeia de fins do Oitocentos, especialmente
na França. Por essa via, creio, elas também repercutiram nos escritos teóricos
e nas pinturas de artistas ligados à Escola Nacional de Belas Artes (ENBA),
como procurarei demonstrar no que segue.
4. David
Pierre Humbert [Figura
1], descendente de uma família franco-suíça que se estabelecera na
Holanda durante o século XVII, nasceu em Haia em 1770.[4]
Da parte de sua mãe, ele adotou o sufixo de Superville; de seu pai, Jean
Humbert, um respeitado pintor em Amsterdam, teria herdado não só o nome, como
também a inclinação pelas artes.
5. Em
1789, logo após o seu casamento e como complemento de sua formação artística,
Superville estabeleceu-se na Itália. Fixou-se inicialmente em Roma, cidade que
era, em finais do século XVIII, a 'Meca' dos interessados no paganismo antigo,
na arte da Cristandade e da Alta Renascença italiana e na Egiptologia. Em um
primeiro momento, ele teria se associado ao paisagista Hendrik Voogd, o 'Claude
holandês', cujos trabalhos tinham pouco em comum com a inclinação alegórica e
com o desprezo pelos gêneros 'inferiores' que marcariam o pensamento maduro de
Humbert. Logo, porém, ele entrou em contato com os círculos eruditos de Roma,
frequentados por artistas, literatos e connoisseurs, como Giuseppe
Bossi, Antonio Canova, Jacques-Nicolas Paillot de Montabert, Jean-Baptiste J.
Wicar e William Young Ottley. Em particular com esse último, Superville
estabeleceria amizade e partilharia o exacerbado apreço pela arte do desenho e
a admiração pela escolas 'primitivas' italianas.
6. Desde
o início do Setecentos, se intensificava na Itália o coro contra a supostamente
vazia retórica barroca e contra a frivolidade 'rocaille', alimentado pelas
reflexões de Bottari, de Panni, de Lastri, de Zanetti, de Bencivenni ou de
Milizia. Na Roma de finais dos anos 1780, esse coro atingiu sua maior
intensidade e, entre as vozes que promoviam a revalorização da arte dos
‘primitivos’, a de Superville parece ter ocupado uma posição de destaque.[5]
Importante para o pleno desenvolvimento desse seu interesse teria sido o
contato com Jean Baptiste Louis George Seroux d'Agincourt, para cuja gigantesca
Histoire de l'art par les monuments ... Superville teria contribuído com
desenhos. Iniciada em 1779, mas só publicada a partir de 1810, a Histoire
de d'Agincourt foi importante para a validação do estudo do período medieval na
historiografia de arte européia e teve, para a estética pré-rafaelita no século
XIX - algo à revelia de seu idealizador -, uma importância comparável a dos
escritos de Johann Joachim Winckelmann para o risorgimento do estilo
‘antigo’ no século XVIII.
7. Superville
adquiriu a sua expertise a respeito dos ‘primitivos’ através de um
extensivo estudo in loco de suas obras, possibilitado pelas viagens
pelas regiões italianas da Úmbria e Toscana, que realizou respectivamente em
1792-93 e 1799, acompanhado de Ottley. Ele copiou, por exemplo, a fachada da
Catedral de Orvieto e a Visão de São Martinho, na Igreja Inferior de
Assis; em Florença, desenhou as portas de Andrea Pisano, no Batistério, e as
pinturas de Taddeo Gaddi e Giovanni di Milano, na Basílica de Santa Croce; em
Pisa, copiou os afrescos do Campo Santo [Figura 2];
em Subiaco, pode admirar as pinturas dos monastérios de Santa Scolastica e San
Benedetto, bem como o Triunfo da Morte em Sacro Speco, atribuído a Meo
di Siena, obra que alimentaria a sua fascinação recorrente pelo tema. Ao final
de sua peregrinação italiana, Superville era capaz de conciliar o entusiasmo
por Michelangelo e pelos maneiristas, perceptível em inúmeros de seus desenhos
e tributável ao seu contato com Ottley [Figura 3],[6]
com um agudo interesse pelos mestres medievais, que nunca o abandonaria [Figura 4].
