Pintura
decorativa na 1ª República: Formas e Funções *
Arthur Valle
VALLE, Arthur. Pintura decorativa na 1ª
República: Formas e Funções. 19&20, Rio
de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_pint_dec.htm>
*
* *
1.
Para
o pesquisador que se debruça sobre a arte produzida no Brasil durante o período
conhecido como 1ª República (1889-1930), o crescimento da produção de pinturas decorativas então verificável se apresenta como um fato
digno de nota. Esse fenômeno tem relação direta com o movimento mais amplo de
difusão de trabalhos decorativos em diversos outros centros artísticos
mundiais, movimento este que, possuindo as suas raízes nas primeiras décadas do
século XIX em países como Alemanha e França[1],
se intensificou a partir da década de 1870, e se estendeu - tomando por vezes
contornos febris - por boa parte da Europa e também pela América do Norte.
2.
No
Brasil, a partir de meados da década de 1890, depois de superada a instabilidade dos anos iniciais da República, vamos encontrar
uma série de edifícios públicos sendo reformados ou construídos, nos quais arquitetura,
decoração de interiores, pintura e escultura se encontram estreitamente
associadas. A lista dos trabalhos decorativos então realizados é vasta e estes
variavam bastante de envergadura, indo desde um simples quadro até os grandes
conjuntos, nos quais vários artistas de diferentes especialidades eram chamados
a trabalhar. Podemos aqui citar, sem pretender fornecer um inventário
exaustivo, as decorações para os diversos Palácios de Governo das
administrações estaduais[2]; as decorações realizadas na primeira
década do século XX nos edifícios da Avenida Central do Rio de Janeiro e de
seus arredores, tanto naqueles com fins político-administrativos (Supremo
Tribunal Federal [Figura
1], Banco Central do Brasil), quanto comerciais (Companhia Docas de
Santos) ou culturais (Theatro Municipal [Figura 2],
Escola Nacional de Belas Artes, Bibliotheca Nacional);
as decorações efêmeras para os pavilhões de grandes exposições, realizadas no
Brasil (Rio de Janeiro, 1908 e 1922) ou no exterior (Chicago, 1893; St. Louis,
1904; Turim, 1911 [Figura 3], etc.); os trabalhos decorativos para o
Museu Paulista, intensificados com a administração de Alfonso d'Escragnolle Taunay, a partir de 1916; e as decorações para
as grandes sedes de poder da Capital Federal erguidas nos anos 1920, os atuais
Palácios Pedro Ernesto e Tiradentes.
3.
Durante
a 1ª República, a realização de pinturas visando à decoração de casas de
particulares foi um outro campo que igualmente se
expandiu, motivado pela hegemonia de uma concepção de decoração de interiores
caracterizada pelo desejo de imitar aquilo que, em tempos de fortunas
particulares menores, ou, sobretudo, de menor queda pela ostentação, havia sido
apanágio dos palácios reais, das sedes do poder público, da Igreja. Tal demanda
foi responsável, inclusive, pela aparição de um novo gênero de composições nos
“salões” e exposições particulares do período, normalmente chamadas, nos
catálogos ou notícias sobre tais mostras, de painéis decorativos [Figura
4][3], expressão que parecia servir como uma
espécie de cláusula restritiva destinada a orientar o olhar do espectador com
relação a certas particularidades formais frequentes nas pinturas decorativas.
Mas quais eram essas particularidades? Seria possível delimitar o que, afinal,
era entendido como pintura decorativa durante a 1ª República brasileira?
4.
Por
certo, a questão do que definia uma pintura como decorativa, a partir do
século XIX, não comporta uma resposta única e simples. Em termos que eram
familiares tanto ao jargão da teoria acadêmica quanto ao dos ateliers
oitocentistas, por exemplo, a pintura decorativa foi por vezes definida
simplesmente em termos da sua função de ornamento arquitetônico, ou seja, como
toda pintura concebida para tomar o seu lugar definitivo contra uma parede ou
se substituir a ela - o que valia tanto para a pintura a fresco, quanto para as
pinturas em telas marouflées sobre uma
superfície mural e também para aquelas montadas sobre chassis[4].
Todavia, tal noção, bastante objetiva, não nos nos deixa entrever outros aspectos importantes que
deveriam constar em qualquer tentativa de resposta à questão acima lançada.
