Figuras brasileiras: artigos escolhidos de Virgilio Mauricio

organização de Ricardo Giannetti

GIANNETTI, Ricardo (org.). Figuras brasileiras: artigos escolhidos de Virgilio Mauricio. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/rg_txts_vmauricio.htm>.

*     *     *

Os quatro artigos do escritor e pintor alagoano Virgilio Mauricio [Figura 1] selecionados para o presente trabalho fazem parte dos livros Algumas Figuras (1918) e Outras Figuras (1925). A resolução de transcrevermos somente textos sobre pintores brasileiros encontra-se, de certa forma, em desacordo com um dos propósitos do autor. De fato, a organização dada por Virgilio aos seus livros acolhe matérias sobre artistas brasileiros e estrangeiros, sem distinção. Constam, nos mencionados volumes, nomes que bem exemplificam este pensamento: Emilio Cardoso Ayres, Columbano, Antonio Carneiro, Victor Meirelles, Pedro Americo, Rodin, Aleijadinho, Lopez Mezquita, Henrique Cavalleiro, Antonio Alice, Arthur Timotheo, Constantin-Emile Meunier, Zeferino da Costa, Léon Bonnat, para citar alguns.

Dentre os artistas brasileiros, elegemos três estudos sobre aqueles que, julgamos, despertavam especial atenção de Virgilio e, a par disso, tiveram suas obras mais raramente expostas e estudadas. Desta forma, a seleção que tomou como fonte o livro Algumas Figuras envolve artigos sobre pintores originários das antigas províncias da região nordeste do país: seu professor, o alagoano Rosalvo Ribeiro [Figura 2], o pernambucano Telles Junior e o baiano Manoel Lopes Rodrigues. Um fato chama atenção: quando se deu a publicação do livro, em 1918, os três pintores acabavam de desaparecer, quase em sequência: Telles em 1914, Rosalvo em 1915 e Rodrigues em 1917. Contribuem assim os escritos de Virgilio para uma reflexão sobre a formação desses artistas, sobre suas carreiras difíceis, marcadas pelo isolamento profissional.

Na sequência, transcrevemos, a partir do livro Outras Figuras, um artigo sobre o então já consagrado Eliseu Visconti, residente e atuante no Rio de Janeiro, merecedor de toda sua admiração. No curso dos parágrafos iniciais do texto, com palavras desfavoráveis e um tanto desmedidas, Virgilio elenca críticas a alguns artistas que se apresentaram na Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1924. Adiante, mudando o tom, analisa a obra de Visconti. Com fundamento na proposta de divisão da sua produção pictórica em três grupos - "retrato, decorações e pintura de gênero, incluindo a paisagem" -, menciona em especial: a) os retratos de Gonzaga Duque de Nicolina Vaz e do prefeito Pereira Passos; b) as obras do Theatro Municipal e o tríptico do Conselho Municipal; c) as pinturas de gênero e paisagem; os estudos preliminares a carvão, pochades e apontamentos. Virgilio observa, no conjunto dos trabalhos, o bom entendimento e emprego da luz e dos volumes, e destaca, com ênfase, a extrema correção do desenho. Ressalta, sobretudo, a pesquisa contínua empreendida pelo pintor, característica que perpassa toda sua obra.

Anotou o próprio Virgilio Mauricio no prefácio do livro que ora publicava: "Outras Figuras - pequenas impressões a respeito de artistas nossos e nomes estrangeiros. O único mérito destas páginas é o de lembrar alguns perfis, talvez esquecidos. Nesta lembrança adormecem estes escritos e se eles conseguirem o fim a que foram destinados, está recompensado o meu esforço."

*

ROSALVO RIBEIRO [1] [2]

Era um verdadeiro artista.

Rosalvo Ribeiro foi desenhista desde sua primeira infância. Antes de cursar a antiga Escola de Bellas Artes, já havia ele revelado o seu grande talento nos retratos executados em Alagoas, seu Estado berço. Aos 18 anos matriculou-se em nossa Academia, obtendo, três anos depois, a medalha de ouro com a exposição de seu magnífico trabalho - Archimedes. Depois desse grande encorajamento Rosalvo, cheio de fé, de energias, seguiu para Paris.

