Instalação nas Exposições Gerais de Belas Artes durante a 1a. República *

Arthur Valle

VALLE, Arthur. Instalação nas Exposições Gerais de Belas Artes durante a 1a. República. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. https://www.doi.org/10.52913/19e20.VI1.06

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1.      Em 1924, o promotor cultural e marchand de origem bávara Theodor Heuberger, um dos membros fundadores da Pro Arte Sociedade de Artes, Letras e Ciências, visitou a XXXI Exposição Geral de Belas Artes, no prédio da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), à Av. Rio Branco, Rio de Janeiro. Em um depoimento dado quase seis décadas depois à pesquisadora Maria Cristina Burlamaqui, foi nos seguintes termos que Heuberger expressou o seu “choque” diante do aspecto daquela mostra:

2.                                    Eu quase desmaiei quando vi a exposição do Salão de 1924, na Escola de Belas Artes, com quadros em quatro filas... por isso eu organizei uma exposição em uma linha só! Foi uma beleza! Eles disseram: “Que coisa, a gente pode respirar, a gente pode ver um quadro diferente do outro, em vez de um quadro matar o outro!” [1]

3.      A declaração de Heuberger descreve, com eloquência, como a instalação de obras de arte em um espaço expositivo pode determinar decisivamente a fruição do espectador. Ela parece indicar, igualmente, a percepção de um agente que, afinado com as tendências artísticas em voga na Europa do início do século XX, era capaz de perceber a falta de “beleza” das práticas expositivas brasileiras e intervir na sua remodelação, se insurgindo contra aquilo que Ruth Sprung Tarasantchi definiu, ainda recentemente, como “o modo aleatório [de colocar os quadros] que era usado na época, isto é, de colocar o maior número de quadros, um encostado ao outro.”[2]

4.      Registros fotográficos de mostras organizadas por Heuberger no Rio de Janeiro, como a Deutsche Werkbund-Bauhaus (1929) ou, em especial, a Exposição Alemã em homenagem ao Brasil (1931) [Figura 1], ambas instaladas exatamente no mesmo prédio da ENBA, permitem que tenhamos uma ideia da organização expositiva - supostamente alternativa - propugnada pelo bávaro. Em artigo recente dedicado à Exposição Alemã, o pesquisador Marcelo S. Masset Lacombe assim a ela se referiu:

5.                                    Heuberger, de acordo com as fotografias que fazem parte do álbum de 31, realizou uma curadoria inovadora para os padrões habituais do Rio de Janeiro; os quadros foram expostos alinhados sobre o lambri das paredes do salão, de forma a estarem na altura da vista dos expectadores e não dispostos uns sobre os outros até o pé direito da parede como parece ter sido comum na década de 20. Com isso Heuberger conseguia pôr o espectador numa situação de contemplação íntima de cada obra, acentuando em cada uma delas a sua individualidade.[3]

6.      Se generalizada, a declaração de Heuberger levaria a crer que, já bem adentrado o século XX, era das mais arcaicas a instalação das obras nas Exposições Gerais - sem sombra de dúvida, o maior certame de artes visuais brasileiro no período conhecido como 1a. República (1889-1930). Vem à mente as imagens de aposentos cobertos com uma verdadeira “hera” de pinturas, que, desde o Seiscentos, foram frequentes nos Salons, museus e galerias do Velho Mundo. Um exemplo é mostrado na bem conhecida pintura do estadunidense Samuel F. B. Morse, chamada Galeria do Louvre (1831-33) [Figura 2], que Brian O’Doherty qualificou de “perturbadora para o olhar moderno”, em um famoso ensaio sobre práticas expositivas, publicado originalmente na revista Artforum, em 1976. A descrição que O'Doherty então apresentou desse ambiente foi a seguinte:

7.                                    obras-primas como se fossem papel de parede, cada qual ainda não separada e isolada no recinto, como um trono. Contrariando a (para nós) horrenda concatenação de períodos e estilos, as exigências impostas ao espectador pela disposição estão além da nossa compreensão. É preciso alugar pernas de pau para chegar ao teto ou apoiar-se nas mãos e nos joelhos para espiar uma coisa próxima do rodapé? [...] Pinturas maiores (mais fáceis de ver à distância) vão para o topo e por vezes são inclinadas com relação à parede, para manter o plano do observador; as “melhores” pinturas ficam na zona intermediária; as menores vão para baixo. O trabalho perfeito de pendurar os quadros resulta em um engenhoso mosaico de molduras, sem que qualquer porção de parede seja desperdiçada.[4]

