Racismo e pintura no Brasil: notas para uma discussão sobre cor, a partir da tela A redenção de Cam

Tatiana Lotierzo [1]

LOTIERZO, Tatiana. Racismo e pintura no Brasil: notas para uma discussão sobre cor, a partir da tela A redenção de Cam. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, jul./dez. 2014. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/tl_redencao_cam.htm>.

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                     1.            O quadro A redenção de Cam [Figura 1] tem estado no centro de um debate que une interesses dos estudos sobre arte aos das ciências sociais. Referimo-nos ao tema do embranquecimento, que se entrelaça à tela e à sua história. O assunto é tratado pela totalidade das análises que se dirigem à pintura, revelando uma tendência a situá-lo como evidência de uma crença arraigada, ao final do século XIX, num futuro branco para a população brasileira.[2] Neste artigo, procuraremos rever tal interpretação, à luz de uma análise combinada entre o contexto de produção da tela e das críticas que recebeu em seu tempo.

                     2.            Nutrimos o propósito de angariar elementos que permitam empreender uma discussão sobre a cor na pintura brasileira e suas correspondências junto a determinados sistemas de classificação racial. Para isto, propomos pensar no quadro como um estudo pictórico sobre os diferentes tons de pele entre as personagens que apresenta, tomando o cuidado de notar que a cor, na tradição brasileira, serve de “código cifrado para ‘raça’”.[3]

                     3.            A redenção de Cam tem autoria de Modesto Brocos y Gómez (1852-1936), artista galego naturalizado brasileiro. A pintura foi laureada com a medalha de ouro da Exposição Geral de Belas Artes de 1895, quando de sua primeira exibição pública. Antes mesmo da premiação, já angariava atenções nas páginas dos jornais, servindo de veículo a uma polêmica que então dividia posições no Brasil pós-Abolição: a ideia de que a mescla racial promoveria o embranquecimento da população do país. Se o tema é vasto, interessa aqui perceber as diferentes posições da crítica de arte frente ao quadro e o que elas nos dizem sobre a pintura e o tema do embranquecimento.

                     4.            O artigo discute a longa duração dos questionamentos sobre a cor da pele no pensamento euro-americano, passa à questão do embranquecimento e suas indagações pictóricas e, depois, se volta ao quadro e suas críticas. Antes disto, é importante fazer uma apresentação da tela.

O quadro

                     5.            A redenção de Cam é um retrato de família de generosos 199 x 166 cm. Adquirida pela Escola Nacional de Belas Artes após a premiação de 1895, pertence atualmente à coleção do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

                     6.            À esquerda, uma senhora negra de idade tem o rosto e as mãos erguidos ao céu, como quem agradece por uma benção recebida. No lado oposto, um homem branco sentado, com o corpo voltado para a direita, tem o rosto ligeiramente virado para a esquerda e um olhar oblíquo, que mira o centro da composição. Cada qual exprime no corpo as aprendizagens da vida: ela, na postura retesada de estátua, franzina no porte; ele, no relaxamento de ares dominicais, de físico robusto. Apesar do contraste acentuado entre as figuras - e pese ao fato de que não interagem diretamente uma com a outra -, aprendemos por meio da cena que pertencem à mesma família: são mãe e esposo de uma jovem que se encontra ao centro, avó e pai do bebê que ela traz no colo. Sentada, a mulher jovem olha com ares de ensinamento maternal para a criança, apontando o dedo em direção à idosa. O menino[4] tem o corpo e o rosto voltados para a avó e levanta a mão direita para ela, como quem faz um aceno. Na mão esquerda, uma laranja.[4b]

                     7.            Mais do que pelo convívio, que é sugerido pelo quadro, o parentesco entre a velha senhora e o homem em cena é dado sobretudo pela transição entre os tons de pele das figuras: da avó negra, ao neto - figura mais branca do quadro -, passando pela mãe, de pele dourada. A diferença nas gradações de cor sugere que o pai da criança seria branco - e o homem à direita cumpre ali tal papel.[5] Note-se que a jovem mãe traz uma aliança na mão esquerda que, por sinal, é desproporcionalmente maior que a direita no desenho: escapa, portanto, às leis da anatomia em benefício de uma visibilidade premeditada.

                     8.            O título do quadro, por sua vez, alude a um episódio bíblico, descrito no Gênesis: em linhas breves, Noé é flagrado nu, em momento de embriaguez, pelo filho Cam, que faz troça do patriarca e expõe sua nudez aos irmãos, Sem e Iafet. Estes recriminam tal atitude, cobrindo o corpo do pai, e tratando de não olhá-lo. Quando recobra os sentidos, o velho lança uma maldição sobre o filho de Cam, Canaã, condenado a tornar-se escravo dos tios e primos. O castigo é estendido ao conjunto da descendência camita.

                     9.            Um detalhe merece atenção: se o Gênesis não faz menção à cor da pele, a partir do século II começam a surgir interpretações que atrelam o castigo a uma transformação epidérmica de Cam e Canaã, de branco a negro.[6] Posteriormente, no auge da expansão colonial, quando a escravização dos africanos torna-se elemento fundamental para a política europeia, dissemina-se na imaginação do Velho Continente uma associação imediata entre pele negra e escravidão.[7] Tem-se, aí, elementos para compreender a inversão operada pela pintura: se a maldição era associada à origem da pele negra, no quadro de Brocos um casamento interracial era mostrado como um caminho rumo ao embranquecimento.

