Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar. [1]

Luciano Migliaccio

MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm>.

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Este título é o mesmo do ensaio que abre a coletânea Os contemporâneos [cf. link] do crítico Gonzaga Duque Estrada, publicada postumamente em 1929, no Rio de Janeiro. Naquela data, sete anos após a Semana de Arte Moderna de São Paulo abrir as portas à vanguarda antropofágica, a escolha de publicar um volume de um crítico falecido em 1914, encabeçado pelo nome de Amoedo, pode parecer uma extravagância e merece uma reflexão.

Antes que a Revolução de 1932, e a repressão que a seguiu criassem barreiras difíceis de serem ultrapassadas, o diálogo entre os inovadores no meio artístico carioca e os paulistas era mais evidente. Um dos elos dessa relação era certamente a obra de Di Cavalcanti. Era fácil perceber que a gráfica reveladora do autor dos Fantoches da meia-noite devia algo ao traço dos caricaturistas cariocas. A sátira moralista de Angelo Agostini, de Bordalo Pinheiro, de Belmiro de Almeida contribuíra de forma decisiva ao renovamento formal e temático da cultura figurativa nos anos da crise do Império e da instauração da República, e continuava viva na obra de Raul Pederneiras, de Helios Seelinger e de Kalixto, para citar os nomes mais conhecidos. De fato, o livro de Gonzaga-Duque continha um esboço inacabado de uma história da caricatura no Brasil. Além disso, no esforço de desenhar uma genealogia da inovação, Gonzaga-Duque destacava algumas poucas figuras que agitaram as águas paradas da academia naqueles anos e, inspirados nas novidades procedentes dos maiores centros europeus, onde haviam estudado, tentaram introduzir no Brasil um novo padrão figurativo. Uma arte feita para um novo público de funcionários e burgueses, que começava a surgir, habitantes de uma capital moderna, como se queria o Rio de Janeiro, capaz de representar a sociedade brasileira na sua realidade complexa, fora dos esquemas da imagem oficial. A representação das obsessões sexuais do homem moderno aparecia na obra de Helios Seelinger, inspirada no mestre do simbolismo alemão Franz von Stuck e, mais ainda, nas ilustrações do maior gráfico entre os modernistas belgas, Felicien Rops. Uma obsessão que podemos reencontrar nos desenhos eróticos e de ficção científica de um outro brasileiro ativo em Paris, Henrique Alvim Correia. O paisagista Roberto Mendes, seguidor da estética de Ruskin, introduzia no Brasil uma interpretação simbolista da realidade natural do país, que era retomada na pintura sincera e forte de João Baptista da Costa. Augusto Luiz de Freitas frequentara a colônia de artistas de Antícoli Corrado, perto de Roma, os círculos simbolistas romanos que se reuniam na casa do Conde Primoli, devotos do culto de Gabriele D'Annunzio. Naturalmente, havia Elyseu Visconti que, desde 1900, destacava-se como o mais talentoso e universal artista da última geração, introduzindo as propostas do art nouveau aprendidas no ateliê parisiense de Grasset.