5.
Alguns desses aspectos tem relação direta com a dimensão formal
das pinturas decorativas: desde meados do século XIX, diversos estetas
defenderam a ideia de que estas possuíam um caráter particular e
deveriam diferir da pinturas de cavalete tanto pela sua apresentação quanto
pelo seu aspecto[5]. De fato, como poderemos perceber com
relação a maior parte das obras nas quais aqui nos deteremos,
as pinturas decorativas realizadas no Brasil durante a 1ª República usualmente
se conformavam a uma série de exigências de composição, de desenho e de cor,
tidas como essenciais ao seu caráter ornamental. Em outras palavras, essas
pinturas se adequavam a um modo particular[6],
propriamente decorativo, marcado por algumas características formais como: a
estilização sintética dos motivos representados; a predileção pelo uso de uma
gama de cores pouco contrastadas, mormente de tons pastéis; e uma tendência à
abolição de efeitos acentuados de modelado e espacialidade - tudo isso
conduzindo à uma afirmação da planaridade
das obras, por vezes levada a extremos de radicalidade.
6.
A
razão de ser de tais particularidades formais não deixava de se relacionar à
premissa acima referida, segundo a qual as pinturas decorativas eram concebidas
justamente para decorar um muro. Contrariamente às regras estabelecidas,
por exemplo, para as decorações plaffonnants
nos séculos XVII e XVIII, influentes correntes estéticas surgidas no oitocentos defendiam que a pintura decorativa não deveria
destruir a integridade do conjunto arquitetural que a abrigava. Tal era, em boa
parte, o ideal dos discípulos de J. A. D. Ingres -
cujos esforços, muito voltados para um certo passado
clássico, não lograram, todavia, uma repercussão de grande porte. Mas uma
concepção semelhante fora divulgada por Prosper Merimée, já em 1851[7], e retomada por diversos teóricos e
artistas, como Charles Blanc, Teóphile Gautier ou o pintor
Jules Breton, que certa feita declarou: “Desejamos que a pintura mural, nobre bela, todavia
circonspecta, antes de mais nada complete a arquitetura que decora”[8]. Por ter que se submeter ou, ao
menos, não sobrepujar o conjunto arquitetural no qual se inseria, não é de se
estranhar que, durante a 1ª República brasileira, a pintura decorativa fosse
pensada, muitas vezes, como essencialmente aparentada das chamadas artes
aplicadas (mosaico, vitral, tapeçaria, etc.), mais do que da pintura
enquanto propriamente uma das belas-artes.
7.
Um outro aspecto distintivo das pinturas decorativas
brasileiras no primeiro período republicano se relaciona à sua temática.
Sem sombra de dúvida, um dos fatores mais importantes para a acima referida
difusão de trabalhos decorativos no período da 1ª República foi o papel que o
gênero assumiu no esforços coletivos de criação de uma
identidade cultural brasileira. Isso foi evidente na parcela mais espetacular
dessas pinturas, aquela projetada para prédios públicos e, muito especialmente,
para aqueles com fins político-administrativos. No Brasil, como na maioria dos
países europeus e no resto das Américas, se tinha como pressuposto que a
pintura destinada a ornar tais edifícios deveria ser uma expressão dos
sentimentos coletivos, da própria “alma” do povo: tanto quanto embelezar as
construções que a abrigavam, ela deveria, portanto, educar e propagar valores
políticos e morais que concorriam para a afirmação do regime vigente. Como bem
resumiu Valéria Salgueiro:
8.
Nas democracias liberais, assim como nos países
socialistas do século XX, uma arte para atingir o público ganhou espaço
conforme se ampliaram a própria ideia de público e o tamanho do Estado. Em
prédios públicos, amplas paredes vieram abrigar uma ação didática sobre a
consciência coletiva no plano simbólico, visando a despertar o sentimento
patriótico. Paredes e tetos de palácios de governo, assembleias, tribunais,
bibliotecas e teatros forneceram, nesse sentido, suportes privilegiados para a
projeção do discurso oficial numa linguagem visual captada imediatamente pelos
sentidos, acessível mesmo aos não alfabetizados. Em muitos lugares do mundo
buscou-se fortalecer a identidade nacional apelando ao patriotismo com o
trabalho de figuração em imagens alusivas ao pretendido passado comum, aos
mitos de origem e de fundação, aos heróis venerados e, enfim, ao processo
histórico da nação.[9]
9.