8.      Em países como a França, todavia, ao menos desde o início dos anos 1870, comerciantes de arte, sociedades artísticas e mesmo artistas expondo independentemente vinham experimentando novas formas de instalação e, a partir de finais do século XIX, técnicas especializadas de exposição se desenvolveram de maneira significativa.[5] A “curadoria inovadora” de Heuberger se revela, assim, bastante afinada com uma certa ideologia do espaço da arte que viria a caracterizar muitas das galerias modernas. Sob essa ótica, a sua declaração se evidencia como mais uma de muitas, reiterando a conhecida narrativa construída a partir da ótica de nossos modernistas, que, opondo “acadêmicos” retrógrados a “modernos” inovadores, conta como estes últimos revolucionaram a trajetória das artes no Brasil.

9.      Em que medida devemos aceitar essa narrativa? Embora seja um registro valioso dos fatores que condicionavam a produção e o consumo de obras de arte durante as primeiras décadas da República brasileira, o estudo dos modos de instalação nas exposições individuais e coletivas do período continua pouco teorizado. O presente artigo é apenas um esboço nesse sentido, mas creio que a tentativa aqui feita de analisar as transformações pelas quais passaram as estratégias de ocupação do espaço nas Exposições Gerais durante a 1a. República evidenciará uma realidade mais nuançada do que a velha oposição “acadêmicos vs modernos”, transposta para as práticas expositivas, poderia fazer crer. Através do estudo da recepção dos “Salões” cariocas, é possível perceber, ao lado da sobrevivência de práticas expositivas herdadas do Oitocentos, que o aspecto eventualmente sobrecarregado dessas mostras não surgia como natural ou desejável aos olhos dos contemporâneos. Com efeito, desde a passagem para o século XX, foram frequentes as reivindicações por um espaço expositivo mais despojado - que foi, de fato, aquele de certas edições do evento.

10.    Um dado que parece relativizar as palavras de Heuberger é que os registros de que disponho da Exposição Geral de 1924 não confirmam plenamente o panorama por ele descrito. Fotografias em resenhas noticiando o vernissage da mostra, publicadas em periódicos como O Jornal e O Paiz [Figura 3a, Figura 3b e Figura 3c][6], revelam, sem dúvida, uma instalação mais densa do que a da Exposição Alemã, com intervalos menores distanciando as obras. Mas, é necessário ponderar que os quadros do “Salão” mostrados tendem a ser bem maiores, e, se eles efetivamente não se assentam em uma única fila horizontal, estão dispostos em, ao que parece, no máximo duas filas - não em quatro, como afirma Heuberger.

11.    Se tais fotos põem em xeque as críticas do bávaro, outras evidências parecem dar-lhe credibilidade. Primeiramente, não se pode desconsiderar que essas fotos mostram, presumivelmente, espaços “nobres” da mostra de 1924: figuras ilustres como ministros, embaixadores estrangeiros ou o então diretor da ENBA, João Baptista da Costa, posam formalmente, em frente a obras que se destacavam no certame, como Mata iluminada, de Anibal Mattos - n. 11 do catálogo, bem reconhecível na extrema direita da Figura 3b. É muito provável que houvessem outros espaços, mais sobrecarregados, no restante do “Salão”. Além disso, registros iconográficos de edições anteriores das Exposições Gerais, especialmente aquelas realizadas nos anos 1890 e 1900, sugerem que os quadros iam até o topo disponível das paredes e eram sobrepostos em várias filas. É o que mostram algumas charges [Figura 4] e fotografias. Particularmente reveladora é, por exemplo, uma foto do “Salão” de 1905, publicada na Gazeta de Notícias [Figura 5][7]: nela, pode-se discernir que os “biombos vermelhos” - como pontua Gonzaga Duque[8] - que cercam o espaço expositivo estão repletos de pequenas obras, dos mais diversos gêneros, instaladas muito próximas umas das outras e se sobrepondo em colunas, nas quais se contam de três até cinco pinturas.