Prova disso é que, em 1811, mais de uma década após ter deixado a Itália,
Humbert legalmente tomaria para si o nome de 'Giottino' (literalmente, 'pequeno
Giotto'), pelo qual era conhecido já desde meados dos anos 1790.
8. Em
finais de 1799, com a restauração do Estado Papal em Roma, Superville, que
apoiara a ocupação da cidade pelas tropas francesas revolucionárias, foi
encarcerado na fortaleza de Civitavecchia. Somente em 1801, em um acordo de
troca de prisioneiros, o holandês foi enviado para a França, concluindo
definitivamente sua aventura na Itália. Após uma presumível estadia em Paris,
onde teria tido oportunidade de admirar os tesouros artísticos capturados por
Napoleão, Humbert retornou à Holanda em 1802. Por volta de 1803, se encontrava
em Amsterdam, onde tornou-se membro da organização de artistas Felix Meritis;
a partir de 1805, foi professor de disciplinas variadas em cidades como
Feyenoord, Enckhuysen e Leiden, onde se estabeleceu em 1812 e viria a falecer.
Em 1825, Superville foi nomeado o primeiro diretor do Prentenkabinet de
Leiden, posto que manteve até a sua morte em 1849. Até hoje, o Prentenkabinet
guarda aquela que é, provavelmente, a maior coleção de desenhos de Superville,
contendo, inclusive, originais das ilustrações de sua obra capital, o referido Essai
sur les signes inconditionnels dans l'art.
9. O Essai
de Superville [Figura
5] é, essencialmente, um tratado sobre fisiognomia no qual são
consideradas as formas mais essenciais e abstratas de simbolismo. Nele, o autor
desenvolve a tese de que determinadas direções e cores evocam no espectador,
infalível e incondicionalmente - daí o nome da obra -, qualidades expressivas
precisas. O Essai é dividido em três livros: o primeiro é dedicado à
enunciação dos princípios da tese de Superville; o segundo e mais extenso,
verifica a relevância da tese para as ‘belas artes’ - arquitetura, escultura e
pintura; já o breve terceiro livro é, como define o autor, a “aplicação e
resumo teórico-prático” das observações precedentes.[7]
Segue-se um apêndice - La statuaire comme art absolue - e um conjunto de
notas e explicações das ilustrações. Como sublinhou Barbara Sttafford, o Essai
permaneceu incompleto: a sua derradeira parte - que chamar-se-ia Medusa -
nunca veio a lume. Nela, Superville, sintetizando um vasto e erudito conjunto
de leituras, procurava validar o simbolismo que atribuía aos seus signos
estéticos básicos através de uma “extensiva odisseia pelo inconsciente coletivo
da humanidade e pela exploração de mitos e tradições de todo o mundo”.[8]
10. Logo
na seção inicial do Livro Primeiro - Le Principe -, Superville expõe a
tese fundamental do Essai. Ele começa considerando as direções básicas
que definem a condição existencial do homem no mundo: em contraste com a
vertical, “primitiva e absoluta”, ele enumera três outros tipos possíveis de
direção, a horizontal e duas espécies de oblíquas - expansivas
ou convergentes -, que são modificações da horizontal subjacente [Figura 6].
Relacionada a essas três direções, Superville constitui a sua teoria da cor
através de um arranjo igualmente tríplice, cujas primárias são branco, vermelho e preto. Segundo ele,
“essas direções e cores básicas, quando observadas nas obras da natureza ou em
meio às composições da arte, evocam equivalências emocionais”.[9]
A tese é ilustrada, em um primeiro momento, por três esquemas da face humana,
associados a três expressões fundamentais - alegria, calma e tristeza
[Figura 7].
Segundo Superville, as linhas expansivas do primeiro esquema vinculam
qualidades dinâmicas como vacilação, agitação, dispersão,
sendo sua cor análoga o vermelho; as linhas horizontais do
segundo esquema indicam equilíbrio, calma, ordem, e sua
cor análoga é o branco; por fim, as linhas convergentes do
terceiro esquema são associadas a concentração, recolhimento, solenidade,
e a sua cor análoga é o preto [Figura 8].
