Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira [1]

Teresinha Sueli Franz [2]

FRANZ, Teresinha Sueli. Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/vm_missa.htm>.

*     *     *

As culturas nacionais também são formadas de símbolos e representações. Ao construir sentidos sobre a nação, constroem identidades. Esses sentidos são contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o passado e imagens que dela são construídas.

Stuart Hall

Conta-nos Carlos Rubens (1945) que Victor Meirelles morrera pobre, solitário e desencantado da vida, aos 70 anos de idade, no Rio de Janeiro. Num desses momentos de sofrimento, próximo a sua morte, Victor Meirelles teria dito a um artista amigo e discípulo que lhe restara, numa amargura indefinível: “Se eu recomeçasse a minha vida, seguiria outros caminhos”. Ao que teria perguntado seu discípulo preferido: “E que outros caminhos levariam o senhor à ‘Primeira Missa?’”. Pelo que supomos, nenhum outro caminho levaria Victor Meirelles a sua “Primeira Missa no Brasil” [Figura 1]. Por isso, para compreender esta pintura, precisamos reconstruir este caminho, andar por onde ele andou, olhar as mesmas paisagens e mergulhar nas idéias políticas, religiosas, estéticas e humanistas das quais o artista se serviu. Deixar-se impregnar pelos sentimentos românticos e indianistas de seu tempo, e da contraditória e complexa rede de relações da segunda monarquia brasileira. Enfim, é necessário trilhar os caminhos que ele percorreu, com um olhar compreensivo e neutro, isto é, sem preconceitos. Nesta busca do autor, nossa meta não há de ser encontrar um herói, tampouco um vilão, mas o artista do seu tempo, o que Victor Meirelles o foi em grande estilo. Para isso é necessário esforço, no sentido de buscar pistas de compreensão que, ao mesmo tempo, não obscureçam nossa visão com as idéias simplistas que até hoje inibem uma maior compreensão de sua obra.

A indiscutível dependência entre o artista e seu tempo é o fio condutor deste artigo.

O pintor e sua colaboração no projeto de construção nacional

O autor da “Primeira Missa no Brasil” nasceu em Desterro, atual Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, em agosto de 1832, na casa atualmente transformada em museu e na rua que hoje leva o seu nome. Já é bastante conhecido entre nós seu interesse precoce pela aprendizagem do ofício de pintar, habilidade que começou a desenvolver quando ainda era menino e vivia em sua ilha natal. Motivo pelo qual, aos 14 anos incompletos, foi conduzido ao Rio de Janeiro para integrar o grupo de estudantes da Imperial Academia de Belas Artes, onde iniciou uma trajetória de estudos que o levou ao Prêmio de Viagem à Europa, nos principais centros artísticos de então, na Itália e na França.

A pintura “Primeira Missa no Brasil”, considerada uma “obra-prima” da história da arte nacional, foi produzida em Paris, durante a longa viagem de estudos do artista (1853–1861) como bolsista da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Humanista ligado ao Romantismo, grande pesquisador, observador atento, estudioso, dedicado, disciplinado e indiscutivelmente comprometido com seu tempo, foi o primeiro brasileiro a expor no Salão Oficial em Paris, em 1861, onde representou seu país com a pintura “Primeira Missa no Brasil”.

Cabe destacar que, mesmo estando em Paris, Victor Meirelles estava em constante comunicação com os professores da Imperial Academia de Belas Artes no Brasil, principalmente com Manuel de Araújo Porto Alegre. Victor cumpria assim uma das exigências do país que sustentava sua estada na França. Embora estudando com os mestres do Primeiro Mundo, permanecia sob a tutela e os comandos da Academia no Brasil, portanto, sujeito também às idéias que esta articulava com a elite política e cultural do País, entre eles o Imperador Pedro Segundo e o grupo do IHGB. Sendo assim, compreendemos que é principalmente a cultura de seu país de origem que determina sua maneira de pensar e, conseqüentemente, de pintar.

A “Primeira Missa no Brasil” é o resultado de uma complexa rede de relações entre as idéias e utopias que se desenvolveram dentro do chamado “Projeto Civilizatório”, presente no imaginário da elite cultural e política do século XIX brasileiro. Este projeto se torna mais evidente, de forma direta ou indireta, com a transferência da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, e se consolida com as monarquias que se seguiram depois (1822–1889).

Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro se modernizava, perdendo aos poucos o aspecto colonial. Em torno dela se desenvolveu uma cultura laica, mundana, cortesã e aristocrática. Segundo López (1988), a Corte divertia-se com touradas, cavalhadas, teatros, saraus e musicais. É neste cenário que emergiu a primeira academia de arte do País.

López também comenta que foi devido a mudanças políticas entre Portugal e a França, como parte de uma estratégia de reaproximação dos dois países, que teria surgido a idéia de trazer para o Brasil uma Missão Artística Francesa, em 1816, com a finalidade de institucionalizar o ensino artístico no Brasil. Este fato se consolidou mais tarde, em 1826, com a criação da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.

A “Primeira Missa no Brasil”, antes de ser a produção isolada de um artista, é uma síntese visual do “Projeto Civilizatório” de cunho nacionalista do Segundo Império. Por isso, para compreender esta pintura é necessário ir àquele contexto.

O País se firmava como nação independente. Pensava-se em criar uma identidade nacional, e a arte era considerada um lugar privilegiado para pensar a sociedade e para inventar uma nova identidade. As Belas Artes eram instrumento de civilização e glória, tendo o poder de contribuir na educação dos povos, com capacidade de interferir diretamente na realidade. A idéia de arte ligada à pedagogia e à civilização estava bem de acordo com o projeto civilizatório da jovem nação, independente desde 1822.

Para compreender o contexto do qual emerge a pintura “Primeira Missa no Brasil”, em meio aos problemas do Segundo Império, é necessário também entender as questões que envolvem a legitimação deste “Projeto Civizatório” em um plano geral internacional.

Lilia Schwarcz (1998) comenta sobre as dificuldades que a monarquia tropical teria encontrado para legitimar seu poder diante do mundo, o que implica, entre outras coisas, a criação, a ostentação e a ampla divulgação dos ícones que criou. Cercado de repúblicas, o modelo monárquico brasileiro contava com obstáculos para seu reconhecimento, seja pelas demais nações americanas, seja pela difícil comunicação com os países europeus.

Há que se considerar o esforço interno no sentido de dissociar a imagem brasileira da idéia de anarquia, associada a um sistema escravocrata persistente sobre o qual se estruturavam a sociedade e a economia brasileiras. A pesquisadora acima citada explica que por essa razão, desde os primeiros anos de independência, houve evidente esforço em divulgar e efetuar uma imagem ao mesmo tempo comum e peculiar neste longínquo império.

Não havia uma consciência clara das dificuldades de transpor para o Brasil, um país em formação, modelos importados de países como a França.

O Brasil era constituído de uma sociedade cultural e artisticamente pouco complexa, cuja elite intelectual, seduzida pela cultura européia, não podia perceber até que ponto era problemático para esta cultura criar raízes e se desenvolver livremente em uma sociedade ainda em crescimento (BAEZ:1986, p. 15).

A via de entendimento deste período, seguramente, não passa por respostas simples e rápidas. Podemos buscar elementos de reflexão na hipótese de que o País buscava se afirmar nos modelos que já conhecia e tinha consciência de que eram mais adiantados. Por outro lado, havia uma angustiante pergunta entre as idéias civilizatórias, pergunta esta que continua sendo motivadora de movimentos culturais e artísticos nacionais ao longo da história: afinal, o que é brasileiro?

Havia, durante o século XIX, um desejo geral de afirmação perante o mundo capitalista. Pesavento (1997) fala do desejo de ser moderno, participar da rota do progresso, tornar-se uma grande nação, desfazer a imagem do exotismo tropical do atraso e da inércia.

Para compreendermos por que, em momentos de mudança, certos símbolos vingam e outros não, devemos atentar não só para a emissão como também para a divulgação, ou seja, para o consumo destes símbolos.

D. Pedro II, primeiro monarca nascido no Brasil, foi imperador de 1840 a 1889 e tornou-se o principal mecenas do movimento romântico. Lilia Schwarcz diz que é na iconografia que mais se nota o uso de uma simbologia característica desta monarquia carregada pelos sinais de um diálogo com a realidade externa (européia), sem, contudo, deixar de denunciar características singulares locais (nacionais). Fértil na produção de imagens, o Império brasileiro se destacou em seu papel de criador de ícones nacionais, entre hinos, medalhas, emblemas, dísticos e brasões, entre os quais é possível incluir a “Primeira Missa no Brasil” como parte da iconografia oficial.