12.    Antes de dar por definitivas as palavras de Heuberger seria interessante, porém, analisar uma outra fonte decisiva: as notas escritas sobre a recepção das Exposições Gerais. De modo significativo, estas revelam que, ao menos desde o início do século XX, uma parcela dos contemporâneos não via esse aspecto carregado das mostras com bons olhos. É o que demonstra claramente o articulista anônimo da seção Notas de Arte do Jornal do Commercio, ao expor uma reflexão que, em 1901, antecipava muitas das ideias que norteariam as instalações promovidas por Heuberger:

13.                                  Dada a exiguidade de espaço de que o acanhado edifício da nossa Escola dispõe para essas exposições, e isso mesmo com sacrifício de quadros da nossa galeria permanente, um menor e mais escolhido número de telas faria melhor vista, porque proporcionaria melhor arrumação, não amontoando os quadros uns sobre os outros e deixando-os ficar com melhor distribuição de luz. Assim, o público, por um lado, poderia examinar melhor os quadros expostos e mais serenamente formar a sua apreciação, e por outro lado os próprios trabalhos expostos, colocados assim mais independentes uns dos outros, poderiam apresentar mais livremente, sem as influências que uma demasiada proximidade de outros quadros lhes possa causar, os seus valores próprios.[9]

14.    Cumpre lembrar que, em seus primeiros anos, a ENBA permaneceu alocada no prédio projetado por Grandjean de Montigny, à antiga Travessa das Belas Artes, n. 12, cujas instalações “nasceram pequenas [...] para o alunado e para as funções suplementares de pinacoteca e de espaço para as Exposições Gerais de Belas Artes.”[10] Em 1902, o articulista do Jornal do Commercio voltaria a se referir à “exiguidade de espaço” ali disponível para o “Salão”, bem como aos seus resultados funestos para a apreciação das obras.[11] Em 1905, foi a vez de Gonzaga Duque evocar, com ironia, o aspecto atravancado da mostra, comprovado pela Figura 5: “Depois, pelo alto das paredes, entre umas marinhazinhas, das quais apenas percebo uns barquinhos e umas praiazinhas, muitas mangas, muitas laranjas, muitas bananas, então bananas em penca!”[12]

15.    Dessa maneira, a sensibilidade demonstrada pelos contemporâneos em suas falas nos conduz à hipótese de que a sobrecarga de obras verificável nas primeiras edições das Exposições Gerais não era simplesmente o resultado de uma estratégia de instalação deliberada ou - pior - da obtusidade de seus organizadores, mas, sobretudo, de contingências como (1) o número de obras que deviam ser acondicionadas no espaço expositivo e (2) as limitações desse último.

16.    Um bom indicador do primeiro fator é a Seção de Pintura das Exposições Gerais, que, no período aqui analisado foi sempre a que abrigou a maioria esmagadora de obras.[13] O Gráfico 1 mostra a quantidade aproximada de pinturas expostas por ano, entre 1894 e 1930.[14] Embora a oscilação nos números não pareça revelar qualquer padrão subjacente, é presumível que, em anos com poucas obras, o “Salão” apresentasse um aspecto mais leve. Em 1910, por exemplo, o articulista do Jornal do Commercio atestou: “A exposição atual é pequena e menor ainda aparece em vista da longa galeria onde foram pendurados os quadros.”[15]

17.    Em 1910, todavia, a impressão de vazio foi acentuada por uma importante mudança relacionada àquele segundo fator que assinalei - o espaço expositivo que abrigava a mostra. Com efeito, em 1908, a ENBA foi transferida para um novo e mais vasto edifício, projetado por Adolpho Morales de los Rios na então ainda denominada Av. Central - o mesmo prédio onde, como já indicado, Heuberger teve oportunidade de ver o “Salão” de 1924 e fazer suas próprias instalações. Se a hipótese levantada acima estiver correta, seria de se esperar uma mudança no aspecto das Exposições Gerais após essa transferência: todavia, os registros de que disponho simplesmente não permitem uma generalização nesse sentido.

18.    Por exemplo, fotos da primeira Exposição Geral realizada no prédio da Av. Central, em 1909, continuam a revelar precariedade e sobrecarga de obras [Figura 6].[16] Em 1912, entretanto, pelo que se pode conhecer do “Salão” através de fotos publicadas na revista Careta [Figura 7],[17] a instalação antecipava muitos pontos da curadoria que Heuberger fez na Exposição Alemã: os quadros se encontravam dispostos em uma única fila, alinhados por baixo, à altura média do olhar dos espectadores e relativamente espaçados entre si, sublinhando a autonomia visual de cada peça. Pelo que indica a legenda de uma das fotos, a seção de escultura contava, inclusive, com um espaço individualizado. Sob outros aspectos, porém, mesmo a instalação de 1912 se desvia do paradigma mais despojado e neutro do espaço expositivo moderno frisado por O'Doherty. A iluminação parece pouco abundante e se perpetua a prática de pendurar as pinturas sobre biombos de tom carregado - desta vez, “roxo-rei”[18] -, que serviam, simultaneamente, com um anteparo diante das paredes e como subdivisões do espaço expositivo. Além disso, festões ornamentais de folhagens podem ser vistos sobre as paredes e na parte superior dos biombos.