A cor da pele: uma questão em aberto

                  10.            Na era moderna, os debates sobre a cor da pele têm um peso central no pensamento europeu. Ao largo do período, marcado pelo encontro colonial, multiplicam-se escritos sobre as causas de existência da pele negra e as condições de transformação epidérmica de negro a branco. Do ponto de vista da igreja cristã, espraiam-se nesse momento teorias sobre um suposto embranquecimento que acompanharia a redenção da população negra. Do ponto de vista da ciência - e com maior incidência a partir do século XVIII -, teses sobre os efeitos do clima sobre a pele passam a conviver com estudos sobre a reprodução, que procuram descobrir em quantas gerações seria possível clarear ou escurecer a pele, e se tal processo conduziria à brancura ou negritude completas. Tal preocupação adquire forma artística na pintura de castas [Figura 2], por exemplo, e está fundamentalmente ligada aos abalos que pouco a pouco esfacelam um mundo monárquico, assentado nos chamados estatutos da pureza de sangue, erigindo e instalando os valores republicanos em seu lugar.[8] Daí tais inquirições estarem eminentemente ligadas à questão da igualdade/humanidade de seres com características físicas tão diversas.

                  11.            Pois, a partir do final do século XVIII, o próprio discurso científico se renova. Emerge, nesse momento, um tipo de pensamento de corte racista, em que as diferenças de cor da pele passam a ser cada vez mais explicadas como características físicas intransponíveis. Marcadas no corpo, elas sinalizam estágios diferentes de uma suposta evolução da espécie humana.[9] Tal processo ganha força no século XIX à luz de tendências como o darwinismo social e o evolucionismo social.[10] Desse modo, institui-se, na segunda metade do Oitocentos, a crença numa diferença somática entre brancos e negros, que afastaria do horizonte europeu a defesa do embranquecimento completo, outrora considerado uma possibilidade aberta. Em contrapartida, acirram-se os discursos que condenam as uniões interraciais e aqueles que associam a população mesclada à degeneração.

                  12.            Em comparação com o cenário europeu, no Brasil tais ideias adquirem contornos próprios, propagando-se com maior intensidade a partir dos anos 1870[11] e acompanhando os debates em torno do fim da escravidão. Num país cuja maior parte da população tem evidente ascendência africana, os expoentes dessa vertente do racialismo hesitam em descartar a possibilidade do embranquecimento. Isto fica nítido no discurso Sur les Mêtis au Brésil (1911), de João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional, para quem em três gerações ou um século, a população nacional seria branca. Segundo o médico, tal fato decorreria de um processo de “seleção sexual” (termo dele, emprestado de Charles Darwin), com o concurso da imigração europeia e através dos casamentos interraciais.[12]

                  13.            Frente à defesa do branqueamento em solo brasileiro, há que assinalar, contudo, a inexistência de um consenso entre os intelectuais do período: se Lacerda entendia que a chamada “miscigenação” (termo da época) seria um caminho necessário para uma evolução rumo ao embranquecimento, Nina Rodrigues,[13] entre outros, a considerava um mal, que resultaria na degeneração. Em 1888, Sylvio Romero[14] publicaria sua História da Literatura Brasileira, afirmando que, no futuro do Brasil, prevaleceria um tipo de “mestiço” (termo dele), quase indistinguível do branco. Assim, é fato que as diferentes vertentes do discurso racista nacional fundamentavam-se num ideal branqueador: contudo, se os intelectuais o desejavam, não necessariamente endossavam sua viabilidade do ponto de vista científico.[15] Tais discordâncias, como veremos adiante, também emergem em torno de A redenção de Cam.

O embranquecimento como problema pictórico

                  14.            É nesse marco de preocupações que se insere uma tela como A redenção de Cam. Como se sabe, a tese apresentada por Lacerda em 1911 trazia na capa uma reprodução do quadro de Brocos - o que resultou numa associação imediata entre ambas as obras do ponto de vista da produção teórica que discute esta pintura.[16] A despeito da vinculação, é preciso lembrar que a pintura constitui um objeto singular, que antecede a teoria de Lacerda em 16 anos. Com esta preocupação em mente, partimos de dois pontos fundamentais:

                  15.            Primeiro: A redenção de Cam procura defender sua própria tese sobre o branqueamento, assumindo sentidos independentes da posição de João Batista de Lacerda e posicionando-se em meio a um debate envolvendo uma variedade de posições diferentes, e não o consenso.

                  16.            Segundo - e aqui queremos chegar: a despeito das intenções do quadro e de sua anexação por Lacerda, as reações que suscitou não permitem tecer conclusões sobre uma validação irrestrita, de parte da opinião pública brasileira, da ideia de embranquecimento. Antes, este era um problema em aberto.

                  17.            Passemos a eles.

Uma pintura e sua tese

                  18.            Mencionamos que A redenção de Cam defende uma tese. A tal respeito, é interessante pensar, em primeiro lugar, que o quadro responde a um problema pictórico,[17] qual seja, o problema da cor da pele/classificação racial. Já a tese sustentada pela tela, ao defender a viabilidade do embranquecimento, procura elaborar sua própria fórmula de “seleção sexual,” definindo modelos de corpos que, por suas características, pudessem viabilizar o processo branqueador segundo critérios de época, relidos pelo autor.

