Gazeta de Noticias: Críticas a Exposição Geral de Bellas Artes de 1884

contribuição de Camila Dazzi e Hugo Guarilha

Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/

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Exposição de Bellas Artes - Gazeta de Noticias n. 236, ano X, sábado, 23 de agosto de 1884, p. 1.

Exposição de Bellas Artes

Inaugura-se, hoje, ás 11 horas da manhã, com a presença de SS. MM. Imperiaes, a exposição de bellas artes na nossa academia.

Esta exposição, relativamente rica, deve exercer uma influencia manifesta sobre o futuro da arte no Brazil.

O systema agora adoptado de fazer pagar as entradas, para de alguma fórma compensar a escassez de recursos do nosso unico estabelecimento artistico e habilital-o a enriquecer as suas collecções e ao mesmo tempo estimular os artistas, merece ser bem acolhido pelo publico.

Os nossos artistas, e já os temos habeis, talentosos e activos, não tèm encontrado até aqui apoio official bastante para os animar a grandes commettimentos; contribua cada cidadão com os seus recursos, e a arte nacional terá dignos representantes.

Na exposição que, hoje, se inaugura, veremos reunido um numero de quadros de artistas nacionaes ou estrangeiros aqui residentes, como nunca antes tivemos. Victor Meirelles e Pedro Americo, Aurelio e Firmino Monteiro, Amoedo e Almeida, Grimm e Driendl, Belmiro e Peres, Fachinetti e Medeiros, Caron, Vasquez, França Junior, Frate, Valle e tantos outros, artistas, amadores, alumnos da academia, todos contribuiram para enriquecer a exposição.

E sem contar que n’uma das primeiras salas do pavimento terreo ostenta-se pujante o grande talento de Bernardelli, com a sua cópia de Venus Callypigia, e a sua Faceira e o esboço do Christo e a adultera.

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A direcção, á maneira do que se faz em Pariz, e em Londres, e em Bruxellas, e em todas as cidades da Europa em que ha movimento artistico, reservou um dia na semana, em que o preço da entrada é um pouco mais elevado.

N’aquellas cidades, a visita á exposição em taes dias, constitue a reunião mais [...], mais elegante, da alta sociedade. É nesses dias que se faz a critica da critica, e que os labios roseos das senhoras, que vém as cousas de arte atravez do mais apurado sentimento, fulminam as pretenções dos que julgam entender.

Os artistas caminham por entre os grupos que se formam em frente aos seus quadros, e desejando que os espectadores os não conheçam pessoalmente, suspiram por ouvir a apreciação espontanea, o pequeno grito de applauso, que lhes paga todos os esforços, porque, por mais que os artistas desejem ganhar para viver, nada vale tanto para elles como a consagração do seu talento pelo applauso do publico.

Esperamos, portanto, ver ás quintas-feiras, o bello grupo elegante deixar duas ou tres horas os amarinhos, e ir á exposição, com esta vantagem admiram as obras  de arte, e fazem admirar as obras mais bellas ainda da natureza.

Para terminar, uma boa noticia, que suppomos que os nossos leitores receberão com prazer.

Tinhamos pedido, ha tempos, a Pedro Americo, o nosso notavel pintor, que na Italia tanto honra o nome brasileiro, a que além de um grande artista, é um escriptor apreciavel, que nos mandasse alguns artigos, principalmente sobre arte.

O nosso festejado artista correspondeu amavelmente a este convite, e já recebemos tres artigos. Expressamente guardamos o primeiro para hoje, para solemnisar assim a abertura da nossa exposição artistica.

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Bellas-Artes, Gazeta de Noticias, n.252, ano X, segunda-feira, 16 de setembro de 1884, p. 1.

Bellas-Artes

O Sr. Pedro Americo - desculpe-me se o não chamo doutor, mas o doutor em cousas de arte, borra-me a pintura - expõe nada menos de onze quadros.

Alguns d’elles estão na parede fronteira á entrada, e a gente vê-os logo. E vê-os também, porque são grandes, porque são vistosos, porque têm todos um grande luxo de ornatos, a côres vivas.

O Sr. Pedro Americo é um mestre. Não é só um pintor, já conhecido aqui e além mar; não tem só por si um grande numero de quadros, que o applauso publico já consagrou. Além do métier, tem a litteratura da sua arte; ensina archeologia, esthetica e historia da pintura. É, mais, um escriptor e um poeta; sem contar que sabe, e é doutor em sciencias naturaes.

É, pois, com a maxima reserva que a gente se chega aos seus quadros, e, para fazer sobre elles uma observação, seria preicso deitar um livraria abaixo.

Como estranhar, por exemplo, o colorido do corpo da joven Abisag, encarregada de aquecer (sic)[1] o velho David [Imagem]? É um colorido quente, dir-se-ha, para dar côr local ao quadro.

Das rendas de D. Catharina de Athayde, ouvi a um entendido que aquella renda é o que se chama blonde, invenção relativamente moderna. Lavo, porém, d’ahi as minhas mãos.

Passo pela Judith rendendo graças a Jehovah por ter conseguido livrar sua patria dos furores de Holophernes, sem mesmo notar que a sua pose é muito tranquilla, e lembra a de uma prima donna que vai atacar a sua grande aria; e oque as suas roupas estão correctas e cuidadas, como se Judith viesse, não da tenda em que decepou a cabeça do general inimigo, mas simplesmente do seu camarim de theatro.