11. Seria
possível apontar analogias interessantes entres esses três esquemas básicos de
Superville e alguns desenhos feitos por Charles Le Brun no contexto de suas
vastas pesquisas sobre a expressão nas artes, calcadas na fisiognomia humana.[10]
Todavia, creio que a teoria de Humbert, em seus traços mais amplos, poderia der
também aproximada de outras concepções de expressão seiscentistas, como aquela
baseada na analogia com os modos da música grega. De fato, para
Superville, as expressões evocadas em seus esquemas não dependeriam,
absolutamente, das faces humanas neles esboçadas: “Já que, em cada uma das três
faces, a única mudança se refere às direções dos traços esquemáticos,
Superville insiste que essas direções são signos incondicionais da emoção
humana”.[11] Elas já seriam carregadas de significado
e exerceriam o seu efeito desvinculadas de qualquer motivo particular, podendo,
portanto, ser encontradas não somente na face humana, mas também nos animais,
nas plantas ou na arquitetura - como Superville procura demonstrar através de
diversos exemplos ilustrados, presentes em especial nos dois primeiros livros
do Essai [Figura 9].
12. Simultaneamente,
essa expansão da esfera da expressão artística abre as portas para a
sistematização da possibilidade de conferir um valor expressivo preciso a
motivos que transcendem, em muito, as representações do rosto humano. Por
exemplo, diversas ilustrações das seções dedicadas à escultura e à pintura do Essai
mostram representações da totalidade do corpo estruturadas pelas direções
básicas enumeradas [Figura 10]. Já um comentário como aquele que
Superville faz sobre o Testamento de Eudamidas (1643-44) de Nicolas
Poussin [Figura 11], obra que, segundo o holandês, exprime “a
calma, o silêncio, a aproximação do repouso eterno”,
exemplifica como o caráter evocado por um quadro como um todo pode ser o
resultado da predominância de uma determinada direção - no caso, a horizontal -
em sua composição:
13.
Quel parfait accord entre l'aire et les signes
inscrits! tout y est direction horizontale: le moribunde,
son lit, sa lance appendue au mur, parce que tout y doit exprimer le calme, le silence,
l'approche du repos éternel. Mettons ce lit em
perspective, inclinons seulement tant soit peu cette lance, et la scène est
gâtée. Chefs d'ouevre d'éloquence linéaire, et surtout l´Eudamidas, il ne
manque a ce derrnier tableau pour être parfait, qui d'y avoir tout les
personages pâles, défaits et vêtus des seules nuances d' un
blanc plus ou moins pur. Tel dumoins j' aime a me
figurer ce tableau en contemplant la gravure monotone de Pesne, mais par cela
même sa traduction la plus heureuse.[12]
14. Por
fim, as referências à horizontalidade dos templos “greco-dóricos”, às direções
convergentes do arco ogival gótico ou aos telhados expansivos dos pagodes
chineses [Figura
12], são declarações eloquentes de como, no entender de Superville,
todo o 'estilo' de uma civilização ou época pode vincular valores expressivos e
mesmo morais, em função das direções que estruturam os seus produtos.
15. A
acima referida incompletude da primeira edição do Essai desgostava seu
autor: “sem a ‘Medusa’”, reconhecia Superville, “seu tratado assemelhava-se a
um roman à la clef sem uma chave”.[13]
Por isso, ainda em 1839, Humbert se encontrava empenhado em reeditar a obra.
Ele publicou então, à guisa de errata, um panfleto no qual corregia erros
tipográficos e gramaticais das primeira edição, bem
como expressava o desejo de reelaborar o plano geral do livro e suas
ilustrações. Uma segunda edição do Essai não foi, porém, publicada
durante a vida de Humbert.
