França Júnior: crônicas sobre arte no jornal O Paiz (1885-1887)

organização de Raquel Barroso Silva [1]

SILVA, Raquel Barroso (org.). França Júnior: crônicas sobre arte no jornal O Paiz (1885-1887). 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/francajr_paiz.htm>.

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Joaquim José da França Junior (1838-1890) iniciou-se nas belas artes após uma viajem a Paris onde fora correspondente do jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em ocasião da Exposição Universal, que ocorreu ao final do ano de 1878. Quando regressou ao Brasil começou a frequentar aulas particulares de pintura com o aquarelista alemão Benno Treidler e, pouco depois, matriculou-se na Academia Imperial de Belas Artes, como aluno amador, mesmo ano em que o bávaro Georg Grimm assumiu a cadeira de pintura de paisagem na instituição. Quando este decidiu se desligar da Academia, França Junior acompanhou-o, frequentando suas lições ao ar livre em Niterói (RJ). Em 1884 França Junior já havia desenvolvido razoavelmente sua técnica, e participou da 26ª Exposição Geral de Belas Artes no Rio de Janeiro com seis estudos do natural.

Como pintor paisagista e como crítico de arte, França Júnior contribuiu para os debates travados no meio artístico carioca, durante as duas últimas décadas do século XIX. A maior parte desta contribuição se deu através de suas crônicas publicadas no jornal O Paiz entre 1885 até 1890. Este período foi marcado pela intensificação dos conflitos de alunos que defendiam uma prática artística “moderna” em detrimento dos modelos neoclássicos e românticos ensinados na Academia. Não gratuitamente, a pintura de paisagem ganhou novo fôlego neste período, passando a representar, na opinião da crítica e do público “signo de brasilidade e modernidade”.[2]

A crônicas transcritas abaixo são as primeiras quatorze em que França Junior tratou de algum assunto relacionado a arte no período. A primeira é do ano de 1885 e a última de 1887. As crônicas publicadas entre os anos de 1888 a 1890 ainda estão em fase de transcrição. Aqui se encontram críticas, comentários e a descrição do trabalho de pintores como Hipólito Caron, Domingos Garcia y Vasquez, Rodolpho Bernardelli, Pinto Bandeira, Antonio Parreiras, Firmino Monteiro, Belmiro de Almeida, Décio Villares, Henrique Bernardelli, Castagneto, Francisco Gomes Ribeiro e George Grimm, entre outros. Artistas que estão entre os principais responsáveis pela renovação do meio artístico brasileiro no período. A defesa de uma educação artística para as belas artes no Brasil e a divulgação de salões, galerias e exposições também podem ser destacados nestas crônicas.

França Junior tomou para si a tarefa de contribuir para o “aprimoramento” da nação. O que significava para ele moralizar, modernizar e civilizar. Sua opinião, através de diferentes suportes, jornal, revistas, livros, tela ou palco, chegava a uma parcela ampla da sociedade da Corte e até mesmo de outras províncias. Contudo, sua paixão pelas belas artes, somada a constatação do pequeno espaço que elas ocupavam na sociedade brasileira fez com que esse ramo artístico ganhasse uma ênfase especial em sua obra.

A importância deste artista no contexto artístico do final do XIX está justamente no fato de não se restringir à pintura de quadros ou à escrita de crônicas, mas por reunir em si as duas funções. França Junior falava a partir de uma posição dúbia que estava entre a de observador e a de participante. Por isso suas colocações possuem a riqueza de detalhes que só é possível a quem tenha vivenciado tais acontecimentos e, ao mesmo tempo, o distanciamento crítico que por sua vez só é possível a um observador.

Somando-se a essa característica dúbia, que por si só já poderia demonstrar a relevância deste personagem na história da arte brasileira, França Junior ainda possuía outra qualidade. Era popular. Conhecido e admirado por um amplo público letrado e iletrado. Suas peças teatrais ocasionavam “noites de enchentes” nos teatros e seus folhetins eram tão populares que facilmente podemos encontrar na imprensa seus colegas fazendo referência a algum de seus artigos. Seu nome era citado na imprensa do período dispensando-se qualquer apresentação. Essa popularidade e essa familiaridade com o público dava a França Junior vantagem em relação a seus colegas pintores, pois as ideias defendidas por ele certamente não se restringiam ao pequeno círculo de artistas que participaram dos embates da virada do século.

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Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1885: p.2

A propósito de artes

É fora de dúvida que este país não ama as artes com o mesmo fervor e entusiasmo com que acompanha uma por uma todas as peripécias de um pleito eleitoral.

Diante do Moisés de Miguel Angelo, das telas de Rafael e do Dominiquino, da cúpula grandiosa de Bramante ou dos esplendores arquitetônicos do Parthenon, ele não sentirá o calafrio subir-lhe pela espinha dorsal, nem prorromperá em ruidosas exclamações como Lord Byron em frente dos destroços sublimes da velha Atenas, ou o lírico Chateaubriand contemplando as magnificências do Bósforo.

É natural.

O gosto e os sentimentos artísticos educam-se; e esta educação depende do meio, em que se vive.

Nos países civilizados da Europa o homem habitua-se desde criança a ver o belo nas suas múltiplas manifestações em tudo que o cerca.

Os edifícios públicos tem a linha severa e correta e uma ordem arquitetônica. Alguns, como por exemplo a Bourse e Paris, e a igreja da Madalena, fazem recordar a simplicidade inimitável do estilo grego. Outros impõem-se às multidões pelas grandes moles de mármore rendilhado e riquezas ornamentais sem número do estilo ogival. Outros adornam-se com as curvas graciosas do estilo bizantino. Outros finalmente são belos modelos que nos legou o Renascimento, ou o que de mais grandioso tem produzido a arte moderna.

Os jardins estão povoados de mármores e bronzes; estátuas inúmeras ornamentam os museus e as galerias públicas. Naqueles mármores e bronzes, naquelas estátuas a criança aprende a soletrar os nomes de Thorwaldsen, Canova, Sansovino, Benevenuto Cellini, Donato Barcaglia, Vela, Monteverde, Carpeaux e tantos outros.

Produções de grandes pintores antigos e modernos adornam as paredes e os tetos dos templos. O pincel e a palheta travam lutas incruentas e gloriosas nos torneios das exposições anuais.

Nos concertos ao ar livre popularizam-se as melodias dos mais afamados compositores.

Do que acabo de dizer conclui-se que o homem, ali, ao chegar à idade da razão, já tem a vista e o ouvido por tal forma educados, que não poderá jamais conservar-se indiferente diante de um objeto de arte.

A linha, a cor e o som têm para ele encantos indizíveis.

Olhemos agora para nós.

Os nossos edifícios públicos não têm ogivas, nem as curvas risonhas do estilo bizantino, e ainda menos a simplicidade grandiosa dos monumentos gregos.

Nos nossos jardins não figuram estátuas de mármore. O povo está habituado a ver apenas aos domingos os jacarés do Passeio Público e o - sou útil ainda brincando.

Poucos, bem poucos são os que conhecem de vista a Faceira, de Bernardelli, a Primeira Missa do Brasil, de Victor Meirelles, as paisagens do Motta, etc., etc.

Nos nossos templos há santos de pau, que não inspiram o respeito e a veneração de que são dignos os mártires gloriosos e sublimes do cristianismo.

Em compensação são iluminados a gás!

A prova eloquente de que o meio em que vivemos tem contribuído para o atraso da arquitetura, da pintura e da estatuária entre nós está no desenvolvimento progressivo do nosso gosto pela boa música.

Por que o Rio de Janeiro em peso idolatra a música?

Porque habituou-se desde infante a ir ouvindo as partituras das melhores óperas.

A Candiani embalou-lhe o berço com as melodias da Norma, de que os velhos ainda hoje se recordam com lágrimas de saudade.

Depois acompanhou os arroubos revolucionários de Verdi, aplaudindo a romper as luvas o Ernani, o Trovador, e a Traviata no salão do falecido Provisório.

Ouviu em seguida arrebatado as produções colossais de Meyerbeer.

A sua educação musical foi passando por diversas fases até chegar a de hoje, em que adora com místico fervor a música clássica!

É preciso, pois, que o nosso país seja na pintura, na estatuária e na arquitetura o que é na música.

Devemos aplaudir sinceramente todos os estímulos que concorrem para este fim.

Eis a razão porque venho hoje dizer algumas palavras acerca de um estabelecimento particular que muito poderá contribuir para o desenvolvimento da pintura e das artes plásticas entre nós.

Trata-se de uma sala, uma simples sala.

Os artistas aqui não tinham um lugar onde pudessem expor convenientemente os seus trabalhos.

As duas casas da rua do Ouvidor que se prestam a esse mister, não satisfazem as condições exigidas.

Faltam-lhes a luz e o espaço.

A luz é a vida dos quadros; um quadro sem luz é um pulmão sem ar.

Pois bem, essa lacuna acaba de ser preenchida pelo Sr. de Wilde.

Em sua loja de artigos de pintura e desenho à rua Sete de Setembro, n. 102, ele acaba de abrir um salão especial para exposições de obras de arte.

O salão é um quadrilongo, que ocupa parte do pavimento superior da casa.

A luz que o ilumina vem de cima e é modificada por um abat jour.

Ela distribui-se igualmente por todos os quadros ali expostos.

Um vizinho não terá o direito de queixar-se do outro, como aconteceu na última exposição da Academia das Belas Artes, em que algumas telas brilharam à custa do sacrifício de outras.

Vistosas armas indígenas e fayences ornam as paredes do recinto.

A mobília ressente-se desse boêmio artístico que tem hoje o cunho do bom tom.

A cadeira florentina figura ao lado da do Renascimento, a esta tem por companheiro o banco portátil do paisagista.

No salão do Sr. de Wilde, que está franqueada ao público, acham-se representados os Srs. Driendl na sua famosa tela Uma cena da Baviera, e George Grimm em seus severos estudos de pedras, e os Srs. Castagneto, Teixeira, Vasquez, Caron, Ribeiro, Peres, Villaça, e outros que honram a nossa moderna geração de artistas.

O nome de Castagneto brilha em várias marinhas.

Este pintor imprime em tudo quanto faz o cunho da sua individualidade. Nos seus quadros acabados, nos seus esboços, há um quê que revela aquele fogo do diabo, que é a partilha das grandes vocações.

Peres expõe a sua última produção - Um amador de gravuras - trabalho cheio de verdade e de sentimento, como tudo que sai de sua palheta.

Entre os quadros, ainda não conhecidos pelo público, figuram os últimos estudos de Teresópolis por Vasquez, Caron e Ribeiro.

Estes três artistas formados na única escola que deve ter o paisagista, que é o estudo severo e consciencioso do natural, progridem sempre. Vê-se nelas a natureza brasileira em toda a pujança de seu colorido vivo e brilhante e de suas linhas caprichosas.

Acha-se também ali representado um artista que pinta com a mesma espontaneidade com que atira sobre o interlocutor na conversa ditos cintilantes do mais fino espírito. Já vem que esse pródigo de tinta e de bom humor não pode ser outro senão Rouède, o marinista à la minute.

Os leitores, visitando o salão do Sr. de Wilde, travarão relações com essa boa gente.

O Rio de Janeiro deve frequentar constantemente aquele recinto artístico.

Uma coisa lucrará, afianço-lhe.

Quer saber o que é?

Não comprar oleografias.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - Folhetins, 1929: p.418 - (Publicado em O Paiz em 1885)

Caron e Vasquez

Partem para a Europa dois artistas - H. Caron e Vasquez.

