A Presença negra nas telas: Visita às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas Artes na década de 1880 [1]

Heloisa Pires Lima [2]

LIMA, Heloisa Pires. A presença negra nas telas: visita às exposições do circuito da Academia Imperial de Belas Artes na década de 1880. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_negros.htm>.

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As orientações oficiais foram parâmetros contínuos para a instituição que se afirmou como “Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro” ao longo do Oitocentos. Se sua história inicia nos primeiros anos do século, os anos 1880 são particularmente interessantes para observamos a problemática da oficialidade no âmbito das expressões artísticas desse ambiente institucional. As temáticas que orientavam os julgamentos internos podem ser acompanhadas nas obras e artistas premiados nas exposições anuais, bolsas para aperfeiçoamento que materializavam tendências. Mesmo os vínculos estreitos daquele circuito com uma oficialidade governamental se tornam explícitos por meio das encomendas e das aquisições por parte do governo. E o contexto que propomos focar, é o instante de circulação de inúmeros ideários acerca do regime, se monárquico ou republicano para o Brasil. Mais do que isto, a extinção da escravatura, decretada em 1888, se tornou um marco nesse período. Portanto, numa ordem cultural tão agitada, buscamos um repertório específico perseguido naquela dinâmica institucional. Uma presença negra nos temas plasticamente veiculados no circuito da AIBA é uma forma de adentrarmos naquela sociedade. Permite, também, levantarmos questões mais gerais, acerca da construção de argumentos visuais que se tornam forças sociais.

Observemos, então, qual o status e as variações na lógica que enredou tais expressões? Tais fontes trazem o artista que está por trás da obra e seu olhar singular ao construir o enredo que se serve da população negra como referência e projeta identidades sobre a nação.

O ícone negro na paisagem oitocentista

A intersecção entre arte e mecenato governamental no Brasil do século XIX tem pelo menos três momentos em que uma sondagem fertilizaria o tema da presença negra. O engendramento de iniciativas oficiais que produzisse e ao mesmo tempo distinguisse identidades coloniais nas orientações joaninas ou, a criação de simbologias para a identidade na afirmação da Independência são momentos férteis para correlações. Do mesmo modo a paisagem peculiar do império tropical, sob o protagonismo de D. Pedro II, não poupou esforços na produção de um imaginário sobre a nação brasileira. O incentivo à pintura histórica para a conformação de uma memória oficial, foi anterior à própria escrita historiográfica. Mesmo após a fundação do IHGB, os vínculos entre o que este publicava e o que a AIBA ilustrava e vice-versa oferecem a dimensão fartura de fontes descobertas ou aguardando olhares atentos na questão de interesse.

É fácil identificar uma presença negra quase como paisagem nos cenários brasileiros representados por artistas de diferentes tradições. O sistema escravagista associou a tonalidade escura da pele e fenotipias correlatas, imbricando ícones entre ser negro e ser escravo. Pois, os habitantes negros nas obras de professores da instituição como Jean Baptiste Debret mostram o interesse evidente pelos idos das primeiras décadas daquele século. Ou, com alunos da instituição[3], como Cândido Guillobel um artista português, desenhista de tipos populares do Rio de Janeiro, em sua grande maioria dedicados aos ambulantes negros.

Mas examinar a presença negra na dinâmica das exposições oficiais realizadas ao longo da história do estabelecimento seria relevante para compararmos com nosso foco principal, os anos 1880. Sem uma pretensão de tamanho fôlego, comecemos a visita mais aproximativa.