Em
termos iconográficos, essas funções de persuasão da população e de celebração
do regime republicano brasileiro se refletiram, como
não poderia deixar de ser, na predileção por uma temática inspirada na História
do Brasil, mas também no amplo uso da alegoria e no desenvolvimento de
repertórios ornamentais baseados em elementos da fauna e da flora brasileiras,
bem como em manifestações culturais tidas como autóctones - como, por exemplo,
a cerâmica Marajoara. O interesse pela criação desses repertórios ornamentais
brasileiros, aos quais aqui faremos apenas uma breve referência, pode ser
verificado já na primeira década do século XX, na obra de Eliseu Visconti, mas a sua
difusão ganhou contornos mais expressivos nos anos 1920, como comprovam os
trabalhos de Theodoro Braga,
do paranaense João Turin, entre outros artistas.
10.
O
projeto republicano de “releitura” da História do Brasil e de culto das
virtudes e valores nacionais acabaria por ser reproduzido na esfera mais
restrita dos Governos Estaduais, tendo o advento da República contribuído para
uma maior valorização dos personagens e acontecimentos regionais carregados de
importância simbólica. Em razão disso, muito se desenvolveu, na 1ª República, a
relação, ainda insuficientemente estudada, entre a historiografia produzida nos
chamados Institutos Históricos e Geográficos espalhados pelo país e os pintores
encarregados de decorações públicas. Um dos exemplos pioneiros, nesse sentido,
é a obra de José Ferraz de Almeida
Jr., A partida da monção, de 1897 [Figura
5]. Essa grande tela, mostrada no Rio de Janeiro na Exposição Geral de
1898, representa a saída de uma caravana de antigos colonizadores paulistas, às
margens do Rio Tietê [10]. À época, ela se inseria no esforço de
criação de uma identidade regional que levou instituições como o Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, o Museu Paulista, a Academia Paulista de
Letras e o jornal O Estado de S. Paulo, a produzir um discurso
laudatório que, entre outros aspectos, conduziu à glorificação dos
bandeirantes.
11.
Em
termos formais, A partida da monção apresenta características que vamos
reencontrar em parcela significativa das pinturas decorativas da 1ª República,
como o clareamento da paleta cromática e a severa contenção dinâmica da
composição e da maioria dos personagens. No nosso entender, essas
características visavam, em última análise, à já referida inserção da obra em
um conjunto arquitetônico. Elas são reveladoras, ainda, do intenso diálogo que
os brasileiros estabeleceram com a obra de pintores franceses que, na aurora do
século XX, eram celebrados como os maiores decoradores de seu tempo - artistas
como Benjamin Constant, Jean-Paul Laurens, e, muito
especialmente, Pierre Puvis de Chavannes.
12.
Entre
os quadros de grandes dimensões destinados à decoração de prédios públicos,
retratando momentos emblemáticos da História do Brasil e realizados na virada
do século XIX para o XX, cumpre fazer uma menção particular tanto à pintura de Belmiro de Almeida, Os
descobridores (1899) [Figura
6], hoje no Museu Histórico do Itamaraty, quanto à série concebida por Antonio
Parreiras para ornamentar o antigo prédio do Supremo Tribunal Federal do
Rio de Janeiro - o quadro Suplício de Tiradentes (1901) [cf. Figura 1],
mais os painéis A chegada (1900) e A partida (1902) [Figura 7].
Em termos formais, essas obras partilham muitas das características às quais
acima nos referimos com relação A Partida da
Monção, como a mesma predominância de tons neutros e relativamente pouco
contrastados, na paleta, e a mesma contenção dinâmica, na composição. Porém, se
recordarmos a função celebrativa que supostamente
deveria nortear as pinturas decorativas, o que mais chama atenção nessas obras
é a sua ambiguidade.
13.
N'A
partida de Parreiras e mais ainda n'Os descobridores de Belmiro, o
“marco inaugural” da nação não é representado como um fato glorioso, mas, muito
pelo contrário, se configura como um momento de abandono e melancolia, no qual
os colonos se encontram desprotegidos diante de uma natureza inculta e
aparentemente árida. Poderíamos deduzir desse fato que, nos anos inicias do
regime republicano, a renovação da pintura decorativa se dava não apenas
através da absorção de novos partidos formais, inspirados na pintura europeia
contemporânea, mas comportava também um olhar crítico lançado à arte
nacionalista produzida durante o Império: isso implicava no rompimento com uma certa perspectiva idealista e laudatória que fora até
então muito comum, deixando abertas novas portas para a interpretação dos fatos
marcantes do passado nacional.