                  19.            Posição favorável ao embranquecimento é explicitada por Brocos no livro de ficção científica Viaje a Marte, de sua autoria.[18] Na obra, o pintor aparece como personagem-narrador em visita ao planeta vermelho, onde acompanha maravilhado uma série de empreendimentos que considera daquelas paragens em relação à Terra. Entre eles, destaca uma política de reprodução controlada, envolvendo a ação de funcionários estatais - o Exército Agrícola e as Irmãs Humanitárias - e os serviços de voluntários e voluntárias brancas, conforme a descrição abaixo: 

                  20.                                                  [...] aquela humanidade não estava satisfeita, pensaram que ainda faltava uma grande reforma a introduzir no planeta, que era a de unificar as raças fundindo-as numa só, para que a desigualdade desaparecesse pelo menos no aspecto exterior das gentes. Já se havia conseguido muito em tempos anteriores, melhorando as raças separadamente, de modo que a raça branca com a amarela, foi fácil a mestiçagem. Não aconteceu o mesmo com a raça negra, que apesar de haver-se tido o cuidado de selecionar anteriormente, oferecia dificuldades pela cor. [...]

                  21.                                                  Introduziu-se entre aquelas raças o exército e as Irmãs como principal elemento durante uma geração, juntando-se a esses os voluntários e voluntárias que se oferecessem a ir com o mesmo fim laudável e, passado esse tempo, deixavam-se abandonadas a si mesmas durante duas gerações. Nesse espaço de tempo, as raças inferiores iam aperfeiçoando-se entre si, até ficar confusa a primeira inoculação. Logo, voltava-se a enviar os soldados e as Irmãs Humanitárias para renovar o sangue daquelas raças e por duas gerações, se as deixava isoladas. E continuando periodicamente estas medidas, a pele foi se aclarando até chegar por fim a ficar da cor dos outros habitantes. Esse trabalho foi longo, cerca de mil anos levou para se realizar, mas a unificação foi um fato real, e hoje a raça que em algumas comarcas ficou sem mistura não é superior a esta conseguida artificialmente.[19] (tradução livre)

                  22.            Amostra do racismo do período, a obra também contém outras passagens de caráter eugênico evidente e desconcertante - por exemplo, ao defender políticas de esterilização forçada e o afogamento de bebês considerados imperfeitos numa piscina pública.

                  23.            Apesar de ficção, o livro deve ser visto com cuidado: no prefácio, Brocos exprime uma expectativa real, ao afirmar que naquelas páginas, dá “a público essas ideias que, por si, podem ser aproveitadas algum dia”.[20] Enquanto isso, na dedicatória ao neto do artista, Péricles, professa:

                  24.                                                  É bem possível que você o leia como se fosse um romance, seus filhos também o lerão como um passatempo, mas seus netos, tenho certeza de que o lerão com mais atenção que você [...] e ainda que o que digo aqui não passe de um sonho, será muito possível que no fim da sua vida veja realizadas algumas das utopias que apresento neste livro.[21] (tradução livre)

                  25.            Em consonância, o quadro A redenção de Cam se constitui como um estudo sobre as diferentes gradações de tons de pele, visando a um processo branqueador. Assim, pode ser visto como uma seleção de características corporais que, aos olhos de Brocos, seriam capazes de produzir o embranquecimento. Dessa forma, opera de modo similar à ciência racialista da época.[22]

                  26.            A questão da cor da pele não é nova na pintura europeia e ganha novo alento no Velho Continente com o Orientalismo do século XIX, que prima pelas experimentações de tons para a derme, atrelados a uma ideia de “tipos raciais”. Merece atenção o diálogo dessas pinturas com as teorias de seu tempo sobre a mescla racial. Assim, é emblemático que, a partir de 1801, com a invasão do Egito pelas tropas napoleônicas, o império francês tenha patrocinado uma série de expedições de cunho científico às novas colônias do norte da África - como o Marrocos -, reunindo antropólogos, etnólogos, médicos e também artistas em torno do problema da classificação racial das populações locais.[23] Fica patente no caso francês que, diante da enorme diversidade de tons de pele encontrados, tais expedicionários se esforçassem para construir um sistema de notação de tipos puros, fechando os olhos para a mistura, que então era vista como degenerante na Europa.[24] Para as artes francesas, o legado de tais expedições foi um sistema de notação de cor em franco diálogo com o modelo etnológico de classificação racial. Um dos maiores expoentes dessa empreitada nas artes é Eugène Delacroix, criador de um sistema de notação assentado na ideia de “cor primitiva”.[25]

                  27.            A enorme preocupação da antropologia francesa com a elaboração de sistemas e métodos de classificação da cor da pele e a institucionalização a que chegou, aliás, fica registrada também nas Instructions générales pour les récherches anthropologiques à faire sur le vivant, de 1864.[26] Nessa obra, a Sociedade Etnológica de Paris orienta informantes na França e em outras regiões do planeta sobre como classificar as populações locais do ponto de vista da cor. As instruções, vendidas para circulação em 13 países,[27] incorporam já na segunda edição as tabelas com amostras das cores de pele, olhos e sistema capilar [Figura 3 e Figura 4] conhecidas/registradas até então, que o pesquisador de campo deveria comparar com as populações locais em seu esforço taxonômico.[28] Buscava-se, assim, consolidar um sistema mundial de classificação de cor, a colocar-se em uso pela ciência - e de forma científica, por um público leigo.

                  28.            Sabe-se que a França, principal centro de formação artística mundial naquele momento, ditava as tendências. Assim, os sistemas de notação de cor desenvolvidos na pintura francesa de caráter orientalista, em diálogo com a ciência da época, propagaram-se como cânone, influenciando gerações de artistas acadêmicos, em diversos países. O próprio Modesto Brocos estudou na “École de Beaux-Arts” de Paris em dois momentos de sua trajetória,[29] obtendo a maior parte de sua formação em centros europeus.

