A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles: algumas influências e a cópia de Sebastião Vieira Fernandes 

Marco Antonio Baptista *

BAPTISTA, Marco Antonio. A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles: algumas influências e a cópia de Sebastião Vieira Fernandes. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 2, jul.-dez. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV2.07

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1.     A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles [Figura 1] ilustra um dos momentos que marcam a origem da nação brasileira, pois traduz em formas e cores parte importante da narrativa de Pero Vaz de Caminha na carta que ficou conhecida como a “certidão de nascimento” de nossa nação. O presente artigo também aborda uma cópia deste trabalho, evidenciando uma prática de cópia na origem dos estudos acadêmicos. Pretende-se com o artigo refletir sobre a potência política, pedagógica, histórica, estética e poética dos “inícios.”

2.     Em quase 160 anos de existência, a pintura de Meirelles poucas vezes saiu do Rio de Janeiro para encontrar-se com o povo de outras localidades do Brasil. Mesmo assim, suas reproduções não conhecem fronteiras. Em meio a tantas reproduções, há, na terra natal de Meirelles, uma fiel obra pictórica, digna de contemplação. Trata-se da cópia da Primeira Missa no Brasil, feita por Sebastião Vieira Fernandes [Figura 2].

3.     Muito embora quando estudante da graduação em Pintura na EBA/UFRJ, tenha tido o privilégio de contemplar a Primeira Missa no Brasil de perto várias vezes, não tinha conhecimento da existência de tal cópia. Ela chamou-me atenção por sua grande fidelidade quando a contemplei no Museu Histórico de Santa Catarina, cidade na qual resido atualmente e onde me encontro como estudante do PPGAV/UDESC.

4.     Neste artigo, versarei sobre por que motivos o tema em questão teve - e tem - relevância para nossa nação e quais as possíveis inspirações temáticas e formais que possam ter influenciado Victor Meirelles. Também tratarei da cópia de Fernandes, seu virtuosismo presente na pintura e tentarei entender um pouco dos motivos que o levaram a reproduzir com tanta fidelidade a pintura.

A “primeira missa” como pintura histórica

5.     Segundo Graham (2001), foi no século XIX que o Brasil se afirmou como nação, graças a um sentimento nacional crescente antes mesmo de sua independência, fazendo com que o país tomasse rumos distintos das demais colônias latinas. Já para de Castro (2005) o próprio termo “arte brasileira” só pôde ser pensado de forma integrada ao processo de construção de uma identidade nacional no século XIX. A produção de pintura histórica alcançou um importante lugar no projeto político nacional, com a finalidade de unir através da narrativa de uma história singular. A realização de pinturas históricas teve grandes incentivos do Império, especialmente através da Academia das Belas Artes.

6.     Um dos nomes por trás da produção de pinturas históricas é Manuel de Araújo Porto Alegre, grande erudito, teórico, pintor, escritor e mestre. Foi um dos primeiros integrantes do Instituto Histórico Nacional e é considerado precursor da crítica e história da arte brasileira. Castro (2005) também declara que Porto Alegre sempre buscou a união entre história e arte: entendia a arte a serviço da história a fim de civilizar através de exemplos do passado e a criação de uma arte brasileira que descendesse das obras coloniais, culminando naquelas realizadas durante o Império. Maria de Fátima Couto (2008) afirma que também foi dele a sugestão do tema a Victor Meirelles, a ponto de pedir em carta para que Victor Meirelles lesse várias vezes a carta de Caminha em busca de inspiração.

7.     A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles traduz para a linguagem visual o fragmento da narrativa de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) ao rei de Portugal D. Manoel. Segue abaixo trecho da carta de Caminha:  

8.                              Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

9.                              Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.

10.                            Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

11.                            Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. (CARTA de Pero Vaz Caminha)  

12.   A cena descrita ocorreu no dia 26 de abril de 1500, domingo, poucos dias após Cabral aportar no litoral baiano. O local citado está situado na praia da Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália. Mesmo sendo escrita no ano de 1500, a carta só foi publicada 400 anos depois, em 1817.

13.   Antes de Victor Meirelles pintar A Primeira Missa no Brasil, outras primeiras missas já eram conhecidas. Em 1845-1846 o pintor Johann Moritz Rugendas pintou A Primeira Missa em São Vicente, 1532 [Figura 3]. A pintura de Rugendas, realizada 15 anos antes da obra de Meirelles não relata a mesma cena, mas nos evidencia o interesse e a importância de tal temática para o surgimento da identidade brasileira.