O perfil negro do fundo ao centro das cenas

Exposição Geral de 1879. Víctor Meirelles expõe a obra Batalha dos Guararapes [Figura 1a], quadro com 882 palmos, na qual guerreiros negros aparecem lado a lado com luso-brasileiros [Figura 1b] tendo como base um episódio de 1648, contra os holandeses. A composição aborda a unidade brasileira no episódio. O discurso da Comissão Julgadora exaltava a obra:

A Primeira Batalha dos Guararapes, [...] é um quadro que contém centenas de personagens, sendo as do primeiro plano de grandeza natural, e de uma forte proporção. Inteira concepção do assunto, unidade de composição, correção de dezenho, colorido, brilhante e harmonioso, effeito completo de perspectiva, em que sobressae a verdade das tintas quentes do céo dos trópicos. (FREIRE, L. - 1916: 288)

A tela, inicialmente havia sido encomendada à Pedro Américo pelo ministro do império, o Conselheiro João Alfredo. O artista segue para a Europa onde deveria iniciar a tarefa. De Paris, escreve para informar sobre uma mudança de planos tendo decidido por um episódio da guerra do Paraguai - o Avahi, na sua justificativa um tema mais contemporâneo [Figura 2a]. O convite para pintar a batalha acaba dirigido, então, a Víctor Meirelles. Quando expostos na Exposição de 1879, embora tenham recebido louvores internos, as obras se tornam alvo de críticas, feitas com muita ironia, nos periódicos locais. A falta de planimetria no colorido, a falta de fidelidade histórica, problemas na construção da figura humana, ausência de expressão, enfim, inúmeras desqualificações. Meghreblian (1990), analista da produção do período, relaciona os questionamentos técnicos à perda de monopólio da instituição imperial para a arquitetura da imagem visual da nação. Os artistas expoentes seriam os principais alvos. Na sua conclusão, o interpretação oficial dos eventos históricos vai perdendo a legitimidade, não convence mais e o comando compacto exercido pela AIBA enfraquece.

Porém, é digno de nota o valor positivo de um tema que enfatiza a população negra na premiação interna. Os sinais para os ícones eleitos como imagem da nação vão alterando seus valores. A guerra do Paraguai é um caso exemplar. Enquanto se buscava, plasticamente, a exaltação do feito, o dado real da guerra do Paraguai indicava que o poder militar brasileiro dependia da participação de grande número de escravos como tropa de apoio. Aproximadamente 6000 escravos, os Voluntários da Pátria, tornaram-se uma massa de voluntários também à emancipação. Nessa alteração de valores observável, o que vai se notando é que as figuras negras, ausentes nas expressões artísticas ou apenas como paisagem de fundo vão tomando a frente.

Nas pinturas dos artistas referidos, a visibilidade está a serviço de um ajustamento conciliatório para a dissolução de diferenças entre os guerreiros. Também é digno de nota que no quadro Batalha do Avahi, na abordagem de Pedro Américo, apenas um dos soldados é negro [Figura 2b].

É nessa década de 1870, que as bandeiras da abolição produzem uma iconografia disseminando a imagem negra com maior veemência. Na trilha oficial, o argumento abolicionista aparece visualmente sob o formato da alegoria. O sentido figurado fornecia o distanciamento necessário para tocar na questão.

Iconograficamente, circulam alegorias fruto de encomendas do governo, como A Alegoria à Lei do Ventre Livre encomendada a D. Bressae [Figura 3]. O destaque é a Lei Rio Branco, o diploma legal que acaba enaltecendo o Imperador, o inspirador da lei, e o Estado Imperial, na figura do chefe do Gabinete, responsável pela lei, Visconde de Rio Branco.

As alegorias com a temática abolicionista ganham espaço os anos 1880. Este é o caso do quadro, A Primeira Libertação - que representa a Condessa d'Eu entregando aos escravos suas cartas de liberdade, em 29 de julho de 1885, assinado por Pedro José Pinto Peres [Figura 4].

Trata-se do registro da cerimônia de assinatura da Lei Saraiva pela Princesa Isabel, em 1885. Discípulo de Víctor Meirelles e seu substituto na cadeira de pintura da escola a obra fora encomendado ao artista pela Câmara Municipal da Corte, sendo concluída a 1º de dezembro de 1886 ao Dr. João Pereira Lopes. (FREIRE, L -1916:152).

Pedro Américo, nesse mesmo ano, aceita a encomenda de uma tela com tema abolicionista a qual chega a esboçar. Porém, problemas com o Ministro do Império fizeram com que o artista se recusasse a continuar com a obra (MEGHREBLIAN, C. - 1990: 294 / n. 17). Somente em 1889, ele realiza o estudo “Libertação dos escravos” ainda alinhado às exaltações de figuras e feitos do panteão governamental.