                  29.            No Brasil, não há conhecimento de estudos similares sobre a classificação epidérmica, tanto do ponto de vista da ciência, tanto quando da arte nacional. É verdade que, ao longo do século XIX, viajantes e artistas estrangeiros tiveram um papel fundamental no registro da diversidade “racial” da população - e tem-se, nesse marco, J.-B. Debret[30] e J. M. Rugendas,[30b] entre outros -, embora não haja registro de sistemas precisos de classificação de cor desenvolvidos e/ou empregados por eles. Debret, artista francês, parece ter compartilhado da preocupação catalográfica com os tons da pele humana, evidenciada pela variedade de gradações que figuram em suas pranchas. Já em Rugendas, de origem bávara, tal preocupação parece secundária em comparação com o registro de outros usos e costumes locais, notadamente os de acento étnico como roupas, penteados, traços da fisionomia e sinais corporais (escarificações e tatuagens), também marcantes na produção de Debret.[31]

                  30.            E se o tempo era outro, entre as diferenças fundamentais que separam tais trabalhos de A redenção de Cam, é possível apontar para o tratamento visual da ideia de embranquecimento, que inexiste nas imagens produzidas pelos nomes citados,[32] pelo menos de forma direta. Pois o quadro de Brocos defronta-se não mais com a persistência da escravidão - tema que marca a produção de Rugendas e Debret -, mas com a questão da incorporação da população não-branca e ex-escrava à ordem livre da República nascente:[32b] decorre daí, quiçá, uma possibilidade de discutir de maneira mais aberta o embranquecimento - o que se coaduna às projeções científicas racistas do período. Grosso modo, diante da Abolição, cai por terra a imposição jurídica de uma desigualdade entre negros e brancos, expressa na ausência de liberdade da condição escrava. Em contrapartida, busca-se instalar, do ponto de vista da ciência, a ideia de que a igualdade possui uma cor: a branca[33] - e daí a centralidade da ideia de embranquecimento no pensamento nacional.

                  31.            Assim, pode-se pensar que A redenção de Cam, ao mostrar de forma didática as conexões de parentesco entre personagens de tons de pele distintos, tem a intenção de propor um modelo de integração racial para o país, via casamentos interraciais branqueadores. Para isto, a pintura traduz uma intenção de trazer a público as uniões afetivas entre brancos e negros, legitimando-as conforme a moral vigente. É digno de nota nesse sentido que o pintor tenha buscado reforçar o detalhe da aliança, exagerando o tamanho da mão da mulher ao centro.

                  32.            Já a validação imagética do embranquecimento depende da inteligibilidade de seu sistema de classificação de cor/racial. Se isso ficará mais claro adiante, no contraponto com a crítica do período, é válido acrescentar que a cor da pele, na pintura, coaduna-se com outros atributos corporais, que buscam reforçar a clareza de sua mensagem diante do espectador. Assim, os matizes de cada figura em cena estão atrelados a uma série de atributos corporais, que complementam sua inserção num sistema de classificação racial vigente.

                  33.            Cabe uma observação a tal respeito: enquanto o matiz epidérmico não era alvo da sistematização científica no Brasil, a descrição corporal e fisionômica da população não-branca era frequente em textos de larga circulação nos meios letrados científicos e leigos. Em diálogo com modelos europeus, tal descrição reforçava imagens preconceituosas, que com frequência mostravam o corpo da mulher não-branca como lócus de vícios, de uma sexualidade exacerbada e da degeneração. [34] Na literatura brasileira do período, que dialoga com a ciência, descrições de personagens negras gordas, de quadris e nádegas volumosos, ou excessivamente magras, esqueléticas prevalecem; as chamadas “mulatas” (termo da época) são igualmente retratadas sob um viés negativo e uma corporalidade associada à sexualidade incontrolável e destrutiva, com quadris e nádegas arredondados. [35] Tais tipos físicos, considerados anormais à época, vinham associados a características como a infertilidade, conformando o perfil de figuras que fugiam aos padrões morais impostos às mulheres, como a preservação da virgindade até o casamento, a fidelidade conjugal e a obediência ao esposo. Assim, eram um reflexo direto do discurso racista (e patriarcal) então vigente.[36]

                  34.            O assunto torna-se alvo de nossa atenção, na medida em que os corpos das mulheres de A redenção de Cam fogem a esses padrões[37]. É possível que, em sua defesa do embranquecimento, Brocos precisasse mostrar que as personagens em cena compartilhavam de valores morais como o cristianismo (a avó em oração); o casamento (a aliança); e que tinham o dom da maternidade (o cuidado da jovem mãe com o bebê), destoando das imagens mais frequentes no período.

                  35.            Desse modo, há na tela um tipo de racismo que se expressa pelo recurso a um repertório particular de formas e convenções, fruto de um diálogo do artista com referências distintas, mas também de uma “intenção”[38] favorável à ideia de embranquecimento: a tal respeito, na essência do quadro, permanece a exaltação da brancura como ideal, assim como a proposta eliminação gradual da população não-branca. É digno de nota que as mulheres negras em cena são colocadas no papel de partícipes no processo, como se compartilhassem do ideal racista expresso no quadro.

                  36.            A redenção de Cam, segundo a crítica

                  37.            À revelia das intenções sintetizadas na obra, tem-se a recepção do quadro. Destaca-se, aqui, a variedade de percepções que ele suscita. Vale observar que nenhuma delas possibilita tomar a pintura como evidência direta de um discurso consolidado e que, antes, tais comentários constituem indícios de um debate que permanecia em aberto. Isto nos interessa, na medida em que contribui para uma compreensão do lugar do branqueamento no pensamento do período e das dúvidas que ele suscitava.