Amoedo era o mestre de todos. Não apenas por motivos de idade e porque ocupara uma das cadeiras mais importantes da Escola Nacional de Belas Artes, mas sobretudo porque encarnava, aos olhos daqueles jovens atrevidos, o exemplo do artista moderno. Se Grimm e os seus introduziram no Rio não tanto a pintura ao ar livre, mas uma nova maneira de entender a arte, identificada com a própria vida, com a liberdade de escolha dos motivos do fotógrafo e a independência do boêmio, Amoedo foi o primeiro dos dandies. A arte para ele era uma forma de viver numa esfera superior, afastada das convenções e da politicagem. Devoto de uma religião pessoal, cultuava aquela pintura, a qual, parafraseando Baudelaire, “parte do princípio que um quadro deve antes de tudo reproduzir o pensamento íntimo de um artista... e deste princípio deriva um segundo que, à primeira vista, parece contradizê-lo - a saber, que é preciso ter muito cuidado com os meios materiais de execução”. O próprio Gonzaga-Duque não hesita em traçar um paralelo entre o pintor brasileiro e o retrato de Delacroix, pintor do século XIX, desenhado num famoso ensaio de Baudelaire[2]. Como o mestre do romantismo, Amoedo é um artista da reflexão, ligado à filosofia e à literatura, mas traduz sempre a reflexão numa indagação constante sobre os meios de seu fazer. Até recuperar nas últimas décadas as técnicas dos ateliês renascentistas, tais como a pintura à têmpera ou a ovo, ou imitar os processos com cera quente da pintura pompeiana. Conhece as pesquisas sobre a fisiologia ótica de Hermann von Helmholtz, sintonizadas com a poética impressionista, que fundamentaram a divisão da cor em Seurat, mostrando uma atenção contínua às sugestões oferecidas pela ciência aos pintores. Assim como conhece as idéias de Ruskin[3] sobre a pintura contemporânea: a análise mais aprimorada do dado visual objetivo aliada à máxima intensidade do sentimento individual. Ambos os caminhos, o da ciência e o da estética moderna, conduzem-no ao papel central da cor na construção da imagem da pintura: o toque do artista exprime ao mesmo tempo a precisão da sua visão e a intensidade do seu temperamento, assim como constitui a própria estrutura das relações cromáticas e espaciais no quadro. Todas essas características formais básicas para a compreensão da arte moderna aparecem na pintura brasileira por obra de Amoedo, desde sua mocidade. Não diria que ele teve de esperar a viagem a Paris para adivinhá-las: como aluno da Academia Imperial do Rio de Janeiro, marcou-o a seriedade de um outro mestre, Vítor Meirelles. Foi espectador dos debates travados sobre a arte moderna na ocasião da exposição da Batalha ao Avahi de Pedro Américo ao lado da Batalha dos Guararapes do catarinense, na exposição de 1879. No Brasil, também os tempos estavam maduros para reconhecer o valor político do fenômeno artístico, assim como para a relação intrínseca entre arte, tecnologia e ciências sociais na cultura figurativa moderna. Talvez no ateliê de Alexandre Cabanel, admirado sobrevivente da arte do império de Napoleão III, Amoedo encontrasse a confirmação da devoção ao ofício da pintura, praticada por Meirelles. Talvez o doutor Pedro Américo desde Bruxelas ou Florença se lhe apresentasse como o exemplo das virtudes a serem imitadas e dos defeitos a serem execrados no pintor brasileiro moderno.

Certamente além de Cabanel, herdeiro um tanto debochado da disciplina intelectual e da pureza do desenho de Ingres, Amoedo olhou para a ironia com que Gerôme corroía e misturava os gêneros da tradição classicista. Mas a sua seriedade era diferente da irreverência do pintor de Pigmalião e Galatéia. Também não lhe interessava a inclinação anedótica de Almeida Jr., também ele aluno de Cabanel, e autor de alguns dos trechos de pintura mais novos e sinceros dessa época de transição da arte brasileira. Amoedo passou no ateliê de Puvis de Chavannes e permaneceu fiel a vida toda àquela lição: pode-se dizer que a influência do mestre francês na obra do pintor brasileiro aparece ainda mais evidente nos anos tardios, quando retoma, na Narração de Phylectas, o idílio pastoril inspirado na novela mitológica grega. Olhando para as decorações murais do Teatro e da Biblioteca Municipal do Rio de Janeiro, lembramos as grandes pinturas de Puvis, que apresentam silhuetas extraídas de vasos gregos ou de pinturas pompeianas no estilo linear derivado do Ingres de L'Age d'or. Como Degas, Amoedo percebeu que não existia realmente a contradição entre a pureza linear de Ingres e a função construtiva da cor destacada por Delacroix ou por Corot, possibilitando assim a abordagem dos jovens brasileiros da geração posterior ao melhor da produção internacional do art nouveau.

