Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906: resenhas em O Paiz, Rio de Janeiro

organização de Arthur Valle, transcrição de Clevison Jesus de Carvalho e Diego Alves

VALLE, Arthur (org.); CARVALHO, Cleivison Jesus de; ALVES, Diego (transcrição). Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Página inicial disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/JM_1906.htm>.

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ARTES E ARTISTAS - José Malhôa. O Paiz, Rio de Janeiro, 27 dez. 1905, p.2.

A diretoria do Gabinete Português de Leitura recebeu pelo último correio a resposta ao convite feito ao notável pintor português José Malhôa para vir expor alguns de seus trabalhos.

José Malhôa, agradecido pela oportunidade de realizar o desejo que tem muito de vir ao Rio, uma cidade tão tradicionalmente simpática aos artistas e a todas as tentativas de artes, como lhe escreveu, promete vir em junho.

A vinda do grande pintor português é, portanto, um fato assente e será um belo acontecimento para todos que entre nós se interessam pela arte.

 

 

CHAGAS, João. UM ARTISTA PORTUGUÊS NO BRASIL. O Paiz, Rio de Janeiro, 17 fev. 1906, p.1.

Afirma-se que os povos estão separados por ideias. Eu afirmo que o que separa os povos são apenas algumas tarifas de caminhos de ferro e de paquetes. É certo que esses meios de locomoção acabaram com as distâncias. O que era noutro tempo uma grande viagem é hoje uma rápida excursão. A África Central, essa misteriosa região dos lagos, era ainda há pouco um lugar da terra só violado pelos exploradores audaciosos, e graças ao caminho de ferro - revelava-nos há dias a Illustração Francesa, num artigo que encheu o mundo de surpresa - já nas margens do Victoria-Nyanza passeiam em toda a segurança, com os seus kodacks à tiracolo, os touristes das viagens Cook.

O progresso, porém, é caro. As viagens são rápidas, mas dispendiosas, e viajar é ainda o esporte dos abastados. Sem fortuna, o homem de hoje não pode ir além da cidade ou da aldeia em que habita, e como conciliar, confraternizar povos, raças que não se conhecem, se vemos simplesmente ignorarem-se individuos de um mesmo país, mas de diferentes e afastadas províncias? Em Portugal, por exemplo, o transmontano desconhece o algarvio, o alentejano desconhece o beirão. Certamente não se detestam, porque são da mesma raça e do mesmo povo e porque os seus interesses são comuns, mas a sua solidariedade seria muito maior se se conhecessem mais intimamente, o que não sucede. E por que, por que não se conhecem? Porque viajar é caro e viajar, mesmo de uma província para outra, não é coisa que toda a gente possa fazer.

Que dizer das relações entre os povos, se nós, em nossa casa, de província para província, mal nos conhecemos?

Os povos querem-se mal, olham-se de soslaio, guerreiam-se; derramam um inútil sangue, porque não se conhecem, confinados como estão a dentro [sic] das suas fronteiras e ignorando-se tão completamente que ainda há dias o correspondente em Paris de um dos jornais de Lisboa acentuava o fato de grande número de franceses estar ainda persuadido de que Portugal é uma dependência da Espanha.

Os povos ainda estão hoje, a respeito de mútuo conhecimento, reduzidos como outrora a ser informados sobre o seu caráter, usos, costumes, instituições, leis, pela narrativa do viajante, a qual antigamente se dava o nome de relação, ou relaçam. Milhões de indivíduos não sabem uns dos outros mais do que o que disse um só, mais aventureiro, ou mais pairador; e não é curioso observar que os homens se mantenham no isolamento, ao mesmo tempo que vão inventando meios, cada vez mais engenhosos, de entrar em comunicação? Eu penso que, mais eficazmente do que todas as prédicas dos humanitaristas, contribuirá para a obra da fraternidade humana o regime das comunicações batatas.

Fazia eu comigo mesmo estas reflexões, enquanto subia numa dessas tardes de intenso frio, entre os novos, vistosos, charlatanescos prédios da avenida Fontes, caminho da casa do pintor Malhôa, que para esses lados vive no mais rico e aconchegado interior de artista que ainda teve um pintor português, porque, - digamol-o com ufania - José Malhôa tem uma casa sua e construir é a primeira afirmação de triunfo que o homem faz na vida. Esse primeiro triunfo obteve-o ele com os únicos recursos da sua profissão e toda a civilização que começa a enriquecer os seus artistas começa a nobilitar-se. José Malhôa não está ainda rico, está mesmo, creio eu, longe de o ser, mas a sua nova casa da avenida Antonio Maria de Avelar fala-nos já de uma prosperidade invejável, que, pelo fato de ter sido conquistada pela arte, nos torna coletivamente vaidosos.

Mas porque refletira eu comigo mesmo sobre a influência das viagens baratas na obra do estreitamento das relações entre os povos, ao dirigir os meus passos por essa tarde fria, embora luminosa como são todas as tardes de Lisboa, para a nova casa de José Malhôa?

Porque justamente José Malhôa vai ao Rio de Janeiro, em virtude de um muito lisonjeiro convite do Gabinte Português de Leitura, fazer uma exposição dos eus quadros e porque eu, pensava comigo mesmo, ao abranger o plano dessa excursão considerável, com o seu melindroso carregamento de telas e caixilhos, que se o Brasil não estivesse tão longe para as nossas posses, Portugal entraria com ele numa comunicação muito mais íntima e, por isso mesmo, muito mais fecunda.

Malhôa vai lhe dar um momento dessa intimidade.

Em sua casa o encontrei a pintar, que é o que ele faz sempre, e obrigando-o a depor por um momento os pinceis e palheta, excursionei através da obra que vai levar ao Brasil e que é constituida de mais de cem documentos de aptidão e de trabalho, porque - avis rara! -  eis aqui um artista com todas as graças do gênio artistico e toda a rudeza de um trabalhador!

Malhôa é beirão e do campo. A sua terra é Figueiró dos Vinhos. Do campo trouxe para a vida da arte essa aptidão para “trabalhar como um mouro”, muito rara nos temperamentos artisticos. Os artistas são frequentemente doentes da alma. Foi mesmo com a intenção de os estudar que se inventou a psicopatologia. Malhôa tem uma alma sadia. Os seus hábitos não revelam a menor desordem psicológica. Levanta-se ao nascer do sol, deita-se com as galinhas e dorme a punhos cerrados.

Passa o inverno em Lisboa e o verão em Figueiró.

Todos os anos faz uma viagem. A publicidade parece preocupá-lo muito pouco. Não se mostra e não se faz falar. O seu nome raro aparece nos jornais. Nenhum aparato artístico exterior. Nem uma abundante cabeleira, nem uma barba expressiva, nem um petulante monóculo, nem uma flamante gravata. Como homem, não há homem mais vulgar. Além disso, casado e pai.

O artista é um admiravel artista.