16. Por
esses ou por outros motivos, a obra teve pouca repercussão nas décadas
imediatamente seguintes à sua publicação. Todavia, no ambiente francês da IIIe
Republique, as ideias do Essai adquiriram grande notoriedade. Eu não
poderia traçar aqui um painel exaustivo da recepção francesa do Essai,
mas creio ser possível afirmar que um dos principais responsáveis pela sua
‘reabilitação’ foi Charles Blanc, célebre historiador e teórico da arte, um
dos fundadores e redator-chefe da prestigiada Gazette des Beaux-Arts. Em
sua mais conhecida obra, a Grammaire des Arts du Dessin (Paris,
1867) [Figura
13], Blanc propunha uma visão da arte ordenada por noções abstratas e
unificadoras que, em boa medida, derivavam do Essai de Superville. Nos Pincipes
que abrem a sua Grammaire, muito especialmente na parte VI, De la
figure humaine [Figura 14], Blanc faz diversas citações literais,
por vezes não creditadas, a obra de Superville e revela a sua profunda imersão
nas teorias do holandês. De maneira análoga, devem ser lembradas as teorias de
Charles Henry, que, desde a sua Introduction a une esthétique cientifique
(Paris, 1885), defendia a universalidade da aplicação e do significado dos
elementos abstratos das artes visuais, fazendo menção ao Essai de
Superville.
17. De
maneira mais ou menos indireta, o Essai exerceria, assim, uma influência
considerável na estética fin-de-siécle francesa. É notória, por exemplo,
a marca deixada pela Grammaire de Blanc, “durante 30 anos o grande
manual de estudos artísticos”,[14] na produção dos artistas franceses que
enfrentaram a ‘crise impressionista’ situada entre 1885 e 1890. Nesse mesmo
sentido, a influência de Superville é perceptível na obra de artistas como Paul
Gauguin e Georges Seurat, que procuraram introduzir em suas pinturas um elemento
de reflexão teórica que muitos julgavam ter sido negligenciado pelos mestres da
geração anterior. Dario Gamboni chamou atenção, por exemplo, para as analogias
iconográficas e compositivas entre uma gravura alegórica de Superville e Mana’o
Tupapa’u (1892), de Gauguin [Figura 15].[15]
A hipótese da apropriação dos esquemas do Essai por Seurat tem bases
ainda mais sólidas, documentadas em uma folha de estudos de c.1887, relacionada
à gênese da Parade de Cirque (1888),[16]
bem como em uma carta sua endereçada a Maurice Beaubourg, em 1890.[17]
18. Reflexos
das ideias de Superville podem ser percebidos ainda em obras que se encontravam
a meio caminho entre arte e ciência, reflexo de preocupações então bastante
difundidas no sentido de tornar a instrução artística mais racional.[18]
Um bom exemplo disso se relaciona à recepção que conheceram, no meio artístico
francês, as experiências do fisiologista G. B. Duchenne de Boulogne, divulgadas
em seu álbum Mecánisme de la physionomie humaine, de 1862 [Figura 16].[19]
Associando eletrofisiologia e fotografia, Duchenne produzia e registrava
expressões fisionômicas ao estimular, com choques elétricos, os músculos
faciais de pacientes atacados de paralisia facial - insensíveis, portanto, à
dor [Figura 17].
Assim como Charles Henry e outros, Mathias Duval, professor de Anatomia da École
des Beaux Arts francesa, interpretou as fotografias de Duchenne como uma
espécie de legitimação científica dos esquemas de Superville: em seu Précis
de Anatomie à l'usage des artistes (Paris, s.d.),[20]
Duval, “levando em conta apenas a realidade, sem considerar as aparências”,[21]
propunha alguns ‘melhoramentos’ nos esquemas do holandês, baseado na abordagem
científica de Duchenne e no seu mapeamento experimental das modificações
promovidas na expressão do rosto humano pelas contrações musculares [Figura 18].