Foi graças a essas escolhas estéticas que Amoedo assumiu a liderança do renovamento da arte brasileira. Embora a política das instituições acadêmicas o marginalizasse na virada do século, para depois o reabilitar com uma série de encomendas oficiais para os edifícios monumentais da nova capital de Pereira Passos, sua influência sobre as gerações mais jovens foi decisiva, se não maior que a dos irmãos Henrique e Rodolpho Bernardelli.

O começo da carreira de Amoedo, nos últimos anos do Império, foi marcado pela tradução em um registro realista de ícones do imaginário oficial, bem como pela ruptura, levada quase à paródia, dos limites convencionais dos gêneros. O alvo do pintor foi a poesia indianista de Gonçalves Magalhães e de Gonçalves Dias, e seu paralelo figurativo criado por Meirelles. Os jovens artistas, inconformados com a sociedade conservadora e carola da época, só podiam achar totalmente falsa esta já velha visão da história oficial do Brasil difundida pela corte e pelos intelectuais do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Aurélio Figueiredo, com seu Encontro de Paolo e Francesca, introduzira o tema burguês do triângulo amoroso em trajes da Idade Média e o culto estético pré-rafaelita. Um artigo de Felix Ferreira, publicado em 1885, descreve o ateliê do artista como um compromisso entre a cela de um monge e o requinte do quarto de um Des Esseintes. Todavia, Amoedo mostra um percurso que, começando por uma trilogia indianista, nos moldes da iconografia oficial do segundo reinado, acabava introduzindo no Brasil uma moderna noção de naturalismo. As primeiras obras com as quais o pintor se apresentou ao público do Rio na última grande exposição pública da época imperial, em 1884, eram o resultado de seus estudos parisienses, mas, ao mesmo tempo, já evidenciavam de forma contundente sua originalidade no panorama da arte brasileira. De tamanho não épico, A morte de Atala (1883), quase um exercício de escola, retomava uma obra famosa pintada por Girodet Trioson em 1808, Le Tombeau d'Atala. Na novela de Chateaubriand, fonte literária de ambas as obras, a morte da jovem índia representava o surgimento da nova civilização americana por meio da evangelização. O texto tornara-se uma das fontes de inspiração do nacionalismo latino-americano, assim como do catolicismo monarquista, ambos pilares da ideologia da corte de D. Pedro II. Como na pintura religiosa de seu mestre Cabanel, Amoedo retoma com significados novos esquemas derivados da grande pintura do passado. No quadro de Girodet, Atala, já morta, era colocada no túmulo como um Cristo deposto pelo missionário e pelo valente índio Chactas, seu amante infeliz: a imagem enfocava o sacrifício e a redenção numa visão providencial da história humana. Na obra de Amoedo, a índia adolescente e sensual, como uma colegial encontrada numa rua de Paris, recebe a eucaristia sustentada pêlos braços do guerreiro mergulhado nas sombras. Chactas, uma espécie de fantasma, é semelhante a um canibal saído de um livro de viagens ao Brasil, muito mais que a um indígena norte-americano. A pose de Atala é aquela de uma santa: quase em êxtase, de mãos juntas. A esteira no chão, os longos cabelos que cobrem os ombros emprestam-lhe o aspecto de uma asceta dos desertos como Maria Madalena ou Maria Egípcia. De fato, a iconografia mantém mais de uma relação com o tema da última comunhão de Santa Maria Egípcia, freqüente na imaginária religiosa barroca. O sacrifício da moça, assim como o sacrifício cristão, redime a violência dos homens à aurora de uma nova história. Ao mundo masculino carregado de sombras, contrapõe-se a oferta total e espontânea do amor da mulher.