Nada mais difícil do que falar de artistas. Sempre que tornamos um deles superior, imaginam-se os outros diminuídos. Na corrida do êxito pela arte, marcar a chegada de um é quase registrar a derrota dos outros. Felizmente, em Portugal não é assim, porque os nossos artistas são pouco numerosos, o que faz com que seja fácil distingui-los sem os molestar, tendo, como tem, cada um delles, os seus privilégios pessoais e o seu lugar definitivamente marcado no apreço público.

José Malhôa tem esses privilégios e esse lugar.

O que caracteriza a sua pintura é o seu gosto pelos assuntos rurais. Malhôa pinta tudo com igual maestria, mas o seu gênero é o ar livre, o campo e os costumes campestres. Em rigor, o que ele pinta com mais prazer é a Beira, a terra da Beira, o céu da Beira e os costumes beirões. Não se imagine, porém, que é a simples paisagem que o enleva, ou que são os aspectos rústicos dos seus costumes - uma lavadeira estendendo roupa, um burro trotando numa estrada, - o que especialmente atrai o seu pincel. O seu gosto pelos assuntos rurais é mais complicado, porque é quase o de um crítico de costumes. O seu quadro - A compra do voto, é quase uma sátira.

No fundo é um homem do campo pintando o campo com a curiosidade e o amor de pitoresco de um artista. Esta parte da sua obra garante-lhe uma glória indisputável, porque nenhum outro em Portugal a fez com um tão exato sentimento da natureza e das coisas do campo. Em Malhôa esse sentimento chama-se malícia. E é o que é - O campo é cheio de malícia. Os seus quadros Barbeiro da aldeia [Imagem], A procissão [Imagem], Volta da romaria, Cócegas [Imagem], Soalheiro pertencem ao número das obras de arte que conheço que mais inteligentemente caracterizam os costumes rurais. As Glaneuses, o Angelus e tantas outras composições elegíacas do gênero, que tem procurado nos dar a versão lírica da vida campestre afiguram-se-me sempre, não sei porque, convencionais e retóricas e onde me parece encontrar a verdade e ao mesmo tempo a poesia é na força que transborda e na graça irresistível. Malhôa observa o campo com um espirito campagnard, que é o mais exato, e que não lhe permite ilusões sentimentais sobre a vida rural. Os seus quadros alegram. A primeira coisa que o público fez diante da sua Volta da romaria, antes de admirar as destrezas do executante, foi - rir. O seu Espanta-pardais é de uma jovialidade que se comunica.

Assim tem este artista documentado o campo em Portugal, em obras que ele parece fazer num dia, porque não cessam de aparecer e se multiplicam, graças ao seu tenaz e apaixonado labor. Por ele conseguiu do mesmo modo uma segurança admirável de recursos técnicos.

Dizer que estudar é o segredo do saber, é uma banalidade. Contudo, esta banalidade nem sempre está presente ao espírito dos que procuram saber. Estes procuram muitas vezes - adivinhar. Em Malhôa nenhuma adivinhação, e só estudo, convicção, posse, é que faz com que diante das suas obras nós experimentemos essa sensação de bem-estar, que dão todos os espetáculos da força. O seu desenho é o resultado de um conhecimento absoluto. A sua cor não tem equívocos. Pinta com uma certeza triunfal, e eu só admiro os pintores, com a condição deles serem perfeitos.

Malhôa é esse pintor perfeito.

João Chagas.

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 30 mar. 1906, p.2.

O notável artista português que a convite da diretoria do Gabinete Português de Leitura virá em junho próximo expor algumas das suas telas, concluiu o retrato d’el rei D. Carlos [Imagem], que destina à próxima exposição no gabinete, bem como o da rainha D. Amelia [Imagem]. Ambos os retratos são em tamanho natural.

Não podem ser mais entusiásticas as referências à bela coleção que Malhôa nos trará, referências feitas por um amigo nosso, atualmente em Lisboa, e que, por distinção especial, conseguiu ser admitido no atelier do mestre.

Porque Malhôa encerra-se, há três meses, vivendo exclusivamente pra a sua próxima viagem ao Brasil e não é fácil penetrar no opulento atelier da avenida Antonio Maria de Avelar.

Mas não é tanto pelas exigências do trabalho que ele se isola; é, principalmente, para evitar as informações e os conselhos oficiosos que lhe vêm de todos os amigos e de todos os admiradores, desde que souberam a sua próxima viagem.

É preciso ter a robustez de espírito de Malhôa para poder resistir a tantas e tão desencontradas opiniões, a tantos e tão contraditórios conselhos:

- Tome cuidado com a alimentação! Nada de alcool, nem de apimentados, afirmam-lhe. Mas logo outro conselho:

- Apenas puser um pé em terra beba um cálice da boa aguardente do país e use-o todas as manhãs, com o café. É o que há de melhor para evitar as febres.

Outros contestam:

- Evite o café e o álcool e use camisolas de flanela, sempre, sempre, faça o calor que fizer! Não se importa! A flanela é a vida nos climas quentes!

- Camisolas de flanela?! Quem lhe disse essa, meu caro Malhôa? O que é preciso é andar à fresca, pouca roupa e leve, roupa branca. A cor branca, como sabe, reflete o calor em vez de o absorver. Paletós de linho branco, calças de linho branco! Convença-se disto:  - nos climas quentes só o linho branco pode garantir a saúde.

Outros abordam o grave problema do êxito material:

- Penso, meu caro amigo, que não faz bem em ir agora ao Rio. Ainda ontem conversei com alguém que chegou de lá há pouco. A crise do café é grave. A borracha fraqueja e o cacau está que é uma desgraça! O Brasil lutará com uma crise seríssima durante estes primeiros três anos. Veja o que faz!...

- Não creia nessas lamentações, meu ilustre amigo, observa outro. Desde que me conheço que ouço falar em crises - crises de tudo e em toda a parte por onde passo. É justamente agora que o Brasil está respirando. Veja o câmbio! Um país em crise não tem o crédito de que o Brasil agora goza. É uma época nova, creia!

Eu também conheço aquilo tudo e não há ainda três meses que de lá voltei, em viagem de negócios. Mas, admitindo que exista realmente essa terrível crise agrícola, suponho que ela porderá preocupar os que têm transações com a agricultura do Brasil, mas que nada pode afetar a venda de duas ou três dezenas de quadros de um artista como o meu ilustre amigo. Por mais crises que haja, o Rio de Janeiro não deixará de ter o dinheiro suficiente para as coisas de boa arte e de bom gosto. Depois, o meu ilustre amigo foi convidado pelo Gabinete Português de Leitura, uma das mais severas e mais simpáticas instituições do Rio de Janeiro.

É uma bela garantia! Deixe-os falar! O alfacinha, tudo que seja ir além da outra banda em um vapor do Burnay, parece complicado, misterioso e arriscado. Creia que vai ser excelentemente recebido, como merece, por toda a gente e particularmente pelos seus colegas (há-os lá de grande valor) que tem o meu ilustre amigo na mais elevada consideração.

