Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Itália (1890-1900) - Questionando o “afrancesamento” da cultura brasileira no início da República

Camila Dazzi

DAZZI, Camila. Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Itália (1890-1900) - Questionando o “afrancesamento” da cultura brasileira no início da República. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/pensionista_1890.htm>.

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A bibliografia relativa à estadia dos artistas brasileiros provenientes da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) / Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) na Europa é desigual, - prevalecendo os estudos sobre aqueles artistas que tendo obtido o Prêmio de Viagem se dirigem a Paris com o propósito de concluir seus aprendizados artísticos -, e pensando bem, muito pouco ampla, uma vez que o interesse dos pesquisadores muito raramente se volta para as primeiras décadas do seu período republicano, quando muitos alunos da ENBA, através dos Prêmios de Viagem ou das Exposições Gerais de Belas Artes, optam pela Itália como sede de seus estudos.[1]

Escassa atenção, portanto, vem sendo dada às relações Brasil-Itália nas ultimas décadas do século XIX, sendo raros os trabalhos que versam sobre os artistas que lá estudaram, como Zeferino da Costa, Rodolpho Bernardelli e Henrique Bernardelli, e se aprofundam nos anos em que esses lá estiveram.[2] Ora, para compreendermos a produção de um determinado artista faz-se necessário acompanhar sua trajetória desde a sua formação, o acesso que ele teve à produção histórica de arte, os materiais que empregou, suas relações com os movimentos internacionais, enfim, uma série de componentes que dão materialidade específica à sua produção; e nesse sentido vários anos de estudo na Itália não podem ser considerados irrelevantes.

A própria historiografia da arte italiana no século XIX, principalmente nos estudos sobre a cultura figurativa da sua segunda metade, quando a França passa a estar em maior evidência, foi, pelo menos até a década de 1960, fruto de uma visão que procurava sempre analisar essa produção artística em relação àquela francesa do mesmo período, confrontado, com maior frequência, os Macchiaioli italianos[3] com os pintores impressionistas.[4] Roberto Longhi sustentava que a arte italiana do Oitocentos era uma arte absolutamente inferior, expressão de una cultura menor, que se ressentia da sua situação de provincianismo - que era, segundo Longhi, própria da Itália dividida em varias regiões culturalmente diversas, mesmo após sua unificação política. Tal postura é detectada também nos discípulos de Longhi, por exemplo Antonio Boschetto, que chegavam a  ponto de considerar insignificante um artista do nível de Giovanni Fattori, ou mesmo todo grupo dos Macchiaioli toscanos, que eram considerados como personagens de menor relevo no cenário artístico europeu, principalmente se comparados aos Impressionistas.[5] De fato, se atribuía à França e à cultura francesa uma posição de referência. Lionello Venturi, mesmo defendendo os Macchiaioli, atribuía em sua tese um lugar de maior destaque à arte francesa, sustentando que o Modernismo havia começado com o romantismo francês, na pintura de Delacroix, prosseguindo no Impressionismo, se desenvolvendo através do Pós-impressionismo cèzanniano, vangoghiano etc., e chegando, finalmente, à arte francesa a ele contemporânea.[6] A arte italiana apareciam assim, pouco provida de modernidade.

Tal posicionamento vem passando por uma revisão historiográfica, perceptível em estudos recentes, como a revalorização da crítica de arte italiana, por Paola Barocchi no seu Testemunianze e polemiche figurative in Itália;[7] ou a análise das grandes exposições italianas, assim como do papel da pintura italiana no mercado de arte internacional, por parte de Maria Mimita Lamberti.[8] A importância da Itália como centro formador de artistas é repensado por Carlos Gonzáles no seu Pintores Españoles en Roma (1850-1900)[9] e por Carlos Reyero em Artisti spagnoli e portoghesi: L'esperienza italiana, um passaggio obbligato per la formazione artística.[10]