Seria difícil explicar esse interesse pelo tema da índia sem pensar no precedente da Moema de Vitor Meirelles, vista como o tema lírico nacional mais admirado a ser reexaminado e conduzido a novos significados. A Vênus ameríndia do poema de Santa Rita Durão, sacrificando-se em nome do amor, é semelhante à Marabá, a índia de olhos verdes do poema de Gonçalves Dias, outro ícone de um povo surgido do conflito entre culturas irredutíveis. O que desaparece na obra de Amoedo é a visão cristã que fundamentava o otimismo cortesão: esta Madalena, que oferece seu corpo de mulher-moça à carícia verde da floresta, é uma vítima da violência masculina que não tem redenção. Já foi notado que enquanto as linhas da Moema podem fazer pensar numa retomada de soluções de renascentistas presentes na pintura francesa, desde a Vênus de Cabanel à Femme au perroquet de Courbet, as dobras do ventre de Marabá remetem a um clima de realismo explícito e quase provocativo. Isso permite ao pintor retomar uma das mais conhecidas interpretações simbólicas da imagem da Madalena: a da prostituta arrependida, da redenção do amor carnal em nome de um amor mais alto e mais puro. Só que o pintor parece atraído por outra interpretação moderna do tema da mulher perdida: a flor do mal da poesia de Baudelaire, para sermos mais claros. Que Amoedo incline-se por essa solução, parece evidente, mais ainda que na obra acabada, no estudo a óleo, hoje no MNBA, feito no ateliê parisiense, a partir do modelo vivo. Não devendo obedecer à estilização do exotismo imposto pelo assunto, aliás presente de forma muito superficial na própria versão final, Amoedo visualiza uma imagem mórbida de inocência pervertida, quase a de uma adolescente embrutecida num bordel. Na obra acabada, a figura adquire corpo de mulher e a melancolia da sonhadora, mas na participação com que é pintada a triste beleza da primeira moça é possível ver como o verdadeiro interesse do pintor talvez fosse representar nela a feminilidade moderna, em um de seus aspectos mais sombrios e esquecidos. Algo semelhante era a proposta de Rodolpho Bernardelli na sua Faceira de 1880, muito mais inclinada a um exotismo amaneirado. Em O último Tamoyo o sistema de convenções lingüísticas e a hierarquia dos gêneros da tradição acadêmica começavam a desmoronar junto à construção ideológica das três raças fundadoras criada pelo Estado: com o cadáver inchado daquele que deveria ser o heróico Aimbyre do poema do Visconde de Araguaia era sepultada de vez a poética oficial da corte. Como que crucificado na praia, o índio parece um dos hercúleos escravos companheiros de Spartacus, que mostravam os seus músculos, ameaçando a revolta para os burgueses fariseus nas exposições de arte da época, desde a Paris de Gerôme à Roma de Achille D'Orsi. O último Tamoyo é também o último grande quadro indigenista possível no Brasil. Depois, o índio torna-se figurante de ilustração histórica. Mais ainda que na Marabá, nesse quadro, a cor da paisagem construída por tons de verde em contraste com a areia clara adquire uma independência construtiva nova na pintura brasileira.

O topo deste processo de subversão dos códigos tradicionais é alcançado pelo Estudo de mulher, também do MNBA, em um certo sentido conseqüência lógica das premissas da Marabá. As flores na almofada, estruturadas por poucas pinceladas de cores vivas e puras, os ornamentos árabes gritantes da cama, a vegetação verde pálido, rastejando como uma trepadeira viçosa no papel de parede, evidenciam o interesse de Amoedo pela arte japonesa e pela pintura dos orientalistas franceses, bem representados nos salões da década de oitenta. Talvez não seja totalmente verdadeiro o relato de Gonzaga Duque da censura acadêmica fulminada contra a obra de Amoedo, quase uma Olympia brasileira. Talvez o comentário escandalizado de uma dama na frente do quadro (“Que mulher sem-vergonha!”) seja uma invenção do autor da Arte brasileira. Mas, como todas as mentiras bem inventadas, tal comentário reflete certamente uma verdade: a reação de uma sociedade puritana, fechada no obséquio hipócrita à moral da religião oficial, na frente desse primeiro nu moderno da arte brasileira. A linda garota, prima-irmã das Vênus de Cabanel e de Bouguerau despiu-se de seu disfarce mitológico para fazer-se mulher de carne, encarnação da sensualidade voluptuosa num moderno harém. Chega de tristes trópicos povoados de heroínas envergonhadas em busca de uma redenção. Finalmente, o luxo dos enfeites orientais escolhidos com cuidado na loja do decorador, a calma quase animal do sono, a volúpia dos lençóis brancos amarrotados nos arrebatamentos da paixão, das quais surge uma nova Vênus Anadyomene como de um oceano de ondas espumantes. Doravante, as deusas da mitologia confundir-se-ão entre uma vaga imagem lendária de um perdido passado e a figura inquietante observada cotidianamente no cenário da cidade contemporânea, refletida na vitrine de uma loja, deitada na dormeuse luxuosa de uma casa burguesa, ou na cama triste de um hotelzinho sórdido da periferia. Novamente somos obrigados a citar Baudelaire, o poeta das flores do mal e do spleen de Paris.