19. Como
me referi no início, as idéias de Humbert de Superville, embora certamente
conhecidas no meio fluminense ainda no século XIX,[22]
tiveram aqui uma difusão mais significativa a partir do início do século XX -
fenômeno de certo relacionado ao interesse que suscitado na França da IIIe
Republique pelo Essai. É sabido que a biblioteca da ENBA possuía
obras que lhe faziam referência direta - embora sejam imprecisas as datas de
suas aquisições -, como exemplares da Grammaire de Blanc, em sua
terceira edição, de 1876, ou do manual L’Art dans la Maison (Grammaire de
l'ameublement) (Paris, 1884), de Henri Havard, no qual se encontram
aplicadas à decoração de interiores domésticos as ideias de expressão
formuladas nos esquemas de Superville [Figura 19].[23] Ainda de maior circulação no Rio de
Janeiro pode ter sido um manual escrito por Camille-Félix Béllanger, A Arte
do Pintor - Tratado pratico de desenho e de pintura, traduzido para o
português e editado pela Livraria Garnier, provavelmente ainda na primeira
década do século XX, que estampava, no início da parte Myologia
expressiva, os esquemas de Superville, segundo a versão de Duval [Figura 20].
20. A
partir dos anos 1910, referências a Superville podem ser encontradas em
programas de aula, textos e teses de artistas estreitamente relacionados à ENBA
na primeira metade do século passado. Raul
Pederneiras ilustrou o seu livreto sobe “anatomo-physiologia artística” - A
máscara do riso, do qual existe uma segunda edição datada de
1917 - com os esquemas do holandês, fazendo simultanemeamente referência ao
‘complemento’ a eles conferido por Duchenne e seu “methodo experimental” [Figura 21].[24]
Em 1923, Raul voltaria a citar os esquemas de Superville no programa que propôs
para a cadeira de Anatomia e Fisiologia Artísticas, que regia na ENBA desde
1918.[25]
21. Existem
pelo menos duas outras referências de brasileiros a Superville, embora mais
tardias. A primeira se encontra em uma tese escrita por Georgina de
Albuquerque para um concurso visando o provimento da cadeira de Desenho do
curso de Pintura da ENBA, em 1942. Georgina faz referência ali às três
expressões clássicas propostas por Superville - calma, tristeza e alegria - mas
escolhe, para ilustrá-las, não os usuais esquemas faciais e sim três desenhos
do corpo humano completo [Figura
22]: nesses, com certa liberdade, as direções que caracterizam cada uma
das expressões são representadas nos braços das figuras, demonstrando assim,
como diz a autora, que também o corpo como um todo “pode exprimir as tres
expressoes geraes”.[26] Já na Aula Inaugural dos cursos da ENBA,
em março de 1954, foi a vez de Augusto
José Marques Júnior fazer referência à teoria da expressão de Superville. O
texto de sua palestra, transcrito em uma edição dos Arquivos da
instituição,[27] era acompanhado de pranchas de seu
próprio punho, nas quais os esquemas faciais para a tristeza, a alegria e a
tranquilidade eram justapostos a desenhos mais elaborados de, respectivamente,
um salgueiro-chorão, um detalhe de um pagode chinês e um detalhe de templo
grego [Figura 23].
22. Todavia,
creio, não é nos escritos e, sim, nos próprios quadros dos artistas oriundos da
ENBA que se pode encontrar os exemplos mais precoces de apropriação das ideias
de Humbert de Superville. Para apoiar essa hipótese, comento, de maneira muito
breve, as evidências visuais fornecidas por alguns exemplos de pinturas que
julgo particularmente eloquentes.
23. O
primeiro é A tempestade [Figura
24], quadro pintado por Arthur
Thimóteo da Costa em Paris, em 1910. Embora a pintura de nus não seja
atípica na obra madura de Arthur Thimóteo, artista hoje mais lembrado pela
exaltação da fatura de suas paisagens quase abstratas, não há como negar a estranheza
d'A tempestade. Se certamente evoca um quadro como Eco (1874) [Figura 25],
de Alexandre Cabanel, a obra de Thimóteo, na sua dissonância semântica entre a
nudez da mulher e o entorno dominado pelos elementos da natureza e,
especialmente, na relação tensa que estabelece entre a figura e o raio,[28]
me parece irredutível a supostos protótipos europeus. Aqui, porém, gostaria de
chamar atenção apenas para a maneira como o artista configura os membros da
mulher, frisando o seu recolhimento com relação a paisagem inóspita circundante
[Esquema 1]:
matizada por uma expressão de medo, o uso das oblíquas convergentes parece
seguir as indicações gerais de Superville em seu Essai.