A pouca relevância dada à formação italiana pelos estudiosos brasileiros pode ser explicada, como vimos, pela posição subalterna que a Itália assumiu na historiografia da arte internacional, especificamente no que diz respeito ao século XIX. Tal descaso pode ser igualmente atribuído à historiografia modernista no Brasil que procurou valorizar aquilo que servia como marco de origem e evolução das vanguardas, relegando todo resto a um “pacote comodamente etiquetado como acadêmico”,[11] no qual estaria incluída a arte oitocentista italiana, destituída, como se pensava, de modernidade. O destaque que se dá à arte francesa do período,e o preconceito a alguns gêneros artísticos contribuem enormemente para isto. Basta aqui citarmos o exemplo de José Roberto Teixeira Leite, no seu texto “Belle Époque no Brasil”,[12] período por ele situado “entre 1889, data da proclamação da republica, e 1922, ano da realização da Semana de Arte Moderna de São Paulo, sendo precedida por um curto prelúdio - a década de 1880”. Segundo o crítico, seria impossível compreender este período da arte no Brasil fora de suas vinculações com a França. Tal afirmativa é questionável, quando pensamos no fato de que vários artistas de relevo no cenário artístico carioca, entre 1880 e 1900 completaram seus estudos na Itália, tendo lá entrado em contato com os movimentos artísticos considerados pelo crítico como de maior relevo, como o  Simbolismo e o Art Nouveau. A Itália, portanto, pode ser pensada como uma das “portas” que possibilitavam os artistas brasileiros entrar em contato com as últimas tendências da arte no panorama internacional. Apesar desta constatação, são as relações com a França que, ainda hoje, continuam a merecer maior destaque.

O que verificamos na nossa pesquisa, no entanto, é que o meio artístico carioca da segunda metade do século XIX esteve particularmente aberto às inovações da cultura figurativa produzida na Itália, graças, em grande parte, às relações artísticas que a AIBA/ENBA sempre procurou estabelecer com este país, sobretudo através dos Prêmios de Viagem. Os artistas que lá estudaram na segunda metade do Oitocentos, se “alimentavam” com as novidades que ocorriam no contexto artístico no qual estavam imersos e traziam estas inovações quando dos seus regressos ao Brasil, e mesmo ainda durante as suas estadias na Itália, através do envio de obras que figuravam em exposições.

Apesar de Paris, já no início do Oitocentos, ser berço de novas e inquietantes tendências artísticas, o interesse por viagens e estadias na Itália não diminui, nem, em geral, constitui uma experiência de menor relevância na trajetória artística de pintores e escultores de toda Europa e das Américas. Muito pelo contrario, a Itália ainda despertava um interesse considerável, tornando-se lugar de estudos para inúmeros artistas estrangeiros, interessados não somente nas famosas coleções de arte reunidas em museus e igrejas, mas sobretudo nas novas propostas da arte italiana.

Em geral, o fascínio exercido no século XIX pela Itália, que os estrangeiros consideravam unitariamente antes mesmo da sua efetiva unificação política, decorre de dois fatores. Antes de tudo, sobrevive a ideia de que se tratava do lugar mais idôneo  para um aprendizado artístico.  Em um ofício de 1868, destinado ao Governo Imperial, referente à ida de Zeferino da Costa à Itália, os membros da Congregação da Academia deixam claro tal posicionamento:

A carestia da vida em Paris, a exiguidade da pensão estabelecida, e, mais que tudo, as distrações daquela grande cidade, que a experiência tem nos demonstrado perturbar o estudo dos nossos alunos, contrastando com a vida tranquila, módica e apropriada ao estudo das belas artes que Roma oferece, são as razões que levaram a Congregação a tomar esta resolução... [13]

O tipo de consideração feita pelos membros da Congregação da AIBA, que vêem em Paris uma cidade de “distrações”, inapropriada aos alunos, comprova que nem todos os entendedores de arte concordavam que Paris era o lugar mais ideal para a formação de um jovem artista. De fato, o que se percebe, é que na Europa e nas Américas, as instituições que possibilitavam uma estadia no estrangeiro estavam convencidas de que a Itália, e particularmente Roma, constituía uma passagem obrigatória na formação de qualquer artista (ainda que muitos se dirigissem, antes ou depois, a outros centros artísticos como Paris ou Munique) [14]. Vários são os artistas alemães, espanhóis e portugueses que ali estudam; poderíamos citar aqui, dentre tantos nomes, os de Böcklin e Hans Von Marées, dos espanhóis Joaquin Sorolla e Mariano Fortuny, e os portugueses Silva Porto, Marques de Oliveira e Henrique Pousão.

Mas o fascínio exercido pela Itália não decorria somente dela ser um centro de excelência para o aprendizado artístico. Em segundo lugar, vemos o mito da Itália, transcendendo a veneração pelo seu passado, se transformar em uma apaixonada contemplação do seu presente. As regiões e seus costumes, a paisagem urbana e da campagna, os tipos populares, encantam muitos artistas. Mas a principal razão para as estadias na Itália prosseguirem durante as últimas décadas do Oitocentos e mesmo as primeiras do Novecentos, - contrariando muitas das ideias construídas pelos historiadores da arte -, se deve ao profundo interesse por parte dos artistas frente às novas propostas que surgiam no âmbito da arte italiana.