14.   Vota e Silva (2017) relatam que, em outros países da América, o interesse pelo tema da “primeira missa” consolidou-se em obras monumentais também anteriores a de Victor Meirelles. Talvez venha daí o interesse em criar a nossa versão de “primeira missa.”

15.   Jean Baptiste Vermay, francês de nascimento e de formação artística, migrou da Europa para a América e em Cuba, em 1816, realizou La Primera Misa [Figura 4]. Assim como as cinzas de Vermay, La Primera Misa repousa em um prédio erguido ao estilo neoclássico em 1827, chamado “Template.”

16.   Outro grande pintor a dedicar-se ao tema da “primeira missa” foi Pharamond Blanchard. Este, assim como Vermay, viajou da Europa para a América e neste solo encontrou motivos para grandes obras. A conexão de ambos os artistas parece ser coerente, pois quando Blanchard veio à América, particularmente a Cuba, o “Template” já estava construído e La Primera Misa já se encontrava em sua disposição atual, o que pode ter influenciado suas escolhas temáticas e pictóricas.

17.   Grande estudioso da história através da pintura, Blanchard recriou o que seria o momento da primeira missa nas Américas [Figura 5]. O ato histórico ocorre no ano de 1493, no marco da segunda viagem de Colombo as Índias Ocidentais

18.   Embora a Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles tenha uma ligação mais próxima - quanto ao conteúdo histórico e cultural americano - com as anteriores apresentadas, nosso pintor muito possivelmente encontrou inspiração plástica em outra obra realizada além-mar. É provável que Victor Meirelles tenha visto esta pintura nos salões de Paris enquanto se encontrava como estudante na Europa. Trata-se de outra primeira missa, porém esta localizada na África, mais precisamente em Cabília, região que atualmente se encontra na Argélia: a Primiére messe en Kabylie, de Horace Vernet [Figura 6]. A obra foi inspirada nas experiências vividas pelo artista durante a ocupação francesa no norte da África. Vernet era responsável por registrar visualmente tal ocupação e a partir de suas experiências e estudos compôs esta grande obra.

19.   Victor Meirelles realizou sua obra pictórica enquanto estava em Paris, entre 1858 e 1860. No ano seguinte, a Primeira Missa no Brasil foi exposta no Salão de Paris, no Palais des Champs-Elysées. Victor Meirelles foi o primeiro brasileiro a expor em tal salão, atraindo boas críticas, o que trouxe grande prestígio ao artista na corte brasileira. Paris era tida como a capital das artes no mundo e ter uma obra aceita em um salão oficial era a ratificação de uma trajetória artística de sucesso. A obra foi o desfecho de todos os seus oito anos de estudos na Europa como pensionista pela Academia das Belas Artes. Foi motivo de grande orgulho nacional o reconhecimento de um jovem brasileiro através de uma obra que retrataria o nascimento da nação brasileira.

20.   A Primeira Missa no Brasil participou de outra grande mostra internacional no ano de 1893. A Exposição Universal de Chicago foi de extrema importância para a jovem República do Brasil, segundo Dazzi (2011). No que se refere ao aspecto político, esta exposição visava mostrar ao mundo o progresso, a civilidade, a industrialização e a grande produção nacional. A exposição também foi de grande importância para a Escola de Belas Artes (ENBA), pois através dela os mestres brasileiros mostravam seus trabalhos em esfera global.

21.   Tanto na Primeira Missa em São Vicente de Rugendas, quanto na obra de Victor Meirelles, há maior participação e interesse dos nativos indígenas pela celebração que está ocorrendo. Na primeira missa em Cuba, Vermay insere apenas dois nativos na cena, sendo ambos orientados por aquele que cremos ser o comandante da expedição. Na primeira missa da América, Blanchard também coloca os nativos em espaço separado, sem que demonstrem interesse pelo evento. Também neste caso, um oficial parece chamar a atenção de um líder indígena para a missa.  Na Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, não vemos conquistadores instruindo os indígenas, mas percebemos uma clara curiosidade natural dos nativos, que apontam em direção dos europeus. Na representação do indígena na árvore contemplando a cena, fica muito clara a intensão do artista em retratar a fácil aceitação dos selvagens com relação às novas culturas, crenças e rituais europeus. Logo após o descobrimento do Brasil e celebração da primeira missa, o diário de quinta-feira da carta de Caminha fala um pouco sobre como foi a relação dos nativos com a religião cristã europeia e como eles pareciam receptivos a nova cultura.