Vá sem receio e na volta contar-me-á.

E é entre essa fuzilada de opiniões, profecias e conselhos que Malhôa prepara a sua viagem repousando apenas... quando trabalha!

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 12 jun. 1906, p.1.

O Sr. José Malhôa esteve ontem na Escola Nacional de Belas Artes. O Sr. Julião Machado o acompanhava, fazendoapresentações, iniciando o grande artista ns nossa vida intensa.

O Sr. José Malhôa foi recebido pelos Srs. professores Henrique Bernadelli, Rodolpho Amoêdo, Dr. Araujo Vianna e o bibliotecário Victor Viana.

O Sr. Malhôa gostou imenso dos quadros da nossa galeria. Esteve longo tempo contemplando as telas de Henrique Bernardelli, Rodolpho Amoêdo, Almeida Junior, Belmiro, Victor Meirelles, Pedro Américo e outros.

Longamente também examinou a nossa galeria clássica, os nossos Velasquez, Van Dyck, Veronese. Gosto bastante da Queda de Pilanis [sic] e da Creche de Henri Martin. Apreciou longo tempo os grupos e estátuas majestosas do Sr. Rodolpho Bernardelli.

Visitou diversas aulas práticas. Elogiou os trabalhos que se executavam na aula de escultura, dirigida pelo infatigável Sr. Girardet.

Na aula de pintura, do Sr. Henrique Bernardelli, o Sr. José Malhôa exprimiu sua profunda admiração pelo ensino das artes no Brasil e elogiou e constatou a força e o savoir faire dos estudos dos alunos. O Sr. Malhôa impressionou-se, principalmente, com o trabalho do aluno Sr. José [sic] Timotheo da Costa, que achou bem marcado, com esplêndida tonalidade e caráter.

 

 

HÓSPEDE ILUSTRE. O Paiz, Rio de Janeiro, 19 jun. 1906, p.1.

Um amigo que o Brasil conquistou em poucas horas

Imagem

[Caricatura de Julião Machado, ver Imagem]

 

 

José Malhôa - UMA CARTA DE ANTONIO PARREIRAS. O Paiz, Rio de Janeiro, 19 jun. 1906, p.1.

Carta há pouco receida por um dos íntimos de Antonio Parreiras, traz-nos gratas notícias do estimado artista que o dever profissional levou à Europa.

O estimado pintor brasileiro, como sabe o público, partiu com o destino a Paris, onde vai reunir os elementos de observação e estudo que lhes são indispensáveis para a composição de seu grande quadro A conquista do Amazonas [Imagem], encomendado pelo governo do Pará.

Enfermo ao partir, Antono Parreiras não conseguiu na viagem grandes melhoras e chegou enfraquecido a Lisboa, onde, a despeito de seu estado precário de saúde, com sacrifício embora, visitou, como era seu principal desejo, todos os monumentos antigos, a belíssima torre de Belém, o suntuoso convento dos Jerônimos, o Museu de S. Vicente de Fora e outros.

No Museu do S. Vicente Parreiras permaneceu longo tempo a contemplar o cadáver do ex-imperador D. Pedro II, a quem a sua brilhante carreira artística está estreitamente ligada por grata recordação da sua juventude. Fala depois de Malhôa, dos quadros que vai brevemente expor.

Guardamos para hoje, por sua maior oportunidade, a publicação do trecho dessa carta em que o provecto pintor brasileiro resume as suas impressões sobre o seu exímio colega português: “Vi aí (no museu de S. Vicente) o cadáver de D. Pedro II. Durante longo tempo contemplei com profundo respeito aquelas feições desfeitas, mas onde ainda eu achei os traços da grande bondade de alma que o animara outrora. Vendo-o, lembrei-me meu passado, lembrei-me do dia em que, ainda rapaz, fui convidar o imperdor para uma exposição minha. Com que bondade ele me acolheu; quanta animação me deram as suas plavras e sua visita!... Já naquele tempo, apesar de republicano, eu tinha pelo imperador a veneração que ainda hoje tenho pela sua memória.

Quando cheguei a Lisboa, no mesmo dia, fui procurar o Malhôa em sua bela e artistica vivenda.

Finalmente, meu amigo, pude abraçar o Malhôa, realizando assim um dos meus ardentes desejos e isso no dia da minha chegada a Lisboa, esta terra encantadora cujo clima esplêndido me vai restituindo a saúde e as forças há tanto tempo perdidas.

Entrar no atelier de Malhôa é penetrar em um museu de arte.

É tão grande a produção desse paisagista feito figurista por si mesmo, sem curso acadêmico de espécie alguma, que em dez dias ainda não vi tudo quanto ele possui.

Além dos quadros destinados à sua grande exposição no Rio de Janeiro, muitos outros cobrem as paredes do seu vasto atelier, de canto a canto, de alto a baixo.

Malhôa vive isolado no seu atelier, entre os seus quadros, em convívio com as suas concepções, trabalhando sempre e cada vez mais aprimorando a sua arte.

Paisagista exímio, quiz ser figurista e hoje ostenta no peito da Legião de Honra ganha na França com quadro de figuras. Não se pode conquistar mais carinhosa consagração.

Os quadros que esse notável artista leva para o Rio são pedaços palpitantes de Portugal, são trechos belíssimos da vida portuguesa, no que ela tem de mais encantador, de mais pitoresco, de mais característico.

Quantas saudades não irão esses quadros recordar aos que, afastados da pátria há longos anos, a virem de súbito, numa terra longíqua, emoldurada em ouro e madeira lavrada, em pequenas telas impecáveis! Como se não expandirá a alma portuguesa diante desses quadros em que lhes vai levar o Malhôa o interior dos seus lares, pequenas porções de alegres feiras, de colheita farta, de amor, de tristeza, de embevecimente em suma.

Leva-lhes mais ainda o artista, além do que vai falar à intimidade afetiva dos seus patrícios, leva-lhes o orgulho nacional na bela cabeça da sua rainha, bela sim, porque a rainha de Portugal é bela, bela como tipo estético, bela porque é boa, bela porque sempre tem a lhe pairar nos lábios finos e delgados um carinhoso sorriso de acolhimento.

Para os artistas ela tem ainda sua primeira qualidade - estima-os e desce do seu paço a procurar no atelier de Malhôa o que nós raramente obtemos de um negociante ou de um simples inspetor de quarteirão, todos sempre extremamente atarefados. Malhôa leva o retrato da sua rainha e do seu rei completando assim na grande exposição que vai fazer o ciclo de arte em que magistralmente encerrou a sua pátria para levá-la a um país onde Portugal tem a sua maior colônia.

E muito seria de lamentar que o artista não deixasse tudo lá, ele que tanto sacrificios fez para essa obra que tanto é glória sua como dos seus patrícios, e de todos os que cultivam ou amam a arte que ele tão brilhantemente representa.

