Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo

Arthur Valle

VALLE, Arthur. Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma análise do Panneau Decorativo. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 2, ago. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_gb.htm>.

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GUTTMANN BICHO (1888-1955): Panneau decorativo, 1921.

Óleo sobre tela, 153 x 148 cm.

Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.

Nosso primeiro contato com a obra de Galdino Guttmann Bicho (1888-1955) se deu nas dependências do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro, ainda no início da década de 1990. Lá se encontrava exposto um de seus mais importantes trabalhos, um quadro a óleo de grandes dimensões chamado Panneau Decorativo [Figura 1], realizado em 1921, e que rendeu ao artista o Prêmio de Viagem ao Exterior da Exposição Geral de Belas Artes daquele ano. O trabalho surpreendeu-nos bastante na ocasião, primeiro por possuir uma singular qualidade evocativa, apesar de apresentar um tema aparentemente banal - uma mulher que põe a mesa de chá em uma varanda; depois, por provir de um pintor que até então ignorávamos completamente.

Algum tempo depois, essas impressões foram renovadas quando tivemos oportunidade de ver todo um ciclo inteiro de pinturas de Guttmann Bicho no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto, localizado na Ilha do Governador, cidade do Rio de Janeiro. Novamente, o pintor conseguia extrair de um tema prosaico - desta vez as campanhas de sanitarismo no Rio de finais dos anos 1920 -, efeitos sugestivos e poéticos. Com tudo isso, naturalmente, crescia, também, a nossa curiosidade a respeito da personalidade artística por trás de tais realizações.

Desde então, podemos dizer que já germinavam as duas indagações cujas tentativas de resposta constituíram o cerne da dissertação de Mestrado que elaboramos entre 2000-2002 no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Quem foi Guttmann Bicho? Qual a natureza dos recursos compositivos que conferiam às suas obras o seu peculiar caráter evocativo? Algumas das conclusões às quais chegamos no que se refere a essa última pergunta constituem o tema principal do presente texto.

Na busca de fontes que pudessem fornecer maiores informações sobre o pintor e sobre sua obra, logo descobrimos que Guttmann Bicho estava longe de ser um artista completamente desconhecido dos historiadores de arte brasileiros. Aluno livre da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), diversas vezes premiado nos certames oficiais, possuidor de uma personalidade muitas vezes lembrada como marcante, teve destacada atuação nos meios artísticos das primeiras décadas do século XX, especialmente nos do Rio de Janeiro, e foi, além disso, um dos principais promotores da cerâmica artística em nosso país. Bicho é citado em todas as principais obras de referência e dicionários de artistas plásticos brasileiros, embora os verbetes a ele destinados sejam pouco extensos e geralmente repetitivos[1].

No que se refere às questões estilísticas, que aqui constituem o nosso interesse exclusivo, encontramos Guttmann Bicho estreitamente associado, em sua fortuna crítica, às tendências impressionistas e pontilhistas da arte francesa de fins do século XIX. Nesse sentido, já no início da década de 1940, o crítico Carlos Rubens afirmava: “se ao partir para a Europa se dizia que ele era desprovido de qualquer part-pris de escola, quando regressou e expôs o enquadraram no Impressionismo”[2]. Analogamente, Walmir Ayala destaca o “gosto pela pesquisa de luz”[3] verificado na obra do pintor e João Medeiros fala de sua “nítida influência impressionista”[4]. Carlos Cavalcanti, por sua vez, indica com mais precisão que, já antes de sua viagem à Europa, Bicho “ensaiou intuitivamente a aplicação dos princípios do divisionismo ou da mistura óptica de cores de que Seurat e Signac haviam sido os melhores exemplos nos fins do século passado”[5].

