...................................................Arte Brasileira do Século XIX e Início do XX

Fontes Primárias - Textos de Artistas

A Mascara do Riso - Ensaios de Anato-Phisiologia Artistica, de Raul Pederneiras

VALLE, Arthur (org.). A Mascara do Riso - Ensaios de Anato-Phisiologia Artistica, de Raul Pederneiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/rp_riso.htm>. 

Nas Artes Visuais da Primeira República brasileira, em paralelo ao surgimento e à afirmação de concepções "modernas" de expressão, que, grosso modo, compreendiam esta última como sendo transmitida direta e incondicionalmente pelos elementos constitutivos da forma artística - linha, claro-escuro, volume, cor, etc. [1] -, pode-se constatar a vigorosa sobrevivência de concepções de expressão bem mais antigas, centradas sobre a figura humana e, especialmente, sobre o seu jogo fisiognômico. Estas remontam ao menos à Antiguidade grega [2], e, tendo sido enunciadas pelos artistas-teóricos renascentistas - Leon Battista Alberti, Leonardo da Vinci, etc. -, conheceram formulações bastante sistemáticas ainda no século XVII, como testemunham os esforços de Charles Le Brun [3]. Essa manutenção e, cumpre frisar, resignificação de concepções de expressão artística vinculadas à fisiognomia me parece bem exemplificada na obra que o leitor pode acessar na presente página: A Mascara do Riso - Ensaios de Anato-Phisiologia Artistica, de autoria de Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953) - ou simplesmente Raul, como era mais conhecido.

Caricaturista, pintor, ilustrador, professor, escritor, homem de teatro ... O multifacetado Raul foi figura de destaque no meio artístico fluminense desde inícios do século XX, e isso não só no ramo das artes gráficas, com relação ao qual é hoje mais lembrado, mas também dentro dos próprios círculos acadêmicos de sua época: basta lembrar que, entre 1918 e 1938, Raul teria lecionado Anatomia e Fisiologia Artísticas na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro [4] - e, de fato, existe ao menos um detalhado plano de ensino de sua autoria, que comprova a sua dedicação ao magistério dessa disciplina [5].  

A Mascara do Riso se inicia e é pontuada por observações que delimitam claramente o público visado por Raul: os artistas, não os médicos especializados. Portanto, suas considerações sobre a miologia humana, embora denotem conhecimento profundo do assunto,  focam aquilo que é de utilidade prática e imediata para os primeiros, sem preciosismos terminológicos ou detalhamentos exagerados; nisso, Raul segue uma tendência pedagógica já bem estabelecida no Brasil de seu tempo. No correr do ensaio, ele enumera uma lista de autores que considera referenciais: Paes Leme, entre os brasileiros; Azevedo Neves e Paulo Silva Araújo, entre os portugueses; Humbert de Superville, Duchenne de Boulogne, Mathias Duval, Paul Richer, entre os de língua francesa; e ainda outros mais. Caricaturista exímio e certamente acostumado com o riso - mais ou menos amargo - suscitado no público pelos seus desenhos, não é de se espantar que Raul exponha com autoridade e conhecimento de causa toda uma sutil escala de variações da expressão que dá título ao seu ensaio. Sua considerações são acompanhadas de desenhos lineares sintéticos - por vezes de próprio punho, por vezes se referindo a obras de arte mais ou menos conhecidas - e, fato interessante, também de fotos de atores contemporâneos, o que recorda a sua importante atuação como escritor de revistas teatrais no Rio de Janeiro da primeira metade do século passado.