Como vimos, a concepção da França como detentora máxima da Modernidade é historicamente construída. Ainda nas últimas décadas do Oitocentos, inclusive aqui no Brasil, é possível verificar que a Itália era vista como um país de relevo no panorama artístico ocidental, não somente pela arte que havia produzido no passado, mas também pela sua produção contemporânea. Podemos ir ainda mais longe, e afirmar que a arte moderna italiana era vista, ao menos por alguns membros expoentes do meio artístico carioca de fins de século, como um modelo a ser seguido, como atesta esta crítica de 1890 a obra de Henrique Bernardelli, um dos artistas oriundos da AIBA cujos vínculos com a Itália, para além dos anos de estudo naquele país, se estendem durante sua atuação como Professor de pintura na ENBA:

A exposição atual [Exposição Geral de Belas Artes de 1890] é talvez a mais brilhante que temos tido, e se o público ainda se não definiu a frequenta-la, é porque anda escabreado das outras, e ainda não tem fé na arte nacional. [...] E se quer que o guiemos, se quer ter logo desde o primeiro dia uma impressão que o obrigará a voltar, ao entrar na galeria nova procure um quadro que fica ao fundo, à direita, a Dicteriade de Henrique Bernardelli; [...] diga-nos se  não é aquilo o atestado bem eloquente do quanto vale a permanência de um artista de talento em um meio verdadeiramente artístico. Aí está a verdadeira arte italiana moderna em toda a sua perfeição, e como a tela é de um artista nosso, ali está o que é preciso para termos arte nacional, se o governo e o público entenderem que vale a pena cultivar a preciosa planta, que também enriquece as nações, influindo sobre os costumes, pois nem só de café vive o homem [15].

Ora, fica muito evidente, a partir de uma pesquisa séria das fontes do período, que a relação da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro com à Itália, se comparada a outras instituições de ensino artístico, não foi menos significativa. Através do elevado número de Membros Correspondentes italianos, dentre os quais pintores, escultores, músicos e arquitetos, dos mais diversos centros artísticos da Itália, como Florença, Milão, Roma e Nápoles,[16] muitos deles reconhecidos professores em suas áreas de atuação, podemos perceber que desde muito cedo a AIBA esteve preocupada em estabelecer relações acadêmicas com este país. Entre 1845 e 1900, nada menos que 18 dos alunos e professores da Academia (de vínculo breve ou duradouro), através dos Prêmios de Viagem, de bolsas de estudo concedidas pelo Imperador, ou por conta própria, possuem uma passagem pela Itália de inestimável relevância para suas produções artísticas.[17] Por fim, podemos afirmar, com base em dados documentais, que, ao contrário mesmo do que se costuma afirmar, em nenhum momento, durante a segunda metade do século XIX, as viagens a estudo á França foram tão superiores aquelas à Itália a ponto de julgarmos menos significativas as relações da AIBA/ENBA com aquele país.

A continuidade das relações entre Brasil-Itália no campo artístico durante a última década do século XIX, ocorre principalmente devido à atuação, na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, de professores que fomentavam um forte vínculo com aquele país, muitos deles Prêmios de Viagem da AIBA. Devemos lembrar que após a implantação da República, a Academia Imperial de Belas Artes passa se denominar Escola Nacional de Belas Artes, sendo eleito como novo diretor, em 1890, Rodolpho Bernardelli. A grande maioria dos professores da nova Escola, atuantes nas áreas de pintura, desenho, escultura e arquitetura, possuíam formação italiana. Poderíamos aqui mencionar Zeferino da Costa, Rodolpho Bernardelli, Henrique Bernardelli, Pedro Weingärtner, Modesto Brocos, Heitor de Cordoville, Belmiro de Almeida, dentre outros. Essa informação, que pode parecer a alguns mero detalhe, deve ser considerada importante para reavaliar esse período inicial da ENBA do Rio de Janeiro, principalmente no que diz respeito a sua relação com á arte italiana daquele período.

Da formação na Itália

Uma característica relevante diferencia os artistas oriundos da antiga AIBA daqueles provenientes da ENBA: se os artistas que se dirigem para a Itália até 1870 dão prosseguimento aos seus estudos preferencialmente na Accademia di San Luca, a partir da década de 1880 a passagem pela instituição, antes tida como de fundamental importância, é considerada desnecessária, já que nossos artistas seguiam para Roma já possuidores dos mesmos conhecimentos que teriam tido acesso na academia romana. Já os artistas provinientes da ENBA optam em sua maioria por estudar em centros de ensino artístico que, se até hoje mereceram pouca atenção dos estudiosos da arte oitocentista, foram, no entanto, bastante frequentados em suas épocas por artistas sobretudo estrangeiros, como a Academia Chigi e o Círculo Artístico Internacional (ou Associazione Artistica Internazionale).