                  38.            Desse modo, é importante notar que as análises dos críticos buscam ajuizar a veracidade da imagem, enquanto as divergências entre eles se exprimem em torno da cor da criança em cena. Assim, Arthur de Azevedo dirá tratar-se de um “menino louro”:

                  39.                                                  O bello quadro de Modesto Brocos - A redempção de Cham, que figura na exposição da Escola Nacional de Bellas Artes, poderia intitular-se, para melhor comprehensão do vulgo, O aperfeiçoamento da raça.

                  40.                                                  Representa uma familia composta de quatro pessoas: uma preta velha, uma mulata moça, um rapaz branco e um menino louro. A mulata é filha da velha, esposa do rapaz e mãi da criança.

                  41.                                                  Estão sentados á porta de uma casinha o marido e a mulher, esta com o menino no colo, emquanto a velha, com as máos e os olhos levantados para o céo, parece agradecer ao Altissimo a felicidade da filha.

                  42.                                                  O rapaz, forte e vigoroso - typo accentuado de colono trabalhador - a mulata em cuja physionomia transparecem a intelligencia e a meiguice de sua raça, - e a criança, lindo producto daquelle cruzamento de sangue, brincando despreocupada com uma laranja, - estão muito bem pintados; mas a grande figura da tela, a figura que mais impressiona, a figura inolvidável, é a da velha africana macerada pelo captiveiro.

                  43.                                                  O artista, que já n’outros quadros mostrara uma especialidade do seu talento com a pintura das negras, nunca nos pareceu mais humano e comovedor.[39] (grifos nossos)

                  44.            Evitando uma atribuição precisa de cor para a criança, Fantasio (Olavo Bilac) sugere alvura em sua descrição, que toma o bebê como uma “aurora radiante”. Enquanto isso, não há dúvida de que seu pai seja branco “como o dia” e “um semita puro” - aliás, tido por Bilac como o protagonista do processo, num texto que celebra os valores da moral racista e masculina do período:

                  45.                                                  Na sua grande tela belissima, já a filha da velha preta está meio lavada da maldição secular: já não tem na pelle a lugubre côr da noite, mas a côr indecisa de um crespusculo. E vêde agora aquelle latagão que alli está, ao lado d’ella, branco como o dia: é um Semita puro, que se encarregou de completar a obra da redempção, transformando o crepusculo n’uma aurora radiante. Vêde a aurora-creança como sorri e fulgura, no collo da mulata, - aurora filha do dilúculo, neta da noite... Cham está redimido! Está gorada a praga de Noé![40] (grifos nossos)

                  46.            Coelho Netto inverte a fórmula, trabalhando a ideia do branqueamento na chave de um sacrifício da mulher negra. Sem aventurar-se no escrutínio da tela, como fazem seus pares, trata de seu conceito como uma aspiração, um desejo - e jamais um fato: “Para sagrar-te só a benção multiplicada até que o gesto vindo da grenha encaracolada do teu filho descanse sobre os cabellos louros do teu neto[41]  (grifos nossos).

                  47.            Em contraposição, outro crítico opina que o bebê é “quase branco”; ao mesmo tempo, exprime certeza quanto à cor do pai:

                  48.                                                  Entre os quadros de genero, merecem menção: do Sr. Broccos, o quadro n. 101, ‘A Redempção de Cham’, de grandes proporções em que ha quatro figuras, uma preta velha, uma mulata sua filha, e seu netinho já quasi branco e o pai d’este, de pura raça caucassica e no qual o artista procurou mostrar as gradações do cruzamento da raça branca com a raça de côr, bem pintado e bem desenhado, sobresahindo a figura da preta, feita com grande verdade.[42] (grifos nossos)

                  49.            A mesma suspeita em torno da cor do menino embasa outro texto de 1895. Porém, seu autor prefere desqualificar o argumento do quadro e questionar a aparência de algumas figuras, sem atribuir ao bebê um matiz específico:

                  50.                                                  No desenvolvimento do assunto, é pouco claro; a ideia que o artista teve em mente traduzir, não transparece à primeira vista, nem se entende sem explicação; quem o observar, não compreenderá que o tema é a redenção de uma raça. Afigura-se-nos que semelhante intuito não se realiza com a transfusão progressiva nela de elementos que lhe são estranhos e a gradual extinção dos seus característicos. Demais, o assunto em si é pouco delicado para ser assim publicamente tratado; envolve fatos sociais que realmente se dão, mas que não são aceitos na ordem geral de coisas. Fere preconceitos ainda arraigados em muitos espíritos e, para ser compreendido, demanda explicações demasiadamente delicadas para serem franca e claramente expostas. Na nossa opinião representa apenas um simples episódio que ocorre na nossa vida social, mas sem constituir normalidade e ao qual se deu um título ruidoso, a nosso ver inadequado. Como estudo de seleção natural, os tipos representados não são dos mais felizes.

                  51.                                                  Quanto à fatura, as figuras são regularmente desenhadas, principalmente a da preta, tronco da família retratada na tela. Na escolha do tipo do primeiro cruzamento das raças, o artista não foi feliz, pois que essa mulata não é dos mais belos espécimes que aqui se encontram. No desenho da criança notam-se certas durezas em alguns pontos, como sejam nas pernas e no braço direito.[43] (grifos nossos).

                  52.            Em síntese, o trecho questiona o argumento do quadro e se mostra a contragosto frente a seu tema; por fim, critica a caracterização dos “tipos” à luz das leis da “seleção natural”, sugerindo que o embranquecimento não seria possível a partir dessas figuras, que fogem à cartilha do darwinismo social. Não há informação sobre a autoria dessa crítica, que se destaca pelo uso convicto do jargão da ciência; fica a suspeita de um autor do meio científico, preocupado em resguardar seu campo de especialidade.