Enquanto isso, o movimento abolicionista propriamente dito, quando toma as ruas, também recebe acompanhamento plástico. Como contraponto à abordagem genérica e caricatural das alegorias oficiais, se percebe novos formatos num cromatismo mais crítico e realista e ampliado em produção. Algumas obras registram o calor da hora. Emílio Rouède [4], pintor marinhista francês, é um dos artistas nesse matiz. Alguns relatos dão conta de que o artista se batera como um leão ao lado de José do Patrocínio na campanha abolicionista (RUBENS, C - 1941:145). Ele participa constantemente dos festejos promovidos pela Confederação Abolicionista para levantamento de fundos para a causa. Rouède teria vindo ao Brasil em 1880 e dois anos depois exibiria seus trabalhos na, famosa, exposição do LAO promovida pela Sociedade Propagadora de Belas Artes. Em 1884, foi selecionado para a Exposição Geral da AIBA, sendo que uma das telas traz como tema: um navio negreiro fugindo de um navio de guerra brasileiro. Na fuga, atira ao mar sua" carga humana" e do navio brasileiro descem escaleres de salvação.

No catálogo Ilustrado [5] organizado como “recordação da exposição”, pode-se conferir um esboço ao menos da obra feita pelo próprio autor [Figura 5].

Nesse ano, quando as províncias do Ceará e do Amazonas davam cartas de alforria a seus últimos cativos, na Corte havia inúmeros eventos para angariar recursos necessários à alforria dos escravos que ainda remanesciam. Rouède vendeu ainda com a tinta fresca, muitas das telas que pintava para o público que o cercava, conhecidas como pintura "a la minute". O próprio artista escreve anos depois, a propósito desses acontecimentos:

Era diminuto o número de escravos que ainda existia no Ceará e, embora os grandes esforços realizados pela Confederação Abolicionista, precisava-se de uns doze ou quinze contos de réis para acabar com a nefanda instituição. Pensou-se então em realizar uma grande quermesse no Rio para se obter essa quantia. Armaram-se barraquinhas na antiga "Guarda Velha", fizeram-se tômbolas, rifas, loterias e apelou-se para tudo que a lei consentia para esse caso.Eu, à vista de numeroso público que enchia o local, pintava marinhas em seis ou oito minutos e o saudoso Ferreira Araújo punha-as em leilão. Outro recitava poesia e pedia níqueis depois, de bandeja na mão. Aquele improvisava e vendia os seus improvisos, todos enfim, contribuindo com o trabalho para conseguir a quantia, que chegamos a obter, para libertar "in totum" o Ceará. (RIBEIRO, M. T. - 1988: 4)

Há notícias da associação de Rouède com Coelho Neto para escrever a sátira teatral "Indenização ou República", uma crítica ao incremento que se deu às frentes republicanas atreladas às demandas indenizatórias. O pintor teria defendido, por algum tempo ainda, o Terceiro Reinado, dizendo ser por agradecimento pela assinatura da princesa Isabel por ter dado fim ao escravismo no Brasil. Teria ocorrido na sua casa a fundação da "Guarda Negra", aos 9 de julho de 1888, uma organização que combatia a qualquer movimento político que ameaçasse a Monarquia [6]. De certa forma, a abolição, torna popular a monarquia (SCHWARCZ, L. - 1999:448). A atitude da princesa agencia uma lealdade ao Império que forma, inclusive, a Guarda Negra, uma milícia com os libertos do 13 de maio.

Outras lógicas, porem, estiveram encadeadas antes da estabilização de uma ala de idéias republicanas. E é exatamente nessa fronteira histórica entre dois regimes que a situação da população negra liberta aparece enredada aos mais diferentes projetos.