Essa convergência de juízos da nossa crítica de arte mais ou menos recente deixa transparecer uma tendência a privilegiar, na obra do pintor, os aspectos vinculados ao que se convencionou chamar “pura visibilidade”, isto é, aquele ramo da arte do século XX caracterizado por uma preocupação quase exclusiva com o aspecto visual das obras. No que se refere à pintura, sabemos que a ênfase em uma atitude perceptiva mais direta, desvinculada de esquemas reguladores da representação - como a perspectiva linear, por exemplo -, se encontrava já bastante avançada quando do advento do Impressionismo[6]. Logo, porém, em algumas correntes do início do século XX, a articulação do aspecto puramente visual do quadro ganharia ampla autonomia e não iria se submeter nem sequer às impressões recolhidas da realidade empírica[7].

Paralelamente, essa autonomia da pintura se afirmaria também com relação às demais artes, especialmente a literatura. Porta-voz típico dessa tendência, o crítico estadunidense Clement Greenberg chega a apontar como característica eminentemente modernista da arte o seu caráter “auto-crítico”, que teria como consequência extrema “eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e qualquer efeito que se pudesse imaginar ter sido tomados dos meios de qualquer outra arte ou obtido por meio deles. Assim cada arte se tornaria 'pura' e nessa 'pureza' iria encontrar a garantia de seus padrões de qualidade bem como de sua independência”[8].

No caso da pintura europeia das primeiras décadas do século passado, tal esforço “de entrincheiramento em sua área de competência” - para usar uma conhecida expressão de Greenberg -, que era já óbvio na eliminação progressiva do caráter anedótico da pintura levada a cabo com as tendências “realistas” de meados do século XIX, acabaria conduzindo a uma total exclusão de qualquer valor semântico na imagem, como pode ser observado em obras de artistas ligados a “vanguardas” novecentisras como o Construtivismo Russo e De Stijl. Essa pintura “abstrata”, com sua auto-proclamada negação dos valores referenciais, pareceria inclusive, a alguns historiadores e críticos de arte posteriores, o ápice da pintura modernista[9].

Como já apontamos, as “pesquisas de luz” de Guttmann Bicho, o seu interesse pelos “efeitos de magnífica intensidade cromática”[10] ou a sua extensa produção no gênero da paisagem, foram normalmente lembrados e citados de modo a inserir sua obra na linha evolutiva dessa “pintura pura”. E essa foi também a maneira mais óbvia de ligá-la à genealogia do modernismo brasileiro. Uma leitura crítica semelhante pode ser verificada com relação a obra de diversos outros artistas mais ou menos vimcualdos aos meios acadêmicos fluminenses tardo-oitocentistas como Eliseu d’Angelo Visconti e, especialmente, Giovanni Battista Castagneto.

Algumas declarações do próprio Guttmann Bicho poderiam mesmo ser utilizadas para embasar tais leituras. Em uma entrevista dada ainda na década de 1910, encontrada em um álbum de recortes do próprio pintor, este afirmava: “O tema é sempre uma cousa acessória e secundária [...] o mérito de um pintor se manifesta muito mais na qualidade e na maneira da pintura do que nos assumptos escolhidos”. E, de fato, uma tendência à exclusiva organização visual do campo do quadro é verificável em várias obras de Bicho, em especial em suas “manchas” de paisagem, obras de dimensões reduzidas e normalmente realizadas ao ar livre, nas quais o motivo é sobretudo um pretexto para um trabalho de pintura onde surge exaltada a tessitura e a vibração cromáticas do quadro.

Entretanto, um exame mais atento da produção do pintor serviria para relativizar essa leitura crítica, já que diversas obras de Guttmann Bicho não limitam-se à afirmação do aspecto puramente visual da imagem. Na verdade, como aliás a maioria dos pintores de sua geração, Bicho variava enormemente a configuração de seus trabalhos em função sobretudo da natureza diversa dos temas e das encomendas, executando com desenvoltura desde decorações oficiais e retratos, com suas exigências representativas específicas, até o exercício pictural mais pessoal e livre[11].

Naquilo que aqui nos interessa mais precisamente, podemos observar como, em diversos de seus trabalhos, Guttmann Bicho não negligenciava o elemento semântico da pintura, mas, muito pelo contrário, convertia-o em um fator fundamental para o sentido estético da obra. Sem negar as relações de contiguidade verificáveis entre os objetos na realidade empírica, mas indo além delas, e, simultaneamente, afastando-se do caráter alegórico presente em parte da produção de seus contemporâneos, Bicho fazia um uso do elemento semântico que podemos qualificar de verdadeiramente estrutural.