De fato, havia vários centros de ensino artístico em Roma, para os quais se direcionavam muitos dos pensionistas estrangeiros naquela cidade, sobretudo os espanhóis, com os quais os artistas brasileiros tiveram grande proximidade.[18] Os mais importantes centros são a Accademia Chigi, concorrida pela sua proximidade geográfica com o atelier da maioria dos pintores e pela existência de classes noturnas onde se realizavam desenhos e academias de nus, sendo famosos os modelos que aí posavam; a Accademia Cauva; a Academia de Bellas Artes Española, em funcionamento a partir de 1881, e por fim o Círculo Artístico Internacional.

Sem dúvida alguma, o Círculo Artístico Internacional foi o elo comum entre os artistas que estudaram em Roma durante as duas últimas décadas do século XIX, tendo sido seus sócios os Bernardelli,[19] Pedro Weingärtner, Fiúza Guimarães, Rafael Frederico, Bento Barbosa e Correa Lima. O Circulo Artístico Internacional surge em 1870 em Roma, estabelecendo-se posteriormente na Via Margutta, em 1887. Um dos principais promotores da instituição foi  o famoso mecenas italiano príncipe Baldassarre Odescalchi, que ocupa durante algum tempo o posto de presidente, sucedido por pintores de renome como Francesco Jacovacci. Além de pintar, neste centro os artistas organizavam tertúlias e festas, como os famosos carnavais que se celebravam a cada ano e em cuja preparação contribuíam os artistas decorando o local. Cada grupo montava um cenário de acordo com sua origem nacional. O Círculo contava com várias salas para as suas atividades, bibliotecas e restaurante, e além disso organizava exposições anuais na famosa Casina del Pincio da Piazza del Popolo. Não é de admirar que brasileiros, como Henrique, Rodolfo, e tantos outros, estivessem filiados a tal instituição. De fato, o Circulo Artístico foi um ponto agregador de pintores estrangeiros, sobretudo os espanhóis e alemães, fazendo parte do dele nomes famosos como Fortuny, e seus adeptos, Böcklin, Lenbach, Marstens, e entre os italianos, Nino Costa (por pouco tempo), Cabianca, Carlandi, Ettori Ferrari, Joris, Patini, Vertunni, Vannutelli, muitos dos quais parecem ter influenciado diretamente a produção artística dos artistas brasileiros.

De qualquer modo, mais do que as academias, os centros preferidos pelos artistas recém-chegados a Roma eram os estúdios dos pintores a eles conterrâneos que haviam alcançado já alguma fama, onde o ensinamento prático era muito mais construtivo. O centro agregador dos jovens artistas brasileiros que chegavam a Roma foi o atelier de Zeferino da Costa, lugar onde este preparava primeiramente os estudos, e posteriormente, já na década de 1890, os painéis da Candelária.  À colaboração de Henrique Bernardelli em Roma somar-se-iam as mãos de Rafael Frederico e Bento Barbosa.[20]

No Museu Dom João VI/EBA/UFRJ, temos alguns relatos visuais do aprendizado ocorrido no Centro Artístico Internacional, através de quadros de Rafael Frederico e Bento Barbosa, como Retrato de bispo, c.1896 [Figura 1], do primeiro, e  Retrato feminino, c.1896 [Figura 2], e Busto de Menino, c.1897 [Figura 3], do segundo, obras enviadas como estudos obrigatórios de pensionistas, segundo o capítulo VI do regulamento, para processo dos concursos de pensionistas à Europa. Os dois artistas passaram parte de suas estadias como pensionistas da ENBA juntos em Roma:[21] o primeiro, Prêmio de Viagem em 1893, chega a capital italiana, em meados de 1895, depois de curta estadia em Paris; o segundo tendo ganho o Prêmio de Viagem em 1894, segue direto para a Itália em 1895 , como fica decidido pela Congregação de Professores, que designa como lugar de sua primeira residência a cidade de Roma.[22] Rafael Frederico e Bento Barbosa tornam-se amigos,[23] frequentando as aulas do Círculo Artístico e o atelier de Zeferino da Costa.