Não me demoro a examinar a Carioca, nossa antiga conhecida, com variantes que lhe não alteram o primitivo valor.

Limito-me a applaudir na Noite o primor com que está pintada a renda preta, sem mesmo lamentar que sobre esta se apoie o Amor.

Passo a correr pela Virgem Dolorosa, bonita mulher se quizerem, mas a que falta de todo a uncção religiosa, e mesmo a expressão de dòr, e paro como simples admirador ante o retrato de D. João IV, infante, bem acabado tanto na figura como nos accessorios, e sobriamente feito, sacrificando o effeito á verdade.

D’ahi por diante, porém, acho-me inteiramente á vontade a apreciar o mestre.

A Menina em costume de 1600, na Hespanha, só póde ser pintada por quem tem um grande conhecimento da arte, ou o fogo sagrado da inspiração.

Mas onde me parece que o applauso deve ser sem reservas, onde eu chego, como toda a gente, no enthusiasmo pelo artista, é diante da sua Rabequista arabe, e do Estudo de Perfil, sob n. 260.

Na Rabequista arabe eu dispensaria talvez o tom das tapeçarias do fundo, aliás admiravelmente pintadas, para me ficar só diante dos olhos a figura suave, mas tão accentuada, da rapariga morena e bella, que está tão enlevada na musica que toca, que a gente fica alli á espera de a ouvir.

Quanto ao Estudo de perfil, esse é que é o que se póde chamar o bonito sem senão.

Comprehende-se que eu fallo por mim, porque n’isto de arte, se as regras valem muito, o gosto vale tudo.

Diante do Estudo de perfil, a agente tira reverentemente o chapéu e acclama o artista.

Gósto muito dos quadros do nosso distincto collaborador; mas dava-os todos - todos, menos a Rabequista arabe - por aquellea cabeça de creança.

Agora, se me quizessem dar de quebra a Menina em costume de 1600, também não diria que não.

L. S.

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Bellas-Artes, Gazeta de Noticias, n.270, ano X, sexta-feira, 26 de setembro de 1884, p.1.

Bellas Artes

Pedro Americo trouxe-nos mais quatro quadros, que eriquecem a exposição da Academia.

São elles: Os filhos de Eduardo, Almoço arabe, Heloisa e Jocabed.

O primeiro é o menos acabado d’estes quadros; mas a cabeça do pequeno que fica no segundo plano, é de uma expressão encantadora.

Accresce a circumstancia de estar esse quadro posto ao lado do Almoço arabe, que é um mimo.

Uma menina de typo bem accentuado, reclinada sobre uma mesa, saboreia com delicia uma espiga de milho. O aspecto geral do quadro é encantador, e o prazer de o ver não se perde, antes augmenta, quando se passa aos detalhes. A chicara, o prato, as espigas, os arabescos do turbante são de uma verdade realista.

Os labios da menina são talvez um pouco bruscamente cortados, têm um não sei que, de duro, mas o olhar é tão vivo, a expressão physionomica tão animada, que se experimenta verdadeiro prazer em ficar alli a admirar o esplendido quadrinho.

Heloisa já é trabalho de mais folego. Uma cara lindissima, com a expressão amorosa e desalentada de quem nada vê, por mais que procure perscrutar o futuro. O habito, habillísimamente desenhado, deixando ver as fórmas graciosas do corpo condemnado á esterilidade claustral. O altar, o missal, a figura do Christo á sombra, assistindo áquella magua irremediavel, são outros tantos elementos que concorrem para a belleza do quadro.

Não se comprehende bem d’onde vem a luz que illumina o missal, nem aonde vai ter a das duas velas; isso, porém, não prejudica a belleza da composição.

Heloisa tem nas mãos um thuribulo; d’este sae uma nuvem de incenso, e ahi a imaginação poetica do auctor fez figurar provavelmente os sonhos que povoam o espirito da amante de Abelardo.

Das nuvens de incenso forma-se a um lado do quadro uma figura vaporosa, que se destaca e se confunde, que é uma mulher ou uma visão, mas continúa a ser fumo.

Porém, dos quatro novos quadros de Pedro Americo, o melhor é inquestionavelmente a Jocabed levando o pequeno Moysés para deital-o ao rio, no tradicional cesto de vime.

Ponho desde já de parte a paizagem, a que parece que o pintor não ligou grande importancia: não insisto sobre a circumstancia de parecer que a figura principal está mettida até os joelhos na agua do rio, de que se não destaca, e extasio-me unicamente diante da figura, que me parece um dos trabalhos mais felizes do mestre.

Este quadro é dos que não precisam de letreiro.

Alli está o typo da raça hebraica; alli está a expressão dolorosa da mãi, condemnada a abandonar o filho, mas que recorre a um estratagema, perigoso embora, para vêr se o salva; ha no rosto de Jocabed qualquer cousa de enygmatico, como se consultasse uma esphynge, que se adivinha para os horisontes de além do quadro; ha ainda n’essa expressão como que a previsão de que a criança que ahi vai, será um dia o grande legislador.

As roupas são admiravelmente tratadas, e o entreaberto, que desce tanto, tanto, não dá a menor idéa lasciva, máu grado a formosura da hebréa, porque tem o justo limite do abandono da mulher preoccupada por uma grande dôr.

Jocabed é, em resumo, um dos melhores trabalhos de Pedro Americo, e será um dos successos da presente exposição.

L. S.

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[1] L. S. deve ter copiado a palavra do catálogo, por isso o sic.