Os que lêem dos jornais apenas a parte política e a crônica escandalosa, que não sabem que este país também pinta, canta e faz versos, embora em pequena escala, como os boêmios felizes de outras regiões mais adiantadas, perguntarão certamente:

- Quem são estes sujeitos?

Estes sujeitos são, primeiro que tudo, dois moços.

Estão na idade em que o homem sem reumatismo, sem catarros crônicos e sem ódios diz, cheio de esperanças:

- Hei de fazer isto. Farei aquilo...

Ainda não sabem dizer, como eu e algumas leitoras que criam sobrinhos:

- No meu tempo as coisas eram muito melhores.

- No meu tempo não havia tanta imoralidade.

- No meu tempo os filhos eram mais obedientes.

Conjugam os verbos apenas no presente no futuro.

Tem finalmente, diante de si, o mundo aberto como um vasto paraíso.

Além de moços, H. Caron e Vasquez cultivam uma arte, em que o coração abre-se ante os grandes espetáculos da natureza, como desabrocha as brisas matutinas o turibulo perfumado de cândido lírio.

São pintores e paisagistas.

Neste país, onde o céu é eternamente azul, onde o sol sempre brilhante doura as areias das praias e enverniza os verdes que sorriem em perene primavera; neste canto abençoado da terra, onde as montanhas se elevam em formas caprichosas, os vales povoam-se de flores, e cada trecho da natureza, por mais insignificante que seja, é um quadro, parece que devia haver mais paisagistas do que bicos de gás.

Não é assim, entretanto!

Realiza-se o anexim - em casa de ferreiro espeto de pau!

Na historia da paisagem, entre nós, brilha apenas até hoje um nome - Motta.

Infelizmente, porém, Motta não deixou discípulos.

A paisagem, em seu tempo, era um ramo desprezado.

A pintura histórica, com seus largos horizontes, com seus encantos irresistíveis, absorvia a atenção dos sedentos de glória.

O retrato, sob o ponto de vista financeiro, seduzia os sonhadores de notas do Tesouro, gente ajuizada que olha para o futuro e tem medo do hospital.

George Grimm realizou o que Motta não pôde fazer.

Ai estão quatro discípulos seus, Ribeiro, Vasquez, Caron e Parreiras.

A paisagem deve ser a reprodução fiel dos trechos da natureza.

Convicto desta grande verdade Grimm, nomeado professor da Academia das Belas Artes, logo no primeiro dia de aula disse aos discípulos naquela linguagem franca e rude que o caracteriza:

- Quem quer estuda vem comigo. Quem é vagabunda fica em casa. Eu não fica aqui. Atelier de paisagista está na meio da rua e na campo.

Os rapazes olharam uns para os outros:

- Eu não vou, disse um.

- Nem eu, disse outro.

- Com este sujeito.... ! observou o que se julgava mais perspicaz. Qual!

Caron, Vasquez e Ribeiro foram os únicos que não tiveram medo das grandes barbas do professor e disseram, cheios de fé e de esperanças:

- Nós vamos.

No dia seguinte estavam eles instalados com seus cavaletes de campo e bancos portáteis em um dos arrabaldes do Rio de Janeiro.

Tinham diante de si a natureza.

Os primeiros esforços foram titânicos.

Só podem avaliar os apuros em que o pobre artista se vê na reprodução do trecho o mais simples, uma nesga de céu, por exemplo, um pedaço de terreno, um canto de vegetação, aqueles que já manejaram o pincel em sérios estudos do natural.

Grimm ia vel-os três vezes por semana.

Os discípulos, apenas o avistavam, diziam, cheios de terror:

- Aí vem o bicho.

Grimm com a célebre bengala em forma de saca-rolha, as suas longas barbas de Huguenote, e um chapéu de feltro que tem corrido Sécca e Meca, olhava para o primeiro quadro, soltava uma gargalhada e dizia:

- Que é que você está pinta aí?

- É um muro, dizia o Vasquez, já meio desequilibrado no banquinho.

- Mura?! Oh! isto é tanto mura como anzol parece com garrafa.

- Mas, seu Grimm, eu vejo assim.

- Qual vê? Você lá sabe vê. Você está burra!

E, empunhando a palheta, manchava facilmente e com uma proficiência admirável o ponto questionado.

Em seguida borrava o resto da tela e levantava-se depois dizendo - desenha dentro.

Desenha dentro - era a sua frase predileta. O desenho para ele era tudo.

Se Ingres não tivesse dito já que o - desenho é a probidade da arte - Grimm poderia tirar brevet pela ideia.

Ia para o segundo discípulo, a mesma cena.

Com o terceiro, idem.

No entretanto, este homem rude, áspero, cheio de ângulos reentrantes e salientes como as pedreiras que ele tão admiravelmente sabe reproduzir, adorava os três discípulos, como o pai o mais extremoso adora os filhos.

O seu coração e a sua bolsa eram deles.

O seu maior desejo, a sua única preocupação era tê-los sempre junto de si.

E para conseguir esse desidrato disse um dia aos rapazes:

- Nós vai agora pinta em S. Domingos.

- Em S. Domingos! disse o Ribeiro, que era o mais pobre da roda. É impossível.

- Por quê?

- Porque não posso ir lá a pé.

- Eu também não tenho dinheiro para a barca, observou o Caron.

- Nem eu, disse o Vasquez.

- Eu já arracha tudo, diz Grimm. Vocês vão morá em uma casinha no - Boa Viagem - perto da minha.

E os três transportaram para o outro lado da baia toda a bagagem, isto é, três cavaletes, três caixas de tintas, três banquinhos e três chapéus de sol.

A casa em que se instalaram compunha-se de três peças: salão de recepção, um quarto de dormir e cozinha, sem contar o vestíbulo.

A mobília do salão consistia em um lavatório de ferro com vetusta bacia de pó de pedra, sobre a qual descansavam das fadigas sujos pincéis, e esparsos viam-se telas, châssis, um banco, portátil, dois caixões de velas e quatro bengalas.

Caron e Vasquez repousavam á noite, sem cuidados, em um velho colchão, que vomitava os intestinos de palha.

Ribeiro repousava na - Divina Providencia- único bem que possuía, além do cavalete, banco, etc., já citados.

As funções do ménage foram distribuídas do seguinte modo:

- A Ribeiro - a cozinha.

- A Vasquez - a limpeza da casa.

- A Caron - as compras.

Caron não sabia comprar; impingiam-lhe sempre gato por lebre.

Vasquez esquecia-se das suas obrigações regularmente sete vezes por semana. Tentou transformar o pequeno salão da republica em Ilha da Sapucaia.

Tal era o lixo que ali havia!

Mas todas as iras convergiam para o infeliz Ribeiro, o cozinheiro.

Diziam-lhe constantemente:

- Esta carne assada está detestável, não tem claro escuro.

- Este arroz está uma bota.

- E o molho deste peixe? Como está infame! Não tem transferência...

- Nem perspectiva aérea.

- Você hoje boiou muito com este feijão.

- As sardinhas têm um tom frio...

Todos os dias, invariavelmente, ás 6 horas da manhã, Grimm batia-lhes a porta:

- Acorda, cambada de vagabundas.

E os três sabiam para o trabalho.

E que trabalho!

O sol crestou-lhes as faces e as mãos.

Muitas vezes absorvidos pelo estudo, a maré que enchia os sitiava, e ei-los obrigados a voltar para a praia quase a nado, trazendo sobre a cabeça a tela e a caixa de tintas.

Suportaram chuvas, ventanias, mosquitos e até piolhos de galinha, como sucedeu ao Vasquez em seu belo estudo da praia da Boa Viagem.

O resultado de todas estas contrariedades, de todas estas privações e lutas ai está nas exposições, em que os nomes dos três moços figuram com tanta honra para eles, como orgulho para o digno mestre.

Caron, Vasquez e Ribeiro tinham um ideal, uma aspiração - ver o velho mundo.

Os dois primeiros vão realizar enfim esse sonho dourado.

Vão se rasgar ante eles novos horizontes.

Estudando a maneira dos grandes mestres, com os hábitos de trabalho que levam, tenho fé que dentro em breve serão dois grandes paisagistas.

Boa Viagem e até á volta, felizes peregrinos.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - Folhetins, 1929: p.555-558.

Rodolpho Bernardelli

Rodolpho Bernardelli é incontestavelmente a organização artística mais robusta, que tem possuído e possui o Brasil.

Quando, há oito anos pouco mais ou menos, ele daqui partiu, cheio de esperanças e sedento de glória, os que acompanhavam-lhe de perto os vôos arrojados, pressentiram logo a revolução, que se devia operar no seu espírito ao ver pela primeira vez as maravilhosas concepções da estatuária moderna.

Da escultura antiga o jovem artista conhecia já pouco mais ou menos os primores por algumas cópias em gesso da nossa Pinacoteca.

As estatuas gregas, porém, não satisfaziam ás aspirações de seu ideal.

Aqueles Antinoos, supinamente belos, mas de uma beleza traçada por leis severas e absolutas, as quais não podiam ser transgredidas, sob pena de excomunhão maior; aqueles Gladiadores com exuberantes musculaturas exalando o último suspiro em posições acadêmicas, as Vênus, os Apolos, os Bacos, as Dianas, os Faunos, tudo aquilo cheirava-lhe à convenção, à escola.

A sua natureza ardente de moço sentia-se mal naquela atmosfera.

Começava então a sonhar.

E nesses sonhos, como o Colombo entrevendo a América além do Atlântico, ele via também através do oceano o seu ideal.

Os instintos de artista levaram-o imediatamente para a Itália.

O que é a Itália na estatuária tivemos ocasião de observar em 1873, na Exposição de Viena de Áustria e na ultima Exposição Universal de Paris.

O nome de Monteverde por si só foi bastante para glorificá-la no suntuoso torneio artístico do Prater!

O famoso Pescador de Gemito e a graciosa Tufolina de Tabacchi foram os maiores sucessos do Trocadero!

Com uma plêiade brilhante de escultores, entre os quais figuram, além dos citados, Dorsi, Masini, Maccagnoni e Donato Barcaglia, a Itália, essa sublime revolucionária, transformou completamente as artes plásticas.

Que diferença entre os mármores modernos italianos e esses frios despojos da estatuária grega, que os museus conservam enegrecidos pela poeira dos tempos, como relíquias preciosas do passado!

Que linha divisória imensa entre a Rabeca ou a Cleópatra de Masini e a Messalina ou qualquer das Vênus do Museu Capitolino!

O que há de contato entre o Proximus Tuus de Dorsi e os Parasitas do mesmo escultor, que figuram atualmente no palácio real de Capo di Monte, e as maravilhas de Pompeia?!

Os gregos não cinzelavam homens, porém deuses.

As suas estatuas não reproduziam a humanidade, como realmente ela é, mas como devia ser.

A arte moderna, porém, que deve ter por divisa - só é belo o que é verdadeiro - não podia e nem lhe era licito estacionar, como uma pirâmide do Saara, nas velhas fantasias olímpicas.

Proclamou a revolução.

E dessa revolução saiu a escola a que está filiado Bernardelli, e que era o seu sonho.

O grandioso mármore representando - O Cristo e a Adúltera - atualmente em exposição na Academia das Belas Artes é a prova eloquente do quanto fica dito.

O artista assombra-nos, antes de tudo, pela verdade com que soube esculpir as duas figuras do grupo em todos os seus detalhes.

Contam que Miguel Angelo, todas as vezes que contemplava o famoso São Marcos de Donatello, dizia-lhe: - Marco, perché non mi parti?