Apesar de provavelmente feitas nos mesmos anos e no mesmo centro de ensino artístico, as obras dos artistas apresentam soluções plásticas diferentes, que evidenciam ter sido o ensino no Circulo Artístico diversificado, não impondo aos artistas orientações estéticas rígidas, nem direcionamentos inflexíveis. Nas obras de Bento Barbosa, como Menino que retira espinho do pé [Figura 4] percebemos o uso de uma paleta de tons claros bastante próximos, usada com maior freqeência em pinturas de destinação decorativa do período. Já as obras de Rafael Frederico, como Retrato de velho [Figura 5], apresentam um uso mais livre da paleta, sem restrições a saturações cromáticas. Além disso, se nas obras de Rafael Frederico existe uma evidente preocupação em retratar o caráter psicológico ou a origem social das figuras retratadas, Bento Barbosa está muito longe de demonstrar tal interesse em suas obras. Basta compararmos o seus Busto de menino e Busto de Mulher, com obras como os Retrato de velho e Retrato de Bispo, de Rafael Frederico para que se perceba que enquanto o último está vinculado à estética do realismo social, o primeiro se aproxima muito mais da simbolista.

O realismo estava longe de ser uma tradição gasta e “poeirenta” quando a aspiração simbolista começou a se afirmar. As duas correntes artísticas estão presentes no ambiente artístico italiano das duas últimas décadas do séc. XIX, e é possível perceber na obra dos artistas da segunda geração que eles não lhes ficaram indiferentes, sendo possível detectar, em obras quase que contemporâneas, aderência a mais de uma destas tendências artísticas. Mas já nos últimos anos da década de 1890 é cada vez maior o número de obras em que o verismo cede lugar a uma interpretação mítico-emotiva da realidade, em que o amplo uso de nuances e  ambiguidades, permite, longe da objetividade temática de uma obra verista, uma miríade de significados.

Tal tendência é perceptível na  famosa escultura Remorso, de Correa Lima [Figura 6]. O escultor, discípulo Rodolfo Bernardelli na ENBA, foi o último artista do século XIX, vinculado a ENBA, a optar pela Itália como sede de seus estudos. De fato, é Remorso que lhe concede o primeiro lugar na Exposição Geral em 1899, e uma pensão de três anos na Itália, onde o artista decide permanecer com um atelier montado.[24] A obra mostra perfeita sintonia com a escultura italiana de então, e ao vê-la pensamos em obras de Giulio Monteverde e Adriano Cecioni ligadas a temas do cotidiano infantil, como Criança com galo (c.1867) [Figura 7] deste último. Tal obra de Cecioni, no entanto, pode ser qualificada como uma cena de gênero que se aproxima do instantâneo fotográfico. Certamente, as referências de Correa Lima tem muito mais a ver com esculturas como O jovem pescador de Vincenzo Gemito [Figura 8], onde não vemos mais a tentativa de criar um momento real, mas sim possuidor de um clima quase mágico, irreal, onde elementos visualmente ligados ao mundo camponês de fins do Oitocentos ganham uma atemporalidade mítica, cujas origens se perdem no espaço sem tempo da cultura mediterrânea.

Dos brasileiros que se dirigem para a Itália ainda nas últimas décadas do Oitocentos por conta própria ou com outras bolsas que não aquelas concedidas pala AIBA/ENBA, merecem destaque Pedro Weingärtner e Belmiro da Almeida. Apesar de não terem sido seus pensionistas, os artistas tornar-se-ão professores da ENBA em 1891, logo após Rodolfo Bernardelli assumir a presidência. Da instituição  Weingärtner foi pensionista do Imperador entre 1884 e 1888, e após breve estada na Alemanha, parte para Roma em 1885, cidade na qual doravante realizaria boa parte de sua produção. Já Belmiro reside em Roma  entre c.1889 a 1892, custeado por amigos, dentre os quais Rodolfo Bernardelli e Angelo Agostini, que após a anulação do concurso do Prêmio de Viagem de 1888 se reúnem para ajuda-lo.[25] A abertura em direção às novidades que ocorriam no âmbito da arte italiana é claramente percebida na obra destes artistas: basta aqui citarmos quadros como Efeitos do Sol (1892) de Belmiro de Almeida [Figura 9], cuja técnica empregada é aquela divisionista,[26] tão em voga na Itália daqueles anos, sobretudo na figura de artistas como  Giovani Segantini, Angelo Morbelli e Giuseppe Pellizza da Volpedo.