14.
Se
essa referida ambiguidade é por vezes detectável nas decorações realizadas por
pintores cuja formações artísticas remontavam aos anos
finais do período Imperial - como foi o caso de Parreiras e Belmiro -, ela é
menos evidente nos trabalhos de uma geração mais nova de pintores, aquela
formada já no período republicano sob os auspícios da reformada Escola Nacional
de Belas Artes. Exemplos inequívocos de decorações comprometidas com a
exaltação da nação e com o culto patriótico podem ser encontrados, por exemplo,
nos já referidos Palácios Pedro Ernesto e Tiradentes, sedes do poder legislativo erguidas no Rio de Janeiro nos anos 1920.
15.
Logo
acima da escadaria que domina o vestíbulo do Palácio Pedro Ernesto, por
exemplo, se descortina o grande tríptico pintado por Eliseu Visconti, Alegoria
à Cidade do Rio de Janeiro (1920-1923) [Figura 8a],
que celebra, entre outras motivos, dois vultos
históricos que foram fundamentais para a configuração moderna da então Capital
Federal, o médico-sanitarista Oswaldo Cruz e o prefeito Pereira Passos [Figura 8b].
Mas é no Palácio Tiradentes [Figura 9]
que vamos encontrar o exemplo talvez mais orquestrado e complexo de exaltação
cívica através de imagens realizado durante a 1ª República.
16.
Esse
edifício, que hoje abriga a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, teve a
sua pedra inaugural assentada em junho de 1922. Sua construção se inseria no
processo de remodelação da paisagem urbana carioca, iniciado às vésperas das
comemorações do centenário da Independência e que foi marcado por ações
reformadoras de enorme envergadura - a mais radical delas tendo sido, sem
dúvida, o desmonte do Morro do Castelo. Atendendo à demanda da Câmara dos
Deputados por uma nova sede, o Palácio Tiradentes veio ocupar o local onde
antes se erguia o prédio da Cadeia Velha. A escolha do sítio já estava
impregnada de simbologia: ali o inconfidente Tiradentes,
mártir da liberdade política brasileira e patrono do novo edifício, ficara
detido em seus últimos dias de vida. Além disso, a Cadeia Velha possuía uma
longa tradição legislativa, se constituindo assim como um eixo de continuidade
na vida parlamentar do país, uma vez que, por mais de sessenta anos, nela
funcionara a Assembleia do Império.
17.
Nas
dispendiosas obras de construção do Palácio Tiradentes trabalharam alguns dos
mais prestigiados artistas brasileiros da 1ª República. No plano arquitetônico
geral do prédio, nas suas decorações pintadas e esculpidas, e mesmo nos seus
detalhes ornamentais, é possível “ler” um discurso em linguagem imagética
representativo das concepções políticas e ideológicas que então oficialmente vigoravam, discurso esse centrado na noção de um projeto de
nação brasileira consolidado essencialmente a partir das leis. É esse o
caso de alguns painéis que o Palácio abriga e que, não portando propriamente as
características formais que acima enumeramos com relação às pinturas
decorativas, se aproximam mais dos gêneros tradicionais da pintura histórica e
do retrato coletivo: O primeiro capítulo da história pátria: A carta de Pero
Vaz de Caminha, de Aurélio de
Figueiredo; O primeiro capítulo de nossa história parlamentar: A
participação dos deputados brasileiros nas cortes constitucionais portuguesas,
de Fiúza Guimarães; e Os
constituintes de 1891 no antigo Paço da Quinta da Boa Vista (1926),
quadro de Eliseu Visconti que figura como peça central no recinto do Plenário.
18.