O índio brasileiro e o movimento romântico

É no movimento literário romântico que vamos encontrar a figura do índio tomando forma desde 1826, quando o francês Ferdinand Diniz, empregado consular, chama a atenção dos brasileiros para a necessária substituição das tendências clássicas em favor das características locais. Defendia-se a descrição da natureza e dos costumes, nos quais o índio devia ser valorizado como primeiro e mais autêntico habitante do Brasil.

Os literatos românticos conviviam com os historiadores do IHGB e com os professores e diretores da Imperial Academia de Belas Artes, entre eles Manoel de Araújo Porto Alegre, quem teve uma forte relação com a criação da pintura “Primeira Missa no Brasil”.

Foi nos decênios de 50 e 60 do século XIX que, segundo Schwarcz (1998), o Brasil conheceu a consagração do Romantismo, cuja manifestação considerada a mais genuinamente nacional, o indianismo, teve nele o maior movimento de prestígio, alcançando, além da poesia e do romance, a música e a pintura. Os indianistas ganhavam popularidade na representação romântica do índio como símbolo nacional.

Assim, a história da Imperial Academia de Belas Artes e a produção dos seus alunos não podem ser dissociadas das significações maiores do Império. Esta história ainda está por ser mais bem contada, principalmente no que diz respeito à existência de um projeto civilizatório associado à construção do Estado e da nação.

A “Primeira Missa no Brasil”

Imagem simbólica da cultura brasileira, a “Primeira Missa no Brasil”, assim como seus numerosos estudos preparatórios, hoje fazem parte das coleções do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro sob o tombo nº 901. Foi produzida durante o Império de D. Pedro II, na França, entre 1859 e 1860, chegando ao Brasil em 1861. É este entorno que pretendo começar a reconstruir, consciente de que compreender o espírito do Brasil no Segundo Império não é fácil.

Onde buscar a presença de elementos comuns que justifiquem o nascimento de um repertório de imagens e ícones como o da “Primeira Missa no Brasil”, dentro deste contexto?

Como apontou Schwarcz (1998), havia a necessidade, entre outras coisas, da criação e da divulgação de ícones.

A “Primeira Missa no Brasil”, um destes ícones, é sem dúvida uma das mais importantes obras-primas da pintura brasileira de todos os tempos! As obras-primas, segundo Parsons (1992), condensam as sensibilidades de uma época e exprimem plenamente suas tendências e seus ideais. Ao mesmo tempo em que encarnam os valores de uma comunidade, são inconcebíveis sem esta comunidade. Nela o artista fez mais do que qualquer pessoa isolada poderia fazer: serviu-se das intuições e das realizações dos outros, conjugando-os de uma nova forma, o que lhe permitiu falar em nome de toda uma geração.

Essa imagem, ao lado de outros emblemas e símbolos nacionais, vem contribuindo na formação da idéia que temos sobre nós brasileiros, a qual pertence ao campo mítico, silencioso e invisível do Mito Fundador do Brasil. Criação dos conquistadores europeus, apropriado pelo Romantismo brasileiro, o velho mito continua renovadamente reinventado entre nós.

É importante destacar também o papel da “Primeira Missa no Brasil” na construção de uma representação sobre o “Descobrimento” e sobre a identidade brasileira vinculada ao catolicismo e ao sentido de conversão que a navegação portuguesa trouxe consigo, o que amplia a importância desta pintura na construção do nosso imaginário cultural.

Academia Imperial de Belas Artes

Tida como fato primordial para a sistematização do ensino artístico no Brasil, a Missão Artística Francesa chegou ao País em março de 1816, a convite e por arranjo da Corte Portuguesa no Brasil. Era formada por um grupo de artistas e mestres de ofícios, quase todos ex-bonapartistas que vinham para introduzir o ensino acadêmico das artes e ofícios no Brasil de D. João VI.

Para a Imperial Academia de Belas Artes eram encaminhadas as vocações artísticas das províncias do Brasil, como Manuel de Araújo Porto Alegre, do Rio Grande do Sul; Victor Meirelles de Lima, de Santa Catarina; Pedro Américo de Figueiredo e Melo, da Paraíba, José Ferraz de Almeida Júnior, de São Paulo, entre outros. As obras destes artistas espelham o espírito acadêmico de então, voltadas para o idealismo clássico e para os mestres consagrados pelas academias de Roma e de Paris.