                  53.            Já para o crítico do jornal The Rio News, voltado ao público estrangeiro, “[A redenção de Cam] não expressa a ideia de geração de qualquer raça em particular, apenas representa um episódio comum onde quer que a escravidão tenha existido”[44] (grifos nossos) - o que certamente suscitaria desacordo de parte do critico anterior, para quem tal fato jamais constituiria normalidade.

                  54.            Por fim, em 1896, a tela retorna à cena na crítica de Cosme de Moraes: “Brocos, que é pintor scientifico, e já em tela memoravel e anthropologica nos explicou como do branco e do preto sae o amarello[45]  (grifos nossos).

                  55.            A título de conclusão, poderíamos pensar que o quadro exprime uma entre várias formas de racismo no período, e entre elas, uma entre uma gama possível de posições frente à ideia de embranquecimento - que ainda necessitam ser melhor compreendidas. Ao mesmo tempo, ele revela o quanto o tema do branqueamento suscitava preocupações de ordem moral, mobilizando a comunidade científica e também a opinião pública. Isto se torna mais evidente na medida em que a transformação epidérmica de negro a branco da população brasileira parece constituir um fenômeno tão almejado, quanto questionado pelos autores. O dissenso sugere que o reconhecimento e/ou a definição de brancura está no centro de uma controvérsia, que transparece nos inúmeros constrangimentos, circunlóquios e resistências que emergem da opinião dos críticos. No mais, não se pode perder de vista, o caráter fortemente racista por trás da ideia de embranquecimento, cujo propósito é a negação e eliminação da população não-branca.

                  56.            De outra parte, A redenção de Cam também mostra a centralidade da cor da pele como um topos fundamental na pintura oitocentista, revelando o quanto o estudo das convenções artísticas do período pode contribuir para uma compreensão do racismo na República nascente e nos períodos imediatamente antecedentes. Além disso, a tela abre perspectivas para uma discussão do legado dessa tradição artística e das possíveis transformações ou rupturas em etapas subsequentes da produção pictórica brasileira.

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_________________________

[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na UnB.

[2] SEYFERTH, G. João Baptista Lacerda. Revista do Museu Paulista, n.s., 30, 1985; ____. O futuro era branco. Revista de História, 2011; SCHWARCZ, L. K. M. O espetáculo das raças. SP, Companhia das Letras, 2004; ____. Previsões são sempre traiçoeiras. João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. RJ, v.18, n.1, jan.-mar. 2011; SANTOS, R. V.; MAIO, R. V. (orgs.) Raça, Ciência e Sociedade. RJ: Editora Fiocruz/CCBB, 1996; HOFBAUER, A. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora UNESP, 2006; STEPAN, N. L. Picturing tropical nature. London: Reaktion Books, 2006; SOLLORS, W. Neither black, nor white, yet both. Thematic explorations of interracial literature. Harvard University Press, 1999; BRODY, J. D-V. Impossible purities: Blackness, femininity and Victorian culture. Duke University Press, 1998; CHRISTO, M. C. V. Algo além do moderno: a mulher negra na pintura brasileira no início do século XX. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_maraliz.htm>.; BITTENCOURT, R. Modos de negra e modos de branca: o retrato “Baiana” e a imagem da mulher negra no século XIX. Dissertação de Mestrado em História da Arte e da Cultura apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2005; BUENO, F.; JIMÉNEZ, J. A Redención de Cam de Modesto Brocos. Estudios Migratórios, n. 9, 2000; LIMA, H. P. A presença negra nas telas: visita às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas Artes na década de 1880. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_negros.htm>; DENIS, R. C. A arte brasileira em 25 quadros. SP, Record, 2008; INOCENCIO, N. A redenção do olhar: uma abordagem semiótica. Nguzu. Revista do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos da UEL, ano 1, nº 1, mar-jul 2011; LOURENÇO, M. C. F. Debates e posturas - Tempo humano. In: Almeida Júnior: um criador de imaginários. Catálogo da exposição na Pinacoteca do Estado. São Paulo, 25 jan.-15 abr. de 2007; NAVES, R. Almeida Júnior. O sol no meio do caminho. Novos Estudos-CEBRAP, 73, nov. 2005; PERUTTI, D. C. Considerações sobre a representação do negro na obra de Almeida Júnior. Paper para o GT Pensamento Social Brasileiro, no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. RJ, 2009.

[3] Cf. GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 44. Empregamos o conceito de raça, de acordo com a proposta de Guimarães (ibid., p. 68): longe de uma realidade biológica, tal conceito permite “desmascarar o persistente e sub-reptício uso da noção errônea de raça biológica, que fundamenta as práticas de discriminação, e tem na cor [...] a marca e o tropo principais”. Logo, o racismo é “uma forma bastante específica de ‘naturalizar’ a vida social, isto é, de explicar diferenças sociais e culturais a partir de diferenças tomadas como naturais” (ibid., p. 9).

[4] Seguimos as observações da crítica do período ao considerar que a criança em cena é do sexo masculino, visto que tal ponto nunca foi alvo de divergências entre os críticos e que Brocos nunca se preocupou em contestar tal percepção. Além disso, o jurista Rodrigo Octavio teria afirmado que seu filho posara para a tela de Brocos. Sobre isto, cf. OCTAVIO apud BUENO, F.; JIMÉNEZ, J. A Redención de Cam de Modesto Brocos. Estudios Migratórios, n. 9, 2000, p.113-127.