Podemos encontrar indicações teóricas a respeito desse tipo de uso do elemento semântico da arte em alguns postulados de correntes de análise da obra de arte normalmente referidas como “estruturalistas”, especialmente aqueles de função poética e princípio de equivalência, sistematizados por Roman Jakobson em seu artigo “Linguística e Poética”(1960)[12]. Tais postulados estavam implícitos no pensamento de outro teóricos desde pelo menos os anos 1930 e eram já então pensados como abrangendo todas as manifestações estéticas, como fica explícito nos escritos de, por exemplo, Jan Mukarovsky[13].

Tal uso estrutural do elemento semântico é fundamental para a obtenção de certos efeitos de sentido frequentes - embora não exclusivamente encontrados - em algumas tendências da pintura europeias, a partir de fins do século XIX. Como lembra Roberto Salvini, paralelamente às correntes da “arte pura” por nós já citadas, “o conteúdo, que era muito difícil de banir totalmente, reaparece sob a forma de uma obscura e mística sensação de mistério, como nos Simbolistas e em Gauguin que teoriza a forma sintética como símbolo do mistério e do infinito”[14]. Tal orientação é ainda mais evidente em algumas “vanguardas” modernas como a Pittura metafisica italiana e em certos aspectos da Neue Sachlichkeit alemã, do Dadaísmo e do Surrealismo.

Analisando obras desses movimentos, podemos verificar que o seu caráter evocativo encontra-se não raras vezes associado à atualização de algumas relações de sentido específicas, que propomos agrupar em quatro tipos principais[15]: a) Similaridade; b) Incompatibilidade; c) Hiponímia[16]; d) Relações metonímicas. Em linhas gerais, esses são os mesmos tipos de relações estudados pelos semanticistas que procuram descrever a estrutura semântica das línguas naturais[17]. De maneira ainda mais fundamental, essa relações de sentido encontram-se intimamente relacionadas com a própria estrutura daquilo que poderíamos denominar sistema conceitual humano[18].

No presente texto, nos limitaremos a demonstrar, além do uso das equivalências compositivas, a maneira como algumas dessas relações de sentido se encontram atualizadas no já citado Panneau Decorativo de Guttmann Bicho, que, nosso entender, é um bom exemplo do uso estrutural do elemento semântico ao qual acima nos referimos. O Panneau é, provavelmente, uma das obras mais bem sucedidas de toda a carreira de Bicho. Distante dos temas alegóricos ou históricos ainda usualmente associadas à produção de artistas ligados à ENBA, o pintor apresenta-nos uma cena simples e prosaica, onde uma mulher - figura inspirada em sua primeira esposa, Diva Freire -, coloca a mesa de chá em um ambiente pouco demarcado, aparentemente uma varanda de subúrbio, repleta de objetos variados.

O quadro, de fatura relativamente contida - apenas na área branca do vestido da mulher pode-se observar um uso mais enfático de empastamento -, apresenta uma aplicação discreta dos princípios pontilhistas, mais perceptível na parede que ocupa a maior parte da metade esquerda da obra e onde pode-se verificar uma vibração cromática de pontos azuis sobre um fundo de cor mais terrosa. Na composição predominam as direções ortogonais e uma divisão em áreas de cor separadas por fortes contrastes de matiz, que não raramente ostentam saturações bastante acentuadas.

O principal fator que estabelece uma relação de equivalência entre alguns dos elementos mais destacados do quadro (a mulher, o cachorro, a mesa, a cadeira) é o fato deles partilharem uma mesma orientação espacial, estando todos lateralmente perfilados. Nesse sentido, mesmo as eventuais distorções perspectivas dos móveis são atenuadas de maneira a não contradizer a tendência à lateralidade. Somado ao desenho linear bastante preciso e ao tratamento pictórico controlado, essa lateralidade quase onipresente ajuda a reforçar o sentido de artificialidade do quadro: apesar de tratar-se de uma cena do quotidiano, paira no ar uma estranha sensação de rigidez hierática e de congelamento.