Poderia parecer uma contradição, então, o fato de Amoedo voltar-se, mesmo que por decisão da congregação da Academia, para o tema evangélico no Cristo em Cafarnaum, do mesmo ano. O que revelaria quanto menos uma falta de sinceridade por parte do artista. Mas aqui também o esboço, conservado na Pinacoteca do Estado de São Paulo, é mais revelador que a obra acabada. Esse Cristo estático e possesso, circundado por um halo de luz que relembra as ilustrações bíblicas de Gustave Doré e os ectoplasmas de fotografias espíritas, caminha vestido de branco pelas ruas ensolaradas da aldeia da Galiléia, reunindo um séquito de miseráveis atônitos, mais parecendo um Antônio Conselheiro nas áridas praças do sertão da Bahia. Nele está presente a influência do Oriente místico e colorido de Mariano Fortuny e da leitura da vida de Cristo por Renan, que renovava a iconografia religiosa de Domenico Morelli na Itália daqueles anos. Como no Cristo e a adúltera, no extraordinário relevo São Sebastião e Fabiola, ou no São Estevão, de Rodolpho Bernardelli, a imagem religiosa tramitava mensagens políticas e sociais de grande atualidade: os profetas e os mártires do passado aludiam aos eventos contemporâneos traziam à discussão a ordem estabelecida.

De fato, nos anos que se seguiram, inconformado com a imobilidade do ambiente acadêmico, Amoedo, junto com os irmãos Bernardelli e Zeferino da Costa, fundou em 1888 um Ateliê Livre, contando com o apoio de alguns mecenas, entre os quais o jornalista e político Ferreira de Araújo, Luiz de Rezende, joalheiro da corte, freqüentador dos salões dos rosa-cruz em Paris, templo da arte simbolista, e o famoso líder abolicionista José do Patrocínio. O ateliê foi aparentemente inspirado no exemplo da Académie Julian de Paris e chegou a organizar um seu Salon des Indépendants. É o ano em que Amoedo pinta o belo retrato de Gonzaga Duque Estrada, que acabava de escrever o livro A arte brasileira. O crítico é representado como um perfeito dândi, meticulosamente penteado, elegante no seu traje escuro, os sapatos brilhantes cobertos por polainas, a bengala e o pince-nez. Senta numa cadeira ao lado do seu escritório carregado de livros. O quadro minúsculo é uma jóia: Whistler não faria melhor. É o selo de uma amizade entre dois devotos da arte que durará até a morte do escritor. O retrato de Amoedo, ao lado do outro pintado um ano antes por Belmiro de Almeida em Arrufos, configura a aparição de um triunvirato que acabará em pouco tempo sendo marginalizado no ambiente artístico do Rio e com o exílio voluntário dos seus membros. A partir desse momento, o destino de Amoedo será ligado às vicissitudes do ensino de artes. Com a instauração da República, Amoedo foi reconhecido entre os líderes do grupo dos modernos e foi nomeado, quase que por aclamação, vice-diretor da nova Escola Nacional de Belas Artes, que devia substituir a Academia Imperial. Dedicou-se com paixão à reforma da instituição, tornando-se uma de suas figuras centrais. Junto ao diretor Rodolpho Bernardelli, defendeu sua utilidade contra os projetos de Décio Villares e de outros positivistas que propunham a abolição, em nome de uma democratização, do ensino das artes em todas as escolas. Porém, em 1906, Amoedo será afastado de seus cargos devido a desentendimentos com o antigo amigo. Daí para frente, receberá encomendas decorativas para vários prédios públicos no Rio de Janeiro, mas coerentemente se dedicará cada vez mais aos problemas da técnica da pintura.