Diante do Cristo de Bernardelli, o espectador sente igual impressão.

Dir-se-ia que aquela cabeça move-se na altitude de quem exprobra; que aquele peito respira, e que aqueles lábios descerram-se para proferir o tradicional sic vobis ... da Bíblia.

Ao esboçar o Divino Salvador naquela situação, o artista não se preocupou com o que haviam feito os seus predecessores.

A fronte de seu Cristo altiva e nobre nada tem de comum com a do Leonardo de Vinci no Cenacolo.

Não se inspirou na cabeça do Cristo de Van-Dick.

E ainda menos serviu-lhe de modelo o moderno Nazareno de Munkasy.

O seu Cristo representa o verdadeiro tipo da beleza hebraica.

Vê-se que, quando o artista talhava o enorme bloco de mármore, a seu lado estava um modelo humano.

Nele estudou a carne que palpita e dobra por dobra as roupas que a envolviam.

Rodolpho Bernardelli, acompanhando conscienciosamente os progressos da escultura, veio mostrar aos que ainda o não sabiam, o quanto pode o escopro manejado pelo gênio.

A túnica de Cristo e o panejamento da mulher são admiráveis!

Vê-se ali o tecido e a cor!

A figura da adúltera simboliza na expressão da face, irrepreensivelmente modelada, o arrependimento, o pudor e o susto.

Com os cabelos em desalinho, ela apoia a cabeça em uma das mãos, enquanto com a outra procura conchegar as roupas transparentes ao corpo seminu.

As mãos e os pés desta figura, bem como os do Cristo, foram conscienciosamente estudados.

Observam-se uma por uma as veias desenhadas sob o tecido da epiderme.

Como composição a obra prima pela beleza e harmonia das linhas.

O grupo de Bernardelli, em suma, é um mármore que nos glorifica.

Si a França, pródiga de talentos, conta entre os seus eleitos Mercié, Dubois e Chapu; si a Alemanha se orgulha com as concepções de Begas e Herter; si a Itália e a Espanha possuem escopros inspirados, nós podemos dizer também com desvanecimento:

- Temos um escultor.

E ter um escultor já é alguma coisa para um país que conta apenas meio século de existência

Parabéns ao Brasil.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - Folhetins, 1929: p.517-520 - (Publicado em O Paiz em 1885)

O Salão Haritoff

O inverno em todos os países civilizados é a estação consagrada às festas, aos teatros, às recepções íntimas, aos grandes bailes, ao burburinho, enfim, da gente elegante, contra a qual tanto vociferam os pseudo-sérios ou antes os invejosos.

O Rio de Janeiro tem também o seu inverno.

Não quero dizer com isto que os nossos termômetros marquem vinte graus centígrados abaixo de zero; que o Pão de Açúcar e o Corcovado gelem como qualquer montanha vulgar da Suíça; que os fluminenses, desesperados por não poderem acender o sol, vejam-se obrigados, como os londrinos, a acender os lampiões ao meio-dia; que se patine na pitoresca enseada de Botafogo; e que cada um de nós tenha necessidade indeclinável de ingerir camadas de azeite como qualquer samoieda.

O nosso inverno não passa de uma figura de retórica.

Temos esta estação do mesmo modo que o partido liberal tem um programa - apenas para constar.

Os termômetros marcam cifra pouco inferior, e às vezes igual, a dos dias calmosos.

As andorinhas não emigram para outros climas,

As cigarras continuam a desfazer-se em saudosos treinos nos troncos carcomidos das vetustas mangueiras.

O arvoredo não perde as suas folhas.

O leque é uma necessidade.

E o sobretudo um objeto de luxo.

Europeus de origem e seguidores das boas práticas do velho mundo, fomos obrigados a adotar uma quadra, uma época, uma estação ou coisa que melhor nome tenha, para anunciar ao high life.

Está aberta a vida elegante.

É esta quadra que, por convenção chamamos - inverno.

Entre as festas do ano que corre, incontestavelmente mais numerosas que as dos anteriores, destacaram-se as recepções de Mme. Haritoff.

Foram quatro partidas, quatro partidas apenas, tendo por epílogo um grande baile.

Aquelas partidas, porém, e aquele baile deixaram tão vivas recordações na sociedade elegante do Rio de Janeiro, que é um dever da imprensa registrá-los.

Os salões de Mme. Haritoff primam pelo luxo aliado ao bom gosto.

O indivíduo observador e de fino tacto, que entra pela primeira vez em tão bela casa, reconhece logo que à concepção e ao arranjo dela presidiu um temperamento artístico do mais subido quilate.

Não se vê ali esse luxo pesado e incômodo, que obriga-nos, como bom burguês; a exclamar cheio de admiração:

- Isto deveria ter custado muito caro!!

É um luxo fino, esquisito, delicado; um luxo que representa o conforto, porque é, sobretudo, essencialmente prático.

Naquelas salas deslumbrantes, onde cada objeto é um primor de arte e tem a sua histária, não se vê um móvel, que pareça dizer com ar de censura aos convivas:

- Não me toques. Não sabes que eu estou aqui apenas para ser visto? Admira-me lá, de longe, si te apraz olhar para mim. Queres-te sentar? Queres um encosto? Vai bater a outra porta; não faltam por aí chatas cadeiras de palhinha e mesas vulgares, feitas expressamente para isso.

Os divãs, as otomanas e as espaçosas cadeiras de braços, forrados de ricos estofos de Esmirna e custosas sedas do Oriente, convidam os visitantes às doçuras da linha quase horizontal, uma linha cômoda para ver e sonhar.

E ali vê-se e sonha-se, pois cada objeto representa uma época, um lugar, uma tradição artística, e obriga o espírito às mais agradáveis divagações.

Não foi só gastando dinheiro, como um burguês vulgar, que o Sr. Haritoff construiu o delicado ninho.

Este representa alguma coisa mais - a pesquisa, a paciência e o trabalho de uma vida inteira.

Aquele primoroso lustre de Saxe que orna o salão de baile; aquelas lâmpadas de cristal e de bronze, das quais se irradia uma luz suave, coada pelos abat-jours cor de rosa; aqueles painéis do Japão com desenhos bizarros e extravagantes, que cobrem as paredes e os móveis; os ricos tapetes do vestíbulo e do salão do fundo, onde os bárbaros vão fumar nas noites de recepção; os espelhos; os vasos de malaquita; as estatuetas de mármore e bronze; tudo, em suma, desde o mais rico objeto até o mais pequeno [sic] bibelot, simboliza uma conquista feita pelo Sr. Haritoff em seu longo peregrinar pelo mundo.

Esta verdade ainda mais palpitante se torna diante da rica galeria de quadros, que pendem das paredes e ornam os cavaletes.

Desta destacarei:

O retrato de Mme. Haritoff. É uma tela esplendida, devida ao pincel do celebre Richter, o pintor berlinense, sobre cuja sepultura ainda fresca a Alemanha se debruça saudosa. Não se sabe o que mais admirar em tão precioso quadro, se a beleza da composição, se a suavidade e transparência do colorido, se a maneira franca e enérgica por que foi pintado.

Dois originais de Temer, onde o mestre flamengo se revela em toda a pureza de desenho e palheta.

Uma paisagem de Allongé, cujas fusains gozam de merecida reputação em todo o mundo civilizado.

Um quadrinho de Calame.

Outro de Palizze.

Outro...

Seria longo, por demais longo, neste ligeiro artigo tentar descrever uma por uma todas as produções de mestres antigos e modernos e todas as curiosidades colecionadas pelo Sr. Haritoff em seus salões.

Imaginem agora o que deverá ser uma partida, um baile, nesse foco de requintado bom gosto.

Imaginem mais que a dona da casa é a encarnação da amabilidade; que tem sempre um sorriso, uma frase lisonjeira para dirigir a todos os seus convidados, entre os quais não faz distinção, e que está perfeitamente afinada com o luxo que a cerca.

Eis por que ali conversa-se e sobretudo dança-se com a maior animação.

O cotilon do último baile, sobretudo, ficou gravado em letras indeléveis nos anais da nossa vida fashionable.

Dirigiu-o um dos mais distintos representantes da diplomacia estrangeira, o Sr. Conde de Rex, digno secretario da legação alemã.

Consagrando os - Ecos Fluminenses - de hoje ao Salão Haritoff, cumprimos um grato dever de cronista.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 08 de novembro de 1886: p.2.

Henrique Bernardelli

Henrique Bernardelli possui três grandes qualidades, que raramente encontram-se unidas: - é moço, tem talento e estuda.

Para convencermo-nos disto basta lançar uma vista rápida sobre as suas últimas produções, expostas na Imprensa Nacional.

Das telas deste artista desprende-se inebriante o suave perfume dos 20 anos.

Ele pinta como sente, despreocupado de convencionalismos de escola e das severas prescrições acadêmicas.

A sua escola, a sua academia é o grande livro da natureza, este livro que deve ser a Bíblia do artista moderno.

Desde que daqui partiu, Henrique Bernardelli tem-lhe folheado com ardor as páginas variadas.

Metido em fortes sapatões e grossas meias de lã, com um grande chapéu de feltro desabado, tendo por complemento de vestuário a blusa tradicional da classe e uma camisa de flanela, o jovem pintor viaja toda a Itália, instalando se, com seu cavalete de campo, a sua caixa de tintas, o bojudo guarda sol de linho e o banco portátil, ora nas grandes cidades, ora nas povoações, ora nos lugarejos, em todos os sítios, enfim onde há um estudo a fazer, uma nota a tomar, ou onde a linha e o colorido inspiram o pensamento de um grande quadro.

Como são felizes esses romeiros da arte!

A natureza não lhes passa a correr através das janelas de um vagão, como acontece a nós burgueses que viajamos comodamente sentados.

Eles a contemplam de perto, face a face, surpreendem-lhe uma por uma as belezas as mais recônditas, decoram-lhe as formas, aspiram-lhe os perfumes.

É para eles que o horizonte se tinge à tarde de brilhante púrpura; que os raios de sol iluminam as grandes massas do arvoredo; que as montanhas ao longe se azulam; que as manhãs são cor de rosa; e que as sombras da noite descem sobre a terra ungidas de suave e misteriosa poesia.

Cada quadro de Henrique Bernardelli é um estudo do que ele viu e observou, ou antes, para servir-me de uma frase muito usada pelos modernos críticos de arte - é uma janela aberta para a natureza.

Quem já uma vez viu o céu italiano e sobretudo o do sul da península, facilmente o reconhecerá no azul carregado de algumas daquelas telas.

Quanta estranheza não causaria na Europa o quadro consciencioso dos nossos pintores naturalistas, se a educação artística não fosse ali tão adiantada!

Nesta luta constante, por assim dizer, que o artista deve travar corpo a corpo com a natureza, não para estudá-la tão somente em suas linhas, mas para surpreendê-la, na vida que a agita, está o único programa da arte moderna.

Eis por que os quadros de Henrique Bernardelli encantam e seduzem.

Ele pinta a paisagem como a vê, como a sente através de seu temperamento.

Não há ali artifícios de tons para afastar os últimos planos dos primeiros. Se os seus quadros algumas vezes parecem achatar-se aos olhos do espectador profano, a culpa não vem do intérprete, mas da má educação artística de quem vê.

Não há mais nada mais fácil do que dar relevo a um quadro por meio de combinações mais ou menos engenhosas de claro e escuro.

O artista, porém, que faz erratas à natureza, que a modifica, que tem a tola perfeição de torná-la mãos bela do que é, é indigno de tal nome.