19.    Alguns desses aspectos, como as paredes com tons carregados e a ornamentação, indicam a sobrevivência, no meio artístico do Rio de Janeiro, de práticas expositivas questionadas ao menos desde finais dos anos 1860 em países como a França.[19] Tais práticas, embora comuns em outros centros artísticos brasileiros, como o de São Paulo,[20] eram criticadas também por alguns comentaristas locais. Por exemplo, em uma série de resenhas publicadas n'O Paiz, o articulista - estrategicamente assinando com o pseudônimo Bolognese e escrevendo em francês -, ironizava abertamente a exposição de 1913: em uma delas, zombava da pompa que marcava a montagem, pontuada de, nas suas palavras, “tapis d'Orient” e de “cyprès”, que lhe emprestavam um ar de “necrópole.”[21] Em 1915, foi a vez do articulista do Jornal do Commercio se referir à “encenação hábil e ruidosa” com a qual a comissão organizadora apresentou a exposição, no intuito presumível de mascarar o seu fraco nível.[22]

20.    Outros aspectos da relativa precariedade perceptível nos “Salões” a partir de 1909 - como a iluminação e o uso improvisado de biombos – pareciam, todavia, ainda decorrer de limitações estruturais. É preciso lembrar que as obras no novo prédio da ENBA se arrastaram por mais de uma década, após a sua inauguração. Essa situação foi, mais de uma vez, lembrada pelos comentaristas: “[...] não havendo salas disponíveis para as Exposições anuais, eram elas efetuadas dentro do próprio Museu, em paredes provisórias, levantadas na ocasião, com sarrafos cobertos de aniagem, escondendo assim dos visitantes os quadros da pinacoteca, durante pequena parte do ano.”[23]

21.    Somente em 1922, com o término de uma ampla reforma no edifício da ENBA, tais inconvenientes foram aparentemente sanados. No vernissage desse ano, comemorativo do Centenário da Independência, o diretor Baptista da Costa proferiu um discurso, no qual agradeceu ao apoio que o então Presidente da República, Epitácio Pessoa, deu à reforma, listando suas melhorias:

22.                                  Hoje, a Escola possui seus ateliês de pintura, estatuária, escultura de ornamentos e arquitetura, perfeitamente instalados; suas galerias estão definitivamente organizadas, livres da perturbação prejudicial que as ameaçava por escassez de espaço, sofrendo o desastre das armações de sarrafo e aniagem, para realização das exposições anuais, até então realizadas, com grande risco para as riquezas da nossa pinacoteca.

23.                                  Deve-se a S. Ex. esse grande passo, que aponta melhores e mais rasgados horizontes, para a arte e os artistas no Brasil.

24.                                  Em poucos momentos poderia ser examinada a exposição permanente, de obras antigas, independente das galerias da exposição temporária. A iluminação diurna e noturna está tanto quanto possível resolvida; algumas correções, naturalmente, há a fazer, o que se não fez agora, por carência de tempo, devido à demora da entrega da sala, para mais apurado estudo das determinadas condições de luz.

25.                                  Ooutro [sic] benefício decorrente é a interdependência das galerias de exposição e das demais salas da Escola, evitando-se assim, a perturbação dos trabalhos escolares, agora completamente separadas das salas franqueadas ao público.[24]

26.    Publicada cerca de um mês após a abertura da Exposição Geral de 1922, uma nova nota no mesmo Jornal do Commercio descrevia com mais detalhes as galerias que passaram a receber o “Salão”. A partir dela, é possível identificar, em uma planta do segundo pavimento da ENBA, de c. 1923, a área que, presumivelmente, passou a ser reservada às mostras anuais:

27.                                  - No pavimnto [sic] superior, circundando a área central foram construídas galerias para as exposições anuais, com iluminação zenital, sendo duas de 8 metros de largura por 23 metros de comprimento e perpendiculares à Avenida Rio Branco, duas medindo 8 metros de largura por 17 metros de comprimento e, nos encontros dessas quatro galerias, outras quatro medindo 8 metros por 8 metros. [Figura 8] [25]