Dois artistas cujas estadias na Itália, ainda no decorrer do século XIX, também se apresentam significativas são Antonio Parreiras e Almeida Junior . O primeiro, custeando suas própria viagem, escolhe em 1889 a Itália como sede seus estudos, passando em Veneza grande parte de suas estadia naquele país. São deste período as suas obras Turbínio e Ventania, realizadas em Veneza no decorrer de 1888.[27] Já Almeida Junior tem alí uma breve estadia, quando em 1881, vindo de Paris, se demora na companhia dos Bernardelli, em Roma, por alguns meses. Os artistas, apesar de possuírem papeis de destaque na arte brasileira de fins do XIX e início do XX, não possuem ligações oficiais com a ENBA - Parreiras, por ir contra os princípios que guiavam seus principais representantes, como os Bernardelli e Rodolfo Amoedo,[28] e Almeida Junior por residir, após o seu regresso da Europa, em São Paulo.

O interesse pela Itália prossegue durante as primeiras décadas do século XX;[29] poderíamos mesmo afirmar que é uma tendência geral nas primeiras décadas deste século, uma vez que não só os artistas vinculados ao Rio de Janeiro fizeram estadias mais ou menos longas nesse país , mas também alguns representantes do Modernismo paulista, o que indica que a passagem pela Itália continuava sendo um recurso quase obrigatório para os brasileiros na Europa.

Quanto ao Rio de Janeiro, a influência da arte italiana mais recente é detectável no estilo em formação de pintores como Pedro Bruno, Prêmio de Viagem na Exposição Geral de 1919 e que passou toda a sua estadia em Roma frequentando a  Academia Britânica local, onde inclusive atuou como professor. O artista, em uma entrevista dada à Angyone Costa, deixa entrever sua orientaçã  na Itália ao destacar nomes pintores tardo-oitocentistas como Ettore Tito, Giulio Aristide Sartorio e Armando Spadini, “poderosos mestres que muito podem ensinar”.[30] Alguns anos antes, Mario Navarro da Costa, um pintor que apesar de sua relativa independência não deixou de estabelecer relações com a ENBA, absorveu em Nápoles a influência de Attilio Pratella, a qual faria exacerbar sua predileção pelo uso de saturações cromáticas intensas e pela explicitação da fatura pictórica.

No período final da 1ª República podemos notar uma ascendência ainda maior da arte italiana contemporânea sobre alguns pensionistas da ENBA. Tadeu Chiarelli chamou a atenção para esse fato, em especial no que tange à relação entre os nossos artistas e o chamado Novecento, um movimento com vertentes diversificadas, normalmente estudado em relação àquele fenômeno artístico mais amplo conhecido por “retorno à ordem”, de grande importância na cena europeia entre meados da década de 1910 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial.[31] De fato, é possível notar aproximações entre a obra de alguns artistas oriundos da ENBA e aspectos da estética do Novecento. É o caso, por exemplo, de Quirino Campofiorito, que após uma breve estadia em Paris, estabeleceu-se em Roma, por volta de 1932. O Museu Dom João VI possui diversos envios desse período: as técnicas utilizadas então por Campofiorito - especialmente nanquim e sanguinea -, bem como o tratamento formal de seus desenhos, demonstram uma orientação bem diversa daquela que os pensionistas costumavam seguir na França. As suas naturezas-mortas, realizadas na década de 1930, são muito semelhantes àquelas de Ottone Rosai e alguns de seus quadros posteriores são nitidamente marcados pelo clima “metafísico” das obras de Giorgio De Chirico. A influência novecentista é também presente nas obras de Candido Portinari, que estagiou na Itália durante sua estadia na Europa, período em que se impregnou da visualidade de novecentistas como Carlo Sironi e, por consequência, da dos chamados primitivos italianos, como Pisanello.


[1] Não são poucos os textos que  destacam a influência francesa, mesmo em artistas que estiveram na Itália durante parte de suas estadias na Europa, assim como não são raros aqueles que se dedicam aos artistas atuantes no período Imperial (AIBA), se comparados aqueles que versam sobre o Republicano (ENBA). Podemos aqui citar alguns, por ordem cronológica: COSTA, Lygia Martins. Panorama de um século de pintura brasileira (1850-1950). In: Um século de pintura brasileira. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 1950; Catálogo da Exposição Retrospectiva de Visconti. São Paulo: Museu de Arte  Moderna de São Paulo, 1954; Catálogo da Exposição Lebreton. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes, 1960; BITHENCOURT, Gean Maria. A Missão Artística Francesa de 1816. 2o ed. Petrópolis: Museu de Armas Ferreira Cunha, 1967; BARATA, Mário. A chegada da Missão Francesa e a Academia Imperial de Belas Artes e indicações para estudo do Romantismo e às ultimas tendências do século XIX. As artes no Brasil no século XIX. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, ago.-set., 1977.