O princípio de unificação dos elementos de uma obra através de uma mesma orientação espacial é bastante comum na história da arte. Como exemplos de quadros quase completamente subordinadas a esse princípio compositivo e que mantém com o trabalho de Bicho relações estilísticas e temporais relativamente próximas, poderíamos aqui citar as primeiras grandes composições do francês Georges Seurat, como o quadro Banhistas em Asnières (1883) [Figura 2], da National Gallery de Londres, ou o famoso Domingo à Tarde na Ilha do Grand Jatte (1884) [Figura 3], hoje no Art Institute de Chicago. Todavia, é também possível que as referências do pintor brasileiro para seu quadro sejam menos recentes: a lateralidade como princípio compositivo unificador é quase uma norma na arte da pintura e dos relevos escultóricos praticada pelas civilizações antigas, sendo que os egípcios, assírios, gregos, entre outros povos, aplicavam-na frequentemente. Sabemos que a ENBA possuía diversas moldagens de gesso de peças antigas, especialmente greco-romanas, e como Bicho por vezes expressou a sua admiração por estas, é bastante plausível que o tenham influenciado na realização do Panneau Decorativo.

Vimos como o estabelecimento de uma mesma orientação espacial - no caso, a lateralidade - instaura um forte fator de similaridade entre elementos semanticamente diversos de uma mesma obra; a relativa sensação de estranheza que esse procedimento provoca deriva em parte do fato de sugerir a existência de uma espécie de “vínculo existencial” entre os objetos que afeta[19]. Todavia, se por um lado a lateralidade serve como fator de similaridade entre elementos de significado referencial mais ou menos díspares (mulher, mesa, etc.), por outro, quando diante de uma verdadeira identidade semântica, como no caso, das duas xícaras colocadas sobre a mesa [Figura 4], Guttmann Bicho utiliza orientações espaciais opostas afim de criar um contraste visual subjacente: assim, a xícara da esquerda é colocada com a borda para cima e a da direita com a borda para baixo. Esse conjunto de dimensões reduzidas com relação ao todo do quadro, é no entanto bastante importante por encontrar-se no centro do mesmo e atuar em certa medida como pivô de toda composição, como veremos mais à frente[20].

Outro tópico a respeito do Panneau que gostaríamos de analisar refere-se às relações metonímicas - mais especificamente às representações da parte pelo todo - nele verificáveis[21]. Como é comum nas imagens visuais fixas, a apresentação da maioria dos elementos no quadro de Bicho não chega a ser integral: os mesmos são sempre mais ou menos “cortados” pelos limites do plano do quadro ou ocultos por sobreposições. No entanto, a maioria de tais elipses (para usarmos um outro termo linguístico) não chega a apresentar efeitos semânticos muito notáveis, como podemos constatar, por exemplo, no caso da mulher ou da mesa, das quais apenas as extremidades inferiores não são mostradas.

Um tanto diferente é o caso de dois outros elementos, o cachorro e a cadeira [Figura 5], os quais apresentam “cortes” mais acentuados. Essa primeira equivalência entre os dois elementos é reforçada por outra relativa à disposição espacial dos mesmos que são colocados de forma perfeitamente simétrica com relação ao eixo vertical central do quadro (o cachorro na extremidade inferior direita, a cadeira na extremidade inferior esquerda). Alertados por essas equivalências primárias, podemos então constatar a existência de outras similaridades subjacentes aos dois elementos: em primeiro lugar, tanto o cachorro quanto a cadeira apoiam-se sobre quatro “pernas”; além disso, apresentam dinâmicas visuais um tanto semelhantes [Figura 6], ainda que simetricamente orientadas em relação ao plano do quadro. Assim, graças a um mesmo tipo de operação metonímica, a obra revela-nos as semelhanças morfológicas existentes entre elementos referenciais à primeira vista bastante distintos.