24. Já o
esquema das oblíquas expansivas aparece empregado, de maneira dir-se-ia quase
didática, no movimentado Final de Jogo (1907), de Carlos Chambelland [Figura
26 e Esquema
2]. De maneira mais sofisticada, as oblíquas expansivas figuram
igualmente no Baile a Fantasia (1913) [Figura 27],
pintado pelo irmão mais velho de Carlos, Rodolpho Chambelland. Em uma composição que evita deliberadamente
qualquer simetria, as oblíquas expansivas são, não obstante, parte essencial do
esqueleto estrutural do quadro como um todo: são elas as responsáveis pelo
forte efeito 'dinamogênico' que emana de todas as figuras principais e que,
deslocadas centripetamente de seus eixos verticais, se equilibram precariamente
sobre suas bases instáveis [Esquema 3]. Como procurei demonstrar em outra parte,[29]
as qualidades que os críticos contemporâneos perceberam no Baile quando
este foi mostrado pela primeira vez, na Exposição Geral de 1913 - movimento,
agitação, volúpia, inconstância, etc. - combinam
perfeitamente com aquelas associadas por Superville ao esquema abstrato das
diagonais expansivas.
25. A
totalidade ou, menos persuasivamente, detalhes de outros quadros pintados
durante as primeiras décadas do século passado poderiam ser aqui citados em
defesa da difusão, entre os artistas ligados à ENBA, das “ideias de Humbert
sobre os poderes expressivos da cor e da linha”, que, como resumiu Jennifer
Montagu, “foram uma via importante, entre as muitas similares, embora
intelectualmente menos estimulantes, na busca de um significado intrínseco e
simbólico nos elementos abstratos da arte, que iria se perpetuar na era de
Wölfflin, Kandinsky e Mondrian”.[30] Embora, pela própria generalidade dos
esquemas de holandês, provas adicionais sejam necessárias para confirmar a
hipótese de sua absorção nos quadros citados, creio que o que expus é
suficiente para intuirmos o quanto existia, em torno da Academia fluminense,
uma abertura para a concepção eminentemente moderna de expressão pictórica
defendida por Superville.
.
* O
presente texto é uma versão expandida de VALLE, Arthur .
Novas Concepções de Expressão na Pintura Brasileira da 1a República: A Difusão
das Ideias de Humbert de Superville. In: CONDURU, Roberto; SIQUEIRA, Vera
Beatriz (org.). Anais do XXVIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da
Arte. 1808-2008 Mudanças de Paradigmas para a História da Arte no Brasil.
Rio de Janeiro : Comitê Brasileiro de História da
Arte, 2008,. p. 515-523.
[1] É o que deixam entrever,
por exemplo, certas passagens da Memorabilia de Xenofonte, que recordam
os ensinamentos de Sócrates; cf. a tradução para o português disponível em
LICHTENSTEIN, Jacqueline (dir.). A Pintura - Vol. 6: A figura humana.
São Paulo: Ed.34, 2006, p. 15-17.
[2] A melhor discussão que
conheço a esse respeito continua sendo MONTAGU, Jennifer. The Expression of the Passions:
The Origin and Influence of Charles Le Brun’s "Conférence sur l’expression
générale et particulière". Yale University Press, 1994.
[3] Não creio que exista
necessariamente uma contradição entre concepções fisiognômicas e 'formalistas'
da expressão artística. Como Jennifer Montagu faz notar em outra parte, por
exemplo, era sobretudo "em termos de ritmo, movimento, luz e cor
empregados por seus efeitos emotivos" que Le Brun entendia o que ele
designava como expression générale; cf. MONTAGU, Jennifer. The Theory of the Musical Modes in the Académie Royale de Peinture et de
Sculpture. Journal
of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 55 (1992), p. 238. Analogamente, como
penso que ficará mais claro no que segue, a maneira como Humbert de Superville
constrói suas ideias também aponta para uma permeabilidade entre as categorias
fisiognômica e formalista da expressão.