Amoedo, primeiro entre os artistas e críticos brasileiros da sua geração, intuiu a preeminência do problema da fatura na pintura moderna e identificou-o com a sua própria poética, abandonando progressivamente os motivos anedóticos. A sua vocação para os problemas formais e técnicos conduziu-o, a partir de Puvis de Chavannes, em uma direção que o aproximou de certos aspectos da arte dos Nabis. Se devemos acreditar em certas figurinhas de jovens camponesas da Bretanha, assinadas por Amoedo, que aparecem de quando em quando no mercado, as metas das romarias artísticas do artista brasileiro na França foram as mesmas de Maurice Denis, de Bonnard, de Vuillard, seus companheiros de estrada. O baiano Manuel Lopes Rodrigues e os portugueses Costa Pinto e Augusto Carneiro deviam segui-lo. Certamente a resistência de Amoedo a uma estilização radical em defesa de uma fidelidade ao dado visual aproxima-o mais de “um operário do movimento naturalista”, como era Bonnat no dizer de Zola. Todavia, certos enquadramentos de interiores cariocas, envolvendo figuras femininas sinuosas e preciosas como flores de Lalique, evocam as costureiras de Vuillard, ou certas soluções da gráfica de Bonnard, um pouco ressecadas pelo pintor brasileiro. Da mesma forma, certos retratos de Amoedo revelam o interesse do artista pelas novidades da gráfica da Revue Blanche, publicada pelo grupo de jovens inovadores franceses na última década do século. Exemplos são os retratos da esposa como os chamados Laço roxo e Laço amarelo, em que o contraste de cor e o enfoque audacioso revelam sutilezas psicológicas raras. Resultados de grande preciosidade são alcançados em obras como o pequeno Más notícias do MNBA, “senhora de lindas vestes e mais lindos olhos, umedecidos de lágrimas, diabolicamente negros, flagrante d'alma feminina, um instantâneo maravilhoso do tormento de um coração que a carta, amarrotada nas lindas garras de airosa dama, senão de deusa contrariada, acaba de sangrar”[4]. Aqui se descobre a extraordinária capacidade que a arte de Amoedo possui para estabelecer relações com a melhor literatura da época e não apenas brasileira: as diabólicas criaturas de Barbey D'Aurevilly, a Cidade do vício de Fialho de Almeida e os poemas de Mallarmé encontrariam mais de uma linda ilustração entre seus quadros. A obra de Amoedo, produto de uma vida longa e totalmente dedicada à pintura, ainda espera por um estudo analítico e por um catálogo científico que devolva ao autor sua indiscutível relevância para a cultura brasileira. O mesmo discurso vale para muitos artistas de grande qualidade desse notável e complexo período da arte no Brasil. Esperamos que estas poucas páginas possam servir para despertar em algum jovem estudioso a vontade de empreender este trabalho. Vale a pena.


[1] Texto originalmente publicado em MARQUES, Luiz. (org.). 30 Mestres da Pintura no Brasil. São Paulo: MASP / Rio de Janeiro: MNBA, 2001, pp.311-316 (Catálogo de exposição).

[2] C. Baudelaire, “O salão de 1846”, em Poesia e prosa, ed. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, 1995; o texto em francês pode ser consultado no site da Gallica: http://gallica.bnf.fr/document?O=N101426

[3] J. Ruskin, Modern painters by a graduate of Oxford, London, Smith & Elder, 1848-60; uma edição eletrônica parcial dessa obra de Ruskin, inclusive com reproduções dos manuscritos originais, pode ser encontrada no site: http://www.lancs.ac.uk/fass/centres/ruskin/empi/index.htm

[4] Gonzaga Duque, Contemporâneos, Rio de Janeiro, 1929, p. 30.