O concurso brilhantíssimo com o qual no Rio de Janeiro, obtivera medalha de ouro, era suficiente, suficientíssimo, para em outro prévio, ser admitido na Escola de Bellas Artes de Paris. Não pensou assim o jovem pintor. Quis trabalhar alguns meses na grande capital, para, com tranquilidade e consciência, entrar no concurso de admissão e dele sair vitorioso.

Escolheu a Academia Julien, nesse tempo dirigida pelo ilustre mestre, o sábio Jules Lefèvbre.

Suas grandes aptidões para o desenho e para o modelado, lhe valeram a admiração de seu mestre que lhe aconselhou a ampliação de seus conhecimentos na Escola de Bellas Artes.

Rosalvo Ribeiro decidiu-se. E, quando toda a natureza sorria pela volta da primavera e as árvores se revestiam de folhas novas, as flores mais belas se tornavam, o jovem alagoano pedia sua admissão. Escolheram uma estátua grega e Rosalvo a executou magistralmente. Foi admitido e conquistou o primeiro lugar em desenho.

Nele pode-se então constatar do que é e do que vale o ensino superior em Paris. Coube a Bonnat a educação definitiva de Rosalvo Ribeiro, tarefa aliás que não lhe não foi pesada, pois encontrou no jovem educando, qualidades extraordinárias aliadas a uma ciência e compreensão do desenho que o surpreenderam, e daí a estima pessoal que votou sempre ao jovem discípulo, o melhor desenhista do seu curso.

Em Paris, conversando em meu atelier com aquele grande mestre fiz-lhe ciência ter sido eu discípulo de Rosalvo Ribeiro ao que imediatamente respondeu: - "C'est un dessinateur; il a été un très bon élève".

Está aí sintetizada a grande maestria que ele possuía em desenho.

Depois de brilhantes encorajamentos, Rosalvo, como todos os artistas novos, resolveu expor no Salon. Ducasble que muito o admirava, batizou seu primeiro trabalho. Admitido, consagrado pelo juri, a imprensa, sobretudo a portuguesa, teceu ao belo quadro Innocencia os mais francos louvores.

Entretanto Rosalvo não estava contente.

Fechado no seu atelier, quase sem o convívio dos seus colegas, executou essa admirável página de guerra La Soumission [Figura 3], expondo-a em seguida. Foi o triunfo.

A imprensa francesa a reproduziu em vários formatos e a crítica foi unânime em elogios.

Détaille foi pessoalmente felicitar o jovem colega, admirado de sua audácia e de seu grande valor como compositor. Ficou assim Rosalvo considerado como impecável na composição.

Em 1898, ele viu as portas do Salon se abrirem e com orgulho, para receberem sua tela La Charge. Sua fatura lhe granjeou os maiores encômios como técnico. Seus colegas comentavam admirando sua manière individual e inconfundível, e a belle pâte de seu quadro é um atestado dos mais eloquentes.

A todos a obra deixava impressões perduráveis, reveladoras de um grande temperamento, de um mestre em suma. Por conseguinte não lhe faltou nem a ciência da composição, nem a do desenho, nem tampouco a compreensão do que hoje parecer ser a "verdade em Arte".

Rosalvo assim conquistou, como técnico, pela sua fatura, os mais sinceros estímulos.

*     *     *

Encontramos na grande obra de Rosalvo Ribeiro, esta fatura nobre, cheia de probidade, despida de qualquer artifício, que é a marca mais característica, mais distinta de sua pintura, como foi a de seu belo caráter. [3]

O que domina, entretanto, na obra do grande mestre, aniquilando quase tudo o mais e que dela se desprende, como esses perfumes que se evaporam de certas essências preciosas, é o desenho que para ele representou sempre a sua preocupação constante. Esta espécie de idolatria pela ciência-mater se alargou de um modo tão extraordinário, que tanto seus mestres, como seus colegas, o chamavam de desenhista sábio.

Efetivamente ele considerou sempre como secundária a questão da cor.

Na opinião dos entendidos, é realmente a forma, a base, não só da pintura, como de toda Arte plástica.

Se atentarmos num estudo rápido sobre a obra dos grandes mestres, observamos a ausência de coloração, devido justamente à influência descorante do tempo e decomposição química das tintas. O que ficou, o que nos é dado admirar, é a correção do desenho, a beleza imorredoura dos claros e escuros, dos valores em suma.

O desenho não desaparece.

Pode viver por si só, sem o auxílio e revestimento das cores materiais.