Hoje que a arte segue a mesma evolução, que vão tendo as ciências, a probidade deve ser a principal virtude tanto do que pinta, como daquele que expõe uma verdade.

Henrique Bernardelli possui em grande dose aquela virtude.

Os seus trechos da ilha de Capri, o ponto predileto dos paisagistas europeus, são palpitantes de verdade.

Aqueles muros cor de oca mordidos pelos raios ardentes do sol; as sombras frias do chão a refletirem os tons azulados do céu; as oliveiras destacando-se sombrias no horizonte iluminado pelo sol poente; o mar cor de turquesa; as areias brilhante da praia...como tudo aquilo tem o perfume local!

A exposição do jovem pintor compõe-se de paisagens, figuras, animais e flores.

Houve tempo em que os artistas votavam a tudo que não fosse o homem o mais soberano desprezo.

Nesse tempo, entretanto, a arte tinha chegado ao seu maior apogeu!

Os cultores dela chamavam-se Miguel Angelo, Raphael, Leonardo da Vinci, que seguiram, com raras exceções, a trilha dos gregos, apagada durante os largos anos do período bizantino.

Um Tiziano expôs [?] - Martírio de S. Pedro.

Foi a aurora da paisagem, que mais tarde desligou-se da tutela do quadro histórico com Nicoláo Panssin [sic], Salvador Rosa e Claude Lorrain.

De então para cá os senhores da palheta começaram a dividir-se e a subdividir-se em especialidades.

Uns pintam o homem, outros entregam-se ao estudo de animais, outros extasiam-se na contemplação das flores...

E dos que estudam o homem, uns há, como Lebrichon, que preferem as crianças no primeiro período da infância, outros que só reproduzem as formas da mulher, bem como entre os pintores de animais há uns que se dedicam ás galinhas, outros aos carneiros e aos cavalos, etc, etc.

O Pintor moderno, porém, não deve ter especialidades.

Tudo é objeto de estudo no mundo real, desde o homem até o mais insignificante objeto inanimado.

Pintando ao ar livre, à luz do sol, ele há de reproduzir a natureza em suas múltiplas manifestações.

E Henrique Bernardelli é um artista moderno, no vigor do termo.

Dai a variedade de sua exposição.

O Brasil tem tudo a esperar deste eleito da palheta, sobretudo se ele continuar a trabalhar com o mesmo ardor com que tem lutado até agora.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - Folhetins, 1926 p.611. (Publicado em O Paiz em 1886)

Nós

Os países são como os homens.

Têm inclinações, tendências de espírito, às quais obedecem cegamente, em virtude de seu temperamento.

E é por isso que a Itália vive incessantemente em plena idade de ouro.

As liras de seus poetas, por maiores que sejam as desventuras da pátria, não emudecem como os alaridos dos antigos cantores do Sinai.

O engenho de Monteverde e o escopro de Dorsi revolucionam a estatuária, desvendando a estrada luminosa da verdadeira arte.

As glórias de Raphael e do Tiziano perduram ainda na palheta de Morelli e de tantos outros luzeiros do presente.

Na música basta citar um nome, um nome só, que concretiza um século - Verdi!

O italiano, por mais baixa que seja a sua condição social, adora a arte.

Um dia, na ilha de Capri, tive a satisfação de testemunhar esta verdade.

Naquele pitoresco siíio, onde o famoso Tibério, si vera est fama, entregou-se aos maiores deboches, vão os paisagistas entregar-se atualmente aos estudos da natureza. Ali armam seus cavaletes de campo e trabalham dias consecutivos, meses e anos, cercados de garotos e dos touristes, que vão visitar a célebre - Gruta Azul.

Em cada um daqueles garotos, já pela maneira por que olhavam, já pelas judiciosas observações que faziam acerca dos detalhes do quadro, eu via a alma de um artista!

- Como é belo, dizia um.

- Está muito bonito, exclamava outro, esfregando as mãos com visível contentamento.

- Olha aquela montanha, lá, é muito parecida. Está tal qual!

Si o pintor precisava de um modelo, de um petit bon-homme para animar a paisagem, gritavam todos:

- Vou eu, vou eu.

Aqui no Rio de Janeiro já tive ocasião de verificar também a verdade, que enunciei, encontrando no largo de S. Francisco de Paula, não um Giotto, mas um mísero engraxate sem nome que, sentado no seu banquinho, desenhava sobre a caixa em uma folha de papel almaço as duas torres da igreja.

Estava ali, talvez, quem sabe, a semente de um Canalleto!

As considerações que acabo de fazer, têm por origem a notícia que li em um jornal italiano, acerca do - Palácio Borghese.

Os leitores, que já viajaram pela Itália, sabem que este palácio é um dos mais belos de Roma.

Achava-se desde muitos anos franqueado ao público, com suas 96 colunas de granito dóricas no pavimento térreo e coríntias, no andar superior, com as suas estátuas colossais de Julia, de Sabina, de Ceres e de Apollo, e uma rica galeria de pintura, sobressaindo nela um - César Borgia -, atribuído a Raphael; a - Sibila de Cumas - e a célebre - Cassa de Diana - de Dominiquino, e o - Amor Sagrado e Profano - do Tiziano.

O público de Roma e os touristes estavam habituados a ir ali admirar em certos dias da semana as obras dos grandes mestres.

As salas do pavimento superior e o pátio achavam-se constantemente repletos de ingleses, acompanhados dos respectivos Ciceroni, que a propósito de cada quadro e de cada estátua contavam-lhes longas historias.

Pois bem; o príncipe Borghese entendeu que devia mandar fechar o Palácio.

E de fato fechou-o.

- Podia fazê-lo, dirá o leitor.

Em todos os países civilizados há uma constituição ou coisa que melhor nome tenha, que garante o direito de propriedade em toda a sua plenitude.

A Câmara Municipal de Roma, porém, não compreendeu a coisa do mesmo modo.

Intentou uma demanda contra o poderoso proprietário, e...

E não é que o poder judiciário mandou abrir o Palácio?

Lá está, pois, o Borghese com todas as suas preciosidades artísticas de novo franqueado ao público.

Os tribunais acharam justíssima a reclamação da municipalidade.

O público italiano e os viajantes que procuram a Itália para se instruírem e educarem o gosto em coisas da arte, já tinham firmado pelos usos e costumes como que um direito a visitar aquela galeria particular.

Ela estava nas mesmas condições dos museus e estabelecimentos públicos.

Fechá-la fora cometer um atentado.

A reabertura do Palácio Borghese, pois, é uma conquista da civilização, sancionada pela justiça.

Vejamos agora o que se passa entre nós.

O Rio de Janeiro possui uma Academia Imperial de Balas Artes.

Nesta, se não existem em grande quantidade originais dos famosos mestres antigos e modernos, encontram-se todavia alguns quadros dignos de nota.

O público, frequentando-a, poderia formar e educar o gosto pelo belo.

Para isso, porém, fora preciso que a tal Academia não se conservasse constantemente fechada como o cofre de um usurário.

Por que não abre ela as suas portas ao público todos os dias ou pelo menos duas ou três vezes por semana?

Por que, para ver ali obras d'arte, torna-se necessário um empenho ou uma recomendação para os distintos funcionários, que dirigem o estabelecimento.

Há muitos provincianos, tendo aliás já estado nesta capital, que conhecem apenas por tradição o famoso grupo de Bernardelli, a Primeira Missa de Victor Meirelles, as obras de Pedro Américo e outras produções antigas e modernas de artistas nossos, que só são vistas durante as exposições.

Por que estas exposições, além de raras, duram tão pouco?

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Não sei.

Os países são como os homens.

Têm inclinações e tendências de espírito, as quais obedecem cegamente em virtude de seu temperamento.

Nós somos essencialmente... indiferentes.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Flumineses - Folhetins, 1926: p.629 - (Publicado em O Paiz em 1886)

O Desenho

A arte do desenho é uma necessidade indeclinável nos países civilizados.

A ignorância dela põe muitas vezes em dificuldades o homem, qualquer que seja a posição social que ocupe.

O discurso o mais persuasivo há de infalivelmente em certas ocasiões, ceder o cetro ao lápis.

Com o poder mágico da palavra movem-se afetos, excitam-se paixões, arrasta-se a convicção.

Exigir, porém, da palavra a descrição da forma de um objeto, ainda o mais simples, é metê-la em torturas.

Lá vem a perífrase, o circunlóquio; ao passo que o lápis, com alguns rabiscos apenas, tudo explica, tudo mostra.

Do mesmo modo há momentos em que a pena que descreve vale menos que a que traça.

Dizia Henrique Heine - que há certas coisas que não se podem definir.

Se nos perguntarem, por exemplo, o que é uma cacetada, a resposta é difícil.

Deem-nos, porém, um cacete, ponham-nos em frente o lombo do próximo ou coisa que o valha e a definição será facílima e rápida.

A arte do desenho, pois, é uma necessidade.

O pedreiro, o carpinteiro, o sapateiro, o mádico, o advogado, todas as classes sociais dela precisam para a consecução completa de seus fins.

Entretanto, no Brasil, infelizmente, assim não se pensa.

Os governos têm olhado para este importante ramo de educação nacional com a mais criminosa indiferença

Exigem-se atestados, habilitações, concursos dos que se propõem a ensinar qualquer disciplina.

Nada se exige, porém, daqueles que nos ensinam o desenho.

Daí esses aleijões, essas criações informes que observamos a cada passo nos nossos edifícios, e o estado em que se acham muitas indústrias brasileiras algumas das quais têm prosperado unicamente por um milagroso esforço de iniciativa individual.

Daí essas exposições de alunos e principalmente de alunas de colégios, exposições de que as vitrines da rua do Ouvidor são constante teatro e que confirmam brilhantemente o que Ingres dizia: o desenho é a probidade da arte.

Basta olhar para aquelas paisagens moles, balidas a esfuminho, detestáveis cópias de mal colhidos originais; para aquelas flores de colorido vivo e brilhante, cujas pétalas têm a dureza da pedra e a transparência de uma sola de botina inglesa, pseudo aquarelas servilmente copiadas de qualquer caixa de lenços, ou de algum rótulo de peça de morim; basta contemplar por alguns momentos todos esses produtos com que os professores exibem, o nome e responsabilidade dos discípulos, os mais valiosos atestados da incapacidade própria, para que a gente se convença de que as artes, entre nós, vão por caminho muito diverso daquele por onde deveriam seguir.

Se a responsabilidade pesa em parte sobre os governos, que não têm sabido dirigir os nossos destinos, em escala muito maior deve recair sobre os pais de família, a quem compete a imediata fiscalização de tudo o que concerne ao bem estar e educação dos seus.

Os nossos homens de estado, ocupados com o estudo das grandes questões sociais, absorvidos por intrincados problemas, de cuja pronta solução depende a felicidade do país, não podem nem têm tempo de descer a míseras questiúnculas, como a de que neste momento me ocupo.

Além destes há alguns entre eles que, já por natureza, já pelo meio em que vivem, olham para um bom quadro e ouvem excelentes trechos de música com a mesma indiferença com que eu olho para o telhado do vizinho, ou ouço uma marimba!

Quanto aos pais de família, o amor cega-os por tal forma que as obras das filhas são para eles sempre maravilhosas.

Eu próprio, que estou aqui a escrever estas coisas, se tivesse um filho, com que prazer não mostraria aos amigos todos os rabiscos que ele fizesse!

- Olhem, vejam, diria, radiante de contentamento, admirem o talento do meu Juquinha. E a facilidade com que ele faz isto! O ladrãozinho pega no lápis, zás trás, traça uma figurinha perfeita. Ontem tirou o retrato do criado tal e qual. Vou dar-lhe um professor de desenho.

