Comentário sobre o livro de Félix Ferreira "Belas Artes: Estudos e Apreciações", 1885

Camila Dazzi

DAZZI, Camila. Comentário sobre o livro de Félix Ferreira “Belas Artes: Estudos e Apreciações”, 1885. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/felixferreira_ba_arquivos/ff_cba.htm>.

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Les arts, comme les sciences, sont la proprieté commune du genre humain; leur histoire ne peut être complète qu'en se generalisant. Ce n'est qu'à l'aide

de comparaisons ave  le passé... qu'on peut se rendre un compte exact de leur situation présente.

F. B. de Mercey - Études sur les Beaux-Arts, Introduction [1] (Apud: F. Ferreira. Belas Artes: estudos e apreciações)

Os anos de 1880 foram assinalados pela publicação das duas obras mais conhecidas de crítica de arte de todo o século XIX brasileiro, Belas Artes: estudos e apreciações, de Félix Ferreira, de 1885; e A Arte Brasileira, de Luiz Gonzaga-Duque Estrada, de 1888. Apesar de possuir menos destaque que o segundo nos estudos atuais sobre a arte brasileira oitocentista, o livro de Félix Ferreira, após leitura mais atenta, revela um conhecimento sobre as questões que permeavam o meio artístico, sobretudo fluminense, que não são, nem de longe, desprezíveis.

O fato da obra não ter merecido ainda um estudo aprofundado, sobretudo se comparada à do seu contemporâneo Gonzaga-Duque, se explica, em certa medida, pelo fato de Félix Ferreira ter produzido um número bem menos significativo de publicações voltadas às artes, não tendo atuado, até onde podemos constatar, como colaborador de jornais e revistas do período com críticas sobre assuntos artísticos. Desta forma, seu posicionamento sobre as artes visuais não alcançou repercussão popular, como ocorreu com o de críticos como Angelo Agostini e Oscar Guanabarino. Devemos somar a isso o fato de Belas Artes: estudos e apreciações ter sido duramente exprobado, quando da sua publicação, em um dos principais periódicos de então, a Revista Illustrada, como uma “producção transborda de banalidade” e “isenta de bom gosto e critério”. Tal estigma possivelmente pesou sobre o livro durante os anos que se seguiram, influenciando posteriores leituras e, mesmo, desestimulando possíveis revisões da obra. Abaixo reproduzimos alguns trechos da crítica da Revista Illustrada [2]:

Livro da porta

Estudos e apreciações sobre bellas-artes, por Felix Ferreira. Reunidos em elegante volume apparecem-nos agora diversos estudos e criticas d’este nosso collega, enfeixando, por assim dizer, todo o movimento artistico dos ultimos tempos.

[...] Desejariamos tratar minuciosamente d’este livro, honrando assim os esforços do auctor. Fallece-nos, porém, o espaço preciso. Trataremos, entretanto, de o lêr e mais tarde daremos nossa opinião. Argus. [3]

Estudos e apreciações de bellas artes

Depois de folhear este volume do Sr. Felix Ferreira, passamos a fazer uma leitura mais demorada, e, posto que nos inspire sempre consideração qualquer tentativa ou trabalho, e que pesassemos bem a magnitude do assumpto, as decepção foram grandes! Sem nos julgarmos auctorisado exigir que o critico de arte, entre nós, seja um Theophylo Gauthier, um Charles Blanc ou um Wolff, temos, comtudo, a esperar, que quem se abalanca a estas empresas revele alguns conhecimentos artisticos, bom gosto e criterio. Ora, pela leitura do livro do Sr. Felix Ferreira, vimos, com grande pesar, que essa producção transborda de banalidade, de conceitos insustentaveis e de injustissimas apreciações.

Para muitos artistas de merito, que o Sr. Felix Ferreira não comprehendeu, a sua critica será um motivo de não pequeno desgosto. […] Resumindo: o Sr. Felix Ferreira deve empregar o seu brilhante talento de escriptor em outra qualquer especialidade. Não trate mais de bellas artes. Tenha pena d’ellas! X. [4]

Apesar de assinados com pseudônimos, é muito provável que o autor de tais comentários sobre o livro tenha sido o próprio Angelo Agostini, e que a sua opinião negativa sobre o mesmo tenha sido fundada em questões particulares, uma vez que Félix Ferreira teceu “injustissimas apreciações” sobre artistas que Agostini tinha apreço, e mesmo, relação de amizade.

Desta forma, acreditamos que Belas Artes: estudos e apreciações  mereça uma leitura atual, como tem sido realizada com a obra de outros pensadores da arte do período, como Angelo Agostini [5] e Oscar Guanabarino [6], que recentemente foram objeto de estudo de dissertações e teses.

O livro é dividido em quatro partes: a primeira se configura como um panorama da história da arte internacional, desde o Egito antigo ao período denominado “Renascimento e Arte Moderna”. Na segunda parte do livro, o autor faz o relato de seis exposições individuais ocorridas entre 1882 e 1885: a do Liceu de Artes e Ofícios em 1882; a exposição de Almeida Júnior em 1882; a de Arsênio da Silva em 1883, seguida pela de Aurélio de Figueiredo no mesmo ano; e por fim as mostras de Firmino Monteiro e Víctor Meirelles. Por fim, no quarto momento da obra, Félix Ferreira traça o perfil artístico de Bethencourt da Silva. Vale aqui lembrar que não foi a primeira vez que o autor escreveu sobre Bethencourt; tendo lançado, em 1876, um livro sobre o arquiteto, fundador da Sociedade Propagadora das Belas-Artes e do Liceu de Artes e Ofícios,  em edição ilustrada com fotografias.