Ele é que define as formas e individua as cores. Por conseguinte, para o mais exigente, as telas de Rosalvo Ribeiro são exemplos de precisão no senso das medidas. Como que o pintor se inspirara sempre na Lição de anatomia de Rembrandt.

Como colorista procurou ele de preferência os tons frios. Suas obras nos seduzem pela simplicidade dos tons e pela harmonia do conjunto. Abandonou por completo as tendências de sua mocidade e mesmo de seu País.

Esqueceu com viva rapidez o nosso gosto pelas cores berrantes. Suas telas proclamam o triunfo das cores neutras. E sua palheta foi um pouco como seu desenho: grande sem ser teatral.

*

TELLES JUNIOR [4]

Para o pintor de paisagens é tão necessário o estudo da estrutura dos troncos, das formas, do contorno geral das árvores, como para o pintor de figuras é o estudo da anatomia. Telles Junior compreendeu a veracidade desta afirmação. Sua paisagem é, digamos, anatomicamente estudada.

Telles foi um paisagista insigne. Educou a sua retina à custa de um trabalho constante, retificou os seus estudos de desenho, da ótica das cores, da perspectiva linear e aérea.

Daí a maior parte dos seus trabalhos ser de um desenho impecável, como exatas são a perspectiva e a distribuição da luz e das sombras, natural o colorido e flagrantemente apanhado o contraste das cores. O que, porém, mais surpreende nas paisagens de Telles é a escolha do motivo. Sua paisagem é real. Feia ou bonita, monótona ou pitoresca, nos quadros de Telles está a mata pernambucana, ora banhada pela luz do sol que, desenhando os primeiros planos e as irregularidades dos terrenos, vai morrendo numa sinfonia de tons característicos, e se espalha em fulgurações de prata nas águas dormentes de um ribeiro; ora em toda a rudeza inculta do vale agreste habitado de coqueiros, que em Telles encontram o intérprete máximo.

É no estudo minucioso da vegetação a ponto de se classificar botanicamente a árvore pela sua folhagem e pela sua estrutura, no estudo detalhado da verdade do terreno, na observação constante dos efeitos desgraciosos ou belos, que Telles demonstra um grande amor à natureza de sua terra.

Nas telas pintadas em Pernambuco, as praias, os interiores das florestas, as águas tranquilas e silenciosas, sente-se a maestria do artista que apreendia com assombrosa facilidade as diversas variações da paisagem tropical e as transplantava para a tela com o mesmo calor, com a mesma vida.

O musgo aveludado que beija as pedras dos riachos e se alastra às vezes pela superfície das águas, as meias tintas e os tons verdes em escala crescente, notas de dificílima execução, tiveram no pintor nortista um perpetuador eterno e magnífico. Toda a sua arte é feita de verdade e de sinceridade.

Não cansa nem pela análise da minúcia, pela precisão do detalhe, nem esmorece no modelado do contorno geral das linhas, na exatidão dos valores, na propriedade dos coloridos. Mas é em pintando os coqueiros que o artista tem a sua alma.

Esta aranha solta no espaço, conforme a expressão de um dos nossos escritores, é a glória do velho paisagista.

Telles transporta o coqueiro para a tela cheio de vida e de movimento. Nas ventanias sob um céu de trapos, um céu de tempestade, destacam-se os coqueiros, ora isolados, ora em grupos, açoitados pelo vendaval.

A execução é sempre magistral.

Lembro-me de uma pequena tela de Telles. É um princípio de borrasca. O céu está carregado de nuvens acinzentadas e violetadas. Chove. Ao longe descortina-se uma cabana cercada de árvores. No primeiro plano dois coqueiros parecem se abraçar em desafio à tempestade que se desenrola.

Recordei-me dos versos de Ducis:

"Voyons-nous dans les airs, sur des rochers sauvages

Deux chênes, s'embrasser pour vaincre les orages;

Nous disons: C'est ainsi qui du destin jaloux

L'un par l'autre appuyés, nous repoussons les coups."

E quem sabe se o grande paisagista não se inspirava nos versos do poeta francês?

É de uma flagrância absoluta.

Os dois coqueiros isolados reúnem-se, para num supremo esforço reagir contra o furacão.

Conseguem porque:

"Contre deux amis la fortune est sans armes."

E toda paisagem de Telles é assim - pensada e refletida.