22.                            Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.

23.                            Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. (CARTA de Pero Vaz Caminha)  

24.   Além de mostrar virtuosismo, a maestria com que Victor Meirelles representou a vegetação é inquestionável. Ele não poupou talento e disposição em mostrar todas as suas aptidões como pintor, pois explorou mais de cinquenta posições e feições humanas nesta pintura, mostrando assim seu grande conhecimento de anatomia e representação de figura humana.

A cópia de Sebastião Vieira Fernandes

25.   Sebastião Vieira Fernandes seguiu de perto a carreira de Victor Meirelles. Também natural da Ilha de Florianópolis, estudou na Academia das Belas Artes. Conforme conta Boiteux (1944), recebeu vários prêmios por sua capacidade artística, como o Prêmio Imperatriz do Brasil, concedido para estudos no exterior. Contudo, não desfrutou de seu benefício devido a convulsões políticas que desencadearam na queda da monarquia. Tornou-se aluno de Meirelles e Zeferino da Costa, foi professor no Liceu de Artes e Ofícios e restaurador da pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes. Como restaurador, atuou de 1918 a 1934, sendo o último restaurador oficial da instituição. Dentre muitas obras, pintou uma cópia da Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles [Figura 2].

26.   Boiteux (1944) também conta que esta cópia foi encomendada pelo primeiro governador de Santa Catarina, Lauro Müller, logo após a proclamação da República. Quando o quadro foi terminado o então ex-governador - que já havia sido retratado por Sebastião Fernandes - não quis pagar o valor condizente ao trabalho. Desiludido com o ato, Fernandes fez uma loteria de tal pintura para os associados do Centro Catarinense - clube social sediado no centro do Rio de Janeiro, que promovia ações culturais e educativas. Como o sorteado não havia pago por seu bilhete, os organizadores decidiram devolver a obra a seu autor. Após sua morte, a pintura ficou sob a tutela de sua irmã D. Rosa Vieira de Castro que generosamente cedeu-a ao Palácio do Governo Catarinense, hoje Museu Histórico de Santa Catarina. Nas últimas páginas de sua póstuma homenagem a Sebastião, Boiteux (1944) transcreve uma publicação do jornal Novidades de Itajaí em 26 de novembro de 1907, intitulada “Um pintor Catarinense”, onde são tecidos generosos comentários sobre a cópia da Primeira Missa de Meirelles e ao artista:

27.                            Acha-se em exposição na sala de honra do Centro Catarinense, sala “Conselheiro Mafra”, um trabalho que merece a atenção e os aplausos dos filhos de Santa Catarina. É uma obra de arte, uma cópia magnífica da sobejadamente conhecida “Primeira Missa no Brasil”, do catarinense Vitor Meirelles, com justiça aclamado a mais legítima glória da pintura nacional. Essa cópia é de execução de outro catarinense, e com transunto fiel que é, atesta um belo talento de pintor aperfeiçoado por estudo longo e consciencioso.

28.                            Mas esse quadro não é a primeira revelação do quanto vale o pincel de Sebastião Viera Fernandes. Inúmeras outras telas que figuram em galerias particulares, cópias de quadros célebres, um ou outro trabalho original, esplêndidos e fiéis retratos, asseguram de há muito a mestria do pintor. [...]

29.   Com relação à datação da pintura de Sebastião Vieira Fernandes, no registro do Museu Histórico de Santa Catarina consta oficialmente o ano de 1929. Contudo, em documento fornecido pelo Núcleo de Conservação e Restauro do museu, é citado que o ano de 1907 aparece insinuado no canto inferior da tela, de forma pouco legível, junto a assinatura do autor, deixando dúvidas sobre esse dado técnico. O ano de 1907 concorda com a data de publicação do jornal Novidades acima citado, lançando luz sobre o real ano de execução da pintura. Em outra fonte primária de 1908, encontramos nova afirmação que comprova a execução da obra anterior a 1929, possivelmente em 1907. O jornal O Dia (Florianópolis, 23 ago. 1908), em coluna assinada pela Gazeta de Notícias, traz o relato da visitação de uma exposição de produtos de diversos estados brasileiros, dentre os quais Santa Catarina. Ao descrever os itens de tal exposição, o colunista relata sua visita à seção de artes, onde viu algumas pinturas, dentre as quais a cópia da Primeira Missa realizada por Sebastião Vieira Fernandes, como abaixo transcrevemos: “A pintura de algumas telas interessantes, a salientar os retratos e alguns quadros a óleo de Sebastião Vieira Fernandes, de nome já muito justamente feito. | Entre os retratos há um muito bom, do Senador Lauro Muller, e entre os quadros uma cópia da Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles.”