Schwarcz (1998) chama a atenção para a relação direta que o Imperador Pedro II mantinha com a Imperial Academia de Belas Artes durante o seu longo Reinado. Empreendendo uma política semelhante ao IHGB, o Imperador passou a distribuir prêmios, medalhas, bolsas para o exterior e financiamentos, assim como participou com assiduidade das Exposições Gerais de Belas Artes, promovidas anualmente, ou entregou insígnias das Ordens de Cristo e da Rosa aos artistas de maior destaque. Em 1845, D. Pedro passou a custear o Prêmio de Viagem, aberto anualmente, que financiava estudos de alunos da Academia no Exterior.

O Imperador recebeu o título de Fundador e Protetor Perpétuo da Academia Imperial; proteger a Academia e os artistas era também uma forma de garantir a produção da iconografia oficial. Da Academia e de seus artistas, além da pintura “Primeira Missa no Brasil”, saíram os inúmeros retratos, as cenas familiares e de poder da Família Real que até hoje ilustram nossa história. A pintura histórica era o gênero mais valorizado na Academia em meados do século XIX. Como bem explicita Jorge Coli (1998: 117)

Meirelles atingiu a convergência rara das formas, intenções e significados que fazem com que um quadro entre poderosamente dentro de uma cultura. Essa imagem do descobrimento dificilmente poderá vir a ser apagada, ou substituída. Ela é a primeira missa no Brasil. São os poderes da arte fabricando a história.

O modelo de ensino de arte que o Brasil importava era, segundo Barbosa apud Zanini (1983), o único com atualidade no país de origem no momento de sua importação para o Brasil. Portanto, o neoclássico, através do qual se expressaram os artistas da Missão Artística Francesa quando para cá vieram organizar nossa primeira escola de arte, era o estilo de vanguarda naquele tempo.

O desenvolvimento da pintura brasileira começou tomar fôlego a partir de 1840, data em que se realizou a primeira Exposição Geral de Belas Artes. Foi neste cenário que apareceu entre os alunos, em 1847, o artista Victor Meirelles de Lima, filho de imigrantes portugueses, vindo da cidade Desterro, hoje Florianópolis.

Se, por um lado, a Academia lhes ensinava a gramática tradicional das artes plásticas, por outro, eles provinham de uma sociedade sem nenhuma tradição para exprimir-se por meio das formas eruditas da Academia, onde, mais por intuição do que por formação, começaram a desconfiar da repetição de cenas mitológicas e bíblicas fornecidas pelos modelos de ensino.

Os professores da Academia de Belas Artes e o corpo governamental do país estavam esperando que surgissem talentos. Tudo era acompanhado muito de perto pelo Imperador, que, para prestigiar, tornou-se presidente de honra do IHGB. Desde menino, aos 14 anos, ele acompanhava tudo de perto.

Segundo pesquisa publicada em Franz (2003), antes de Victor Meirelles a Academia enviou outros artistas para a Europa, através do sistema de bolsas de estudos, mas eles produziram pouco e voltaram logo. O primeiro que realmente se vê nos documentos e que tinha noção do que estava acontecendo é o pintor catarinense. Ele foi para a Europa e atendeu às exigências da Imperial Academia no Brasil nas obrigações dele esperadas. Enquanto os outros artistas mandavam um desenho ou dois, Victor Meirelles mandava dez ou vinte. Então o Imperador e os intelectuais da Academia sentiram que encontraram o artista que procuravam. E é por isso que Victor Meirelles conseguiu a prorrogação da bolsa de estudos por oito anos. O período normal era apenas de três anos.

Quando Victor Meirelles estava na França, o diretor da Academia no Brasil trabalhava em sintonia com o Imperador Pedro II. Mantinham uma reunião semanal, na qual falavam sobre os avanços acadêmicos de seus alunos e outras questões. Então, quando Manuel de Araújo Porto Alegre se correspondia com Victor Meirelles, o resultado dessas conversas se refletia nas comunicações com o artista.

Uma vez feito o primeiro esboço da “Missa”, Victor Meirelles enviou-o para a Academia no Brasil. A elite cultural queria criar esse tipo de imagem para ficar na memória cultural do País. Por isso, uma vez aceito o esboço da “Primeira Missa no Brasil”, o pintor de Desterro ganhou o financiamento para mais dois anos de estada na França e para as despesas da execução da obra.