[2] Os poucos trabalhos que se aprofundam sobre a relação destes artistas com a arte italiana, quando de suas estadias naquele país, são: COLI, Jorge. Vitor Meirelles e a pintura internacional. Campinas: Unicamp, 1997. (Tese de livre docência). SILVA, Maria do Carmo Couto da. A obra Cristo e a mulher adúltera e a formação italiana do escultor Rodolfo Bernardelli. Campinas: Programa de Pós-graduação em História IFCH/UNICAMP, 2005. (dissertação de mestrado). Incluímos aqui, também, o trabalho por nós desenvolvido: Dazzi, Camila. As relações Brasil-Itália na arte do último oitocentos: estudo aprofundado sobre Henrique Bernardelli (1880-1890). Campinas: Programa de Pós-graduação em História IFCH/UNICAMP, 2006. (dissertação de mestrado).

[3] Para uma rápida definição dos Macchiaioli, consultar: <http://en.wikipedia.org/wiki/Macchiaioli>

[4] DE GRADA, Raffaele. Come si affronta l'arte oggi: Italia e Europa. Arte & Carte on line Periodico di Cultura Informazione e Creativita' Artistica. Napoli. Editori: Arte Dimensione Edizioni. Publicado em: 2004-07-01.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] BAROCCHI, Paola (org.). Testemunianze e polemiche figurative in Itália: Dal bello ideale al  preraffaelismo. Firenze: Casa Editrice G. D‘Anna, 1972.(2.vl.).

[8] LAMBERTI, Maria Mimita. I mutamenti del mercato e le ricerche degli artisti. In: Storia dell`arte italiana. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1982. (Volume terzo: il Novecento).

[9]  GONZÁLES, Carlos e Martí, Montse (org).  Pintores Españoles en Roma (1850-1900). Tusquets Editaes, 1996.

[10] REYERO, Carlos. Artisti spagnoli e portoghesi: L1esperienza italiana, um passaggio obbligato per la formazione artística. In: Ottocento; cronache dell`arte in italiana dell`Ottocento, no 20.  Milano: Giorgio Mandadori, 1991.

[11] PEREIRA, Sonia Gomes. Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão. Revista Arte & Ensaios. Rio de Janeiro: Programa de pós-graduação da Escola de Belas Artes/UFRJ, n. 8, 2001. p. 73.

[12] LEITE, José Roberto Teixeira. Belle Epoque no Brasil. In: Arte no Brasil, 2 v, Abril Cultural, São Paulo, 1979.

[13] Ofício da Congregação dos Professores da Academia Imperial de Belas Artes, Rio de Janeiro, 27 ago. 1868. Cf. LEE, Francis Melvin. Henrique Bernardelli. São Paulo: Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, 1991. p.62. (Monografia de fim de curso)

[14] A importância da Itália como centro formador de artistas é repensado em: GONZÁLES, Carlos e MARTÍ, Montse (org).  Pintores Españoles en Roma (1850-1900). Tusquets Editaes, 1996.  I “Deutsch-Römer”, Il Mito dell`Italia Negli Artisti Tedeschi, 1850-1900. Milano: Mandadori Edit, 1988. REYERO, Carlos. Artisti espagnoli e portoghesi: L`esperienza italiana, um passaggio obbligato per la formazione artística. In: Ottocento; cronache dell`arte in italiana dell`Ottocento, no 20.  Milano: Giorgio Mandadori, 1991.

[15] Gazeta de Noticias, março de 1890. Autor: anônimo (Grifos nossos).

[16] A Congregação dos Professores da Academia, desde a década de 1850, estimulou o intercâmbio artístico com a Itália, tendo concedido o título de Membros Correspondente a vários de seus artistas. Nas décadas de 1850 a 1870 sobretudo com artistas vinculados á Accademia di san Luca e ao Instituto Romano , como  Luigi Canina, Cesare Mariani, Scipioni Vannutelli, Nicola Consoni e Giulio Monteverde. A partir dos anos de 1880, no entanto, temos o nome de artistas napolitanos,  como Domenico Morelli, Domenico Conte e Vincenzo Conte.  Cf. o levantamento foi por nós realizado a partir do Banco de Dados do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ, que possui uma listagem dos Membros Correspondentes europeus entre 1851 e 1888. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/documentos/membros_correspondentes.htm>

[17] Sobre este assunto, ver: CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Os Prêmios de Viagem da Academia em pintura. op. cit. p. 69-92; FERNANDES, Cybele Vidal NetoO Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Artes19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm>.