28.    Embora a reforma do prédio da ENBA em 1922 tenha modificado o seu plano original, de modo a desgostar profundamente o próprio Morales de los Rios[26], ela parece ter realmente beneficiado as Exposições Gerais. Com efeito, a partir de então, as fotos dos “Salões” confirmam que o uso de biombos foi abolido e as obras passaram a se destacar sobre paredes de tom claro. Isso pode ser comprovado por alguns registros referentes às mostras de 1923 [Figura 9a, Figura 9b e Figura 9c][27], 1925 [Figura 10a , Figura 10b e Figura 10c][28], 1926 [Figura 11a , Figura 11b e Figura 11c][29], 1928 [Figura 12a , Figura 12b, Figura 12c, Figura 12d , Figura 12e e Figura 12f][30] e 1929 [Figura 13a, Figura 13b e Figura 13c][31]. Embora alguns desses registros evoquem o espaço expositivo abarrotado descrito por Heuberger na citação com a qual comecei o presente artigo, a meu ver é digno de nota que outros tantos revelem uma disposição de obras que se aproxima daquela apresentada na Exposição Alemã de 1931. Cabe sempre frisar que o relativo despojamento revelado por registros desse último gênero provavelmente se encontrava mais ou menos circunscrito a seções e áreas de destaque no conjunto das mostras.

29.    Outro tópico interessante a considerar é a organização das obras no espaço expositivo dos “Salões” cariocas. A esse respeito, a única generalização possível é a de que, durante todo o período aqui delimitado, não houve obediência a qualquer critério rígido de agrupamento ou de distribuição das peças. Fotos como a da Figura 6 indicam que envios de um mesmo artista costumavam ser pendurados próximos uns dos outros – por exemplo, é possível reconhecer, instaladas lado a lado, ao menos duas das três pinturas que Carlos Oswald então expunha: L'homme au manteu noir, n. 111 do catálogo, e Pierrot fatigué, n. 112. Isso não chegou, todavia, a constituir uma regra: algumas resenhas sugerem que os trabalhos de um artista podiam estar espalhados pelos diferentes espaços ou salas de uma mesma mostra. É o que se deduz, por exemplo, da referência de Gonzaga Duque às obras que Arthur Lucas expunha em 1906: “Mas, como o catálogo indicasse outro quadro do mesmo Lucas, sob o n. 7, procuramo-lo ansiosamente. está!”[32] Esse comentário faz lembrar, ainda, que as obras não costumavam ser acompanhadas de etiquetas com seus dados, como é comum nas instalações atuais, mas apenas do número de referência no catálogo: sem esse último nas mãos, mesmo um comentarista experimentado podia ficar em apuros na hora de identificar a autoria de uma determinada peça - situação reforçada nos casos em que não havia respeito pela integridade dos envios de um artista.

30.    Além disso, na maioria das edições realizadas durante a 1a. República, a divisão das Exposições Gerais por seções (pintura, escultura, arquitetura, etc.), que estruturava os catálogos, a segmentação do júri e até a forma usual como os críticos resenhavam as mostras, não foi acompanhada sistematicamente por uma divisão correspondente do espaço expositivo. Em grande medida, isso era resultado da já referida predominância numérica das obras da Seção de Pintura: ocupando quase todas as paredes disponíveis, esta funcionava como um verdadeiro “invólucro”, dentro do qual as outras seções eram alocadas. Uma relativa exceção diz respeito à Seção de Escultura: antes da remodelação de 1922, em certames pontuais, parece que ela foi instalada em um espaço independente, como no já referido caso de 1912 e, novamente, de 1913. Depois da remodelação, a autonomia dessa seção passaria a ser mais frequente.