Em Paris foi auxiliado por Ferdinand Denis, um homem que tinha vivido no Brasil no tempo de D. João VI, que adorou morar aqui e ficou sendo brasilianista pelo resto da vida. Ele era então o diretor da Biblioteca de Santa Genoviève, que existe até hoje em Paris. Foi nesta biblioteca que Victor Meirelles analisou a documentação sobre o índio e sobre o Brasil, e onde também encontrou a carta de Caminha, que tinham descoberto um pouco antes. Estudou a carta com afinco para representar a missa descrita por Caminha.

Antes de ser produto da mente isolada de um artista, a “Primeira Missa no Brasil” é uma síntese visual do projeto civilizatório de cunho nacionalista do Segundo Império brasileiro, e Victor Meirelles de Lima foi o homem que concretizou em forma de pintura as idéias deste projeto.

Se, por um lado, o artista pintou idéias do corpo político e cultural do Brasil de meados do século XIX concretizadas pelo rigor das técnicas artísticas aprendidas nas academias de arte, por onde passou e pela fidelidade a pintura histórica em si, por outro lado, teve “ajudas” que, de tão próximas, podemos chamá-las de “outras mãos”. Entre estas a principal foi a de Manoel de Araújo Porto Alegre. Nacionalista, foi também aluno de Debret, na Imperial Academia, no período que antecede a Independência do Brasil. Foi professor e diretor da Imperial Academia no período em que Victor Meirelles partiu para a Europa. Trocou curiosa correspondência com o artista, onde orientava detalhadamente seus estudos. Falava em nome do Imperador e do Corpo Acadêmico.

Embora a correspondência entre os dois não esteja toda publicada, podemos ver, no que temos à disposição, como esta troca de informações se fazia não somente no sentido acadêmico, mas num clima de confiança, compreensão e estímulo. Nela Victor era instruído na composição de sua primeira grande obra original.

Como pensionistas do Estado, os artistas contemplados com o Prêmio Viagem ficavam submetidos a rígida legislação, pela qual lhes eram cobradas uma série de tarefas e obrigações, garantido assim o sucesso e a manutenção da bolsa. Entre essas tarefas estava a remessa regular de obras realizadas no exterior. A feitura destes trabalhos artísticos era determinada pela Congregação da Escola no Brasil. Para garantir a manutenção deste campo simbólico, nenhum desvio desta linha doutrinária era permitido, sob pena de ser imediatamente suspenso o custeio de sua permanência fora do País (BAEZ, 1986).

Seguindo as instruções de Porto Alegre, Victor Meirelles partiu para uma primeira estada na Itália, seguindo depois para a França, onde tomou orientação de Leon Cogniet, professor da Escola de Belas Artes de Paris. Esta escola, no século XIX, era uma instituição cercada de prestígio, considerada a herdeira da Academia Imperial, criada em 1684, a fim de proteger a elite artística da França no sentido de libertá-la das regras tirânicas que lhes eram impostas pelas corporações de artífices – os Grêmios.

Victor Meirelles produziu também sua “Primeira Missa” obedecendo ao olhar exigente do jurado do Salão Oficial de Paris, em 1861, do qual participou.

Além de estudar a carta de Caminha e de seguir uma minuciosa orientação de Manuel de Araújo Porto Alegre, há um outro fato importante a considerar na construção da obra em questão: Victor Meirelles buscou inspiração para a cena principal de sua obra [Figura 2] em outra missa, a do pintor Francês Horace Vernet (1789–1863). A missa pintada por Vernet intitula-se “Première messe en Kabyli” (1853) [Figura 3], lembrando que o procedimento por citação é absolutamente legítimo dentro do gênero Pintura Histórica.

O desconhecimento das regras da pintura histórica pela crítica de arte nacional causou grande polêmica quando a pintura chegou ao Brasil, e Victor Meirelles inclusive foi acusado de plagiário.

Há ainda a hipótese de que o tema da missa era então recorrente. No Museu Granet, na Provença, França, encontramos outra missa intitulada “Une messe au Louvre pendant la Terreur”, datada de 1847, de autoria de Marius Granet (1775–1849) [Figura 4]. O altar no centro, com um padre levantando a hóstia, e outro de joelhos segurando suas vestes lembram a cena principal da “Missa” de Victor Meirelles. Este procedimento também teria sido legítimo dentro do contexto cultural estético das academias de arte do século XIX.

