Retrato de casal - uma proposta de leitura da obra Idílio Campestre”, de Belmiro de Almeida

Maria Auxiliadora de Carvalho Corassa

CORASSA, Maria Auxiliadora de Carvalho. Retrato de casal - uma proposta de leitura da obra “Idílio Campestre”, de Belmiro de Almeida. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_ba.htm>.

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BELMIRO DE ALMEIDA (1859-1938): Bom tempo ou Idílio campestre, 1893.

Óleo sobre tela, 152 x 89 cm.

Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes.

Este trabalho trata de retratos de casais em pintura, com abordagem inicial dos aspectos relativos à história do retrato: origem, tipos, evolução, finalidade e a redução de sua importância em função do advento da fotografia, finalizando com a análise, a partir da semiótica discursiva, da obra Bom tempo ou Idílio campestre [Figura 1], de Belmiro de Almeida - artista brasileiro do século XIX.

Partindo do princípio que pinturas são textos visuais, cujo caráter comunicacional é inegável e cuja estruturação faz delas um “todo de sentido”, voltamo-nos para a semiótica que, na análise do texto e a partir das qualidades internas dos objetos, considera não só os procedimentos de organização textual, mas também os mecanismos enunciativos de produção e recepção deste. E como o sentido de um texto não pode ser instalado, mas sim construído e já que esta construção se dá a partir de um ponto de vista adotado por cada um, optamos então pela utilização da semiótica discursiva para esta análise.

Sabemos que o retrato foi enfocado em algumas exposições realizadas no Brasil no decorrer da década de 60, no século passado, abordando retratos infantis, femininos ou masculinos, interesse retomado recentemente com a abordagem da figura humana, independente de seu gênero, na exposição A figura humana na coleção Itaú, ocorrida em SP  em 2000 e na exposição Identidade: o retrato brasileiro na coleção Gilberto Chateaubriand no MAM-RJ em 2002. O auto-retrato tem também suscitado interesse e foi objeto de exposição no MAC-USP, que resultou na publicação de Kátia Canton em 2001 -  Espelho de artista

Assim também são as pesquisas, ora sobre artistas específicos, como é o caso de Miceli,[1] que abordou retratos masculinos e femininos produzidos por Portinari entre 1920-1940 e do Projeto Guignard, conduzido por Moresi, Neves e Alvarenga,[2] que trata entre outros aspectos de analisar o retrato de Cecília Meirelles por ele produzido, ora sobre determinado acervo, como Cadorin,[3] que pesquisou retratos dos provedores da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro no séc. XIX. Cabe ainda mencionar o trabalho de costa[4] - “O retrato feminino na pintura brasileira, 1800-1950: do realismo ao romantismo – análise estética e sociológica”.

Decidimos então trabalhar com retratos de casais da produção pictórica brasileira dos séculos XIX e da primeira metade do século XX, o que nos levou respectivamente a Belmiro de Almeida e Rodolfo Amoedo (séc. XIX) - do acervo do Museu Nacional de Belas Artes e Ismael Nery (séc. XX), do Museu de Arte Moderna, ambos do Rio de Janeiro.

Finalizando, esclarecemos que consideramos retratos as imagens referentes à representação de seres humanos, evidenciados nos mais diversos “cenários”, encomendadas ou não, identificadas ou não e que, no que concerne ao nosso objeto de pesquisa, consideramos como casais as representações do masculino e do feminino em relação, apresentados aos pares, sem necessidade de oficialização e reconhecimento perante a sociedade, e sem que isto esteja expresso no título das obras, a cujos originais e reproduções tivemos acesso.

Do retrato

Reproduzir um personagem pressupõe quase sempre fazer um juízo sobre uma personalidade, apesar de inúmeras vezes o artista acatar a imagem que o cliente quer dar de si, alterando então certos traços e variando a tipologia: de figuras inteiras ao meio busto, de perfil e de grupo. Se pensarmos bem, todos manifestamos diante dos retratos uma expectativa ingênua de buscar no retratado sua real identidade, onde ele estaria representado tal como é, mas esta fidelidade nem sempre está presente, principalmente em se tratando de figuras de vida pública.