O leitor notará que a edição de A Mascara do Riso aqui disponibilizada é, na verdade, a segunda, saída, em 1917, das gráficas do Jornal do Brasil, periódico fluminense para o qual Raul colaborou com assiduidade. Não tenho notícias precisas a respeito da primeira edição. Tal dado parece indicar, todavia, que a obra teve uma boa recepção em sua época - o que não chega propriamente a surpreender, uma vez que textos em português abordando questões técnicas sobre Arte certamente não eram então abundantes. É mesmo bem possível que o ensaio tenha sido elaborado com a intenção deliberada de suprir carências na bibliografia artística de sua época. Isso explicaria porque ele se encerra com um detalhado Apêndice sobre as proporções humanas, que só muito tangencialmente toca o tema anunciado no título da obra. Essa importante iniciativa de Raul é ainda mais admirável quando percebemos que ela não foi um caso isolado: segundo Araujo Vianna, foi justamente Raul o responsável pela publicação de um outro documento fundamental da teoria da arte brasileira da Primeira República, Mecanismos e proporções da figura humana, de João Zeferino da Costa, que veio à lume logo após a morte de seu autor em 1916 [6], ou seja, quase simultaneamente à edição do trabalho aqui discutido.

Reprodução feita a partir de exemplar pertencente ao organizador.

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[1] Abordei brevemente esse tópico na parte 7 do artigo Baile à fantasia, de Rodolpho Chambelland: A figuração do frenesi, publicado no presente site, e, com um pouco mais de vagar, em uma comunicação chamada Novas Concepções de Expressão na Pintura Brasileira da Primeira República: A Difusão das Idéias de Humbert de Superville, apresentada no XXVIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte.

[2] É o que deixam entrever, por exemplo, certas passa171gens da Memorabilia de Xenofonte, que recordam os ensinamentos de Sócrates; cf. a tradução para o português disponível em LICHTENSTEIN, Jacqueline (dir.). A Pintura - Vol. 6: A figura humana. São Paulo: Ed.34, 2006, p.15-17.

[3] A melhor discussão que conheço a esse respeito continua sendo MONTAGU, Jennifer. The Expression of the Passions: The Origin and Influence of Charles Le Brun’s "Conférence sur l’expression générale et particulière". Yale University Press, 1994. É importante frisar que não existe necessariamente uma contradição entre as concepções "figiognômica"e "formal" da expressão artística: como Montagu faz notar em outra parte, era sobretudo "em termos de ritmo, movimento, luz e cor empregados por seus efeitos emotivos" que Le Brun entendia o que ele designava como expression générale (MONTAGU, Jennifer. The Theory of the Musical Modes in the Académie Royale de Peinture et de Sculpture. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 55 (1992), p. 238). A maneira como Humbert de Superville elabora os seus famosos esquemas aponta, igualmente, para uma permeabilidade entre essas duas vertentes da teoria da expressão artística; cf. SUPERVILLE, D. P. G. Humbert de. Essai sur les signes inconditionnels dans l'art. Leiden: C. C. van der Hoek, 1827.

[4] Segundo Alfredo Galvão, Raul "prestou concurso [para a cadeira de Anatomia e Fisiologia Artísticas da ENBA], tendo como concorrente: Dr. Alfredo de Morais Coutinho, Dr. Leonidas da Silva Porto e Dr. Firmino von Doellinger da Graça. Exerceu a cátedra de 1918 a 1938, quando, por lei, foi obrigado a desacumular, optando pela carreira de Direito Internacional da Faculdade de Direito da qual era também catedrático. No seu ensino empregou o método de Paul Richer, usando frequentemente o modelo vivo, ilustrando suas lições com inúmeros desenhos executados no quadro negro" (GALVÃO, Alfredo. Subsídios para a história da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1954, p.108). Vale lembrar que Galvão teria sido aluno de Raul na ENBA; além disso, uma série de desenhos de Francisco Bayardo, pertencentes ao Museu D. João VI/EBA/UFRJ e datados de 1923, parecem comprovar a prática pedagógica referida na citação; cf. Figura 1 e Figura 2.

[5] PEDERNEIRAS, Raul. Programma da Cadeira de Anatomia e Physiologia Artísticas [20 jan. 1923]. Acervo Arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 2024. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/documentos/programas_enba.html>.

[6] COSTA, João Zeferino. Mecanismos e proporções da figura humana. Prefácio de ernesto da Cunha Araújo Vianna. Arquivos da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, n.2, 1956, p.15-74. Há algum tempo, postei no presente site um fac-simile desse trabalho; consultar: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/jzc_proporcoes.htm>.