E no dia em que o Juquinha apresentasse-me a sua primeira obra, vista e correta pelo mestre, chorando de prazer, eu mandaria pôr-lhe custosa moldura, e pendurá-la-ia no lugar mais saliente da sala.

Todas as visitas haviam de dar-me a sua opinião.

E ai daquela que falasse contra o chef d’oeuvre e o professor!

Não censuro, pois, os pais.

Fazem muito bem em conservar como lembranças preciosas de família todas essas flores, casinhas, bonecos, que fazem as filhas.

Atrevo-me, porém, a dar-lhes, um conselho:

Tratem de educar o mais possível o gosto, a fim de serem mais escrupulosos na escolha dos professores.

Não basta que qualquer sujeito anuncie pelos jornais que dá lições de desenho para que esteja no caso de conhecer aquele importante ramo das artes gráficas.

O desenho não é simples brinquedo, nem mero passatempo; é uma necessidade.

Há anos apareceu nesta capital um médico estrangeiro, cuja reputação foi devida em grande parte à maneira fácil e rápida porque, nas conferências, traçava na pedra os objetos que pretendia demonstrar.

Os nossos médicos começaram então a ver que na sua educação profissional havia uma lacuna.

A cada passo e a cada momento todas as profissões e indústrias sentem a mesma coisa.

Lancem, pois, os governos e pais de família as suas vistas para o que fica dito.

Todo o homem tem obrigação de ler, escrever, contar e desenhar.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 01 de junho de 1886: p.2

O Paisagista Parreiras

Já lá vão três para quatro anos.

Como corre veloz o tempo, sobretudo quando se tem dobrado o cabo tempestuoso dos quarenta, e a gente começa a navegar pelos mares da vida sempre com o vento pela proa!

A rua Taylor, em sua simplicidade primitiva, ainda em mato, não sonhava a elegante casaria e os lindos chalets, que hoje a adornam.

O capim crescia abundante e rico de seiva à margem da estrada.

A luz do sol envernizava a alfombra de folhas secas sobre a qual os floridos cajueiros espreguiçavam-se em caprichosas curvas.

As embaúbas com suas largas folhas prateadas, as mangueiras que se alinhavam pelo caminho alastrando-o de sombra, os verdes leques dos coqueiros a recortarem no horizonte o azul do céu, um trecho de mar ao longe limitado por a diáfana cordilheira davam aquele sitio encantos indizíveis!

Era ali que quatro rapazes passavam o santo dia a trabalhar.

Esse trabalho não consistia em quebrar pedras, carregar barro, revolver o solo com uma enxada... em regar enfim a terra com o suor do rosto.

O esforço muscular que faziam era insignificantíssimo.

Eles pintavam.

Na opinião de muita gente boa isto e não fazer nada vem a ser uma e a mesma coisa.

A história desses rapazes, com exceção de um deles, resume-se no seguinte:

Eram discípulos da nossa Academia de Belas Artes.

Ali preparavam-se para as lutas da carreira que deviam seguir, quando um largo horizonte abriu-se para a aula de paisagem, condenada, pode-se dizer, quase ao esquecimento, pela maneira improfícua por que era dirigido o ensino.

A missão dos alunos, ainda os mais, adiantados, era copiar, copiar servilmente cópias.

Alguém soprou talvez ao ouvido do governo, o qual felizmente nem sempre é surdo, que era conveniente chamar para dirigir aquela aula um alemão, cujos quadros haviam atraído a atenção de alguns artistas pela impecabilidade do desenho e sobretudo pela exata observação da nossa natureza.

Foi contratado o alemão.

Entrando pela academia, o novo professor com as suas longas barbas de huguenote, o seu largo chapéu de feltro e a sua bengala retorcida como o poder executivo de um janota do diretório, disse, carregando o sobrolho, no melhor português que pôde arranjar, ao rapazio que ali se achava:

- Quem quer trapalha comigo vem b’ra fora. Atelier de baisagista está no meio de rua. Eu não sabe ensina de outro modo. Quem não quer trapalha vai b’ra diapo que carregue.

Os alunos olharam uns para os outros e disseram:

- Isto não é homem, é um bicho!

Um deles, de cara angulosa, nariz adunco, olhos esverdeados, cabelos em desalinho, saltando para o meio da sala, a cortar o espaço com acionados bruscos, disse com ar resoluto:

- Eu não vou, pílulas! Acompanhar este sujeito está se ninando, pílulas! Ora pílulas!

E muitos acrescentaram:

- Nem eu.

- Nem eu.

- Nem eu tampouco.

- Comigo também não contem.

- Isto não me cheira.

Estava formada a greve.

Os leitores já reconheceram no papel de cabeça de motim o inteligente Castagneto, o nosso festejado pintor de marinhas, cujo tipo e linguagem são tão originais como a sua palheta.

George Grimm, o novo professor que assim falava, levou apenas consigo três discípulos - Caron, Vasquez e Ribeiro.

Estes três, porém, foram bastantes para que se reconhecesse logo nos primeiros tempos o quanto era verdadeiro e profícuo o seu método de ensino.

De todos os paisagistas que temos tido, Grimm foi o único que formou escola.

Motta, o artista brasileiro que com tanto sentimento soube interpretar a nossa natureza, não nos legou um só discípulo!

Vinet, cujas paisagens são disputadas hoje pelos bons amadores, morreu sem deixar um representante de seu estilo poético e ao mesmo tempo tão verdadeiro!

A Caron e Vasquez, que aperfeiçoam-se atualmente na Europa, e Ribeiro, que o público acaba de aplaudir em sua última exposição no salão De Wilde, veio juntar-se nos estudos da rua Taylor mais um discípulo - Parreiras.

O público, por mais de uma vez tem apreciado os trabalhos deste novel paisagista.

A imprensa já o alistou no rol de seus queridos.

A atual exposição, porém, em casa do Sr. Insley Pacheco, é a maior e a mais notável que tem feito Parreiras.

Nela o artista revelou que trabalha e que progride.

A sua maior tela, representando parte do antigo palácio imperial da raiz da serra em Petrópolis, é um estudo sério e consciencioso da natureza. A perspectiva do casarão em ruínas, as montanhas que se esbatem ao longe no campo iluminado do firmamento, o arvoredo que recorta o céu, e, sobretudo, a vasta toalha de grama do primeiro plano cuidadosamente observado, dizem brilhantemente que do pincel do artista muito se deve esperar ainda, se ele não esmorecer em meio da viagem, ou se não andar para trás, como tem acontecido infelizmente a muitos.

Não menos importante é um estudo d’água, sobre a qual espelham-se moitas de uma vegetação quente, tendo no plano principal uma barreira, cujos tons pecam todavia por excessiva frieza.

Ao lado deste quadro há um outro que agrada-me pela maneira singela por que é pintado.

As duas telas, representando trechos de Angra dos Reis, não estão na altura dos outros trabalhos. São frias e amaneiradas. Vê-se que nelas, assim como em algumas outras, o artista teve a preocupação de fazer bonito, de agradar o público ignorante, artisticamente mal educado.

Quem, como o Sr. Parreiras, trabalha sempre ao ar livre em frente da natureza, mostrando assim ser digno discípulo do mestre que teve, não deve esperar que digam de suas composições o que um crítico francês costumava observar em frente de certos quadros que não primavam pela verdade:

C’est plus beau que nature”.

Perca-se muito embora a popularidade, mas nunca a probidade artística.

Se o nosso verde é quente e escuro, o paisagista não tem direito de corrigi-lo para torná-lo mais agradável à vista de falsos amadores.

A luz do nosso sol é deslumbrante de mais? Procuremos fazê-la tal qual ela é.

O céu do Brasil é azul? Para que pintá-lo pardacento ou amarelado?

Desculpe-me o artista estas ligeiras observações.

Apreciando extraordinariamente o seu belo talento, já tão desenvolvido com tão pouco tempo de estudo, fazemo-las para que não se desvie do trilho em que vai.

A última exposição de Parreiras revela que o artista tem muito talento e grande atividade.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - Folhetins, 1926: p.643-647 - (Publicado em O Paiz em 1886)

Pintura

Não se pode dizer que o gosto pela pintura entre nós tenha tido o mesmo desenvolvimento que a paixão pela música.

Se assim fosse, os cromos e as oleografias teriam caído em desuso e desaparecido do mercado como os sobretudos de duas vistas e os chapéus a Carijó.

O brasileiro é essencialmente diletante.

A música faz parte de seus hábitos como a política, o andar de bond, a palestra de confeitaria e o adiamento das questões as mais importantes.

O que não toca canta.

O que não toca e canta, ainda assim canta e toca de orelha.

As companhias líricas, por mais arrebentadas que sejam, estreiam com a convicção de que apanham enchentes, pelo menos nas primeiras noites.

O teatro dramático, aquele teatro, onde o Vasques, o Guilherme de Aguiar, o Martins, o Áreas e tantos outros firmaram gloriosa reputação, andava a cair aos pedaços.

Os empresários, que são mais sagazes que todos os advogados da Paraíba juntos, começaram a ver que o público desertava parte para o Alcazar e parte para o Provisório, que jazem hoje no reino da glória em companhia do Ginásio, do seu vizinho S. Luiz e do velho S. Januário.

O resultado dessa observação foi o aparecimento da opereta.

O Vasques transformou-se do dia para a noite em tenor com a mesma facilidade com que entre nós se muda uma situação política.

O Guilherme foi elevado a barítono.

O Martins tornou-se tudo, até soprano sfogato nos casos extremos.

Quanto ao Arêas conservou-se no seu papel de verdadeiro barítono sans garantie du gouvernement. A música, pois, entre nós, invadiu tudo.

E a nossa idolatria por ela cada vez mais aumenta.

Não acontece o mesmo com a pintura. A sublime arte que glorificou Raphael, tem custado a radicar-se nos nossos hábitos. Dir-se-ia até que se dá mal com o clima.

Homens inteligentes, ilustrados, olham para ela com a indiferença com que se encara uma futilidade. Outros que não têm o sentimento estético, mas que envergonham-se desta lacuna, como a leitora envergonhar-se-ia de não ter cabelos ou uma dentadura decente, aparentam conhecimentos artísticos e jactam-se de entendedores,  quando  aliás não distinguem  uma aquarela de um quadro a óleo, ou uma gravura de uma litografia.

Prefiro, porém, estes aos indiferentes; podem ser educados, ao passo que os segundos são como os cegos e os surdos de nascença - jamais verão e ouvirão.

Outros há que, sem estudos, sem o mais pequeno[sic] vislumbre de educação artística, olham para um quadro e dizem:

- Como isto é bom! Ou então:

- Não gosto; isto não presta.

Se lhes perguntarem a razão porque apreciam ou por que não gostam, eles não saberão dizer.

Os seus juízos, porém, são sempre verdadeiros.

Com os pedantes, que começam por não sentir e acabam sentindo, e os que sentem sem saber como e por que sentem, tem a arte da pintura do Brasil dado alguns passos; de sorte que ela hoje já não é a mesma que foi outrora.

Pode-se dizer que entre nós os amadores começam já a aparecer.

Ainda há quem se extasie diante de uma vistosa oleografia; quem orne as paredes de seus salões forrados de papel sarapintado com gravuras baratas, ricamente encaixilhadas; quem não distinga uma pintura industrial de um quadro de mestre; quem, finalmente, pendure no vão de sombria porta uma marinha com o mar para cima e o eco para baixo, como fizeram com uma desditosa goache do Pacheco. Ainda há e haverá por muito tempo gente desta ordem.