Um último e importante fator para a compreensão do Panneau Decorativo que gostaríamos de aqui destacar refere-se à maneira bastante intencional com a qual Guttmann Bicho procura relacionar a ordem categorial dos objetos apresentados e a disposição relativa dos mesmos no plano do quadro. Poderíamos resumir tal fato dizendo que o quadro é dividido em duas partes e em cada uma delas predominam elementos semânticos co-hipônimos. Nesse sentido, a vertical da parede [Figura 7], localizada quase exatamente no centro da pintura, deveria ser entendida como um eixo compositivo básico que separa a obra em duas metades as quais apresentam entre si um contraste semântico fundamental: à direita dessa vertical central, predominam elementos possuidores dos componentes semânticos orgânico/natural - a mulher, o cachorro, as folhas da vegetação [Figura 8, em verde no esquema], enquanto à esquerda, em oposição, predominam os elementos com os componentes semânticos inorgânico/cultural - a própria parede, a mesa como o aparelho de chá, as lanternas japonesas, etc. [Figura 9, em cinza no esquema]. Essa oposição semântica é ainda reforçada através de um sub-tema estritamente visual, o contraste estabelecido entre as modulações de configuração e cor bastante variadas que predominam na vegetação à direita e o tratamento bem mais regular dado à parede à esquerda, com a sua suave e quase uniforme vibração pontilhista.

Essa divisão não possui, todavia, um caráter absoluto. Antes, ela estabelece nas duas metades complementares o que poderíamos chamar de duas regências semânticas opositivas, nas quais predominam diferentes ordens categoriais. Essas regências, por sua vez, não são unívocas: à direita, por exemplo, podemos ver um elemento cultural (a cerca), enquanto na área à esquerda, flores e outras plantas introduzem um contraponto semântico equivalente. O fato de várias das plantas à esquerda, colocadas em vasos, possuírem um caráter mais “cultivado” e, inversamente, a cerca à direita possuir um aspecto bastante rústico, parece indicar que o pintor utiliza esses elementos para realizar passagens semânticas: a função de tal artifício é evitar uma separação compositiva que de outro modo tornar-se-ia demasiado rígida. Ele relativiza, não obscurece totalmente a separação entre as duas metades do quadro, que continuam a ser percebidas como semanticamente contrastantes.

Nesse contexto, é justamente a figura da mulher [Figura 10, em vermelho no esquema] que serve de ponte entre as duas metades da obra. Por uma lado, ela participa, por sua própria essência, do domínio dos seres naturais à direita do quadro - no entanto, é importante notar que ela parece pouco vinculada à esse domínio, chegando mesmo a dar-lhe as costas. Por outro lado, está vestida com roupas que são semanticamente mais próximas do mundo dos objetos culturais à sua frente, mundo este que é, ele próprio, um índice da atuação humana. Esse papel de mediação aparece eloquentemente expresso no gesto da mulher, que, ordenando o “microcosmo” central da mesa de chá [Figura 11], toca simultaneamente nas flores (um elemento orgânico/natural) e na xícara (um elemento inorgânico/cultural).

Se desejarmos, podemos resumir nossa análise com uma interpretação - não isenta de reducionismos - afirmando que Guttmann Bicho nos apresenta no Panneau Decorativo uma espécie de proposição visual na qual o mundo representado é dividido em dois níveis categoriais distintos e contrastantes - um natural e outro cultural -, cada qual com a sua própria identidade e com dignidade e valor equivalentes. Todavia, esses dois níveis, a princípio separados, se interpenetram de uma maneira respeitosa e são inter-relacionados sobretudo pela presença e pela ação do ser humano - no quadro representado pela figura da mulher -, que participa dos dois níveis categoriais distintos que são a base da concepção de mundo expressa pelo pintor nessa obra específica.