O artista francês, Augusto Petit, desde 1864 no Rio de Janeiro dedicando-se à pintura de retratos, apresenta uma importante variação no modo como extrai uma identidade negra. Suas biografias destacam seu envolvimento na causa da "abolição do elemento servil". Premiado com medalha de prata na  Exposição Geral de 1884,  expõe as obras O Príncipe Obá e A Princeza  Obá. O mesmo personagem também foi tema para Belmiro de Almeida, que, em 1886, expõe a tela Príncipe Obá [Figura 6].

Aqui, a figura negra, embora difusa sob pinceladas numa direção impressionista, dá nome ao quadro e ganha o centro da tela. A identidade, não mais genérica, evidencia um certo lugar como patrimônio a ser representado. O percurso pictórico do personagem no circuito da AIBA levou à procura de notícias a seu respeito.

Afinal, quem era Obá? Eduardo Silva apresenta-o como homem livre, negro, que vivia na cidade do Rio de Janeiro reverenciado como o príncipe do povo pelas "massas" e considerado meio amalucado pelas elites. Auto - intitulado dom Obá II d' África (Obá significa rei na língua iorubá), era um líder em seu próprio reino, a "África Pequena”. Mantinha relações com o Imperador d. Pedro II em freqüentes visitas ao palácio, ao qual se dirigia envergando seu bem cuidado uniforme de alferes ou, metido em elegante fraque, cartola, luvas, bengala, guarda-chuva e pince-nez de ouro. Obá escrevia para jornais expondo seu pensamento sobre questões políticas e sociais de seu tempo, o processo de abolição da escravatura e relações raciais. (SILVA, E-1997:11) Na verdade, dom Obá era o alferes Cândido da Fonseca Galvão, membro do "Corpo de Voluntários da Pátria" que participou da Guerra do Paraguai; buscava reconhecimento social por seus feitos ora valendo-se dos trâmites legais ora dirigindo-se ao próprio Imperador. Depois de concedidas as honras do posto de alferes do exército (1872), Galvão encaminha um pedido de pensão, por causa de moléstia adquirida no Campo. Novas reivindicações se sucedem até 1880, ano em que encaminha ao Senado do Império o pedido de uma restituição de 20$000. Nos seus artigos[7] sobre justiça social, argumenta que havia se deslocado de Salvador para o Rio de Janeiro para se sentir mais cidadão.

O caso das pinturas de Obá aponta para novos significados culturais. O tema nessa sintaxe pictórica, ao invés de ser impresso com clichês negativos ou caricaturas alegóricas, alinha redimensionamentos sociais que o próprio modelo representava. Significativo é o fato de tomar o centro das telas um personagem que discute sua cidadania. Os artistas retiram uma personalidade negra do anonimato, atribuindo-lhe individualidade. O emblema procura perfilar um gesto. O fato de dom Obá carregar uma fala pública sobre o pertencimento à nação a partir do tema de seu alistamento para defender a pátria são elementos simbólicos presentes na visibilidade plástica de Oba.

O quadro de Belmiro de Almeida, por sua vez, carrega uma ambigüidade notável. Os contornos definem uma postura corporal principesca, onde as luvas, a cartola no estilo d. Pedro II, a bengala, o pince nez de ouro, articulam uma nobreza negra. Nesse esquema, até o guarda-sol, um motivo estrutural de certos reinos africanos, reforça a composição. Todavia, a face está sombreada. A construção torna imprecisa, inclusive uma humanidade, pois o rosto, a barba, sombreados não alcançam definição.Obá pisa sobre sua sombra, a imagem refletida, talvez, dos ainda não inteiramente cidadãos naquele ambiente ou o negativo de uma cidadania pretendida.