Isso, porém, não se dará. A colônia portuguesa bem sabe que o amor à pátria não se manifesta apenas oferecendo-lhes navios de guerra, e sim, também, glorificando os seus artistas mais provectos. Para os artistas brasileiros o bom acolhimento feito a Malhôa é um dever; para os portugueses lá residentes é uma prova de amor à pátria e nenhuma e nem outra serão de certo recusadas.

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O ilustre artista José Malhôa foi ontem cumprimentar o Dr. Pereira Passos, prefeito do Distrito Federal, demorando-se a conversar com S. Ex., que recebeu com a sua costumada afabilidade.

O distinto artista exprimiu a sua admiração pela rapidez dos progressos da capital e felicitou S. Ex. pela sua arrojada e patriótica iniciativa.

 

 

Exposição José Malhôa. O Paiz, Rio de Janeiro, 4 jul. 1906, p.1.

O vernissage - Os trabalhos expostos - O temperamento do artista; sua técnica - A inauguração.

A exposição do ilustre pintor português Sr. José Malhôa inaugura-se hoje, à 1 hora da tarde, no Gabinete Português de Leitura,com a presença do Sr. presidente da república.

Ontem o vernissage esteve alegre e pelo pequeno salão, onde se arranjam os quadros do grande pintor, jornalistas, homens de letras, artistas, amadores, senhoras, andaram, das 2 às 5 horas da tarde, apreciando as telas e soltando exclamações de admiração.

A exposição é realmente admirável. Contêm 112 trabalhos, de vários gêneros e de diversas dimensões.

Há quadros que produzem emoções, pela maneira sincera e natural de sua composição. O viatico na aldeia [Imagem], Uma rua na aldeia, e outras de igual gênero são deliciosos de fatura e simplicidade de pintar, com extraordinário caráter, a vida boa da aldeia portuguesa.

Cócegas [Imagem], o grande quadro que já esteve no salão de Paris (1905) é de uma beleza sem par. A distribuição de luz, o casal de camponeses, a melancolia suave naquela paisagem, dourada ao [...] plano, são de tal maneira seguros que impressionam e emocionam.

O Sr. José Malhôa, que nós conhecíamos apenas como excelente pintor da vida característica de Portugal, é também um retratista seguro e notável. Os quadros ns. 7, 20 e as pupilas do Sr. Reitor, cheio de breijerice, demonstram a força extraordinária do artista no gênero em que o desconhecíamos.

Os retratos dos reis de Portugal [Imagem , Imagem] são excelentes, os panejamentos revelam um artista absolutamente seguro de sua técnica.

A Ti Anna [Imagem] é um trabalho vigoroso, intenso, executado com esplêndida maestria.

Provocando [Imagem], que a maioria dos visitantes pode não notar, é talvez um dos melhores trabalhos expostos, pela admirável combinação de tons num espaço reduzido de uma tela pequenina.

O Sr. José Malhôa é um pintor completo; estuda com consciência e calma a paisagem, a figura, os panejamentos a fazer, e depois passa para a tela com segurança e limpidez o que precisa representar. Daí sua naturalidade; daí sua empolgante espontaneidade, quando começa a pintar já está completamente senhor do modelo, da paisagem. É essa conscienciosa preparação que faz a sinceridade de seu pincel e sua glória.

Temperamento amável, meigo, alegre e sadio é com amor que o Sr. José Malhôa estuda, desenha e pinta.

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A anatomia do Sr. José Malhôa é formidável. O braço da ti’Anna, envolto no roupão é soberbo. E esse artista seguro, que estuda com calma o modelo, com uma inteligência ávida de observação simpática, deveria, naturalmente, ser, como é, um dos mais seguros e completo pintores atuais da Europa. Ele não vai buscar para seus quadros assuntos já explorados que pintores célebres há séculos determinam as tonalidades e fazem por assim dizer, um vignola da paisagem e do modelo. Ele procura justamente pintar as terras e homens de Portugal, tão lindos e tão pitorescos, tendo, portanto, de por si mesmo encontrar tonalidades, estudar o ambiente, observar, apanhar a vida inédita. É essa originalidade de sua pintura, por isso mesmo tão espontânea e sadia, que faz a sua individualidade tão nítida, tão simpática e tão grande.

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Era ontem alegre e interessante o aspecto do elegante salonnet. Artista homens de letras, galantemente recebidos pelos Sr. José Malhôa e Julião Machado, contemplavam as telas e trocavam impressões.

Hoje, à inauguração comparecerão o Sr. presidente da República, ministros, altas autoridades, os nossos amadores, todo o mundo artístico e todo mundo elegante... O salonnet do Gabinete Português de leitura será uma das notas da season. E por isso, de hoje em diante toda a nossa sociedade irá todos os dias apreciar o trabalho do Sr. José Malhôa.

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O Conselho Escolar da Escola Nacional de Belas Artes, por proposta do professor Dr. Araújo Viana, elegeu ontem, por aclamação, o Sr. José Malhôa seu membro honorário. Fica, em virtude desta distinção, o eminente pintor português pertecendo ao Conselho Superior de Belas Artes do Brasil.

- O Sr. José Malhôa foi ontem à secretaria do ministro do interior convidar o Dr. Felix Gaspar para assistir à inauguração da exposição dos seus trabalhos, no Gabinete Português de Leitura.

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 5 jul. 1906, p.1.

Inaugurou-se ontem no salão nobre do sobrado do Gabinete do Sobrado Português de Leitura a exposição dos quadros do insigne artista português.

A 1 hora em ponto da tarde, com a presença do Sr. presidente da República, representante do Sr. ministro do interior, ausente por motivo de doença, e do Sr. prefeito, abriram-se as portas da sala de exposição

Achava-se reunido no recinto o que, segundo a chapa conhecida, temos de mais distinto na nossa sociedade. Dessa vez a chapa nada exagerava, pois entre os nossos artistas, literatos e pessoas de alta posição viam-se lá as senhoras e senhoritas das mais distintas famílias fluminenses.

 Durante longas horas o público permaneceu na sala de exposição admirando os trabalhos do belo artista cujas obras eram disputadas pelos mais inteligentes dos nossos amadores.

“As cócegas” [Imagem ] - os estudos para o famoso quadro da procissão, os estudos dos costumes portugueses, nos quais com tanta brilhatura se emprega o pincel do grande artista, atraíram as massas de admiradores que por vezes dificultavam o exame dos quadros expostos.

A Ti’Anna [Imagem], o Procurador, as paisagens belíssimas de Malhôa reuniam amadores e admiradores em volta os [sic] e comentários não podem deixar de muito agradar o ilustre artista, nosso hóspede.

À noite, a diretoria do Gabinete Português de Leitura obsequiou Malhôa com um banquete servido no restaurante Paris à rua Uruguaiana. Aquela diretoria caprichou em reunir nesta ocasião, em volta de Malhôa, todas as pessoas que na nossa sociedade tem um nome conhecido e apreciado nas artes e na imprensa.