Gostaríamos de encerrar lembrando que, se no presente texto nos limitamos a demonstrar de que maneira Guttmann Bicho apresenta no quadro analisado um uso eminentemente estrutura do elemento semântico da imagem - do qual podemos encontrar paralelos na articulação de outros elementos da forma[22] -, tal uso não se limita de maneira alguma ao Panneau Decorativo. Diversas outras obras de Bicho apresentam procedimentos análogos, sendo o ciclo de pinturas no Centro Municipal de Saúde Necker Pinto ao qual nos referimos no início do texto talvez a sua realização mais complexa nesse sentido[23].

Por fim, desejaríamos frisar que aqui não fizemos mais do que esboçar alguns aspectos da utilização estrutura do elemento semântico nas imagens estéticas, a qual necessitaria ainda de estudos mais aprofundados. Desde já podemos crer, todavia, que os procedimentos que aqui descrevemos brevemente são bastante frequentes na História da Arte e podem vir a fornecer, no futuro, subsídios importantes para uma compreensão mais adequada de uma grande gama de objetos artísticos nos quais a instância semântica desempenha um papel compositivo fundamental.


[1] Nesse sentido, o caso de Guttmann Bicho é sintomático de uma lacuna mais geral na história da arte brasileira: se analisarmos apenas a cena artística carioca do início do século passado, verificaremos que a maioria dos artistas da geração de Bicho, nascidos por volta das duas décadas finais do século XIX e estreitamente vinculados ao ensino ministrado na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) - geração esta que inclui artistas como o casal Lucílio e Georgina de Albuquerque, Helios Seelinger, os irmãos Arthur e João Timótheo da Costa, Henrique Cavalleiro, entre vários outros - são ainda escassamente estudados e suas obras pouco conhecidas.

[2] RUBENS, Carlos. Pequena história das artes plásticas no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 211.

[3] AYALA, Walmir. Dicionário de pintores brasileiros. Curitiba: Editora da UFPR, 1997, p. 104.

[4] MEDEIROS, João. Dicionário de pintores do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Irradiação do Brasil, 1988, p. 79.

[5] CAVALCANTI, Carlos (org.) Dicionário brasileiro de artistas plásticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro MEC, 1973, p. 242.

[6] Não por acaso, vários historiadores identificam o surgimento da arte moderna com o Impressionismo. Nesse sentido, por exemplo, Giulio Carlo Argan afirma: “o ponto de fractura relativamente à tradição remonta a cerca de 1870 quando os impressionistas se propuseram reduzir a arte à reprodução imediata da sensação visual [...] o que eles queriam averiguar e revelar era a reação despreconceituada, incondicionada, autêntica do sujeito em contato direto com a realidade.” (ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 107); ideias semelhantes podem ser encontradas na obra de outros historiadores como John Rewald, Meyer Schapiro ou Pierre Francastel.

[7] É o que parece indicar Argan quando afirma que já com Monet, “o pintar já não consiste em reproduzir a sensação, mas em sensibilizar, a partir de dentro, a matéria pictórica” (Ibidem, p.107).

[8] GREENBERG, Clement. Pintura Modernista. IN FERREIRA, G.; MELLO, C. C. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.102.

[9] O facto que separa nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte de nosso século de toda arte do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao não figurativo, ou como é corrente dizer, à abstração” (ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p.105).

[10] RUBENS, Carlos. Op. cit., p. 211.

[11] Esse caráter adaptativo não deixa de evocar a prática recorrente da arquitetura historicista de “associação entre determinados programas e estilos, tais como os prédios religiosos e os estilos medievais, ou os monumentos públicos e o neoclássico ou o neorenascimento, ou os pavilhões voltados para o lazer e os estilo exóticos” (PEREIRA, Sônia Gomes. Desenho, composição, tipologia e tradição clássica - uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19, Revista Arte & Ensaios, n. 10, p.45). No início da década de 1960, Jan Bialostocky propôs um modelo que procurava dar conta desse tipo de pluralidade estilística em um artigo no qual defendia que fossem retomadas as ideias de Nicolas Poussin expressas em uma carta ao seu protetor, o Chevalier de Chantelou, na qual o pintor francês fazia referência às modalidades da música grega e afirmava que as pinturas deveriam ser compostas em modos diferentes de acordo com o caráter do tema e a função a qual se destinavam. Com relação ao caso da arquitetura historicista acima citado, por exemplo, Bialostocky postulava que os estilos do passado (“clássico”, “renascentista”, “gótico”, etc.) haviam se convertido no século XIX em precedentes modais que eram adequadamente invocados para objetivos específicos. Cremos que esta indicação pode ser valiosa para o entendimento da diversidade simultânea de procedimentos estilísticos presente na pintura de Bicho e de seus companheiros de geração (ver BIALOSTOCKY, Jan. El problema del modo en las artes plásticas. In: Estilo e Iconografia: Contribuicíon a una Ciencia de las Artes. Barcelona: Barral Editores, 1973, p.13-38).