Sabemos que a representação de uma pessoa não é uso comum a todas as civilizações nem a todas as épocas. Suas origens no ocidente remontam à arte clássica na qual, ao lado de personagens existentes – conhecidos ou anônimos, representavam-se também atividades e sentimentos por meio de antropomorfismo. Já no período medieval, não se percebe interesse fisionômico que buscasse a similitude com o modelo, uma vez que a tônica era retratar um cargo. A partir do séc. XIV, estas figurativizações readquirem status de retratos não apenas pelas mudanças ocorridas na sociedade e na concepção de “homem”, mostrando a emergência do indivíduo, coerente com o deslocamento do teocentrismo medieval para o antropocentrismo renascentista, como também pela retomada da estética clássica, aludindo  ao costume de preservação da memória dos indivíduos, conforme faziam os romanos, através inicialmente dos retratos em cera os quais, expostos e conservados no seio das famílias e apresentados nos eventos públicos, atestavam a antiguidade e o poder do clã.

É certo que a veracidade das primeiras efígies - pictóricas e escultóricas, de personalidades da nobreza européia é questionável, pois servindo convenientemente ao poder político e às funções a serem desempenhadas pelo retratado, encontravam-se impregnadas apenas de virtudes e seguiam normas em relação aos gestos, à atitude e à linguagem das insígnias. É a identidade construída - decorrente das convenções sociais e das intenções políticas ou culturais do comanditário, como por exemplo, se o retrato é considerado como documento para a história da vida privada ou se coloca o indivíduo como homem público.

Nos séculos XVII e XVIII, o retrato é abordado através de dois enfoques: o pesquisado e coerente com o modelo e o idealizado, que se projeta em todas as técnicas (cera, miniatura e gravação). No Neoclassicismo e posteriormente no Romantismo, são elaborados no sentido moral ou de transfiguração (retrato enfeitado), elaborações estas que se encerram com o advento da fotografia, entrando a arte retratista em decadência. A partir daí, através dos posteriores movimentos de vanguarda, os retratos são concebidos segundo um ângulo de análise impiedosa que remete à caricatura.

No que diz respeito ao “décor” no qual o indivíduo seria retratado, aponta-se a partir do séc. XV uma evolução que se inicia com a representação do ambiente de trabalho, detalhado na maioria das vezes de forma exagerada e idealizada, e vai ao ambiente familiar. Este era priorizado pela burguesia, desde que o status social estivesse ali atestado, e evolui para a ênfase na representação das relações familiares, expressa por olhares e gestos não hieráticos, assim como pelo despojamento da indumentária e do ambiente, que chega mesmo a ser eliminado.

A ênfase posterior no retrato individual, com supressão de quase todos os elementos do cenário, apesar da manutenção de alguns elementos simbólicos tais como flores ou insígnias, provoca depois uma dissimulação intencional por parte do comanditário e do artista, tornando nebulosas as referências e as pistas alusivas ao retratado, ao multiplicar e tornar complexos os símbolos presentes na obra. Estes poderiam inclusive remeter a convicções morais ou éticas e em se tratando de mulheres, simbolizar noções de virtude ou qualidades esperadas das mesmas, compatíveis com sua posição social e com a época, como veremos adiante na imagem analisada. Contudo, não se pode esquecer a importância do cenário na determinação do papel social do retratado, pelo estabelecimento de relações com sua posição política e sua erudição, ou do cenário que permite aludir a uma analogia do efigiado com uma figura mitológica ou histórica.

Belmiro de Almeida

O século XIX no Brasil, segundo Quirino Campofiorito,[5] foi considerado decisivo para a formação de nossa herança cultural, a partir de uma série de eventos, como a vinda da família real portuguesa, a elevação do Brasil a Reino Unido e sede provisória da corte e sua independência política com progressiva emancipação econômica. A mudança do sistema econômico exportador escravagista para o baseado em trabalho assalariado, assim como o surgimento do comércio interno vinculado a grupos industriais emergentes, e de uma classe média urbana, permitiram condicionar o Brasil para receber e reassimilar as influências internacionais.