Em vida viveu ele num circulo de amigos e admiradores. Depois de morto, reunidos os amigos e inimigos, se os teve, completarão este círculo que é por excelência a figura geométrica da terra e do raciocínio humano. [5]

*

LOPES RODRIGUES [6]

O pintor Lopes Rodrigues morreu no mais completo esquecimento. Foi um artista que permaneceu longos anos na Europa, estudando e trabalhando para o aperfeiçoamento de sua arte. Viveu numa época feliz, nos últimos dias de vida de Courbet que aplaudiu, em seu leito de morte; Degas, Renoir e os grandes impressionistas Claude Monet, Sisley, Pisaro e Maurice Dinis [sic].

Em França, depois de Gustavo Flaubert, dos Goncourts, de Zola, em literatura; Bizet na música e Jean Richepin na poesia, se acentuavam os traços definitivos da grande evolução por que passava a arte francesa em todos os seus aspectos. Lopes Rodrigues chegou para a vida, para a luz em plena floração. Começou a trabalhar. Iniciou pela academia e fez progressos sensíveis. Baniu por completo os estudos em que a mitologia era o ponto principal. Desejava traduzir a vida, a vida dos nossos dias, as paisagens, as chaminés, e as fábricas, as velhas pontes, a agonia de uma árvore e a agonia de um sentimento...

A mulher na sua beleza real, no desnudo, não o impressionava; ele a sentia na sua época, com a sua toilette diária, elegante ou comum.

A sua melhor obra é o retrato de mulher que, vestida de negro, é expressivamente executada. As meias tintas afirmam a maestria do artista e o desenho é uma apoteose às leis a que Ingres consagrou a sua vida. Foi exposto no "Salon Officiel de Paris" e o júri esteve quase a conferir-lhe uma menção honrosa. Faltaram alguns votos. Lopes Rodrigues não desanimou e apresentou depois uma página de intenso vigor e de uma bela composição. Era a tela sacra - "As commungantes" ou melhor "Primeira communhão".

Estudei demoradamente esse trabalho rico de contraste e rico de ideia. Guardo ainda a melhor impressão.

Nos seus retratos pintados em Paris, encontram-se todas as suas qualidades de pintor e de colorista. São em geral executados magistralmente.

Os pequenos estudos, as pochades e os desenhos são significativas étapes dessa vida que se apagou sem o fulgor da notoriedade, sem o brilho ofuscante de uma celebridade merecida.

Qual a causa principal desse aniquilamento artístico? - A nossa critica e a nossa indiferença e, sobretudo, a falta de polêmicas, de ataques e elogios (que naturalmente trariam o combate) que, despertando a curiosidade, apresentariam ao público a individualidade do artista, proclamando o valor de sua obra e a vitória da sua arte.

Não pode, e hoje tenho experiência e estudos que me permitem afirmar tal conceito, o artista viver sem o rumor da crítica, seja ela laudatória ou deprimente. O efeito é o mesmo, e as mais das vezes a injúria, a calúnia, o ataque trazem maiores benefícios.

Temos um exemplo frisante e bem dos nossos dias: - Rodin. Sua glória veio das terríveis polêmicas que surgiram quando suas obras eram expostas, muitas delas recusadas pelos Salões.

Aos cinquenta anos era Rodin ainda pobre, porém na sombra, na escuridão da noite, noite d'alma negra e mesquinha, os inimigos do artista solidificavam o seu futuro pedestal de glórias. Realizaram o desejo que nunca experimentaram e que, nem em sonhos, viera povoar-lhes os cérebros pesados e carcomidos de inveja e de ódio. Rodin apareceu vitorioso, iluminando a França e o mundo civilizado. Sua obra ficou eterna.

André Arnyvelde, escrevendo sobre Rodin, assim se expressou: "L'amertume ne pouvait être que passagère en ce vaste coeur, un soufle d'orage éphèmère parmi frondaison du chêne, et qu'aujourd'hui, comme toujours, après chaque bataille, après chaque rancoeur, Rodin hausse les épaules, secoue la poussière des heures noires et, redevenu serein, lucide, se retrouve debout, toutes peines éteintes, calme et grandi devant sa glaise." Foi o que faltou a Lopes Rodrigues - o combate, a intriga.