À mesa servida no salão do sobrado daquele estabelecimento sentaram-se, às 7 horas da noite, as seguintes pessoas: José Malhôa, visconde Veiga Cabral, A. dos Santos Carvalho, Ed. Bittencourt, visconde Alves Mateus, comendador Francisco Casimiro, Jovino Ayres, Eugenio Silveira, Teixeira da Rocha, Bernardino Prista, Souza Lage, Morales de los Rios, Raul Pederneiras, Batista Coelho, Edgard Victorino, Lobão, Antonio do Vale, Augusto Pinho, Oscar de Castro, Raphael Frederico, Pedro Peres, Arthur Lucas, Augusto Petit, Vasco Abreu, T. Driendl, Aurelio Figueiredo, João Lopes Chaves, Coelho Netto, comendador João Reynaldo de Faria, Dr. Rodrigo Otávio, J. M. da Cunha Vasco, Gaspar Pacheco, Dr. Rodrigues Barbosa, Alcindo Guanabara, Conde de Avellar, comendador João Salgado, Rodolfo Bernardo, Visconde de Moraes, comendador Arthur Napoleão, comendador Álvaro [...], Henrique Bernardeli, Julião Machado, o comendador Cypriano Costa, Luciano [...], Nunes da Rocha, Belmiro de Almeida, comendador Marques Leitão, Joaquim Malhôa, Dr. José Prestes, [...]  Linares, Francisco Sotto, Antônio Garcia e Roberto Mendes.

Muitas outras pessoas convidadas mandaram cartas desculpando a sua ausência.

O jantar correu no meio de uma alegria, de uma camaradagem de bom tom muito própria das distintas pessoas que ali se encontravam reunidas.

Na ocasião de servir-se o champanhe Julião Machado, em nome do Gabinete Português de Leitura ofereceu o banquete e sondou o insigne hóspede que honrava o Gabinete Português de Leitura com as suas obras; o Dr. Rodrigo Otávio com frase repassada da eloquência, cumprimentou por sua vez Malhôa, seguindo-se-lhe com a palavra Olavo Bilac e Coelho Netto, ambos saudados com salvas de palmas ao erguerem-se para falar, e respeitosamente aplaudidos, calorosamente abraçados e cumprimentados quando terminaram os seus maravilhosos discursos. É que ambos os distintíssimos artistas excederam-se, se é possível essa expressão, e arrebataram o auditório com os períodos eloquentes e burilados, repassados, de primores de eloquência e de beleza extrema.

Os olhos dos que ouviam achavam-se marejados de lágrimas, os corações palpitavam e arrastados pela frase quente, vibrante e inspirada daqueles talentos primorosos, quantos ali se achavam, ao terminar aquelas brilhantes peças oratórias, reuniram-se numa única e vibrante aclamação.

Brindaram depois: o Sr. Henrique Chaves, em nome da imprensa com um aticismo e um espírito, que são a tradição daquele caráter e daquele coração aberto a todas as emoções nobres; o cônsul de Portugal J. Salgado ergueu por sua vez a taça, saudando com eloquência a arte brasileira e a hospitalidade dada nesta terra aos irmãos do além-mar; Morales de Los Rios, desculpando-se de fazer-se ouvir depois dos talentosos oradores que usaram da palavra brinda Malhôa, “o artista que soube fixar o sol, na sua incomparável palheta”, em nome da Escola Nacional de Belas Artes por delegação do Sr. Rodolpho Bernadelli, que se achava presente [sic]. Falaram ainda o Dr. Mujia Linares, dizendo que aquela festa de arte tinha uma repercussão, admirativa e simpática nos países sul-americanos ligados ao Brasil e Portugal, pela solidariedade artística do belo; o comendador Ferreira saudando a Malhôa; o visconde de S. João da Madeira, presidente do Gabiente Português de Leitura, oferecendo a Malhôa aquela homenagem; o comendador Carqueja de Fuentes, agradecendo a iniciativa do Gabinete Português de Leitura nesta memorável visita, e o festejado, com breves frases cheios do sincero afeto, agradecendo. 

Fechou os brindes o Sr. Eugenio da Silveira, do Portugal Moderno, um belíssimo improviso imaginoso entusiasta e sincero, fazendo o brinde de honra ao Brasil.

Às 10 horas terminou o banquete, tendo corrido o boato entre os presentes de uma originalíssima festa, com a qual será obsequiado nosso hóspede, e cuja organização corre a cargo de Olavo Bilac, Julião Machado, Souza Lage, Morales de los Rios, e Leo d’Afonseca.

É mistério que breve será desvendado...

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 6 jul. 1906, p.1.

A companhia Eduardo Victorino, de que faz parte o grande ator Brazão, está preparando, em homenagem ao eminente pintor portugues José Malhôa, um imponente festival que deverá ter lugar segunda-feira próxima, no teatro Apolo.

A serata d'honore deverão comparecer o Sr. presidente da República, altas autoridades civis  e militares, o cônsul de Portugal, a diretoria do Gabinete Português de Leitura, comissões das mais importantes associações portuguesas desta capital, etc.

Parece que subirão a cena Os velhos, essa encantadora peça do laureado escritor portugues D. João da Camara.

- Na exposição do grande artista português, até ontem foram adquiridos os quadros abaixo pelos seguintes Srs.:

Cuidados de amor [Imagem], Gaspar José Rodrigues Pacheco; Rua Serpa Pinto (Figueiró), Silva Carvalho; 7° não furtar... as uvas do S. Cura [Imagem] - Cebolas, J. Souza Freitas; Soalheiro, Cunha Vasco; Costume do Minho, Barão Peixoto Serra; Apanha das Castanhas, João Lopes Chaves; Pai e filha e Cócegas (estudo), Dr. João do Rego Barros; Esperando o peixe, comendador Cypriano Costa; Castanheiros - Fonte [...] - Estudando à borda do pinhal, Joaquin Carvalheiro; Ida para o trabalho, comendador Baldomero Carqueja Fuentes; Pinhal ao fundo da igreja de Figueiró, José Pinheiro Duarte; O viático na aldeia [Imagem], comendador Costa Pereira; Os mações [sic] ao cair da tarde, Oscar Costa; Esperando a vez e Aldeia da Castanheira ao pôr do sol, Visconde de S. João da madeira; Ermida Madre de Deus, Eduardo Victorino; Cabeça de estudo, D. Maria Falcão; Outono na vida e na natureza, Rodrigues Barbosa; Amanhã os arranjarei e Uma desgraça, Antônio Reis; Barbeiro na Aldeia (estudo), [...] Mozart; Noticias [...]; Nascer da lua, Antonio José Dias de Castro; Chegada do Zé Pereira à romaria [Imagem], comendador J. Vasco Ramalho Ortigão; Pensando no caso [Imagem], Sebastião Cruz.

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 7 jul. 1906, p.1.