As academias de arte constituem um modelo de instituição artística pouco conhecidas, e, talvez por isso mesmo, pouco valorizadas. Cercadas de preconceitos desde o advento da arte moderna, chegaram a ser reduzidas simplesmente a instituições regressivas, coercitivas da liberdade de criação artística e de regulação oficial do gosto. Porém, estas instituições nasceram com a finalidade de cumprir determinadas necessidades da época, inclusive dos artistas, então sujeitos aos Grêmios – corporações carregadas de conotações medievalizantes e representativas dos ofícios caracterizados como mecânicos.

A pintura acadêmica brasileira do século XIX não foi exclusivamente neoclássica, como é geralmente reconhecida, pois sofreu influência do Romantismo acadêmico francês, mais conhecido como “Pompierismo”.

Chamados pelo historiador Jorge Coli de “a forma justa” para atingir o poder de permanência que a obra possui, os meios formais adequados só poderiam resultar da Pintura Histórica. As origens deste gênero devem ser vinculadas ao sistema de ensino da pintura das Academias de Arte. Sobre estes aspectos afirma Reyero (1989:16):

Os estudantes eram obrigados a passar por concursos onde os jurados impunham a cada ano o título que cada participante deveria executar. O de história era, pois, resultado de um rigoroso exercício acadêmico, que apenas uns poucos conseguiam superar.

A Primeira Missa no Brasil remete também, como bem lembra Marilena Chauí, para a presença sempre renovada do Mito Fundador do Brasil, apropriado ideologicamente pelo Romantismo brasileiro, o qual contribui para construção da nossa identidade, como membros de uma nação, criando verdades contraditórias sobre quem somos e sobre o que pensam os outros sobre nós mesmos. Utopias que vêm de longe, desde o Renascimento, do imaginário dos navegadores, e que reaparecem ideologicamente nas imagens produzidas pelos artistas no século XIX.

Abandonado e discriminado pelos republicanos, Victor Meirelles morreu pobre em 1903, no Rio de Janeiro.

Se em toda a história houve homens e mulheres que se dedicaram a construir ícones para seu povo, Victor o foi no seu tempo e, se assim o fez, foi sustentado por um contexto cultural e histórico singular e específico.

Parafraseando o saudoso Alcídio Mafra de Souza (1982:14) nunca é demais repetir: Victor é, sem dúvida um dos maiores nomes da arte nacional. Sabemos, porém que seu mérito e valor nem sempre foram reconhecidos. “É, entretanto, reconfortante saber que sua cidade natal jamais o esqueceu, assim como ele também nunca esqueceu sua terrinha pacata e bela”.

Referências bibliográficas

BAEZ, Elizabeth, Carbonel. A academia e seus modelos. In: Academicismo: projeto Arte Brasileira. Rio de Janeiro: Fundarte, 1986, p. 7-16.

BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação. In: ZANINI, Walter (Org). História geral da arte no Brasil. Vol. II. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983, p. 1.077-1.094.

CHAUI, Marilena. Brasil: Mito Fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

COLI, Jorge. “Primeira Missa” e invenção da descoberta. In: NOVAIS, Adauto (Org.) A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 107-121.

FRANZ, Teresinha Sueli. Educação para uma compreensão crítica da arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.

LÓPEZ, Luiz Roberto. Cultura brasileira: de 1808 ao Pré-Modernismo. Porto Alegre: UFRGS, 1988.

PARSONS, Michel. Compreender arte. Lisboa: Presença, 1992.

PESAVENTO, Sandra. Jatahy. Exposições universais: espetáculos da Modernidade do século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.

REYERO, Carlos. La pintura de historia en España. Madrid: Cátedra, 1989.

RUBENS, Carlos. Victor Meirelles: sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SOUZA, Alcídio Mafra. “O Pintor de uma Rua de Desterro”. In: ROSA, A. P. (org). Victor Meirelles de Lima 1832 – 1903. Pp. 13-7. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1982.

________________________________________________________

[1] Este artigo foi publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, Nº 22 em 2003, ano de centenário da morte de Victor Meirelles.

[2] Dra. em Belas Artes pela Universidade de Barcelona – Espanha onde defendeu tese de doutorado em torno da pintura Primeira Missa no Brasil (1860) de Victor Meirelles de Lima (Desterro, 1832 – RJ, 1903). É professora de ensino das Artes Visuais na graduação e no mestrado em Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC – Florianópolis –SC. Autora dos livros: “Educação para a compreensão da arte: Museu Victor Meirelles”. Fpolis: Insular, 2001 e “Educação para uma compreensão crítica da arte”. Fpolis: Letras Contemporâneas, 2003. E-mail: terefranz@hotmail.br