A formulação encontrada com o assunto Dom Oba demonstra certa abertura voltada para representar com positividade uma cidadania negra. Já na nova ordem republicana o personagem real evidencia situação contrária:

[...] Conta-se que no dia 2 de dezembro, que seguiu-se à proclamação da República, o príncipe Obá, como de costume, dirigiu-se ao paço para cumprimentar o imperador; que encontrando as portas fechadas, ou sendo despedido, enfureceu-se e prorrompeu em vivas e disparates. O que há nisso de autêntico não afirmamos; o que é certo porém, é que o governo provisório da República cassou-lhe as honras de alferes, sobrevivendo ele apenas alguns meses a esse desgosto. Não seria preferível tê-lo feito recolher a um asilo? No dia imediato ao do seu falecimento, os grandes jornais da capital consagraram-lhe artigos biográficos, cedendo-lhe escolhido lugar na interminável galeria dos tipos da rua. [Melo Morais Filho, s/d]

Outra vertente também localizada no período, são  retratos como o de André Rebouças na pintura de R. Bernardelli [Figura 7]. O retratismo naquela sociedade também mereceria uma análise mais vertical. Os retratos satisfaziam um pequeno grupo com poder econômico e político, documentando atributos.

A pintura atesta que uma presença negra no círculo das elites na sociedade do Rio de Janeiro buscou usufruir da arte de cunho individualista se apropriando desse código cultural.

E, não é apenas o modelo negro de humanidade que busca redimensionamentos. No final do império as projeções sobre os destinos da sociedade vão incorporando, no temário plástico, etnicidades mais representativas da identidade nacional reveladoras do notável jogo político da ocasião. Os desdobramentos dessa linha podem ser conferidos na exposição de 1895. O interesse naturalista nas telas de Almeida Júnior prioriza o caipira, agregando o conteúdo regionalista que inaugura a direção para as afirmações paulistas. De Paris, o pintor arrola e exalta algumas profissões populares com orgulho e dignidade. Nesse universo, o passado é construído com lastros de tradição, bravura e monumentalidade. Não apenas tipos, como o seu picador de fumo, circulam como tema. Weingärtner retrata os costumes da colônia alemã do Rio Grande do Sul e Henrique Bernardelli expõe o quadro Bandeirantes.

Mas o que aconteceu nessas referências todas para a nacionalidade, com aquela positividade associada à imagem da população negra?

O debate racialista nas composições plásticas

A República vitoriosa, que previa a igualdade entre os civis, precisava definir os critérios de inclusão/exclusão dentro de um estatuto de cidadão nacional. Lembrando que a Abolição foi um ato promulgado no ano de 1888 e a Constituição apenas um ano depois, qual o lugar desse contingente negro na nova ordem social? Como legitimar culturalmente o pressuposto republicano da igualdade entre os homens com tão evidentes desigualdades? O ideário racialista, carregado de conotações biológicas soluciona e desloca o foco sobre fatores sociais. A parcela negra passa a ser associada ao atraso monárquico. Não sendo problema republicano, portanto, não existia para as configurações do novo espaço nacional.

No setor das artes, a Revista Brazileira, uma publicação quinzenal (ciências, letras, artes, história, filosofia, economia, política, sociologia, viagens) "dedicada aos interesses da civilização nacional", exibe a entrada de um repertório com autores do biofatalismo nas organizações sociais. No tomo V do ano de 1896, Alonso Adjunto assina o artigo Herbert Spencer e a sua obra, Clóvis Beviláqua escreve sobre Gustavo Le Bon e a Psicologia dos Povos, Nina Rodrigues está presente com O Animismo Fetichista e, há um artigo do próprio Herbert Spencer, Da Educação. Como se pode notar, numa revista de artes, lá estava a nata do pensamento poligenista da época.

Em 1892, Modesto Broccos, expoente pintor dessa fase e nesse enredo, será tratado pela imprensa como “pintor de raça”. Suas obras:

[...] trazem a visão evocada um tipo moreno de peninsular, cabelos negros, tão negros quanto devem ser os seus olhos inquietos, característicos dessa raça sul-européia, em que o domínio sarraceno deixou, arraigados ao gosto de um povo, o brio das tintas vivas... [...] E, aqui, a dois passos, num pequenino retalho de tela ou meio palmo de cartão, espaçado e soberbo, sobre um rico amarelo vitelino, o busto minúsculo de uma mulata de cabeção rendado de missangas, entrunfada e ancha, abrindo para adiante o olhar translúcido de sensualidades acres. (REVISTA Crítica de Arte - 1981: 77)

Broccos expressa a retomada de uma forma de representar, reificadora de idéias que defendem a inferioridade da população negra. Na busca de toda sorte de elementos que justifiquem a falta de equidade civil, reativa-se um discurso que torna presente uma ligação com o passado e perpetua-se a condição desigual, caminho para a construção de uma alteridade interna na sociedade.