Mais de duas mil pessoas visitaram ontem a exposição Malhôa, franqueada ao público na sala dos brazões do Gabinete Portugues de Leitura. Adquiriram quadros os Srs. comendador Antonio Ferreira Botelho e Baldomero Fuentes Carqueja.

 

 

O Paiz, Rio de Janeiro, 7 jul. 1906, p.8.

Imagem

[Anúncio do espetáculo Os Velhos, ver Imagem]

 

 

O Paiz, Rio de Janeiro, 8 jul. 1906, p.1.

O comendador José Malhôa foi ontem a secretaria da justiça agradecer ao Dr. Felix Gaspar o seu comparecimento à exposição inaugural de pintura.

 

 

O Paiz, Rio de Janeiro, 10 jul. 1906, p.8.

No palácio do Catete esteve ontem o pintor português José Malhôa, que foi agradecer ao Sr. presidente da República o seu comparecimento à sua exposição, no Gabinete Português de Leitura.

 

 

ARTES E ARTISTAS. Teatro Apolo. O Paiz, Rio de Janeiro, 11 jul. 1906, p.2.

Récita de homenagem a José Malhôa.

Correu brilhantemente a festa dedicada pela empresa de teatro Apolo ao grande artista português José Malhôa, festa encantadora de arte, a que se associaram com os seus preciosíssimos quinhões Coelho Netto, Eugenio da Silveira e Arthur Azevedo.

A sala, literalmente cheia, tinha o aspecto festivo das grandes noites de primeira representação, embora a peça escolhida - Os velhos - tivesse subido à cena pela 7ª vez nesta época.

José Malhôa ocupou com o Sr. visconde de S. João da Madeira e a Sra. viscondessa o camarote de boca do lado direito, tendo no camarote fronteiro S. Ex. o Sr. conde de Lagoaça, o simpático encarregado dos negócios de Portugal. No camarote contíguo ao do Sr. visconde de S. João da Madeira, presidente do Gabinete Português de Leitura, esteve a diretoria do mesmo gabinete.

Depois do primeiro ato, primorosamente representado, com a arte notável do grupo de Eduardo Brazão, Eugenio da Silveira, em uma oração quente e entusiástica, saldou José Malhôa, descrevendo em síntese emotiva da sua obra exposta no Gabinete Português de Leitura, a angústia de um velho português que em frente da impressionante tela Viático na aldeia [Imagem], propriedade do comendador Costa Pereira, - mordia o lenço para conter as lágrimas, lágrimas de saudade e de piedade - de saudade pelo trecho rigoroso e vívido das terras em que nasceu; de piedade pela dor cruciante que o artista tão fielmente reproduziu nas duas mulheres que vieram acompanhar o padre até a porta e aí ficam sucumbidas pela desesperança. Congratula-se pela justiça feita pelo Brasil ao grande artista e confessa a sua satisfação por ver como os dois países se estreitam sempre e vibram do mesmo entusiasmo justo por tudo que particularmente os enternece.

No intervalo do segundo para o terceiro ato Brazão leu um poema de Arthur Azevedo, aplaudido calorosamente.

Em seguida, Coelho Netto, com a sua estranha voz cheia de todas as vibrações que entram pelo coração, começou por saudar o Gabinete Português de Leitura, a cuja iniciativa devemos a vinda do eminente artista, e em belas frases, vigorosamente coloridas e brilhantes como ele só as sabe dizer, definiu a obra do mestre e comparou-a na pureza dos processos e na sua encantadora simplicidade ao Velhos, a deliciosa joia do teatro moderno português.

A noite foi de aplausos, aplausos vibrantes de entusiasmo a todos, ao eminente artista, aos oradores, aos atores e à empresa que tão simpaticamente prestou ao nosso hóspede uma homenagem que ele certamente nunca esquecerá - JOB.

 

 

Ecos & Fatos. O Paiz, Rio de Janeiro, 17 jul. 1906, p.1.

A Escola de Belas Artes propôs ao governo a aquisição da magnífica tela de Malhôa “Cócegas” [Imagem], premiada no “Salon” de Paris.

Essa tela, já célebre, compendia e resume admiravelmente todas as qualidades peregrinas do notável artista português, cuja obra tão apreciada tem sido pela sociedade. O voto da Escola de Belas Artes merece a sanção de quantos conhecem e estimam a arte da pintura: todos desejam que esse quadro tão perfeito não tenha de atravessar de novo o oceano, nem fique na posse de algum amador que zelosamente o detenha fora das vistas do público.

O seu lugar é na Pinacoteca da escola, para [...] do público e para ensinamento dos nossos estudiosos da arte, em que Malhôa tanto e tão brilhantemente se destaca; e certamente o governo satisfará esse voto unanimemente formulado por quantos visitaram a exposição do grande artista português.

A expsosição dos quadros do ilustre artista português Malhôa, que tem estado aberta no Gabinete Português de Leitura, encerra-se amanhã, quarta-feira.

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Domingo passado, que era aliás o duodécimo dia da exposição, as entradas eram pagas: custavam 2$ por pessoa. O produto das entradas reverteria em auxílio do dispensário da irmã Paula. A afluência foi considerável: esse produto montou a 480$, elevado a 500$ pelo ilustre artista.

 

 

DOLORES, Carmen. Impressão de luz. O Paiz, Rio de Janeiro, 26 jul. 1906, p.3. [1]

Um dia luminoso e lindo - tão luminoso, de tão claro sol, que eu me pus de repente a pensar nos quadros de José Malhôa, que não vira. Era um sábado e exposição ia fechar-se definitivamente segunda-feira. Senhor! Que descuido imperdoável da minha parte!...

E precipitei-me, arrependida e pressurosa, através da cidade formigante, à hora em que ela mais febrilmente argueja de civilização, rolando pelas ruas a sua onda de carros, automóveis, elétricos, tílburis, carroções, sob um deslumbrante polvilhamento de ouro.

Em Botafogo, o mar azul faiscava, e as relvas do jardim a Avenida reluziam todas, mais verdes, como oferecendo ao olhar encantado dos passageiros dos bondes a veludosa frescura das suas [...] tocadas de luz.

Senhoras e senhoritas tomavam de assalto os elétricos já cheios, onde os tons variegados dos chapéus femininos, das toilettes, das sombrinhas encostadas ao longo das saias leves, como um vivo traço de cor, punham uma nota de harmonioso efeito na vibrante claridade do dia.

E assim chegamos à encantadora praça da Glória, brilhando como um esmeraldino oásis junto à velha casaria do outeiro, tão pitoresco, por isso mesmo que ainda é uma antiguidade encravada no modernismo, com a sua igreja do passado lá no alto, dominando o mar e as suas palmeiras balouçadas pelo vento, renques de muros denegridos pelo tempo trepando pelo morro acima, prédios de uma arquitetura incompreensível, disforme, fantasista - mas tudo isso afogado numa luz ampla e forte que deslumbrava a vista.