31.    A ausência de uma divisão espacial explícita não significava, porém, que esforços não fossem feitos para individualizar perceptivamente seções embutidas no espaço de outras. Esse foi o caso, especialmente, da Seção de Artes Aplicadas: existem indícios de que, desde os primeiros “Salões”, peças de mobiliário como vitrines eram estrategicamente utilizadas para contornar a exiguidade de espaço, isolando as peças do seu entorno. Em 1895, por exemplo, achavam-se arrumadas “em duas vitrinas […] diversas obras de prata e metal, tais como serviços de chá e de mesa, charuteiras, cigarreiras, talheres, colheres de chá e de café, copos, vasos, etc., das formas as mais variadas e artísticas, e de diversos estilos,”[33] executadas pela Companhia Argentífera. Em 1906, “na mesma sala onde est[ava] a seção de escultura, a senhora Joanna Brandt, que já no ano passado apresentara trabalhos interessantíssimos de arte aplicada, t[inha] uma vitrina com belos trabalhos de couros e bordados.”[34] Uma fotografia mais tardia [Figura 14],[35] referente às obras que Theodoro Braga e sua esposa, Maria Braga, expuseram no “Salão” de 1927, mostra um grande cuidado e refinamento no arranjo do conjunto de peças, com o intuito de valorizar estas últimas: composto simetricamente em torno de uma coluna - estilização inspirada na palmeira amazônica -, o conjunto se expõe e se afirma ao olhar do espectador, através de uma ênfase na frontalidade, sublinhada pelos dois projetos de tapeçaria emoldurados que o ladeiam.

32.    Se não obedecia rigidamente a critérios como autoria ou diferença de técnica, não era incomum, em compensação, que a disposição das obras nas Exposições Gerias manifestasse uma hierarquia valorativa, que punha em destaque os trabalhos de artistas consagrados ou julgadas pelos organizadores esteticamente superiores. Já em 1896, essa prática, perceptível nas críticas a mais de um certame, foi acusada pelo articulista anônimo do Jornal do Commercio:

33.                                  Pela arrumação e arranjo dos quadros nos dois salões de que se compõe a Exposição, afigurar-se-nos [sic] que o próprio júri tratou de estabelecer uma seleção entre os trabalhos expostos, acumulando no primeiro salão os que lhe pareceram de mais valor artístico e desterrando para o segundo os que eram mais fracos.[36]

34.    À guisa de conclusão: embora seja impossível, no espaço aqui delimitado, esgotar o tema anunciado no título do presente artigo, creio que o que foi exposto basta para relativizar as ideias de que imperasse, nas Exposições Gerais, um “modo aleatório” de instalação, ou de uma ruptura nas práticas expositivas vigentes no Brasil, que ter-se-ia operado com o advento do nosso Modernismo. Creio, também, que fica sublinhada a importância potencial de estudos do gênero aqui esboçado, que - se estendidos a exposições coletivas de outra natureza, bem como a exposições individuais - podem revelar os diferenciados aspectos da circulação dos bens artísticos no Brasil republicano, especialmente como as instalações das mostras condicionavam a experiência - fenomenológica e social - de seus espectadores.

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* O presente artigo é uma versão ampliada da comunicação intitulada Instalação e Usos do Espaço nas Exposições Gerais de Belas Artes, 1894-1930, apresentada no XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte - Arte > Obra > Fluxos, realizado na cidade do Rio de Janeiro/RJ, entre 19 a 23 de outubro de 2010.

[1] VIEIRA, Lúcia Gouvêa. O Salão de 1931 - Marco da revelação da arte moderna em nível nacional. Rio de Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1984, p. 63.

[2] TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores paisagistas: São Paulo, 1890 a 1920. São Paulo: EDUSP, 2002, p. 60.

[3] LACOMBE, Marcelo S. Masset. Entre Elfos e Curupiras: Uma Exposição de Artistas Alemães em Homenagem ao Brasil. XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. Disponível em: <http://starline.dnsalias.com:8080/sbs/arquivos/28_5_2009_19_44_39..pdf >. Acesso 1. jul. 2010.

[4] “[...] masterpieces as wallpaper, each one not yet separated out and isolated in space like a throne. Disregarding the (to us) horrid concatenation of periods and styles, the demands made on the spectator by the hanging pass our understanding. Are you to hire stilts to rise to the ceiling or get on hands and knees to sniff anything below the dado? […] Larger paintings rise to the top (easier to see from a distance) and are sometimes tilted out from the wall to maintain the viewer’s plane: the 'best' pictures stay in the middle zone; small pictures drop to the bottom. The perfect hanging job is an ingenious mosaic of frames without a patch of wasted wall showing”. O’DOHERTY, Brian. Inside the white cube: the ideology of gallery space. Berkeley / Los Angeles / London: University of California Press, 1999, p. 16.