A obra do autor - Engenho de mandioca (1892) [Figura 8] ressalta as cores terrosas, indicativas da proximidade com a natureza.

Concebida com realismo, as figuras negras aparecem ambientadas muito próximas do antigo lugar social. Como as raízes, aliás o mesmo tom da pele das mulheres, estão jogadas ao chão. Não há distância da terra que é a cor de todo o interior.

A luz que entra pela janela não atinge as personagens mas produz como efeito, uma tênue visibilidade de suas expressões faciais que lhe atribuiriam identidade. Sobre esse trabalho, vejamos o texto originalmente publicado na imprensa da época, registrado por Gonzaga Duque:

[...] a raspa no engenho, em pleno dia, o círculo de negras fechando o amontoado da mandioca. [...] Vê-se bem que este trabalho requereu grande paciência observadora, e cada uma das figuras desse quadradinho valioso tanto por seu merecimento de arte transportadora como pelo assunto, é um estudo de tipos conseguido com o mais feliz êxito e constitui um excelente produto do que, na sédica terminologia dos velhos pintores, se chamava estudo de costumes." (apud Revista Crítica de Arte nº 4, ABCA, 1981:77-78)

Ou ainda:

[...] o quadro mandioca premiado em Chicago, mereceu favoráveis apreciações dos entendidos de arte. Provavelmente, saindo dos pequenos assuntos de quadros de salas particulares dará uma verdadeira obra de arte, em que será personificado, com aplicação ao nosso meio, um dos princípios mais irrefutáveis de Etnologia americana.(Revista Brazileira -1895: 50)

Esta participação em Chicago ocorreu na Exposição Universal na cidade de Chicago, realizada em 1893, cujo principal enredo foi a consolidação de idéias sobre a hierarquia racial que levavam a identificar o progresso, a felicidade e o sucesso nos negócios. Apresentando um inventário de tipos físicos de todo o globo, expunham as diferentes “raças” em suas múltiplas gradações, valiam-se até mesmo da visualização in loco desses “tipos” e suas pitorescas habitações.

O discurso racialista, no entanto, adquire adapta uma singularidade brasileira. Retratar costumes incorpora uma “mestiçagem” como ícone nacional. O próprio  Broccos, concebe Redenção de Cã (1895) [Figura 9] como um baluarte dessa mentalidade, bem aceita, segundo o próprio autor:

Foi um sucesso! Bilac escreveu uma engenhosa crítica sobre a maldição de Noé, que meu quadro desvalorizava; inspirou a Coelho Neto uma composição sobre o navio fantasma - os alunos ofereceram-me uma palheta e os jornais desfizeram-se em elogios. Tudo isso foi obra dos meus amigos, principalmente de Bernardelli- o júri influído, concedeu-me a primeira medalha. (apud ACQUARONE, F. 1941)

A alegoria bíblica dos filhos de Noé salvos pelo dilúvio reconta a história de Sem, de quem descendem os semitas que teriam povoado a Ásia, na planície babilônica. De Jafé, descenderiam os habitantes da Europa; de Cam, os da África. Certa vez, o pai teria se embriagado. Um gesto de ajuda de Sem faz com que as bençãos paternas e os seus descendentes, os eleitos. Cam seria amaldiçoado por ter zombado da situação. Na narrativa visual de M. Broccos a “raça” negra teria sido redimida de sua maldição, graças à vinda para as terras brasileiras.