30.   É surpreendente a fidelidade da pintura de Fernandes com relação à de Meirelles. Contudo, sabemos que a principal diferença reside nas dimensões das obras: a Primeira Missa de Victor Meirelles mede 2,68 m. por 3,56 m., enquanto a cópia de Sebastião Fernandes possui 1,13 m. x 1,48 m. por Mas, se colocarmos suas reproduções em sobreposição em algum software de edição de imagens ou intercalarmos entre uma e outra, as diferenças são quase imperceptíveis.

31.   A habilidade de Sebastião para copiar seus mestres era notável, sendo capaz até mesmo de confundir os espectadores. Um fato, no mínimo curioso, é contado na coluna “Cousas da Arte” do Jornal do Comercio de 26 de agosto de 1918. O texto parabenizada a escolha do artista como novo restaurador da Pinacoteca da Escola de Belas Artes e relata o seguinte: “Copiou com tal habilidade o quadro ‘Caridade’, de Zeferino da Costa, que o autor poz duvidas em reconhecer o original, sendo necessária a presença do copiador para desfazer a duvida.”

32.   Como dito, a composição da cópia de Fernandes é extremamente fiel a obra de Meirelles. Apenas pequenas variações são perceptíveis quando nos detemos aos mínimos detalhes. Não estamos levando em consideração neste comparativo a evidente noção de profundidade e volume alcançados com maior intensidade por Meirelles. A cópia de Sebastião, como veremos mais adiante, por ser construída em uma única camada, claramente tem um efeito visual diferente daquele conseguido por Meirelles, cuja obra se constrói em camadas e veladuras. A questão aqui explorada é a fidelidade formal entre os complexos elementos presentes nas pinturas. Vejamos o indígena com a lança logo abaixo no canto inferior direito [Figura 7]: na obra de Meirelles, seu movimento de cabeça para trás é mais enérgico que na reprodução de Fernandes, parece olhar por cima do ombro tentando ver o que acontece as suas costas enquanto seu corpo se mantém inclinado em direção oposta. Sebastião atenua a distorção e coloca a cabeça do indígena em 3/4, com o olhar voltado para sua direita.

33.   Mesmo com algumas variações, percebemos o grau de fidelidade alcançado por Fernandes, principalmente pela complexidade da vegetação, objetos, roupas e figuras humanas. É de arrazoar que Sebastião tenha se utilizado de recursos tecnológicos para manter tal semelhança ao seguir a mesma estrutura e proporções da obra de Meirelles de forma tão fiel. Uma possibilidade seria a utilização de projeção sobre a tela para evitar riscos de “errar” no desenho ou acelerar o processo de pintura.

34.   Certamente Sebastião Vieira tinha capacidade para realizar tal feito sem este recurso, porém ferramentas de projeção como a lanterna mágica já eram de uso comum entre pintores como Pedro Américo, como defende o pintor e professor Vladimir Machado (2008). Cabe aqui ressaltar que tal recurso tecnológico não o desqualifica como artista, afinal outros grandes mestres como Vermeer, Caravaggio e Ingres aparentemente faziam uso de recursos óticos como câmaras escuras, espelhos e lentes conforme sugere David Hockney  em seu livro chamado O conhecimento Secreto, de 2001.

35.   Após análises químicas de fragmentos da pintura realizadas sob orientação do Dr. Thiago Guimarães Costa (2016), sabemos que a cópia se constrói em uma fina camada com pigmentos semelhantes aos utilizados por Victor Meirelles, sem resquícios perceptíveis de grafite, carvão ou arrependimentos. A olho nu, também se nota pequenos indícios do processo construtivo desta reprodução, como o desenho base em tons terrosos feito diretamente a pincel. Isto também leva a crer que, em se tratando de uma pintura tão rica de detalhes e tão semelhante à sua versão original, a hipótese do uso de recursos de projeção se sustenta.