[5] Cf., por exemplo, WARD, Martha. Impressionist Installations and Private Exhibitions. The Art Bulletin, Vol. 73, No. 4 (Dec., 1991), p. 599-622

[6] EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O Paiz, Rio de Janeiro, 13 ago. 1924, p. 5 (cf. link); Belas Artes. O "vernissage" do salão de 1924 - Diversas notas. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 ago. 1924, p. 3 (cf. link); Belas Artes. A inauguração oficial do salão de 1924. O Jornal, Rio de Janeiro, 13 ago. 1924, p. 3 (cf. link).

[7] DÉCIMA SEGUNDA EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS-ARTES. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 10 set. 1905, p. 1 (cf. link).

[8] DUQUE, Gonzaga. O Salão de 1905. Kósmos, Rio de Janeiro, set. 1905, n/p.

[9] NOTAS DE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10 set. 1901, p. 3 (cf. link).

[10] MELLO JUNIOR, D. O edifício do Museu Nacional de Belas Artes. Boletim Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, mai. 1983-abr. 1984, n/p.

[11] NOTAS DE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 set. 1902, p. 3.

[12] DUQUE, op. cit.

[13] O Regimento da Exposições Gerais publicado em 1895 discriminava 7 seções: Pintura, Escultura, Gravuras de medalhas, Arquitetura, Gravura e Litografia, Xilografia, Artes aplicadas à industria.

[14] Levantamento realizado a partir dos dados fornecidos pelo pesquisador Carlos Roberto Maciel Levy em seu website: <http://www.artedata.com/crml/>.

[15] NOTAS DE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1910, p. 6.

[16] O "SALON" DE 1909. Fon-Fon!, Rio de Janeiro, n.37, set.1909, p. 22 (cf. link).

[17] Escola Nacional de Belas Artes - O Salão de 1912. Careta, Rio de Janeiro, n. 223, set. 1912, p. 12 (cf. link).

[18] G. de O. O SALÃO DE 1912. Rápidas impressões do Salão desse ano. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8 set. 1912, p. 1.

[19] Com relação à aversão pelos tons carregados nas paredes, Martha Ward cita, por exemplo, “the anonymous commentary of 1867 in La Vie parisienne that praised the English display at the Universal Exposition and noted with approval and envy the finer points of the presentation: the generous spacing of watercolors on neutrally tinted screens, the gentleness of the indirect lighting and the presence of neutrally colored carpets. By contrast, the color of the walls in the French exhibition reddened everything [...]” (WARD, op. cit., p. 601, grifos meus).

[20] Em valioso texto sobre as exposições em São Paulo entre 1895 e 1929, Ana Paula Nascimento precisou a esse respeito: “algumas das montagens caprichavam na ambientação, tingindo tecidos para forrar paredes, utilizando tapetes e plantas ornamentais ou efetuando reformas com o intuito de melhorar a iluminação e a aparência geral do lugar, tentando se aproximar, na medida do possível, de modelos de salas de exibição dos museus estrangeiros. É o que faz Antônio Parreiras na exposição que realiza nos fundos da Confeitaria Castelões, em julho de 1904: traz do Rio de Janeiro 'artísticos panos', para forrar e decorar as paredes da confeitaria. Ou ainda a reforma feita na Casa Mascarini para abrir a terceira mostra de arte espanhola organizada por Pinello Llul, em 1914, sendo o salão 'caprichosamente preparado, tendo sido muito bem dispostas as telas'. Pode ser citada também a organização do Salão da Casa Editora O Livro na rua Boa Vista, por ocasião da mostra de Túlio Mugnaini em 1919” (NASCIMENTO, Ana Paula. São Paulo: meio artístico e as exposições (1895-1929). In: VALLE, Arthur; DAZZI, Camila (org.). Oitocentos - Arte Brasileira do Império à República - Tomo 2. Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010 [no prelo]).

[21] XX Exposição de Belas artes. O Paiz, Rio de Janeiro, 4 set. 1913, p.5. A resenha se desenvolve na forma de um diálogo - presumivelmente fantasioso - entre Bolognese e sua amiga Gladys. A passagem que me interessa aqui, com a sua grafia mantida, é a seguinte:

- Qui a tu, ma petite amie?

- Rien; me conduis tu?

- Voir des tableaux.

- Je croyas que c'était dans une nécropole.

- Pourquoi; mon amie?

- Tu ne vais pas des cyprès?

- Ma mignone, les artistes sont des poêtes, des symbolistes; ils chantent avec Ugo Foscolo.

'All'ombra dei cypresgi e dentro l'urne confortate de pianto...'