[4b] Para uma análise pormenorizada do quadro, ver: LOTIERZO, Tatiana H. P. Contornos do (in)visível: A redenção de Cam, racismo e estética na pintura brasileira do último Oitocentos. Dissertação de mestrado (Antropologia Social), Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-18122013-134956/en.php>. Acesso: 02/12/2014.

[5] Para um comentário sobre a construção da coerência interna à obra, ver DENIS, op. cit.

[6] SOLLORS, op. cit; GOLDENBERG, D. M. The Curse of Ham: Race and Slavery in Early Judaism, Christianity, and Islam. New York: Princeton University Press, 2003; e HOFBAUER, op.cit.

[7] SOLLORS, op. cit; GOLDENBERG, op. cit; HOFBAUER, op. cit.

[8] Sobre os estatutos, vide: FIGUERÔA-RÊGO, J. e OLIVAL, F. Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Tempo, vol. 16, nº 30, Niterói, 2011. Sobre a ideia de mestizo, ver STOLCKE, V. Los mestizos no nacen sino que se hacen. In: STOLCKE, V.; COELLO, A. (ed.). Identidades Ambivalentes en América Latina (Siglos XVI-XXI). Barcelona: Bellaterra, 2007.

[9] Idem. SEYFERTH, G. A antropologia e a tese do branqueamento da raça no Brasil: a tese de João Baptista Lacerda. Revista do Museu Paulista, 30, 1985; SKIDMORE, T. E. Preto no branco. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; SCHWARCZ, L. K. M. Retrato em negro e branco. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1987; SCHWARCZ, 2004, op.cit.; ____. Questões de fronteira. Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, nº 72, jul. 2005, pp. 119-135; SCHWARCZ, 2011, op.cit.; CORRÊA, M. As ilusões da liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Edusf, 1998; Hofbauer, op. cit.

[10] SCHWARCZ, 2004, op. cit.

[11] SCHWARCZ, 2004, op. cit.

[12] LACERDA, J. B. Sobre os mestiços no Brasil. Tradução de “Sur le métis au Brésil” (Premier Congrès Universel des Races: 26-29 juillet 1911, Paris, Devouge, 1911). In: Schwarcz, 2011, op.cit.

[13] RODRIGUES, N. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Companhia Editora Nacional, 1938, p. 128. Disponível em <http://www.brasiliana.com.br/obras/as-racas-humanas-e-a-responsabilidade-penal-no-brasil/pagina/128/texto>. Consulta: 02/12/2013.; CORRÊA, M. As ilusões da liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: Edusf, 1998.

[14] ROMERO apud RODRIGUES, 1938, op.cit.

[15] SEYFERTH, 1985, op. cit; SKIDMORE, 1989, op. cit.; SCHWARCZ, 1987, 2004, 2005, 2011, op.cit.; CORRÊA, 1998, op. cit.; HOFBAUER, 2006, op. cit.

[16] SEYFERTH, 1985, op. cit; SKIDMORE, 1989, op. cit.; SCHWARCZ, 1987, 2004, 2005, 2011, op.cit.; CORRÊA, 1998, op. cit.; HOFBAUER, 2006, op. cit.

[17] BAXANDALL, M. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[18] BROCOS, M. Viaje a Marte. Valencia, Editorial Letras y Artes, 1930. Não há referências texuais confirmando a posição de Brocos sobre o branqueamento na década de 1890, quando A Redenção de Cam veio à lume. Para além de Viaje a Marte, uma análise comparativa entre telas do artista em que figuram mulheres negras - A redenção de Cam entre elas - nos leva a concluir que ele nutriu uma preocupação com o tema ao longo da vida, de modo que o livro de 1930 só a torna mais explícita. Contudo, parte-se aqui da convicção de que as imagens fornecem modos de ver ao espectador, manifestando assim determinados pontos de vista. Destarte, o interesse suscitado por A redenção de Cam diz respeito à sua capacidade de expor a questão do embranquecimento de maneira tão direta que esta se torna uma imagem preconceituosa sob o olhar da crítica atual. E se o problema do preconceito racial e sua relação com a arte nos interessa, é preciso observar que o quadro não questiona a ideia do branqueamento, mas sim os fundamentos de sua viabilidade. Cf. LOTIERZO, op. cit.

[19] Idem, ibidem, pp. 182-183.

[20] Ibidem, p. 10.

[21] Idem, p. 7.

[22] Exemplificada, entre outros nomes, por Cesare Lombroso e Georges Cuvier, na Europa, e Nina Rodrigues e João Batista de Lacerda, no Brasil.

[23] MILLER, P. B. “Des couleurs primitives:” Miscegenation and French Painting of Algeria. In: Visual Resources, 24:3, 2008, pp. 273-298; LOTIERZO, op. cit.

[24] MÍLLER, ibidem; LOTIERZO, ibidem.

[25] MILLER, op.cit; LOTIERZO, op. cit.

[26] BROCA, P. (rapporteur). Instructions générales pour les récherches anthropologiques à faire sur le vivant. Paris, Masson, 1879.

[27] Argélia; Ásia Central; Austrália; Camboja; Chile; França; Japão; litoral do Mar Vermelho; Malásia; México; Peru; Senegal; e Sicília. A exemplo desse manual, havia também um segundo volume, com instruções de craniometria e craniologia.

[28] As tabelas de cor foram introduzidas na segunda edição, por iniciativa do relator Paul Broca.