[12] Ver JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1969, pp.118-162.

[13] Ver os artigos reunidos em MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.

[14] SALVINI, Roberto. Pure Visibilité et formalisme dans la critique d’art au début du XXe siècle. Paris: Editions Klincksieck, 1988.

[15] Ver o capítulo 3 em VALLE, Arthur. A semântica da imagem estética: Estrutura e relações de sentido na obra de Guttmann Bicho. Rio de Janeiro: Pós-Graduação da Escola de Belas Artes/UFRJ, 2002.

[16] Hiponímia é o tipo de relação semântica existente entre um conceito mais específico (ou subordinado) e um conceito mais geral (ou super-ordenado), por exemplo: tulipa - flor, vaca - animal, punhal - arma, etc. Embora o termo hiponímia não seja universalmente utilizado para designar tal relação, nas últimas décadas, ele tornou-se um dos mais usuais entre entre os semanticistas e por isso procuramos adotá-lo em nossos escritos.

[17] Um resumo das principais tendências da semântica estrutural pode ser encontrado em duas obras do semanticista inglês John Lyons: Structural Semantics. Oxford: Basil Blackwell, 1963; Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.

[18] O relativo isomofismo e as controversas relações existente entre o sistema conceitual humano e a estrutura semântica das línguas naturais são por nós discutidas em VALLE, Arthur Gomes. Op. cit., p. 51-71.

[19] Em diversos de seus escritos, Rudolf Arnheim se refere explicitamente a esse fato como, por exemplo, na seguinte passagem onde ele exige que na análise de uma imagem estética “toda propriedade ou objeto percebido seja considerado como simbólico. [...] quando os objetos estão relacionados entre si por localização, forma ou cor, esta relação nunca é meramente ótica ou física, senão que sempre deve ser compreendida como um vínculo existencial no sentido mais profundo” (ARNHEIM, Rudolf. El Guernica de Picasso: genesis de una pintura. Barcelona: Editorial G. Gili, 1976, p. 20).

[20] É curioso notar, ainda, como esse conjunto lembra o tema estrutural que, décadas depois, Oscar Niemeyer utilizaria no famoso prédio do Congresso Nacional, em Brasília.

[21] Já Roman Jakobson, em seu famoso artigo sobre a afasia, apontava a ocorrência de fenômenos metonímicos “em outro sistemas de signos que não a linguagem. Como exemplo marcante, tirado da história da pintura, pode-se notar a orientação manifestamente metonímica do Cubismo, que transforma o objeto numa série de sinédoques” ( Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: JAKOBSON, Roman. Op. cit., p. 58).

[22] Em especial, o uso do elemento cor em algumas imagens estéticas é suscetível de uma explicação em termos estruturais; um dos pioneiros nesse tipo de estudo foi o pintor alemão Philipp Otto Runge, mas podemos encontrar desdobramentos de suas idéias em diversos escritos mais modernos como os de Johannes Ittten (ver em especial Art de la couleur. Paris: Dessain & Tolra, 1973) ou de Rudolf Arnheim (ver A racionalização da cor. In: Intuição e Intelecto na Arte. São Paulo: Martins fontes, 1989, pp.217-225).

[23] Uma análise desse ciclo de pinturas pode ser encontrada em VALLE, Arthur. O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS Ernesto Nazareth - Ilha do Governador/RJ. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_gb_caps.htm>.