Roma, diz o anexim, não se fez em um só dia.

A par, porém, desta gente figuram alguns apóstolos do bom gosto, que são dignos dos maiores louvores.

O Rio de Janeiro conta já no seu seio galerias particulares, que são dignas de nota.

Nestas colunas já tive ocasião de ocupar-me da bela coleção Haritoff, onde figuram esplêndidos originais de Allongé, Palizze, Teniers, e dois dese­nhos de Ary Scheffer, sem contar um precioso retrato de família, devido ao pincel do grande Richter, sobre cuja sepultura ainda fresca a Alemanha se debruça saudosa.

O distinto professor de canto, o Sr. Francesco Briani possui quadros de grande valor, tais como dois originais de Raphael, e soberbas cópias de Bassano, André del Sarto e Dominiquino, sobressaindo entre aquelas a célebre Comunhão de S. Jerônimo, que é incontestavelmente superior a que possui a nossa Academia de Belas Artes.

Pacheco, o nosso primeiro goachista, tem no seu salão coisas preciosas, sobretudo no gênero aquarelas e gravuras.

Entre os amadores não me canso de citar o Sr. Souza Ferreira, que tanto impulso tem dado à arte, estendendo a mão protetora aos nossos artistas novéis e de talento, que sem ele e outros morreriam de inanição, no meio da indiferença pública. A sua pequena galeria da rua de D. Carlota, onde figuram obras de importantes pintores nacionais, é um verdadeiro mimo.

O ilustrado Dr. Ferreira de Araújo revela mais eloquentemente a delicadeza de seus sentimentos estéticos na escolhida coleção de quadros e objetos de arte, que possui, do que nos artigos em que a sua pena brilhantemente se esgrime em favor do belo.

O Sr. Cunha Vasco, talento brilhante escondido como uma violeta perfumada à sombra das cifras comerciais, sofre também da nevrose colecionadora de bons quadros.

O Sr. Pinto Vieira, Barão de Quartin, Dr. Borgerth...

Para que citar mais nomes?

Entretanto, não terminarei este artigo sem citar ainda um - o do comendador Albino de Oliveira Guimarães, que, em seu soberbo palacete à rua de S. Clemente, possui a mais importante galeria particular, de que tenho notícia.

Nas paredes de seus salões figuram Palizze, Gudin, duas primorosas paisagens de Silva Porto, animais do famoso Anunciação, dois quadrinhos do velho Bordallo Pinheiro, aquarelas de Cicery, estudos de Vinet, o paisagista que tão bem soube compreender a nossa natureza, e muitas outras preciosidades.

O comendador Oliveira Guimarães ama os seus quadros com verdadeira paixão.

Ele pertence ao número daqueles que tem inato o sentimento do belo.

Dentro de sua galeria considera-se a criatura a mais feliz deste mundo.

Mas...

Há sempre um - mas - que corta todas as felicidades desta vida.

Mas o amador tem filhas que idolatra.

O médico, o seu médico de confiança, diz-lhe um dia:

- É preciso partir para a Europa, quanto antes; suas meninas estão muito anêmicas, este clima não lhes convém.

O coração de pai balança entre o amor filial e o da arte.

Venceu muito naturalmente aquele.

O comendador Albino de Oliveira Guimarães parte para a Europa.

E o camartelo do leiloeiro vai cair sobre tudo aquilo!

É duro, muito duro!

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 30 agosto de 1886 p.2.

A Propósito de Artes

As artes e as letras são irmãs gêmeas.

Nascem e desenvolvem-se simultaneamente.

Não reclamo brevet de invention para esta tirada de filosofia vulgar; o que aliás poderia fazer, pois no Brasil há quem por muito menos tenha obtido dos governos concessões de privilégios.

Com o Brasil, porém, não se deve argumentar.

É um país sui generis e original como uma inglesa feia ou um solteirão rico.

E a prova está nesta mesma tirada, que, sendo em todos os lugares e em todos os tempos uma verdade incontestável, não o é entretanto aqui.

Se pusermos em uma balança de um lado a nossa cultura literária e de outro o progresso artístico nacional, havemos de ver que as duas conchas não se conservarão no mesmo nível.

Uma passará mais que a outra.

E a palma da supremacia neste confronto será colhida pelas letras.

Qual a causa do desequilíbrio?

Não passa-me pela cabeça ocupar uma cadeira no Instituto Histórico: razão pela qual deixo de escrever neste momento uma longa memória com citações latinas e dados cronológicos acerca de tão importante fenômeno sociológico.

Além desta razão há outra muito poderosa que demove-me de tal intento.

Os leitores começariam a abrir a boca com visíveis sinais de enfado e exclamariam no ponto final deste artigo:

- Ora esta! Já viram que maçante?

Assinalo apenas o fato.

Os filósofos que o estudem em suas causas.

Uma pequena prova da preponderância das letras sobre as artes é a maneira porque a opinião pública recebe os apóstolos de umas e os sacerdotes de outras.

Quando digo opinião pública refiro-me a imprensa.

Aparece um livro de versos.

Todos os jornais, desde os de maior circulação até os mais ínfimos, que morrem ignorados, à míngua de leitores, noticiam o acontecimento.

Se o poeta tem um bocadinho de estro, se as musas bafejaram-lhe ligeiramente o berço, os articulistas atiram-lhe em cima punhados de adjetivos, cada qual mais encomiástico.

Se o livro não presta, ai dele!

Torna-se alvo de tremenda descompostura ou de cruel zombaria em mordazes epigramas.

Com o drama, a comédia, o romance, a crítica, o livro, enfim, qualquer que seja, acontece o mesmo.

O autor, conforme o mérito, ou é guindado aos astros ou despenhado no abismo; mas nunca esquecido.

A imprensa, bem ou mal, sempre acolhe espontaneamente os que escrevem.

Com os artistas o caso muda de figura.

O Pintor pinta um quadro.

Não pode mandá-lo com uma dedicatória às redações de todos os jornais, como faz o literato com o livro.

Expõe-o.

Se a exposição é em ponto, para onde aflui diariamente a concorrência do público, os amigos e conhecidos dirão ao artista:

- Homem, lá vi hoje um quadro seu. É bem bonito. Dou-lhe os parabéns.

Ora esses amigos e conhecidos constituem a mais das vezes uma meia dúzia de sujeitos.

Os indiferentes, que são em grande número, não dizem nada.

Quanto aos colegas, os terríveis oficiais do mesmo ofício, correm pressurosos à exposição:

- Não é mau, dizem eles, na hipótese do quadro ser bom; acho, porém, que o desenho está um pouco descuidado, que o colorido em certos pontos é falso e que a perspectiva está toda errada.

- Que bota! Que horror! Que miséria! Exclamam, quando o trabalho tem pecados.

O pintor, que deseja ardentemente conhecer o juízo do público acerca de seu quadro, aguarda impaciente a opinião da imprensa.

Esta, ocupada em coisas mais sérias, não liga a menor importância ao fato.

O que faz então o artista?

Dirige-se as redações dos jornais.

E a cada uma delas diz pouco mais ou menos o seguinte:

- Tenho um trabalho exposto em tal ponto. Vão vê-lo. Digam alguma coisa a respeito.

- Sim senhor, responde amavelmente o redator. Lá vou sem falta, hoje mesmo.

E logo que o artista sai, chamando um dos reporters, diz-lhe:

- Seu F... vá ver o quadro deste sujeito e traga-me a notícia.

No dia seguinte o expositor vai ler, cheio de esperanças, todos os jornais.

Nada. Espera pelo dia seguinte.

Nada ainda. Aguarda dois, três, quatro dias, uma semana.

Desesperado, torna a ir às redações:

- Pelo amor de Deus digam alguma coisa de meu quadro.

_Desculpe-nos; estamos aqui muito atarefados. Mas vá tranquilo que amanhã sem falta cumpriremos o nosso dever.

Eis o que, desfazendo-se em amabilidades dir-lhe-ão mais ou menos todos os redatores, que entendem cumprir o seu dever, dando nas folhas a seguinte notícia:

Acha-se exposto em casa do Sr....uma quadro do Sr. F....”

O artista, ao ler este espécime brutal de laconismo, tem camadas de razão para dizer-nos em face:

- Os senhores são injustos. Pois os que pintam valem por ventura menos do que os que escrevem? Onde está a superioridade do livro sobre o quadro? E a parcialidade de VV. SS. Sobe ao ponto de considerar-nos inferiores aos cantores, aos violinistas, aos pianistas cujos concertos são anunciados e descritos com os qualificativos os mais encomiásticos!

Estas considerações caíram-me do bico da pena a propósito de Décio Villares.

Décio Villares é um pintor cheio de talento e que trabalha com ardor infatigável.

No salão Vieitas figuram constantemente belos frutos de sua inspiração.

Ora é a cabecinha loura de uma criança suavemente esbatid em fundo cor de rosa, fazendo recordar a palheta e a maneira de Henner.

Ora é o retrato, em que as carnes palpitam e deixam ver através das rendas a brilhante coloração da epiderme.

Ora são flores e frutas, conscienciosamente estudadas do natural.

Ora é o trecho de paisagem, iluminado pelo sol.

Ora pequenas fantasias ricas de colorido e de sentimento.

Atualmente está exposto ali um quadrinho do artista.

Representa um sujeito tocando violoncelo.

Quanto estudo, quanta verdade, quanto sentimento naquele pedacinho de papelão!

Chamamos para ele a atenção dos dignos colegas da imprensa.

Se os poetas e os músicos são os privilegiados do elogio, Décio Villares pode entrar também neste número.

É poeta. O seu quadro representa um concertista.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 09 de agosto de 1886 p.2

Belas Artes

A necessidade é mãe da indústria.

Assim diz o velho rifão popular.

O mesmo ou coisa semelhante não se diz, porém, das letras e de suas irmãs inseparáveis - as belas artes.

A indústria impõe-se aos povos como uma condição indeclinável de sua natureza. Ela simboliza o pão, o vestuário, o conforto, a existência inteira em suma. Quem a cria é própria vida com as suas mil exigências. Para extirpá-la completamente da sociedade fora preciso que todos os membros dela pensassem como o cínico Diógenes. Independente de abrigo e proteção ela vive e prospera, como sem cultivo as plantas agrestes brotam e florescem por entre as pedras à beira do caminho.

Quão diversa é a arte?

Não se impõe aos povos. Estes vão buscá-la, como se busca um gozo.

É uma aspiração.

Pode-se viver sem ela, assim como respiram e digerem homens que nunca amaram, e em mornas estufas crescem flores, que jamais conheceram os beijos das brisas e as suaves harmonias dos pássaros.

A arte, pois, não tendo por mãe a necessidade como a industria, é considerada sob certos pontos de vista um objeto dispensável.

Eu gosto extraordinariamente dos anexins.

Entre estes há um que nos ensina - que não é só de pão que o homem vive.

Os povos são como os homens.

À proporção que caminham em civilização vão se convencendo de que além do pão devem aspirar a alguma coisa mais sublime.

Dessa convicção vem todas as ideias nobres e generosas, e com elas a arte em suas múltiplas manifestações.

Cultivá-la, ampará-la, protegê-la é um dever social.

Os Péricles, os Augustos, os Mecenas, os Júlio II, e Leão X, os Francisco I, os Luiz XIV, os Rotschilds, os Ricardo Walace, os Barões de Bournouville e outros são nomes que humanidade há de sempre respeitar.

Eles concretizam períodos de gloria, fases de engrandecimento moral, épocas de elevação da humanidade.