É
no mesmo sentido da fixação em imagens de uma unidade nacional com raízes
legislativas que podemos compreender parte das decorações da imponente cúpula
que domina o Plenário - a peça central do Palácio e a sua verdadeira razão de
ser -, feitas por Rodolpho Chambelland, auxiliado por seu irmão Carlos, entre 1925 e 1926. A
escolha da linha interpretativa da História do Brasil e dos momentos
significativos a serem representados nas oito pinturas que figuram na cúpula
teria recaído sobre o prestigiado Alfonso Taunay, que propôs o tema dos
painéis, Os pontos cardeais da História do Brasil: dispostos como uma
bússola em volta do vitral representando o céu do Rio de Janeiro em 15 de
novembro de 1889, os painéis estão divididos em duas linhas temáticas distintas
que dialogam entre si, compondo uma visão panorâmica do passado brasileiro.
Assim, os quatro painéis maiores contam a evolução política do país - A
catequese [Figura 10a], O Governo Geral [Figura 10b],
A Monarquia [Figura 10c] e, sobre a Mesa Diretora, A República
[Figura 10d] - e se alternam com outros quatro painéis
menores, cujos temas se referem ao processo de formação territorial do Brasil -
Cabral chegando ao Novo Mundo [Figura 10e],
A luta pela expulsão dos invasores estrangeiros [Figura 10f],
As bandeiras [Figura 10g] e O Barão de Rio Branco definindo os
limites territoriais [Figura 10h] [11].
19.
Nessas
obras monumentais, todas com mais de seis metros de altura e marcadas por uma
fatura divisionista, os Chambelland
optaram por um registro mormente laudatório, inserindo
retratos bastante estilizados de personagens históricos em um contexto
alegórico. Essa mistura é especialmente notável nos grandes painéis da Monarquia
e da República, que, retomando o partido dos tradicionais triunfos
renascentistas [12], apresentam cortejos nos quais alguns
dos principais vultos do país se encontram cercados de figuras simbólicas. Em todas esses painéis, os retratos dos heróis nacionais se
encontram localizados na parte inferior da composição e são marcados por uma
relativa definição; à medida que se aproximam da parte superior, todavia, as
pinturas se tornam progressivamente mais diáfanas e se desvanecem, a ponto dos putti e das figuras femininas aladas que nelas
aparecem se tornarem quase indistinguíveis. Cromaticamente, predominam os já
referidos tons neutros e o branqueamento da paleta, favorecendo a integração
das pinturas na superfície de cantaria nua que compõem a cúpula e que
transparece nas molduras que cercam e separam os painéis.
20.
Em
outros conjuntos decorativos do Palácio Tiradentes, o domínio do registro
alegórico é total. É o caso dos cinco painéis realizados por João Timótheo
da Costa para o teto do Salão de Honra [Figura 11a].
No painel central desse ciclo, se encontra uma grande representação da República
figurada como uma mulher portando o barrete frígio [Figura
11b], derivada da conhecida iconografia inaugurada com a Revolução
Francesa, que pode ser vista também em um dos referidos painéis dos irmãos Chambelland. A República se encontra cercada por dez
outras figuras alegóricas, que, segundo o pesquisador Carlos Eduardo Sarmento,
remetem às grandes datas nacionais, compondo uma espécie de calendário cívico
brasileiro: “Situar tal conjunto na chamada Sala de Honra do Palácio tinha sido
uma atitude completamente intencional, afinal, aquele deveria ser o espaço
consagrado às grandes festas e celebrações do civismo brasileiro”[13].
21.
Já
os frisos que decoram a chamada Sala do Café, espaço concebido para o
convívio informal dos deputados no Palácio Tiradentes, são de autoria de um outro destacado artista da 1ª República, Carlos Oswald. Os dezesseis
painéis - que ostentam dizeres como O despertar da raça; A energia da
raça vence a força bruta [Figura 12a];
A união dos Estados; O trabalho, sementeira do futuro [Figura 12b],
etc. - nos apresentam uma espécie de trajetória
épica do Brasil, uma visão feérica e vigorosa da nação, que mescla alguns dos
motivos caros ao artista com reminiscências de uma idealizada idade de ouro
mediterrânea. Eles refletem, assim, algo da obra de artistas do movimento
artístico italiano conhecido como Novecento
(boa parte da formação de Oswald, cumpre lembrar,
se dera na Itália, país cujas tendências estéticas certamente o inspiraram).
Simultaneamente, as pinturas da Sala do Café antecipam muito daquela
retórica de exaltação dos tipos humanos brasileiros que seria
comum no Estado Novo e que se encontra exemplarmente materializada nas
decorações que Candido Portinari
realizaria para o prédio do antigo Ministério da Educação, no final dos anos
1930 [Figura
13].