A terceira parte de Belas Artes: estudos e apreciações trata exclusivamente da Exposição Geral de Belas Artes de 1884[7]. Félix Ferreira subdivide este longo texto em dez capítulos, nos quais expõe as suas idéias sobre obras, artistas e questões fundamentais as artes visuais das décadas finais do século XIX. A mais significativa delas se refere à criação de uma escola nacional de pintura, tema tratado em vários momentos, como nesse que se segue:

Sob a denominação Escola Brasileira reuniu a Academia em um dos salões do novo pavimento a coleção de trabalhos de seus fundadores, professores e alunos. Idéia louvável, que de há muito estaria por certo realizada, se ali houvesse há mais tempo uma sala apropriada. [...] Não se compreende como se tenha fundado uma escola de belas artes, em um país novo e nesta parte da América, sem que ao lado da instituição material do ensino, se tenha fundamentado a instituição moral, que é a essência da arte a nacionalização da escola [8].

Não é desconhecido daqueles cujas pesquisas enfocam o período, que a formação de uma escola nacional de pintura era um dos pontos mais discutidos no meio artístico fluminense nas décadas finais do século XIX. Os quadros, segundo a quase totalidade dos críticos, deveriam se desvincular dos temas históricos e representar a nossa cor local, a nossa gente, enfim, era necessário criar uma identidade nacional que desse ao Brasil um caráter de país moderno. Em Belas Artes: Estudos e Apreciações, Félix Ferreira defendeu essa idéia, definindo como veículos apropriados a pintura de gênero e a “paisagem brasileira”, uma vez que as pinturas de paisagem, muitas vezes, revelavam, ou indicavam potencial para representar a nação brasileira muito mais do uma cena histórica:

Dos seis trabalhos do Barão de Taunay, que pertencem à Academia, três são de assunto nacional, verdadeiras pedras angulares de um gênero que há de um dia ser o orgulho e a glória do Brasil, a paisagem. [...] Mas, ao passo que a pintura histórica de batalhas vai decaindo do gosto público, os quadros de gênero e os de paisagem vão subindo de apreço. A paisagem, os usos e costumes nacionais, são minas inexploradas, que os nossos artistas estão deixando em criminoso abandono, para esgotarem a inspiração nas grandes telas históricas, que não compensam nem moral nem materialmente tantos e tão aturados trabalhos para conseguir um desses quadros[9].

Outra preocupação que se deixa revelar no escrito de Félix Ferreira, fazendo coro as demais críticas da época, ainda que de forma peculiar, é a preocupação com o realismo e a veracidade histórica e literária da cena pintada, assim como sua associação à temática nacional. Oscar Guanabarino ao comentar os quadros tidos como de pintura histórica da Exposição Geral de 1884, revela essa exigência, ao criticar, por exemplo, O Último Tamoio, de Rodolpho Amoêdo, baseado no poema de Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios. Guanabarino afirma que a tela falta “verdade”. “Inverdade”, aqui, também significa que a informação do quadro – baseada numa obra da literatura – está não apenas errada, mas também incompleta[10].

Félix Ferreira, comentando a exposição, tem outra opinião sobre tais telas:

Os quadros dos Srs. Aurélio de Figueiredo e José Maria de Medeiros, deste a Iracema daquele Ceci e Isabel, por exemplo, foram já designados como pintura histórica, classificação a rigor inadmissível, pois nenhum deles se baseia na história, mas sim no romance. Quanto a mim, se esses quadros não pertencem aos de gênero, pelo menos devem ser classificados como paisagens animadas[11].

Desta forma, para Félix Ferreira, a pintura “só pode basear-se na própria história ou na lenda, que, com a autoridade dos séculos, tenha a consagração histórica”.

Dando prosseguimento a comparação entre os dois escritores, vale aqui colocar os ataques veementes que Guanabarino faz às obras expostas por Pedro Américo, “recorrendo, para isso, ao auxílio da ciência – e às disciplinas que o próprio pintor leciona na Academia Imperial de Belas Artes – como instrumentos infalíveis para ir ao encontro da “verdade”. Ao se referir às “inverdades históricas” do quadro, se utiliza, por exemplo, de Cesare Vecellio, autor de um célebre livro de costumes. Ou seja, recorre a uma documentação visual”[12]. As considerações feitas por Félix Ferreira sobre A Noite acompanhada dos gênios do estudo e do amor, do mesmo pintor, desta vez fazem não divergem daquelas de Guanabarino, pois também se referem à inverdade do quadro:

... o que é sobretudo imperdoável em um professor de estética, da filosofia da arte, como o Sr. Pedro Américo, e tanto mais imperdoável quanto o seu talento é menos contestável, pois não há negá-lo em absoluto, é a falsidade da luz, é a noite em pleno dia, são esses encontrados efeitos, que não se compreendem, de uma luz que se não sabe donde vem[13].

Esperamos, com esse breve comentário sobre Belas Artes: estudos e apreciações, de Félix Ferreira, ter demonstrado que é valida uma leitura atenta da obra, uma vez que essa nos ajuda a conhecer melhor o pensamento sobre arte do período, em toda a sua instabilidade e ambigüidade, - entendendo que uma história na verdade são muitas histórias, feitas de várias camadas, em que, muitas vezes, as que permanecem subjacentes ou sombreadas são também significativas e apresentam desdobramentos relevantes.

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