[18] A amizade de Rodolfo e Henrique Bernardelli com o artista espanhol Modesto Brocos, que tem início durante a  estadia dos três ainda como estudantes em Roma, serve para mostrar o quão parecidas eram suas trajetória naquela cidade. Brocos, em Roma entre aproximadamente 1882 e 1887, frequenta a Accademia Chigi e o Circulo Artístico Internacional. A convite de  Rodolfo Bernardelli retorna ao Brasil para assumir o cargo de professor de desenho figurado na recém inaugurada da Escola Nacional de Belas Artes, em 1891.

[19] Arquivo do Museu Nacional de Belas Artes. Numeração: APO 54. Henrique Bernardelli se torna sócio efetivo da Associazione Artística Internazionale di Roma em 1 de novembro de 1879. Rodolfo Bernardelli recebe o diploma de sócio efetivo da Associação em 1877. Sabemos que Henrique não só expôs nas mostras que ocorriam na Casina Del Pincio,  como  parece ter realizado diversas funções deliberativas para o órgão. Na Coleção Rodolfo Bernardelli existe um croqui executado sobre convocação impressa da Associazione Artistica Internazionale in Roma dirigida ao “Sig. Bernardelli Enrico Vle. S. Mla. da Tolentino, 13”datada de 14 de abril de 1886. “Egregio Signore,/  La S. V. È pregata di voler intervenire all`assembela generale dei Soci che avrà luogo, in seconda convocazione, la sera di sabato, 17 corrente, alle 8 ½.”

[20] Centenário de nascimento do Prof. Rafael Frederico (com relatos de seus filhos A. Frederico e Orlando Frederico). Arquivos da Escola de Belas Artes. n.  XI, p. 59-74.

[21] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Notação: 5177. Data: 07/10/1896. Carta do ministro encarregado da Legação do Brasil em Roma, Régis de Oliveira, ao diretor da Escola, comunicando as despesas com a expedição, de quadros de Rafael Frederico, Bento Barbosa Júnior e Pedro Weingartner.

[22] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Atas da Congregação. Data: 10/12/1894. p. 32. Estiveram presentes na sessão Rodolfo Bernardelli, Henrique Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Modesto Brocos.

[23] A amizade dos dois artistas pode ser verificada na carta que escrevem em conjunto ao Ministro da justiça. Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ.  Notação: 5179. Data: 13/05/1897. Cópia do abaixo assinado dos pensionistas da Seção de Pintura, Rafael Frederico e Bento Barbosa Júnior ao ministro da Justiça e Negócios Interiores, manifestando contentamento com a notícia da construção da nova Escola.

[24] Correa Lima  reside, em Roma, Itália entre 1899 e 1902, onde monta um atelier e mantém diariamente, durante algum tempo, duas sessões de modelo vivo, desenhando à noite no Círculo Artístico.

[25] Revista Illustrada, 7 de abril de 1888. “Um acto de Bernardelli”. Autor: anônimo; Revista Illustrada, 23 de agosto de 1890. Autor: anônimo.

[26] Para uma rápida definição do Divisionismo italiano, ver: <http://www.homolaicus.com/arte/pellizza/divisionismo.htm>

[27] ANTONIO PARREIRAS: Ventania (Veneza), 1888. Óleo sobre tela,  150 x  100 cm. Coleção Pinacoteca do Estado de São Paulo. ANTONIO PARREIRAS: Tubínio (Veneza), 1888. Coleção Museu nacional de Belas Artes/RJ.

[28] Sobre o posicionamento de Parreiras em relação a reforma de 1890, ver: PARREIRAS, Antônio. História de um pintor (contada por ele mesmo). Niterói: Diário Oficial, 1943.

[29] Sobre o papel da Escola Nacional de Belas Artes na manutenção do interesse por Roma, ver: VALLE, Arthur Gomes. A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na 1a República (1889-1930): Da formação do artista aos “modos” estilísticos. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Artes Visuais/EBA/UFRJ, 2007 (Tese de doutorado), p.156-164.

[30] COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas (O que dizem nossos pintores, escultores, arquitetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927. p.107-108. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_ac.htm>

[31] Ver: CHIARELLI, Domingos Tadeu. O Novecento e a arte brasileira. Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Editorial Lemos, 1999.