Bem ao fundo verdejante do jardim branquejava idealmente a linda fonte de Adriano Ramos; e essa alvura do mármore parecia ainda mais pura e mais bela sob tanto esplendor.

Qual serpentinas fugiam as lindas linhas dos corpos femininos na sua nudez soberba, assim expostos aos raios ofuscantes desse ardente sol tropical, que tão amorosamente os beijava.

O elétrico agora corria, voava, com o seu zum-zum metálico, e em breve passamos pelo pavilhão S. Luiz, cujo zimbório desferia centelhas luminosas no espaço; costeamos o teatro municipal e... pronto!  estávamos no coração tumultuoso da cidade. Mais uns passos através do movimento e do burburinho, e eu enfiava pela rua relativamente triste onde fica o bonito edifício do Gabinete Português de Leitura. Subi, entrei - e a sombra afagou-me numa melancolia regelante de claustro... Pus-me a errar, ignorante e aflita... onde a exposição dos quadros de Sr. José Malhôa, meus senhores?

Apontaram-me uma escada, e outra, ainda outra - positivamente  a escada de Jacob conduzindo ao céu; e, subitamente, ao tornear um ultimo corrimão, eis que de novo me inunda e cega uma luz intensíssima, quente, dourada -  mas esta luz triunfal não me vem mais do sol, porém sim dos belos quadros de José Malhôa.

Que impressão! Um momento fico indecisa se devo ou não abrir a minha ombrella branca em frente ao grande painel Cócegas [Imagem], cuja reverberação me ofusca. Depois, seduzida, imóvel, deixo-me largamente envolver por toda essa tonalidade ardente da planície onde loureja o trigal cor do âmbar, estendendo-se tão longe, que a vista se perde na infinita gama de tão refulgente amarelo. Por me ser desconhecido, o espetáculo desse campo ainda melhor me empolga, assim tão ao vivo, tão natural, com o seu casal de rústicos refestelados na quentura dos feixes de espiga a se fazerem cócegas, bem indiferentes ao sol que lhes cai de chapa nas faces bestialmente alegres e felizes. Sente-se o calor desse sol e dessas espigas requeimadas, secas; assiste-se realmente ao derriço alvar desses dois entes broncos, luzidios de suor, que se rolam na palha como animais e cuja ternura se traduz em murros e taponas durante as esfolhadas cantantes ao luar sereno.

Cumpre-me, porém, ver outras telas - e todas elas me atraem, me chamam com as suas expressivas cabeças de saloias, vermelhas, e de olhar azougado, os seus bêbados adoráveis, legítimos filhos de Baco, atirados sobre as mesas com o cigarro apagado ao canto das bocas babosas [Imagem] ou ziguezagueando à volta da romaria, de olho empanado e nariz violáceo [Imagem]. De cada quadro, salta a luz numa combinação admirável de cores; gritam as roupinhas festivas das mulheres, fala a carantonha congestionada dos homens, rutila o céu azul, florescem as sebes, canta a natureza inteira sob o pincel realista de Malhôa.

Nunca o chic dos ateliers foi banido com maior energia e rigor dos processos de pintura.

É a própria vida que Malhôa retrata conscienciosamente, com as suas belezas e fealdades.

E assim pensando, eu me achei de chofre diante de uma verdadeira velha, a mais linda e real das velhinhas, com os tons próprios da idade, as mil fibrilhas sanguíneas da face transparecendo sobre a pele flácida e pendente, a maceração dos tecidos, o perfeito franzido da pobre boca sem dentes e essa língua trêmula que surge entre inúmeras rugazinhas dos lábios apinhados para umedecer o alvo fio da sua roca... [Imagem] Oh! Doce avózinha portuguesa! Como pôde esse grande pintor reproduzir assim a tua poesia de inverno, o teu encanto mudo e triste de cansada relíquia do passado?

Se me fosse dado escolher entre as obras do exímio artista lusitano, sobre essa admirável tela recairia a minha preferência.

Mas já outras continuavam a chamar-me a atenção: Provocando [Imagem], por exemplo, de uma tão rija linha de altivez e desafio nessa fisionomia de antigo fidalgo; Cavaleiro de S. Tiago [Imagem], onde a nobreza autêntica do modelo se advinha na [...] aristocrática dessa mão sem luva, que pende junto a outra revestida do seu guante de camurça... No gênero popular, tão genuinamente português, O barbeiro na aldeia [Imagem], com a sua grande luz que ri, dourando todas essas figuras pacientes, esperando numa indolência  peninsular a sua vez de passarem pela navalha do Figaro pesado e rústico. Nenhum detalhe foi esquecido.

O enorme chapéu de sol em que se apoiam duas grossas mãos contorcidas e nodosas, a musculatura dos pulsos a apatia bestial do rosto rapado, dessa figura principal do grupo, que aparece no primeiro plano, voltada bem de frente para quem olha o quadro oferecendo à análise toda a fleugma da sua face apagada e terrosa - tudo, tudo é um vivo grito de verdade.

Vejam em seguida outro estudo de velho, e que lindo velho também, Regedor [Imagem], de ásperas sobrancelhas revoltas cujos fios duros como piaçavas tem todavia a sua utilidade: velam um pouco a esperteza aguda dos olhinhos matreiros, de emboscada atrás dessas sarças brancas.

No alto das faces enrugadas, sente-se o belo tom sadio de uma maçã camoesa. As mãos são um prodígio de realidade, com as suas juntas encarquilhadas, toda a rede de grossas veias em relevo sob a pele franzida e lismada.

Oh! Meu deus! Isto não é uma crítica; é uma simples impressão, que denomino de luz, porque da luz me veio - feita do nosso sol de julho, belo sem ser quente, e da claridade dos quadros do ilustre pintor José Malhôa.

Sinto uma afinidade magnífica entre o esplendor do nosso céu e a natureza dessas telas portuguesas. Mesma intensidade de tons: mesma reverberação de raios solares!

E, para completar o deslumbramento da minha retina, surgiu-me por último a vista A procissão [Imagem] - e desta vez confesso, resisti mal ao instintivo desejo de abrigar-me sobre a minha sombrinha branca. Cheguei a ensaiar o gesto de abri-la...

Mas, que querem? A ilusão é compreensível. Uma tamanha crepitação de luz nessa rua de aldeia que faisca, branca e poeirenta, um sol de festa escaldante, o céu azul ferrete, esses foguetes que sobem ao ar límpido com um traço esfumado - e todos esses rústicos de jaqueta ao braço, suados, inflamados, as bandeiras rebrilhando, o próprio cãozinho latindo de alegria à frente dos grupos, crianças de bruços na terra quente, apanhando as flechas de murrão já queimado, tanta vida, tanto calor, transmitem-me ao vivo a sensação de uma claridade abrasadora. Tenho até sede... Busco mitigá-la na contemplação mais refrigerante desse belo quadro O sonho do infante [Imagem], mas aí não sei o que acontece, que me acho a receber as mais lisonjeiras e amáveis homenagens do próprio pintor, do grande e exímio artista português José Malhôa.