Infelizmente o Brasil não pensa do mesmo modo.

Será porque ainda não atingiu a um alto grau de cultura intelectual?

Não. Somos assaz civilizados.

Por uma dessas anomalias, porém, que não se explicam, a arte não é nossa corda sensível.

Eis por que os governos do todas as épocas e de todos os enredos votam à pobrezinha a mais criminosa indiferença.

Os alunos da academia das belas artes, compreendendo esta verdade, cheios de coragem e de fé, resolveram, independente de auxílio oficial, fazer neste ano a exposição de seus trabalhos.

- É preciso, disseram elas, que o público, que é o nosso julgador, saiba o que temos feito, qual o nosso adiantamento, e o que de nós se deve esperar.

E o público acaba de sabê-lo.

Na exposição estiveram representadas a pintura, o desenho, a escultura e a arquitetura.

O Sr. Pinto Bandeira, que a um brilhante talento reúne grande atividade, expôs um estudo do natural, e várias paisagens, que revelam conscienciosa observação de nossa natureza

Depois da revolução operada por Daubigny, Corot, Rousseau, Dupré e outros, rasgaram-se para a paisagem largos horizontes.

A velha escola do bitume tende de dia a dia desaparecer.

Surgiram os pintores do sol, que surpreendem ao ar livre os relevos da natureza; que a estudam em suas grandes massas; e que a apresentam tal qual ela é, variadas fases de luz graças a uma compreensão mais elevada da palheta.

Acabaram-se os paisagistas de estufa que pretendiam representar trechos iluminados pelo sol com a tonalidade que dá o atelier, onde a luz apenas entra por uma janela.

O schwartz kunst, como chamam os alemães, ou la vielle perruque, como denominam os franceses, essa arte escura, cheia de manchas negras, já em último período de gangrena foi substituída por uma arte luminosa, palpitante de vida, tendo por base a observação exata da verdade, e por conseguinte mais afinada com o estado atual das ciências e letras.

O Sr. Pinto Bandeira, pois, a meu ver, segue o único caminho possível.

Pinta como vê, e nisto está o seu maior elogio.

Nos estudos do Sr. Eduardo de Sá, que são bastante numerosos, vê se o quanto este aluno da academia é laborioso. Os quadros de frutas são cuidadosamente pintados, embora em alguns deles se note essa paixão pelo detalhe, que às vezes prejudica o efeito geral da composição. O seu desenho é correto e o colorido verdadeiro.

Do Sr. Fabrício Gomes citaremos o quadro da - Janela - com efeito de planos intermediários e o do - Claustro - que é um belo estudo de perspectiva, mostrando as três posições de ângulo. Neste artista agrada-me sobretudo a palheta, que é viva e brilhante.

Figuram na exposição outros nomes, como João Batista, Guilherme dos Santos, cuja paisagem - Efeito de tarde - é perfeitamente sentida e tocada; Sebastião Fernandes, que exibiu um excelente estudo do nu, em que a carne é de uma tonalidade transparente e assas verdadeira; Fiuza Guimarães e Isaltino Barbosa, de cujos talentos não se pode duvidar; Pinto Gouveia, que prestou a homenagem de seu lápis à inteligente cabeça da atriz Duse Checchi; Arthur Lucas; Alberto Delpino; Augusto Quintella, cujos progressos são incontestáveis; Jobim; Francisco Rocha; Dumiense e Teixeira da Rocha, o hábil desenhador.

Destacando desses o nome do Sr. Bento Barbosa, quis assinalá-lo como desenhista.

Em outra terra que não a nossa, ele já teria principiado a fazer as suas primeiras armas ilustrando pequenos livros e jornais.

Parece que bafejou-lhe o berço a mesma musa, que presidiu ao nascimento de Gustavo Doré.

O seu lápis é enérgico e cintilante de espírito.

Os pasteis que expôs, feitos de uma maneira larga, demonstraram que, se gravará no rol dos nossos melhores artistas.

Como discípulos de escultura aparecem no catálogo Emmanuel Lacaille, Xisto Messias e Bevenuto Berna.

A influência poderosa de Rodolpho Bernardelli, o revolucionário que em boa hora entrou para a academia, sente-se naqueles bustos que ali figuram, estudados do natural!

Que diferença entre esses barros e gessos e os da antiga escola!

A maneira de ver e modelar já não é a mesma.

É que a escultura, como as outras manifestações da arte, passou por salutar transformação.

Como apóstolos da nova ideia figuram na Itália, donde tem partido a luz, Monteverde, Vela, Ercole e principalmente Dorsi, que é na estatuária atual o que seria Bastien Lepage na pintura, se o túmulo não o engolisse tão cedo.

É nesta salutar escola que vão se formar atualmente os nossos escultores, graças a Rodolpho Bernardelli.

A arquitetura está bem representada pelo aluno J. L. Berna.

Ainda bem.

Se é verdade que na ordem cronológica do desenvolvimento artístico a arquitetura aparece em primeiro lugar, bendito seja o Sr. J. L. Berna.

Estude.

Livre-nos de aleijões que por aí formigam, ora com os modestos nomes de casas, ora sob a pomposa denominação de monumentos, e prestará importante serviço a este país, onde qualquer julga-se com direito de dar riscos e planos de edifícios.

Sinceros parabéns à mocidade acadêmica pelo seu primeiro cometimento, que, esperamos, será seguido de muitos outros

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1887 p.2.

Dois Artistas

Um grande artista não é objeto de primeira necessidade para um país que começa.

Os povos têm outras aspirações menos gloriosas, porém mais uteis, que reclamam a sua atividade.

Uma nação que não tem leis codificadas; que não pode dizer em absoluto que é livre, talvez por pensar com Bismark que - a liberdade é um dom que só podem ter os países eminentemente civilizados; que neste século do vapor e da eletricidade transporta ainda os seus produtos na antediluviana cangalha do burro; que não pode tirar o mais insignificante partido de suas maravilhosas riquezas naturais, porque ao lado delas tem dívidas como junto à linfa cristalina o Tântalo mitológico tinha sede; uma nação desta ordem [ilegível] mais de legisladores. [ilegível] bem entendida, de [ilegível], de telégrafos e sobretudo de estadistas, que de pintores [ilegível], de grandes trágicos, de poetas [ilegível] e de músicos de gênio.

A Inglaterra é citada como modelo das nações. Não há ali peça do maquinismo governamental que não se mova a tempo, contribuindo assim para a harmonia do todo. Se uma ou outra vez esse movimento se acelera ou diminui de intensidade, os fiscais da opinião pública que andam sempre alerta, o que constitui uma originalidade, por isso que por via de regra os fiscais das outras partes do mundo nada vêem, chamam a atenção do maquinista em chefe para o fato, e as coisas voltam ao estado normal.

Comparem entretanto a lista dos artistas notáveis daquele país com a da Espanha, por exemplo, onde o governo está tão longe de ser modelo como nós do pólo ártico.

A Espanha só no que diz respeito à pintura, conta uma série não interrompida de glórias desde Murillo e Velazques até o moderno Madrasso.

A Inglaterra sob esse ponto de vista não tem história. Dir-se-ia que o gênio de Shakespeare ofuscou com seu clarão luminoso tudo que o cerca!

Entretanto aquele país que não possui como os do continente glórias artísticas, ama-as em excesso, idolatra-as até! Para que o viajante se convença disto basta visitar as suas famosas galerias de pintura e ver a importância com que ali são tratados os artistas de todo o mundo. Não se deve julgar o inglês pela calma aparência de seus olhos azuis e de sua pele alva como arminho; debaixo daquela crosta vem os mais ardentes sentimentos estéticos, do mesmo modo que sob uma branca camada de cinza ocultam-se muitas vezes brasas que queimam. O beautiful com o respectivo ponto de admiração tem no fundo tanto fogo como os vocábulos correspondentes das línguas latinas.

Ora era assim que eu desejaria que fosse o Brasil.

Por que não havemos de estimar os poucos artistas que temos, e agasalhar com mimo os que nos vem do estrangeiro?

As considerações que acabo de expender ao correr da pena demonstram que podemos ser um povo essencialmente prático como a Inglaterra, procurando todavia cercar a brutalidade dessa vida prática com alguma coisa que nos faça recordar de que não é só de pão que se vive.

Deixemos as grandes glórias artísticas para os povos que podem ter esse luxo, mas prestemos ao menos homenagem às que temos entre nós.

Não é lícito abandonar os que trabalham.

Dois pintores ocupam atualmente a atenção do público.

Não é do público propriamente que eu deveria dizer, mas de meia dúzia de indivíduos que entendem que é tempo bem empregado o que se gasta contemplando bons quadros.

Firmino Monteiro e Belmiro, eis seus nomes.

O primeiro acaba de chegar da Europa com a enorme bagagem que figura em uma das salas da academia das belas artes.

Firmino monteiro é um trabalhador infatigável.

Hoje que a arte vota-se exclusivamente à contemplação da natureza, aquela qualidade é um predicado essencial para os que querem progredir observando, observando sempre.

Dentre os quadros expostos há alguns que primam como composição e verdade de colorido, embora às vezes o desenho se ressinta de certos desfalecimentos impróprios de quem tanto estuda.

Firmino Monteiro, como um verdadeiro pintor moderno, tem percorrido com o seu pincel todos os gêneros.

O Rio de Janeiro aplaudiu-o e festejou-o como paisagista.

Mais tarde, no seu quadro de costumes, representando o célebre Vidigal, o famoso chefe de polícia que a junco desmanchava as diferenças daquele tempo, obteve merecido sucesso; o que levou-o talvez a subir até a pintura histórica, que hoje cultiva com paixão.

É preciso, porém, que o artista não vá como vulgarmente se diz, com tanta sede ao pote.

Produzindo demais, as suas obras hão de necessariamente ressentir-se da rapidez com que são feitas.

Belmiro tem no salão de Wilde um quadro, um quadro só; não me refiro aos outros, porque este é bastante para eclipsar tudo quanto ele tem feito até hoje, e alista-o no número dos nossos mais distintos pintores de gênero.

É impossível reproduzir com mais verdade e sentimento a cena íntima de um arrufo [cf. Imagem]!

Tudo naquela tela está perfeitamente estudado e observado.

Não há ali uma pincelada que não seja o resultado de cuidadosa observação.

Este quadro impressiona tão agradavelmente o visitante, já pela sobriedade do colorido, já pela composição, já pelo amor com que estão tratados todos os detalhes, que, atraídos pelas belezas, ele não se anima a esmerilhar-lhe os defeitos.

Felizes as obras d'arte que produzem tal impressão.

Um sincero aperto de mão ao artista.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1887 p.2.

Castagneto

Na galeria dos artistas modernos, nessa nova geração de pintores que surge protestando contra a rotina e a velha escola de bitume, figura em lugar saliente o nome de Castagneto.

Há quatro anos apenas pode-se dizer, que ele pinta.

Digo - há quatro anos - porque a individualidade de Castagneto foi pouco a pouco aparecendo desde o dia em que, abandonando a academia, ele principiou a folhear o grande livro da natureza.

Foi nesta fase que conheci o jovem pintor.

Grimm trabalhava então na rua Taylor com seus amados discípulos Caron, Vasquez e Ribeiro, aos quais veio reunir-se mais tarde o infatigável Parreiras.

A rua Taylor não tinha ainda a ventura de possuir os vistosos chalets de lambrequins multicores com que hoje se adorna.

A vegetação crescia livremente pelo caminho tortuoso, ora em tons quentes e brilhantes iluminada pelo sol, ora ligeiramente azulada sob a copa das frondosas mangueiras que recortavam em caprichosos desenhos o fundo azul do céu.