Parce que ces vers symbolisent le nêan de tous leurs efforts, ils perdent tout espoir d'une vie heureuse par le travail: la vie aujourd'hui est un calvaire et l'artiste qui a fait placer les cyprès avait certainement des idées plus sombres que d'habitude.

- Et des tapis sont ils d'Orient?

- Il parait que si; c'est le representant du Bazar de l'Hotel de Ville qui nous l'affirmé...

[22] NOTAS DE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 ago. 1915, p.8.

[23] ESCOLA Nacional de Belas Artes. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 dez. 1922, p.3 (cf. link).

[24] EXPOSIÇÃO de Arte Retrospectiva e Contemporânea. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 14 nov. 1922, p. 4 (cf. link).

[25] ESCOLA Nacional de Belas Artes. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 13 dez. 1922, p. 3 (cf. link); a planta é reproduzida em ESCOLA NACIONAL DE BELLAS ARTES - CATALOGO GERAL DAS GALERIAS DE PINTURA E DE ESCULPTURA. Rio de janeiro: Empr. Ind. Editora “O Norte”, 1923. n/p.

[26] Assim Morales de los Rios Filho lembra da reação de seu pai: “Mas o seu desgosto não haveria de terminar, pois anos depois foi feita uma reforma e ampliação que deformou o projeto original. [...] Tudo isso foi realizado para criar umas galerias suplementares, destinadas às exposições gerais”. (apud MELLO JUNIOR, op. cit., n/p).

[27] BELAS ARTES. O "VERNISSAGE" DA EXPOSIÇÃO GERAL DESTE ANO. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 ago. 1923, p.3 (cf. link); ARTES E ARTISTAS. BELAS ARTES. O Paiz, Rio de Janeiro, 12 ago. 1923, p.8 (cf. link).

[28] BELAS-ARTES. O "vernissage" do salão deste ano - A inauguração oficial do certame dos artistas brasileiros. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 ago. 1925, p. 2 (cf. link); EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O "VERNISSAGE" DE ONTEM. O Paiz, Rio de Janeiro, 12 ago. 1925, p. 1 (cf. link); NA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. ABERTURA OFICIAL DO SALÃO DE 1925. O Paiz, Rio de Janeiro, 13 ago. 1925, p. 2 (cf. link).

[29] BELAS-ARTES. O "vernissage" da XXXIII Exposição Geral - Sua inauguração oficial hoje. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 ago. 1926, p. 3 (cf. link); A. C. BELAS ARTES. A INAUGURAÇÃO DO SALÃO OFICIAL DE 1926. O Jornal, Rio de Janeiro, 13 ago. 1926, p. 3 (cf. link).

[30] O Salão deste ano. Depois do “vernissage” de ontem, a inauguração de hoje. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 ago. 1928, p. 3 (cf. link); O Salão deste ano. Inaugurou-se domingo, à tarde, a XXXV Exposição anual de artes plásticas. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14 ago. 1928, p. 3 (cf. link); BELAS-ARTES. O “vernissage” da Exposição geral. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 12 ago. 1928, p. 3 (cf. link); EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O "VERNISSAGE" DE ONTEM. A INAUGURAÇÃO OFICIAL DO SALÃO BRASILEIRO. O Paiz, Rio de Janeiro, 12 ago. 1928, p. 1 (cf. link); EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O Paiz, Rio de Janeiro, 13-14 ago. 1928, p. 4 (cf. link).

[31] SALÃO DE BELAS ARTES DE 1929. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 ago. 1929, p. 3 (cf. link); O SALÃO DA E. N. DE BELAS ARTES. O Globo, Rio de Janeiro, 12 ago. 1929, p. 1 (cf. link); A XXXVI EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O Jornal, Rio de Janeiro, 13 ago. 1929, p. 5 (cf. link).

[32] DUQUE, Gonzaga. O Salão de 1906. Kósmos, Rio de Janeiro, out. 1906, n/p (grifo meu).

[33] NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 5 set. 1895, p.2 (cf. link).

[34] NOTAS DE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1906, p.3.

[35] Fotografia de Carlos Peruta, reproduzida em HERKENHOFF, Paulo. The Jungle in Brazilian Modern Design. The Journal of Decorative and Propaganda Arts, Vol. 21, Brazil Theme Issue. (1995), p. 246. Esse envio é discutido em: A XXXIV EXPOSIÇÃO GERAL DE BELAS ARTES. O Jornal, Rio de Janeiro, 12 ago. 1927, p.3 (cf. link).

[36] NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 6 set. 1896, p.3 (cf. link).