Não o conhecia ainda... E surpreendo-me a examinar com timidez o seu porte e simpático vulto, adoravelmente despretensioso, singelo e cativante.

Ele mostra-me os seus desenhos, os seus fusains, estudos, debuxos, cujo largo traço inspirado firma a primeira impressão, [...] num arrojo de mestre a primitiva [...] dos trabalhos futuros.

Aparece aqui uma cabeça, ali um drapé, acolá um braço, um escorço, uma figura isolada, uma mãozinha rechonchuda de anjo - e tudo já tem um caráter, palpita e vive como mais tarde palpitará e viverá no conjunto da obra sonhada e ideada, acarinhada no cérebro do artista.

Eu tive a honra de merecer do ilustre pintor o oferecimento de um desses desenhos: A cabeça de Clarinha, das Pupilas do Sr. Reitor, cujo olhar brejeiro filtra malícia através dos longes cílios espessos. E sempre que eu olhar esse vivo rosto de portuguesa nova e alegre, de lábios entreabertos pelo canto do desafio à beira do rio, hei de lembrar-me de José Malhôa, da sua cavalheirosa delicadeza e da intensa e inolvidável impressão de luz, de ar e de vida que trouxe de sua bela exposição de pintura na minha cidade natal, em 1906.

Carmen Dolores.

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[1] Essa interessante resenha de Carmen Dolores é uma das fontes sobre a Exposição Malhôa de 1906 que deve ser lida com cautela. Em particular, Dolores faz referência a três obras - O Barbeiro na Aldeia [Imagem], a Procissão [Imagem] e O Regedor [Imagem] - que, embora constem reproduzidas no catálogo, não se encontram nele listadas e não são referidas em nenhum dos outros textos cariocas sobre a exposição, até o momento analisados. É possível, portanto, que a presente resenha seja, na verdade, uma síntese de impressões colhidas por Dolores em uma visita à exposição e também na apreciação das imagens de obras reproduzidas no catálogo, mas que efetivamente não participavam da mostra.

 

 

JOSÉ MALHÔA. O Paiz, Rio de Janeiro, 29 jul. 1906, p.1.

O ilustre pintor Malhôa partirá para Lisboa, a bordo do Clyde, no dia 2 [?], acompanha-o seu irmão, o Sr. Joaquim Malhôa.

 

 

ARTES E ARTISTAS. Visita aos teatros. O Paiz, Rio de Janeiro, 6 ago. 1906, p.2.

Sabem que vem a ser um conto do vigário?

Com certeza sabem de cor e salteado.

Mas aposto em como não sabem o que seja um conto de padre mestre.

Pois lá vai.

No teatro Apolo, não sei em que data, senti um abraço pelo pescoço e um beijo estalado atrás da orelha.

Era o Malhôa.

Sentámo-nos a uma mesa e eu, por delicadeza, apesar de pouca vontade de pagar, pedi uma garrafa de cerveja. Atrás dessa, o ilustre artista pedia outra e mais outra, e ainda estaria a pedir, se eu não tivesse tomado o expediente de chamar o caixeiro e pagar a conta.

O diabo bebe aquilo como se fosse água da Carioca, e enquanto bebia engrossava-me.

 - Pois, meu negro do coração; és o rapaz mais bonito desta geração; nem sei como ainda estás solteiro.

Pausa e três goles de cerveja; e eu calado.

- Preciso de um rufo de tambores para a minha exposição; uns anunciozinhos disfarçados, e a tua seção de teatros está a calhar.

Outra pausa e mais três goles; e eu calado.

- Preciso liquidar aquilo tudo e tratar da vida: se acharem que os quadros prestam, muito bem; se não acharem, faço a trouxa e raspo-me.

Mais pausa, mais cerveja e mais silêncio meu.

 - Uma mão lava a outra, já se vê; e isso de pedir só sem dar não é dos meus hábitos.

Pausa, nova garrafa e eu na moita.

- Trago uma pasta cheia de uns desenhos que reputo obras de arte, e que destino aos amigos do peito, e você fica sendo do peito se me tocar os tambores e todos os chocalhos do reclame.

Idem idem idem.

- E depois o amiguinho manda pôr o desenho num passe partout e lá vai ele para a parede da sua biblioteca lembrar sempre o amigo velho, o maior admirador do Carino.

Pausa, etc., etc.

- Está dito? Vai ou não vai? Entra no acordo? É pegar ou largar.

Etc., pausa, etc., e cerveja.

- Bem, respondi; aceito.

Aceitei e cumpri, tocando gaitas por e pelos bondes da Gávea.

Enchi-lhe a exposição e ele encheu de notas do Tesouro uma barra de respeitável tamanho.

Os quadros produziram 318 contos de réis.

Pois bem.

O padre mestre sem coroa esqueceu-se da cerveja e do desenho.

Sim, senhor, mas há de voltar, e quem lhe há de dar desenhos, rufes e gaitas e cervejas e o diabo que o carregue, é o - CARINO.

 

 

José Malhôa. O Paiz, Rio de Janeiro, 7 ago. 1906, p.1.

Conforme estava anunciado realizou-se anteontem o passeio à Tijuca, oferecido ao pitor José Malhôa pelo Ganibete Português de Leitura.

Às 7 horas e 35 minutos da manhã, o bond especial conduziu ao pitoresco subúrbio as pessoas cujos nomes damos: conde e condessa de Avellar e filho, visconde e viscondessa de S. João da Madeira e neta, barão de Peixoto Serra, comendador Santos Carvalho e esposa, Rodolpho Bernardelli, Lourenço Mendes Jorge e esposa, Joaquim Nunes da Rocha, esposa e filho, Agostinho Teixeira de Novaes e filho, Joaquim Malhôa, comendador Monoel Henriques Leitão, José Malhôa, Henrique Bernardelli, Gaspar Pacheco e esposa e Vasco de Abreu.

Chegados ao Alto da Boa Vista, os convidados tomaram lugares em seis carros tirados a quatro e seguiram para o excelsor. Daí foram em visita à gruta de Paulo e Virgínia, regressando então para almoçar ao Hotel White.

Ao champagne falaram: José Malhôa para brindar os artistas brasieliros, os estudantes-pintores do Rio de Janeiro e os irmãos Bernardelli, o visconde de S. João da Madeira, o Sr. Nunes da Rocha, o cmendador Leitão, o conde de Avellar, o Sr. Vasco de Abreu e o Sr. Mouço e Silva, que brindou o Sr. Julião Machado, ausente por incômodo de saúde, brinde que foi acolhido com palmas de todos os convivas.

Depois do almoço os excursionistas seguiram em visita às “Furnas” e às 7 horas da noite estavam de regresso à cidade com a recordação de um delicioso dia passado no convívio de uma sociedade seleta e de uma deslumbrante natureza.