Alguns casebres arruinados, à porta dos quais brincavam umas crianças bochechudas e sujas; as lavadeiras que cantavam alegres curvadas sobre as tinas e abrigadas dos raios ardentes do sol pelos verdes leques das bananeiras; as embaúbas erguendo-se tortuosas com seus braços abertos em forma de candelabros, e, ao longe, a orla iluminada de Niterói, davam aquele sítio um aspecto pitoresco.

Que melhor atelier para paisagistas!

Castagneto tinha também ali o seu cavalete.

Ele não pertencia, porém, ao número dos discípulos de Grimm.

Grimm era arrebatado e indomável, aliando a estas duas qualidades o tesouro de um coração de anjo.

Castagneto possuía o mesmo tesouro, unido àquelas duas más qualidades.

Eram dois gênios iguais.

Nunca puderam fazer liga.

O jovem pintor, pois, trabalhava só.

Parece-me que o estou vendo a manchar com frenesi em pinceladas largas a pequena tela de seu estudo.

No primeiro plano figurava um tronco destacando-se parte em fundo verde, parte no céu.

Castagneto, entregue às suas próprias inspirações, procurando fazer conscienciosamente o que via, não andava nem para trás nem para diante - boiava, como se diz em gíria artística.

Felizes os pintores que boiam.

Só não boia quem jamais se viu face à face com a natureza, quem tem a estulta pretensão de querer interpretá-la, sem nunca a haver estudado.

A boia é um martírio de que estão livres os fantasistas, os quais o público infelizmente tanto aprecia.

Castagneto boiava e boiava sem desanimar.

Às vezes erguia-se do seu banquinho, uma tripeça desconjuntada que mal o aguentava, para contemplar de longe o trabalho.

Fechava um pouco os olhos para melhor ver as grandes massas e o movimento do claro-escuro.

Se a impressão do que havia feito não lhe agradava, sentava-se de novo, e, raspando o trabalho com a espátula, começava a repintar tudo com a coragem digna de um chim.

E essa coragem nele era tanto mais para admirar quanto a sua natureza arrebatada e indômita.

Apesar, porém, de tantos esforços, não era na paisagem que o gênio de Castagneto devia fulgurar.

Outros horizontes o chamavam.

Ele sonhava o mar, ora calmo e tranquilo como um espelho, refletindo o azul do céu; ora irritado e espumante a cavalgar o dorso negro das pedras.

Começou a namorá-lo com entusiasmo.

Da rua Taylor transportou-os seus penates, isto é, o cavalete, o banco e a caixa de tintas para a praia de Santa Luzia.

As primeiras marinhas de Castagneto foram a revelação de um talento brilhante.

Quanta incorreção de desenho naquelas telas que sucediam-se umas às outras em contínuas exposições!

Quanta suavidade, porém, e quanta verdade naquele colorido! Quanta observação naqueles efeitos de luz!

Se a anatomia de seus navios deixava alguma cousa a desejar, o amador perdoava-lha de bom grado essa falta para atender à naturalidade com que eles flutuavam sobre as águas.

E como eram feitas essas águas!

Duas ou três pinceladas, alguns borrões de tinta.

Foi sobretudo pela transparência das águas que as primeiras marinhas de Castagneto começaram a adquirir popularidade.

Pouco a pouco os seus quadros foram se aperfeiçoando, graças ao perseverante estudo da natureza, e hoje não há colecionador de bom gosto que não possua uma marinha do jovem pintor.

Pois bem; Castagneto precisava alargar o campo de seus estudos.

Para este fim parte para a Europa.

Naquele cenário, vendo a maneira dos grandes mestres modernos, ao lado de companheiros que trabalham cheios de fé no futuro, o seu gênio desenvolver-se-á, e o pintor poderá vir a ser ainda um marinista notável.

Ele nasceu com a predestinação da linha e da cor.

É ousado, trabalha.

Da massa de que é formado saíram os Géricault, os Coubert, os Manet e todos os grandes revolucionários da arte.

Mas, para ir para Europa é preciso uma coisa essencial, que é justamente aquilo que Castagneto, como todos os homens de espírito, geralmente; nunca pôde alcançar- dinheiro.

Castagneto não tem dinheiro; mas tem quadros, muitos quadros, cada qual mais belo.

Ouro é o que ouro vale.

O martelo do leiloeiro vai cair sobre as suas marinhas, que representam os trechos mais pitorescos da nossa Baia e do litoral do Rio de Janeiro.

Tive a ventura de ver algumas delas no atelier do pintor Peres, outro artista de talento, que não cessa de estudar, e que aos elevados dotes do espírito, aliando os do coração, interessa-se pela sorte dos amigos, como se fora a sua própria.

Que esplêndidas telas!

Estou convencido que Castagneto não apelará em vão para o bom gosto do Rio de Janeiro.

O público fluminense em massa há de concorrer a essa venda, que será em verdadeiro acontecimento artístico.

FRANÇA JUNIOR

Ecos Fluminenses - O Paiz, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1887 p.2.

O Paisagista Ribeiro

Peregrinando pelo mundo, como um Judeu errante com a sua longa barba loura e os olhos vivos e luminosos, que davam-lhe a fisionomia o aspecto revolucionário de um huguenote, George Grimm aportou às nossas plagas em boa hora para a arte.

Já antes dele o professor Zeferino havia traçado o caminho por onde os discípulos deviam seguir. Zeferino não podia empenhar-se, porém de corpo e alma naquela luta gigantesca da nova escola, de que era partidário fervente, com a velha rotina, que contava e conta ainda em seu seio apóstolos dedicados: toda a sua atividade devia concentrar-se nos grandiosos trabalhos da igreja da Candelária, onde ele sonhava, como Miguel Angelo encerrado na capela Sixtina, a glória do porvir, que é a suprema aspiração dos que se elevam pelo talento.

Estava reservada a Grimm aquela missão.

Se o seu nome como paisagista, guardadas as diversidades de escola e a influência do meio, não figura nos nossos anais artísticos como o de Motta, cujas telas são tão delicadamente sentidas, há de figurar neles entretanto como o de um mestre notável.

Motta não legou a este país, por onde passou tão brilhantemente, um só representante! A sua maneira extinguiu-se com ele.

Grimm lutando com dificuldades, vencendo ódios, impondo-se pela abnegação e amor ao trabalho, criou uma escola e deixa nos domínios da nossa arte o seu nome plantado, como um marco de conquista. Quatro discípulos ai estão para testarem o que fica dito.

Dois - Vasquez e Caron - aperfeiçoam-se na Europa.

O público acompanhou-lhes os progressos nas diversas exposições que fizeram. Viu como eles caminhavam passo a passo no estudo consciencioso da natureza.

Os outros dois - Parreiras e Ribeiro - aqui ficaram.

De Parreiras, cujos esforços tem sido por mais de uma vez laureados pela imprensa e acabam, agora de ser recompensados pela academia, já me ocupei nestas colunas.

Chegou a vez de Ribeiro.

Quem passasse há cinco anos, pouco mais ou menos, pela rua Taylor, onde os discípulos de Grimm haviam assentado os seus cavaletes de campo, veria, mal equilibrando-se sobre o desconjuntado banquinho, e curvado sobre uma tábua, um rapaz de modesta aparência a desenhar todo o santo dia com a calma e proverbial pachorra de um chim.

Não houve ponto naquelas imediações que ele não transportasse para o papel.

As mangueiras que se estendiam a beira do caminho tortuoso com seus troncos nodosos, cobertas de parasitas, e por onde os cipós, subindo em aspirais, iam perder-se na folhagem, que manchava o azul do céu em manchas escuras e compactas; os coqueiros balançando-se às brisas na encosta do monte; o terreno acidentado e pedregoso; as montanhas ao longe; o mar; o casebre destacando-se no fundo de luxuriante vegetação, tudo passou pela ponta de seu grafito investigador.

Nulus dies sine linea - eis a sua divisa.

Este desenhador infatigável era Ribeiro.

Enquanto Caron, Vasquez e Parreiras, borrando telas com largas pinceladas, procuravam com as diversas gradações da cor traduzir o que viam, Ribeiro pacientemente traçava linhas, observando o movimento do claro escuro com uma meticulosidade que faria honra ao mais hábil oficial de relojoeiro.

- Quando é que este diabo aprende a pintar?

Tal era a pergunta que, admirados faziam entre si os companheiros.

E de fato, não há ninguém, por menos nervoso que seja, que sabendo traçar o contorno dos objetos, não sinta cócegas de empunhar os pincéis e a palheta para representar a natureza no que ela tem de mais belo - a cor.

Quando uma criança mostra tendências para o desenho a primeira coisa que ela pede, ou que lhe dão, é uma caixinha de tintas.

A aquarela em geral é a primeira vítima das nossas inocentes expansões artísticas.

Com o pincel consegue-se o que não se pode obter muitas vezes com o lápis.

Se a cor é justa, a mancha exprime logo o que o contorno, sem a sombra, por si só não diz.

Eis por que a pintura atrai e seduz.

Enquanto os colegas de Ribeiro admiravam-se da sua abnegação pelas seduções da palheta, Grimm, o professor, esfregava as mãos satisfeito, e dizia na sua meia língua, com a brutalidade que lhe era própria:

- Diaba de Ribeiro está desenhar muito bem!

Quando Ribeiro, pois, empunhou os pincéis, ele podia gabar-se de que muitos pintores por ai não podem ufanar-se - sabia desenhar!

Corra o público a admirar a sua atual exposição, e verá quanto é verdadeira a máxima de Ingres, que dizia que o desenho é a probidade da arte.

Quanta verdade naqueles trinta e cinco quadros!

O primeiro, que é um estudo feito ao sol, revela qualidades de observação, que os outros discípulos de Grimm não manifestaram tão brilhantemente. O terreno desse quadro, os últimos planos e a pedreira que se estende com seus tons azulados por detrás do tosco casebre coberto de zinco, são conscienciosamente estudados.

Nas mesmas condições está a tela, que se intitula - Maré baixa em Icaraí - e que prima pela harmonia geral do colorido.

De grande efeito é também o quadrinho que representa as pedras da Itapuca ao amanhecer. Ribeiro apanhou ali a natureza em flagrante, na frase capadoçal do Macário da Bahia.

A praia do Zumbi, na ilha do Governador; o chafariz da ilha do Boqueirão, a praia das Flexas, um Barco encalhado, e muitas outras telas são perfeitamente pintadas.

Oxalá que o público recompense tantos esforços.

Ao artista o nosso sincero parabém.

FRANÇA JUNIOR.

Referências bibliográficas

Ecos Fluminenses, O Paiz, Rio de Janeiro, 1885, 1886, 1887.

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José. Folhetins. 4. ed. aum. com os folhetins publicados nos jornais “O Globo Illustrado”, “O Paiz” e o”Correio mercantil”. Prefácio e coord. Alfredo Mariano de Oliveira. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho Ribeiro dos Santos, 1926.


[1] Doutoranda em História do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bolsista CAPES/DS.

[2] CAVALCANTI, Ana Maria Tavares.  Iracema de José Maria de Medeiros entre pintura histórica e pintura de paisagem. Revista Z cultural (UFRJ), ano VII, n.2, v. 1, p. 1-10, 2011. Disponível em: <http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/%E2%80%9Ciracema%E2%80%9D-de-jose-maria-de-medeiros-%E2%80%93-entre-pintura-historica-e-pintura-de-paisagem-de-ana-maria-tavares-cavalcanti/> Acesso em: 15 Janeiro 2012.