22.
Em
termos formais, os painéis de Oswald ostentam características que se afastam
das observáveis em outras decorações acima referidas, como um
cromatismo mais intenso e, especialmente, fortes contrastes de
claro-escuro. Essas características parecem decorrer, todavia, de um desejo de
integrar as obras ao ambiente arquitetônico em tudo análogo ao que nos
referimos como o responsável pela própria possibilidade de autonomização, no
século XIX, de um modo decorativo: A Sala do Café tem suas
paredes e teto revestidos de lambris de madeira escura entalhada, remetendo ao
chamado estilo Elizabetano quinhentista, e se
Oswald tivesse dado às suas pinturas um aspecto semelhante às dos Chambelland ou de João Timótheo,
elas simplesmente se “apagariam” no contexto que as abriga. Deduz-se disso,
que, durante a 1ª República, se estabelecera uma intricada relação de complementaridade
entre a pintura decorativa e a arte da decoração de interiores, relação esta
digna de um estudo exclusivo e que aqui não podemos fazer mais do que indicar [14].
É nossa intenção, todavia, conferir em trabalhos futuros o necessário
aprofundamento às pesquisas que nosso tema multiforme e rico de implicações
merece e mesmo exige.
________________________
* O presente artigo é uma
versão ampliada da comunicação apresentada no I Encontro Nacional de Estudos da
Imagem (Londrina, maio de 2007), e publicado em GAWRYSZEWSKI, A. (coord.). A
pintura decorativa e a construção da identidade brasileira na 1a República. In: Encontro nacional de
Estudos da Imagem (Anais). Londrina : UEL, 2007, p. 892-896.
[1] “Entre 1820 e 1860,
l’Allemagne occupe la première place, avec les immenses décors peints par les
Nazaréens revenus de Rome et par ses disciples [...] La France, toutefois,
n’était pas en reste” (VAISSE, Pierre. La IIIe République et les Peintres. Paris:
Flammarion, 1995, p. 180).
[2] Nessa esfera de trabalhos
para os governos Estaduais, foi bastante prolífica a atividade de Antonio Parreiras, provavelmente o artista fluminense que
mais recebeu encomendas de decoração fora do Rio de Janeiro: já em 1907, Antonio Parreiras pintara uma grande tela, a Conquista
do Amazonas, para o Palácio do Governo do Pará; outros trabalhos
incluem Fundação de São Paulo e Instituição da Câmara Municipal de
São Paulo, encomendas do prefeito de São Paulo; Frei Miguelinho, encomenda
do governador do Rio Grande do Norte; José Peregrino, encomenda do
governador da Paraíba; Anchieta, adquirido pelo governador do Espírito
Santo; Felipe dos Santos, encomenda do governador de Minas Gerais; Jornada
dos mártires, encomenda do prefeito de Juiz de Fora; O
primeiro passo para a Independência da Bahia, encomendada
pelo governador da Bahia e também pela Intendência da Cidade de Cachoeira; Proclamação
da República de Piratini, encomenda do governador do Rio Grande do Sul (a
esse respeito ver SALGUEIRO, Valéria. A arte de construir a nação - pintura de
história e a Primeira República. Estudos Históricos, Arte e História, n.
30, 2002/2, p. 6 sg.).
[3] A pesquisa nas
seções de Pintura e Artes Aplicadas dos catálogos das Exposições
Gerais de Belas Artes realizadas entre 1894 e 1930 revela mais de sessenta
obras que apresentam no título a designação decorativo;
cf. os dados disponibilizados por Carlos R. M. Levy em seu site: http://www.artedata.com/crml/
[4] Essa definição é referida por teóricos
como Pierre Vaisse, na obra citada
na nota 1, e por Roger
Benjamin, segundo o qual: “According
to both academic theory and studio parlance in the nineteenth century,
decorative painting was primarily that intended for particular architectural
locations: murals painted directly onto plaster (in the Italian tradition), or
else on canvas glued or impaneled onto the wall (in France)” (BENJAMIN, Roger. The decorative landscape,
fauvism, and the arabesque of observation. Art Bulletin, junho 1993, vol. 75, n. 2, p. 304).