Sua obra ao menos seria conhecida, porque a própria escola de Bellas Artes se mostra esquecida, fecha os olhos ante a majestade de alguns dos seus mais insignes representantes [7]. Faz-se política. O que encontramos de notável na pinacoteca daqui, assinado Rosalvo Ribeiro, Lopes Rodrigues, e Carlos de Azevedo? Quais as conferências organizadas pelo corpo de artistas que pertencem à nossa Escola, a respeito dos pintores nacionais? Quais as indicações ou catálogos explicativos da nossa riqueza artística e dos nossos pintores? Não se conhecem.

Um silêncio de claustro envolve a nossa arte e o nome dos nossos melhores artistas. É lamentável.

Daí a indiferença, o pouco caso, a quase não existência que o público decreta a certas manifestações do talento artístico, traduzindo pelo esquecimento que, como a poeira faz "lentamente sua obra silenciosa" pousou na obra e na vida de Lopes Rodrigues, o maior, o mais notável dos pintores da Bahia, dessa terra do Salvador que certo não esquecerá a memória do seu grande filho, a sua própria memória...

*

ELYSEO VISCONTI [8]

O Sr. Elyseo Visconti impõe-se e destaca-se na vida artística brasileira. O desprogresso de nossa arte, - a fraca percentagem de bons pintores evidencia-se em nossas exposições anuais. O salão brasileiro dá-nos a impressão de uma exposição de discípulos, discípulos na quase totalidade, medíocres.

Nenhuma obra forte faz vibrar o nosso povo. Nenhuma composição robusta e equilibrada. Nenhuma nota de emoção e de estilo. Não iremos aos novos que ainda deviam estar com o "fusain" a desenhar e a marcar; não. Vejamo-lo, por exemplo, em telas do Sr. Lucilio de Albuquerque - sem o menor sentimento de arte, falhas de desenho, de modelado, mal compostas, como o monstrengo da "Glorificação de Bilac", indigna de figurar em qualquer decoração barata de algum café da cidade nova; as figuras desarticuladas e sem volume do Sr. Guttmann Bicho, os cromos coloridos do Sr. Theodoro Braga, a eterna reprodução de trabalhos anteriores que o Sr. Baptista da Costa assina; os bonecos insignificantes do Sr. Bracet - para só falarmos dos nomes que figuraram na última exposição instalada na Escola de Bellas Artes. Refiro-me às telas que foram exibidas em 1924.

Foi um conjunto de obras despidas do menor sentimento de arte.

É certo que Helios Seelinger, Garcia Bento e Oswaldo Teixeira [9], virtuoses da cor e cheios de audácia, porém fracos ainda no desenho e anatomia, o primeiro e o último apresentaram telas com certo interesse, perdendo-se, entretanto, no ambiente geral, deficiente e desconcertante. Acentuou-se, nas próprias decisões do júri a mediocridade da exposição e das telas que foram admitidas, a tal ponto que nenhuma medalha de ouro foi conferida.

O mais curioso é que desejavam certos expositores que a medalha de honra destacasse um dos nomes do certame. Felizmente tal recompensa não foi votada. Votar em quem? Os poucos artistas esforçados que expunham, já tinham sido contemplados com a irrisória medalha de honra do Salão brasileiro, e os que a ela se candidataram - Santo Deus!! eram realmente dignos de admiração sincera, não pelo que expunham, mas pela coragem da pretensão. Não conseguiu o mais votado senão três votos - e já era muito...

No meio da anarquia artística que preside à organização da exposição anual, onde difícil é saber-se qual o critério adotado na admissão e na distribuição das recompensas, uma figura pela nobreza de sua arte, pela probidade, pelo desejo de trabalhar em busca da perfeição, a do Sr. Elyseo Visconti, distancia-se de tal modo, que se diria um exilado sereno que sabe ler num deserto em que a instrução, no seu mais alto grau é representada pelas primeiras letras, a carta de A. B. C. Estamos diante de uma grande consciência de artista; de um pintor que trabalha pelo amor de trabalhar, sem visar efeitos "pour plaire" ou lucros comerciais. As paisagens do Rio, que ilustravam as paredes da Escola de Bellas Artes, eram páginas de primeira ordem e fisionomizantes de uma personalidade definida.

A sua obra pode ser dividida em três grupos: retrato, decoração e pintura de gênero, incluindo a paisagem. O equilíbrio e a correção do seu desenho acentuam-se no retrato de Gonzaga Duque [Figura 4]; aí a técnica é rigorosa e larga. Os mesmos traços de vigor, as mesmas qualidades vivem no estudo onde a Sra. Nicolina Vaz é retratada com insuperável perfeição [Figura 5]. O prefeito Passos, por exemplo, foi motivo de vários estudos e de todos eles o Sr. Visconti se saiu galhardamente.