A mulher africana tem a filha mestiça que se casa com um português, tendo um rebento branco. A velha ergue os olhos e agradece a Deus a redenção de sua raça, operada nesse cadinho formidável que é o Brasil. O quadro ainda estará em evidência em 1911 quando João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, o leva para o I Congresso Internacional das Raças, para ilustrar sua tese: “o Brasil de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução”. (SCHWARCZ, L - 1993:11)

Comentários finais

A quebra da autoridade para as orientações oficiais, a ânsia pelo novo que faz brotar uma série de grupos e tendências, é o instante em que o poder está por todos os lados e ao mesmo tempo em lugar nenhum. Tudo é transição e possibilidade. É o momento em que muitas frentes batalham para tornarem-se a oficialidade. O que é oficial nos anos oitenta?

Para o dinamismo observado registra-se, muitas vezes, a inversão dos símbolos. O modelo que apresentasse alguma individualidade negra, reprimida até aquele momento, vai se expandir em novos repertórios. Nesse jogo, personagens sem visibilidade e sem voz passam a ocupar o primeiro plano e sair da posição secundária. A presença negra no espaço visual da década de 1880 esteve entre o desprezo e o desejo, entre o centro e fundo. Porém a imagem republicana revigora as conotações depreciativas numa nova oficialidade  que vai estruturando uma ideologia  que se consolida como força social.

Bibliografia

ACQUARONE, F & QUEIROZ Vieira, A. de.  Quadros da História da Pátria interpretados por artistas brasileiros.  Rio de Janeiro, 1941.

DUQUE-ESTRADA, Luís G.  Arte brasileira (pintura e escultura) Rio de Janeiro, Imprensa a Vapor  H. Lombaerts C, 1888.

FREIRE, Laudelino.  Um século de pintura; apontamentos para a história da pintura no Brasil de 1816 a 1916.  Rio de Janeiro: Typographia Röhe, 1916.

MEGHREBLIAN, Caren Ann. Arts, Politics and historical perception in Imperial Brazil, 1854-1884. Los Angeles, doctoral dissertation, University of California, 1990.

RUBENS, Carlos. Pequena História das Artes plásticas no Brasil. edição ilustrada, São Paulo: Companhia Editora Nacional, Serie 5 Brasiliana, v198, 1941.

SCHWARCZ, Lilia K. M. As Barbas do Imperador - D. Pedro II. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

____________________. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993

SILVA, Eduardo. Dom Obá II D'África, o Príncipe do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

REVISTA Crítica de Arte, nº 4, Dezembro de 1981, Rio de Janeiro, ABCA/AICA.


[1] O presente texto é desdobramento das reflexões realizadas na dissertação de mestrado - A presença negra na AIBA: a década de oitenta do século XIX, apresentada no ano de 1999 no Departamento de Antropologia-FFLCH-USP sob a orientação da profª Drª Lilia K. M. Schwarcz.

[2] Pós- doutoranda no Departamento de História Social - FFLCH/USP

[3] LIMA, Heloisa – 1999 : 33

[4]Emilio Rouède (nasc. Avignon, Franca-6 de janeiro de 1848/ falec. Santos (?) - 5 de junho de 1908). Muda menino para a Espanha servindo na Real Marinha Espanhola. Toma parte de um levante insurrecional que após fracasso determinaria sua fuga para o Brasil em 1880. Em 1882 participa de uma exposição promovida pela Sociedade Propagadora de Belas Artes no Liceu de Artes e Ofícios. Em 1884 participa da Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes". In DUQUE-ESTRADA, G. - 1888: 220.

[5] O catálogo ilustrado foi impresso pela Typographia e lithographia a vapor Lombaerts& Comp e apresentava croquis executados pelos próprios autores que reproduziam as obras exibidas. Uma edição de cem exemplares numerados pretendia ser uma recordação do evento. Um fác-simile desse catálogo se encontra disponível no presente site: http://www.dezenovevinte.net/catalogos/catalogos_1884_ilust.htm

[6] O mentor da  Guarda Negra, uma força paralela ao Exército e formada por ex-escravos,  fora José do Patrocínio, que era também um dos difusores do culto à Isabel. O objetivo da tropa era proteger a monarquia. Conforme SCHWARCZ  - 1999: 447

[7] Publicou 35 artigos entre 1886 e  1887,  apenas 1 no ano de 1888 e outro em 1889.