[4] Como referência geral
para essas breves notas biográficas a respeito de Humbert de Superville, me
vali sobretudo do livro de Barbara M. Stafford, Symbol and Myth: Humbert
de Superville's Essay on Absolute Signs in Art. Delaware, 1979.
Particularmente a estadia do Humbert na Itália é discutida por Giovanni
Previtali em alguns de seus textos, em especial: Humbert de Superville in
Italia. In: MOSTRA do disegni di D. P. Humbert de Superville. Catalogo a cura di Anna Maria Petrioli. Leo S. Olschki
Editore: Firenze, 1964, p. 5-15.
[5] Em seu livro sobre a
recepção dos 'primitivos' entre os séculos XV e XVIII, Previtali frisou a
relevância de Superville, considerando-o, em finais dos Setecentos, o exemplo
da mais avançada compreensão de seus 'estilos'; cf. PREVITALI, Giovanni. La
fortuna dei primitivi dal Vasari ai Neoclassici. Turin:
Giulio Einaudi, 1964.
[6] William Ottley, “allievo
di uno stretto seguace di [Henry] Fuseli, [...] era stato indirizzato
sopratutto all'ammirazione per Michelangelo e predisposto alla riscoperta degli
aspetti più astrattamente visionari della pittura manieristica. Da lui il De
Superville poté quindi ricevere impulsi in una direzione fortemente divergente
dallo stretto neoclassicismo ed essere sollecitato a prestare attenzione ad un
modo diverso, accentuatamente soggestivo, proteso alla conquista del 'sublime',
ed in questo nettamente preromantico, di respondere a
quella crisi del barroco [...]. Fuseli, è vero, aveva da tempo lasciato Roma,
ma a sostituirlo nel ruolo di punta del neomanierismo giungerà, nel 1792, il
tedesco Asmus Carstens, riscropitore, fin dal 1783, di Giulio Romano (che a sua
volta influenzò assai, attraverso le stampe, anche William Blake), ed autore di
incisioni, disegni, quadri, tratti da Omero, Ossian, Dante” (PREVITALI, Giovanni.
Humbert de Superville in Italia. Op. cit., p.8-9).
[7] “[...] ce troisième e
dernier Livre, application e résumé théorique-pratique de toutes nos
observations précédentes” (SUPERVILLE, D. P. G. Humbert de. Essai sur les signes inconditionnels
dans l'art. Leiden: C. C. van der Hoek, 1827, p. 75).
[8] STAFFORD, Barbara M.. 'Medusa' or the Physiognomy of the Earth: Humbert de
Superville's Cosmological Aesthetics, Journal of the Warburg and Courtauld
Institutes, Vol. 35, (1972), p. 308.
[9] Idem, p. 308.
[10] É o caso, por exemplo,
das Six têtes de Marc Aurèle jeune, Département des Arts Graphiques do
Musée du Louvre, Paris, INV 28239, recto [cf. Imagem].
Uma versão gravada desse desenho conheceu significativa circulação com a
publicação, em 1806, da Dissertation sur un Traité de Charles Lebrun
concernant le Rapport de la Physionomie Humaine avec Celle des Animaux, de
L.-J.-M. Morel d'Arleux.
[11] HERBERT, Robert L.. Seurat: Drawings and Paintings. New Haven &
London: Yale University, 2001, p. 146.
[12] SUPERVILLE, D. P. G.
Humbert de. Op. cit., p. 63-64. A gravura de
Jean Pesne [cf. Imagem] e
o respectivo comentário de Superville são referidos em VERDI, Richard.
Poussin's Eudamidas: Eighteenth-Century Criticism and
Copies. The Burlington Magazine, v. 113, No. 822, Sep., 1971, p.
513-524.
[13] STAFFORD, Barbara M.. Op. cit., p. 308-309
[14] CHASTEL, Andre. Une
Source oubliée de Seurat. Fables, formes, figures. Reed., Paris:
Flammarion, 2000, v.2, p. 387
[15] GAMBONI, Dario. Paul
Gauguin's Genesis of a Picture: A Painter's Manifesto and Self-Analysis. Nineteenth-Century
Art WorldWide. v. 2, issue 3, autumn 2003. Disponível em: <http://www.19thc-artworldwide.org/autumn_03/articles/gamb.shtml>. Acesso em 1 set. 2009.