E o retrato de família? Aquele grupo admirável, onde o artista, na composição, soube harmonizar um conjunto de expressões que vivem no mesmo ambiente e que parecem sentir as mesmas sensações, que representa em nossa arte? Uma diretriz a ser seguida; uma sábia lição aos nossos pintores.

O Sr. Elyseo Visconti é um retratista que, fazendo arte, imprime nas suas telas as qualidades do modelo, sem fantasia, mas cheio de sinceridade e probidade indiscutível.

Como consegue este equilíbrio?

Pelo prazer de trabalhar. Antes de executar um retrato, ou mesmo uma paisagem, o Sr. Visconti faz sucessivos estudos a carvão, pochades, apontamentos. Ao passar para a tela, já está exercitado, já possui o sentimento dos valores, conhecendo, cientificamente, o das proporções. Daí o prestígio da sua pintura.

O decorador revelou-se no "plafond" do Municipal, indeciso e sem grandes méritos na composição, confuso nas linhas gerais e sem significação. O mesmo se verifica nas outras pinturas que guarnecem a sala de espetáculos.

Justiça merece o pintor e esta lhe é feita, quando se contempla o painel que guarnece o "foyer". Eis aí uma decoração de largo sentimento estético, de coloração magnífica, de composição agradável, servida por um bom desenho e justa nos valores.

No Conselho Municipal é ainda o Sr. Elyseo Visconti um triunfador. O seu tríptico tem qualidades, sendo que as de colorido sobrepujam todas as outras. Os painéis laterais, sobretudo o que retrata Oswaldo Cruz, são descritos com sinceridade e executados com maestria. Quer no desenho, quer na composição, quer no colorido, o Sr. Visconti soube tirar partido e imprimir uma nota nova e imprevista que representa, para o pintor, uma grande conquista nos seus processos de técnica e de visão. [10]

Todas as decorações que se espalham pelos nossos edifícios públicos são, em geral, deploráveis, e é de lamentar que o nosso governo consinta que tais monstrengos permaneçam a desvalorizar a obra dos arquitetos. Para não ficar sem exemplo, citemos as figuras ignominiosas do Sr. Rodolpho Amoêdo, as quais guarnecemos dois torreões do nosso Municipal. Mil vezes antes não tivesse o Sr. Amoêdo executado tais aleijões - e não só executado mas ter assinado! O que se vê, entre nós, em matéria de pintura mural, é pasmoso. Silenciemos.

Como pintor de gênero, o Sr. Elyseo Visconti tem apresentado páginas que o sagram mestre; como paisagista é o mesmo: equilibrado, sóbrio, sincero. Na personalidade do artista tomam vulto os seus processos técnicos, a sua ciência de desenhista. Efetivamente. Poucos dos nossos pintores sabem desenhar e poucos se preocupam com o claro-escuro.

Na série de trabalhos do Sr. Elyseo Visconti, o desenho é parte principal. Isoladamente, o artista é um desenhista de alto merecimento. Tem procurado um estilo para os seus carvões e está em vias de realizar a sua aspiração. Suas tendências atuais são baseadas na luz e nos volumes. O artista procura marcar os seus desenhos com massas luminosas e massas sombrias. Faz desaparecer os contornos na sua marcação comum e satisfaz-se, pelo modelado, em fazer sobressair um fragmento do modelo, obtendo os efeitos pelos contrastes e violências do claro-escuro.

Alguns dos seus desenhos lembram, pela unidade, os estudos de Eugêne Carrière mormente os que são executados a sanguínea, auxiliados pelo fusain. Nos croquis o artista é o mesmo, guardando em todos os seus apontamentos virtudes idênticas aos seus vigorosos trabalhos. Como técnico, tem viajado por vários caminhos e isto tanto no desenho como na pintura. Tem ensaiado o academismo, o clássico, sem ser acadêmico, o pontilhismo, o divisionismo. De todas estas pesquisas, reconheceu que o melhor era reproduzir o que via, pincelando e executando sem fórmulas, mas de acordo com o seu temperamento. Suas últimas obras, filhas deste conjunto de estudos, de esforço e de ânsia, já possuem personalidades própria, estilo e cunho tão acentuadamente pessoal, que dispensam assinatura.