[5] Cf., nesse
sentido, a diferenciação entre tableaux e peinture
decorative exposta por Pierre Vaisse (VAISSE. Op. cit. , p. 175-176).
[6] O
termo modo é entendido aqui no sentido proposto pelo historiador Jan Białostocky, ainda no
início dos anos 1960. Procurando compreender a pluralidade estilística
encontrada na produção de certos aristas ou momentos
históricos, Białostocky retomou então as
ideias do pintor francês seiscentista Nicolas Poussin
que, em uma carta a um de seus protetores, o Chevalier de Chantelou,
fazia referência aos modos da música grega (Dórico, Frígio, Lídio,
etc.) e afirmava que as pinturas deveriam ser compostas em modos diferentes,
de acordo com o caráter do seu tema e/ou a função a qual se destinavam (cf. Carattere. In: Enciclopedia Universale
dell’Arte. Venezia-Roma: Instituto per la collaborazione culturale, 1960, pp.114-119, v.III;
e BIAŁOSTOCKY, Jan. Das Modusproblem in den bildenden Kunsten: Zur Vorgeschichte
und zum Nachleben des 'Modusbriefes' von Nicolas Poussin.
Zeitschrift für Kunstgeschichte, 24 Bd., H. 2, 1961, pp. 128-141, artigo do qual
existe uma tradução espanhola: El problema del modo en las artes plásticas. In: Estilo
e Iconografia: Contribuicíon
a una Ciencia de las Artes. Barcelona: Barral Editores, 1973, p.
13-38).
[7] Cf. MÉRIMÉE, Prosper. De la peinture
murale et de son emploi dans l’architecture moderne. In: Revue de
l’architecture et des travaux publics, 9, 1851, col. 258-273 e col.
327-337, em particular a parte VIII. Des compositions historiques.
[8] “On veut que la peinture
murale, noble et belle, mais circonspecte, compléte avant tout l’architecture
qu’elle décore” (Citado em PRICE, A. B. L'esthetique decorative de Puvis de
Chavannes. In: FOUCART, Jacques (org). Puvis de Chavannes, 1976, p. 22).
[9] SALGUEIRO,
Valéria. Op. cit., p. 2-3.
[10] A partida da
monção se encontra descrita no Catálogo da Exposição Geral de 1898 da
seguinte maneira: “Os antigos paulistas assim denominaram a caravana que sahia do Porto Feliz, descendo o Tieté,
para Cuyabá. As de que se trata eram organizadas
simplesmente por destemidos e ousados sertanejos, que, inspirados pelo amor do
desconhecido, descoberta de minas e civilisação dos
bugres, em toscos batelões cobertos de palha e simples canôas,
partiam conscientes de que iam arrostar com sacrificios
inauditos toda a sorte de aventuras, constituindo-se por isso uma tradição. O
quadro exposto representa a partida desses heróes
que, depois da missa na igreja de Nossa Senhora da Mãi
dos Homens, acompanhados do padre, capitão-mór e
povo, embarcavam-se, no Porto Geral, recebendo a solemne
benção da partida”.
[11] Para uma descrição
mais detalhada desses painéis, ver BELOCH, I.;
FAGUNDES, L. R. (coor.); SARMENTO, C. E. (texto). Palácio
Tiradentes: 70 anos de história. Rio de Janeiro: Memória do Brasil,
1996, p. 68sg.
[12] Cumpre lembrar,
que a tipologia dos triunfos (ou apoteoses) fora comum na pintura
decorativa francesa de finais do século XIX (cf. VAISSE, P. Op. cit., p.
298-299) e já Eliseu Visconti a havia empregado, em uma composição um tanto
mais complexa, quase duas décadas antes, em sua pintura do pano-de-boca para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. (cf. imagem)
[13] BELOCH, I.; FAGUNDES, L. R. (coor.);
SARMENTO, C. E. (texto). Op. cit., p. 66.
[14] Uma breve
consideração a respeito desse tópico pode ser consultado
em: VALLE, Arthur.O diálogo entre pintura decorativa
e decoração de interiores nas artes da 1a República brasileira. In: XIV
Encontro da Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ - Arte e Espaço:
Ambientações Híbridas (Anais Eletrônicos). Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
Disponível em: http://www.eba.ufrj.br/ppgav/lib/exe/fetch.php?media=anais_encontros:xiv:arthur_valle.pdf
Acesso em 1 ago. 2012