[29] De 1877 a 1879, Brocos estuda na Academia sob orientação de Henri Lehmann. De 1881 a 1883, passa uma nova temporada na Academia, no ateliê de Ernest Hébert. Ele também passa pela Academia Chigi, em Roma (1883-1886); e pelo ateliê de Federico de Madrazo, em Madri (1879-1883). Para mais informações, ver LOTIERZO, op. cit.

[30] DEBRET, J.-B. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tomo II, prancha 22. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00624520#page/1/mode/1up>. Consulta realizada em: 03/12/2014.

[30b] RUGENDAS, J. M. Voyage Pittoresque dans le Brésil. 2a divisão, prancha 9. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55677273>. Consulta realizada em: 03/12/2014.

[31] Cf. FREITAS, I. B. Cores e olhares no Brasil oitocentista: os tipos negros de Rugendas e Debret. Dissertação (História Social). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2009. Evidentemente, outros viajantes e artistas nutriram as mesmas preocupações. Ainda no século XVIII, é interessante o contraste entre o trabalho de Leandro Joaquim (c.1738-c.1798) e Carlos Julião (1740-1811): enquanto o primeiro, nascido no Brasil, mostra uma variedade de tons da pele em suas imagens, o segundo, estrangeiro, iguala a cor da pele de todas as personagens não-brancas, retratadas em marrom escuro. Entretanto, foge aos limites deste artigo uma análise mais pormenorizada desses instigantes trabalhos.

[32] É preciso reforçar que se trata de uma ausência nas imagens, mas não nos textos, em que as menções a enlaces interraciais e a discussão sobre embranquecimento se fazem presentes. Note-se que a autoria do texto de Rugendas é incerta. Para mais informações, ver SLENES, R. W. As provocações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem Alegórica de Johann Moritz Rugendas. Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 2, 1995/96. Sobre Debret, ver LIMA, V. J.-B. Debret. Historiador e Pintor. Campinas: Editora da Unicamp, 2008; e NAVES, R. A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Editora Ática, 2007. Sobre a construção da imagem dos negros na obra dos dois artistas, ver FREITAS, I. B., op. cit.

[32b] O tema é bem desenvolvido por Boime, a propósito dos Estados Unidos. Boime, A. The art of exclusion. Representing blacks in the Nineteenth Century. Washington&London: Smithsonian Institution Press, 1990.

[33] Guimarães (2011) aprofunda-se na discussão sobre os sentidos de liberdade, igualdade e fraternidade na República nascente e suas implicações em longo prazo. GUIMARÃES, A. S. A. A República de 1889: utopia de branco, medo de preto (a liberdade é negra; a igualdade, branca e a fraternidade, mestiça). Contemporânea, n. 2, p. 17-36, jul.-dez. 2011. Disponível em: <http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/34>. Consulta: 03/12/2014. 

[34] Ver LOTIERZO, op. cit; LOTIERZO e SCHWARCZ, L. K. M. Raça, gênero e projeto branqueador: “a redenção de Cam”, de Modesto Brocos. Artelogie, n° 5, Octobre, 2013. Disponível em: <http://cral.in2p3.fr/artelogie/spip.php?article254>. Acesso: 03/12/2014.

[35] LOTIERZO, op.cit.; LOTIERZO e SCHWARCZ, op. cit.. A imagem da mulher negra gorda, de quadris e nádegas protuberantes, remete a Sara Baartman, chamada “Vênus Hotentote.” Para mais informações, ver: LINDFORS, B., (ed.), Africans on Stage: Studies in Ethnological Show Business. Bloomington, Indiana, Indiana University Press, 1999, pp. 1-55; GILMAN, S. Black Bodies, White Bodies: Toward an Iconography of Female Sexuality in Late Nineteenth-Century Art, Medicine and Litterature. In: GATES, H. L. (ed.). Race”, Writing and Difference. Chicago and London: University of Chicago Press, 1985; GOULD, S. J. The Flamingo's Smile: Reflections in Natural History. W. W. Norton & Company, 1987; a imagem da “mulata” é bem discutida por CORRÊA, M. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, 6-7, 1996, pp. 35-50.

[36] Corrêa (1996, op. cit.) comenta estudo de Nina Rodrigues sobre o hímen das meninas negras, que procura comprovar cientificamente tais preconceitos.

[37] Para uma análise, ver LOTIERZO, op.cit.; LOTIERZO e Schwarcz, op. cit.

[38] BAXANDALL, M. Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[39] PALESTRA. O Paiz, 02 set. 1895, p. 1., ass. A. A. [Arthur de Azevedo]. Segundo Bueno e Jimenez (2000), o jurista Rodrigo Octavio teria sugerido que a criança seria loira: “meu filho, com alguns meses de idade, linda criança, transpirando no ouro dos cabelos e no rosado das faces a exuberancia do seu sangue escandinavo, serviu de modelo”. OCTAVIO apud BUENO e JIMÉNEZ, op. cit.. No entanto, não encontramos tal afirmação nas memórias do jurista, tal como indicado pelos autores.

[40]A redempção de Cham”. Gazeta de Noticias, 5 set. 1895. Fantasio na Exposição II, p. 1.

[41] NETTO, C. “A redempção de Cham - Fantasia Symbolista (a proposito do quadro de Modesto Brocos)”. Gazeta de Noticias, 19 set. 1895, pp. 1-2, ass. C. N. [Coelho Netto].

[42] NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1895, p. 2.

[43] NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 set. 1895, p. 2.

[44] THE RIO NEWS, Rio de Janeiro, 17 set. 1895, s.p.

[45] MORAES, C. Folhetim: o salão de 1896 II. Liberdade, 20 set. 1896, p. 1.