Por todos estes títulos o sr. Elyseo Visconti representa, em nossa vida artística, uma individualidade das mais nobres e das mais admiráveis.

________________________________________________________________________________

[1] As transcrições dos artigos tiveram a sua grafia atualizada. Preservou-se a grafia dos nomes próprios, das palavras estrangeiras e dos títulos das obras. Foram mantidos também os sinais de pontuação, as palavras em negrito, itálico, maiúsculas, conforme empregadas pelo autor.

[2] MAURICIO, Virgilio. Rosalvo Ribeiro. Algumas Figuras. Rio de Janeiro: Typ. e Lth. Pimenta de Mello & C., 1918, p. 15-20.

[3] Resumidamente, em dois breves parágrafos na coluna "Notas de Arte" do Jornal do Commercio, comenta-se a participação de Rosalvo Ribeiro na Exposição Geral de Belas Artes de 1906: Notas de Arte. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 set. 1906, p. 3. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=NOTAS_DE_ARTE._Jornal_do_Commercio%2C_Rio_de_Janeiro%2C_1_set._1906%2C_p._3.>. Acesso em 08/01/2012.

[4] MAURICIO, Virgilio. Telles Junior. Algumas Figuras. Rio de Janeiro: Typ. e Lth. Pimenta de Mello & C., 1918, p. 79-82.

[5] Merece atenção o artigo sobre Telles Junior, publicado no Jornal do Commercio, por ocasião da Exposição Geral de Belas Artes de 1906. Há comentários de interesse a respeito da obra paisagística de Telles e acerca de sua vida isolada em Recife. Notas de Arte. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 6 out. 1906, p. 3. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=NOTAS_DE_ARTE._Jornal_do_Commercio%2C_Rio_de_Janeiro%2C_6_out._1906%2C_p._3.>. Acesso em: 08/01/2012.

[6] MAURICIO, Virgilio. Lopes Rodrigues. Algumas Figuras. Rio de Janeiro: Typ. e Lth. Pimenta de Mello & C., 1918, p. 91-95.

[7] A respeito das participações de Manoel Lopes Rodrigues nos Salões do Rio de Janeiro, ver notas de imprensa dedicadas ao pintor. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=Especial:P%C3%A1ginas_afluentes/Manoel_Lopes_Rodrigues>. Acesso em 08/01/2012. Em especial: Exposição Geral de Belas-Artes. Lopes Rodrigues. Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 2  nov. 1894, p. 1.

Sobre Lopes Rodrigues, escreveu Gonzaga Duque algumas considerações em um artigo dedicado ao aluno do pintor, Presciliano Silva, matéria que mais tarde integrou o livro Contemporaneos: "[…] Lopes Rodrigues, um dos bellos talentos de uma geração que se vae apagando na morte, e que, não obstante seu merito, se fez esquecer pouco á pouco, longe da concurrencia estimuladora de um centro mais rico e um nada menos utilitario. Dóe-me n'alma, sinceramente, a lembrança desse persistente desapêgo pela gloria, ao menos por esta refulgente illusão, quando, como Lopes Rodrigues, se tem a organização superior de um artista completo...". DUQUE, Gonzaga. Contemporaneos (Pintores e Esculptores). Rio de Janeiro,: Typ. Benedicto de Souza, 1929, p. 64.

[8] MAURICIO, Virgilio. Elyseo Visconti. Outras Figuras. Rio de Janeiro: Papelaria Venus, 1925,  p. 163-169.

[9] Na Exposição Geral de Belas Artes de 1924, Oswaldo Teixeira conquistou o Prêmio de Viagem com a obra O Pescador.

[10] Conferir matéria de Adalberto Mattos sobre a Exposição Geral de Belas Artes de 1924 e sobre a participação de Eliseu Visconti neste certame, constando inclusive a descrição e a imagem dos desenhos para as decorações do edifício do Conselho Municipal: MATTOS, Adalberto. O Salão de MCMXXIV. Pintura Escultura Arquitetura Gravura. Illustração Brasileira. Rio de Janeiro, ano V, n. 48, ago. 1924, n/p. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=MATTOS,_Adalberto._O_SALÃO_DE_MCMXXIV._PINTURA_ESCULTURA_ARQUITETURA_GRAVURA._Illustração_Brasileira,_Rio_de_Janeiro,_ago._1924,_n/p.>. Acesso em 10/01/2012.