36.   Algumas críticas podem surgir pelo fato da pintura de Fernandes ser uma cópia. Contudo, copiar sempre foi um método eficiente de estudar a composição e técnica dos grandes mestres. Copiar era um exercício frequente durante o período de estudos na Academia e as habilidades desenvolvidas serviriam como base estrutural para futuras criações. Tal método de ensino, foi muito utilizado e defendido ao longo das reformas acadêmicas do século XIX. 

37.   Uma das contrapartidas exigidas pela Academia das Belas Artes era que seus estudantes agraciados com o Prêmio Viagem enviassem da Europa cópias fieis de grandes obras consagradas, das quais muitas estão em exposição permanente no Museu Nacional de Belas Artes e no Museu D. João VI. Victor Meirelles realizou diversas cópias de grandes pinturas, dentre as quais podemos citar a cópia de A Barca de Medusa de Théodore Géricault [Figura 8] ou a cópia do Milagre de São Marcos de Tintoretto [Figura 9].  

38.   Copiar dos grandes mestres era muito importante não só para o artista em formação, mas para que estas obras servissem como fonte de estudos dentro da Academia das Belas Artes. Esta estratégia utilizada nos tempos da Academia e posteriormente na ENBA garantiu um acervo invejável de reproduções de alta qualidade. Também é de se pensar no quanto estas cópias democratizaram o acesso às grandes obras de arte, haja visto que nos tempos de nossos artistas pesquisados não havia meios de divulgação de imagem como temos hoje.

Considerações finais

39.   A Primeira Missa no Brasil de Victor Meirelles é um dos maiores símbolos da pintura histórica brasileira. Não foi uma escolha temática ao acaso, mas fruto de uma inquietação temática sua e de seu mentor, Araújo Porto Alegre. Magistralmente, Meirelles concluiu à obra a altura das ambições artísticas, históricas e culturais das elites do Brasil do século XIX.

40.   A cópia de Sebastião Fernandes é altamente ilustrativa do processo de ensino e aprendizagem na Academia e nos mostra um artista de altíssima capacidade técnica. Teria Sebastião Vieira Fernandes realizado esta pintura contando apenas com suas habilidades manuais? Pode ser que sim, mas a extrema semelhança nos detalhes, a disposição dos personagens e elementos, exatamente como na obra de Meirelles, e a ausência de arrependimentos perceptíveis nos sugerem o uso de recursos óticos ou de projeção, mostrando que o artista pode ter usado tecnologias conforme sua época, assim como outros mestres anteriores e contemporâneos, como o citado Pedro Américo.

41.   Sebastião Fernandes naturalmente tinha imenso cuidado com o que representa uma obra da magnitude da Primeira Missa. Realizar esta cópia pode ter sido um ato de cuidado com intuito de criar uma fonte confiável para uma possível recuperação, caso algo acontecesse a obra de Meirelles como já havia acontecido com a pintura Combate Naval do Riachuelo, totalmente deteriorada após exibição na Exposição Universal da Filadélfia em 1876.

42.   Pode ter sido apenas uma cópia para servir de estudo técnico ou fruto da preocupação com a obra de Meirelles, mas além disso vir da preocupação em não deixar desaparecer essa bela construção imagética e todo seu significado da vida do público brasileiro.

43.   A cópia da Primeira Missa, dada sua fidelidade, é também um documento visual realizado em uma época em que fotografias preto e branco não contemplavam a totalidade da experiência estética da obra original. Fernandes deixou para as futuras gerações uma garantia para que essa imagem não se perdesse no tempo e também não ficasse reclusa a olhares apenas de cariocas, mas também de seus conterrâneos catarinenses. Suas dimensões mais modestas em relação à versão original exercem, não podemos negar, influência na experiência estética; porém, a partir desta obra podemos vislumbrar a original sem grandes perdas em termos de valores plásticos e composicionais. Voltar à esta cópia de Sebastião Vieira Fernandes - e, em certa medida, às várias obras tendo como tema a “primeira missa” - é um retorno à importância das cópias, origem de muitos aprendizados que nos chegam como verdadeiras aulas de arte, resiliência, destreza técnica e humildade.

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* Professor de Ensino Fundamental II e Médio, pintor e pesquisador das artes visuais, graduado em Pintura / EBA - UFRJ, pós graduado com especialização em Cinema e Linguagem Audiovisual / Estácio de Sá.  Atualmente é mestrando em História e Teoria das Artes Visuais / PPGAV - UDESC sob orientação da professora Sandra Makowiecky. Contato: marco.bap@gmail.com