[16] HERBERT, Robert L.. Op. cit., p. 145.
[17] CHASTEL, Andre. Op.
cit., p. 386
[18] BOIME, Albert. The
teaching of fine arts and the avant-garde in France during the second half of
the nineteenth century. In:
Las academias de arte (VII Coloquio Internacional de Gaunajuato). D.F.:
Univesidad Autónoma do Mexico, 1985, p. 185-186.
[19] O próprio Duchenne
parece ter vislumbrado a conexão entre as suas pesquisas e a prática artística,
como demonstra o subtítulo de uma outra edição de sua obra, também de 1862, Analyse
electro-physiologique de d’expression des passions applicable à la pratique de
arts plastiques. (cf. BORDES, Juan. Historia
de las teorias de la figura humana: El dibujo/ la anatomía/ la proporcíon/
la fisiognomía. Madrid: Cátedra, 2003, p. 350). Antes de morrer, Duchenne
doaria a École des Beaux-Arts parisiense os enormes originais de suas
fotografias.
[20] Segundo Albert Boime, o
prefácio do Précis de Duval é datado de 1881; cf. BOIME, Albert. Op.
cit., p. 186, nota 68.
[21] Idem, prancha 3.
[22] Por exemplo, no
comentário a um retrato de D. Pedro II pintado por Décio Villares, publicado na Revista Illustrada,
edição n.336 de 1883, o articulista que assina J. Dast. expõe, sem
todavia dar os devidos créditos, a essência da teoria da expressão de
Superville e, baseado nela, uma curiosa interpretação da personalidade do
monarca (cf. link).
[23] Agradeço a indicação
dessa obra à Profa. Marize Malta, da EBA/UFRJ, que gentilmente me ofereceu uma
versão digitalizada do exemplar que pertence ao museu D. João VI da EBA/UFRJ.
[24] PEDERNEIRAS, Raul. A
máscara do riso. Ensaios de anatomo-physiologia artistica. 2. ed. Rio de
Janeiro: Officinas Graphicas do “Jornal do Brasil”, 1917, p.13. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/rp_riso.htm>.
Acesso em 1 set. 2009.
[25] PEDERNEIRAS, Raul. Programma
da Cadeira de Anatomia e Physiologia Artísticas. Acervo Arquivístico do
Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 2024, 20 de janeiro de 1923, f.2 recto,
item 48. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/documentos/programas_enba.html> . Acesso em 1 set. 2009.
[26] ALBUQUERQUE, Georgina
de. O Desenho como base no ensino das Artes Plásticas. Rio de Janeiro:
ENBA, 1942, p.39. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/ga_desenho.pdf>.
Acesso em 1 set. 2009.
[27] MARQUES JR., Augusto
José. Plástica das expressões fisionômicas. Arquivo da Escola de Belas
Artes. Rio de Janeiro: Universidade de Brasil, 1955. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/mj_expressoes.pdf>.
Acesso em 1 set. 2009.
[28] Embora genérica, me
parece sugestiva a semelhança de configuração entre o raio da obra de Timótheo
e a figuração da Raiva Assassina (Murderous Rage), [cf. Imagem]
em um outro livro que propõe representações 'abstratas' para as paixões
humanas, o singularíssimo Thought-Forms (London, 1905), dos teosofistas
Annie Besant e C. W. Leadbeater. Seria interessante restabelecer a eventual
relação entre essas imagens e creio, sobretudo, que a influência das correntes
mistico-espiritualistas na Europa de fins do Oitocentos sobre a arte dos
brasileiros mereceria uma investigação aprofundada.
[29] VALLE, Arthur. Baile à
fantasia, de Rodolpho Chambelland: A figuração do frenesi. 19&20.
Vol. III, n. 4, outubro de 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/av_rc_baile.htm>.
Acesso em 1 set. 2009.
[30] MONTAGU, Jennifer. Op.
cit., p. 247.