Deve-se também ressaltar a importância da Missão Artística Francesa na instauração do ensino acadêmico a partir de 1816, das Exposições Gerais e dos prêmios de viagem à Europa para os que se destacavam – que provocaram a afluência de inúmeros jovens para o Rio de Janeiro até as três primeiras décadas do século XX, mesmo que muitos deles permanecessem imunes às mudanças promovidas na arte na Europa.

Das características acadêmico-neoclassicistas e da preferência pelos chamados temas nobres, chega-se à natureza e aos quadros de gênero – a vida social, a criatura humana em seu habitat real, os retratos oficiais ou oficiosos de dignatários ou de personalidades políticas, com objetivo de documentação figurativa, chegando também às naturezas-mortas. A luta anti-escravagista e os ideais republicanos, considerados revolucionários, provocam a suspensão dos prêmios de viagem à Europa, pelo temor de manifestações de apoio a estes movimentos e pelo questionamento do ensino recebido na Academia. Assim, gradativamente, o neoclassicismo vai sendo substituído por um academismo eclético, incorporando as renovações artísticas européias, porém desprovidas de suas convicções originais.

Próximo à Proclamação da República, os “modernistas” e os “positivistas” questionam o ensino na Academia de Belas Artes, quando então os “modernos” deixam a Academia e montam um Ateliê Livre em um barracão, apoiados por Henrique Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Zeferino da Costa, gerando o “Salão de Artistas Independentes”. Porém, é com a República que mudanças efetivas neste ensino vão ser implementadas, renovando-se o corpo docente da Instituição e restabelecendo-se o prêmio de viagem.

Neste cenário inscreve-se Belmiro de Almeida, nascido em Serro - MG em 1858 e falecido em Paris em 1935. Ingressou no Liceu de Artes e Ofícios aos 11 anos de idade e em 1877 na Academia de Belas Artes onde participa, por seu espírito rebelde e de contestação dos velhos hábitos e do conformismo cultural, do grupo de estudantes que se rebela contra o sistema de ensino vigente, vivendo o momento de transição da Academia à Modernidade. Belmiro também participa dos Salões Nacionais e em 1887 destaca-se com a tela Arrufos [Figura 2], notando-se a influência do realismo da pintura européia e da pintura de Courbet, no que concerne ao interesse pela vida comum, que também observamos na obra Bom tempo ou Idílio Campestre.

A despeito de sua reconhecida vocação artística e talento, tem seu prêmio de viagem à Europa negado pela comissão julgadora, mas por intercessão do professor Rodolfo Bernardelli segue para a Itália e a França em 1888, dependendo da cotização de pintores amigos para sua manutenção, após a malograda tentativa de vender Arrufos para a Academia Imperial de Belas Artes, para custeio das despesas de viagem. Quando retorna ao Rio de Janeiro em 1893, é chamado por Rodolfo Bernardelli para ocupar a cadeira de desenho na Escola Nacional de Belas Artes, o que faz até 1896.

A ênfase no desenho, rigoroso, permitiu-lhe desenvolver-se como caricaturista, sublinhando graficamente o lado cômico de certas atitudes, o grotesco das pessoas e a ironia de certas situações do cotidiano. A prática do retrato em sua obra, segundo historiadores, foi realizada por conveniência econômica, daí resultando a acentuada frieza em seu desenho, principalmente com a visão possibilitada pela caricatura. 

Belmiro, que também desenvolveu trabalhos em escultura e teve grande envolvimento com o meio jornalístico através de desenhos, caricaturas e textos, não obteve na sociedade brasileira da época o devido acolhimento e foi excluído também dos quadros da Semana de 22, pois representava idéias novas e contemporâneas ao que acontecia na Europa. Utilizou a técnica impressionista para efeitos de luz e atmosfera em Efeitos do sol [Figura 3] - inclusive pelo título, e o divisionismo - notando-se o respeito à existência das coisas independente da luz que as ilumina e da hora. Paradoxalmente, manteve-se vinculado à Escola de Belas Artes e dedicado ao magistério, condições consideradas importantes para sua manutenção e como garantia de status na época.

Proposta de leitura - Bom Tempo ou Idílio Campestre

A enunciação, um dos aspectos da significação, que é questão central nos estudos semióticos, é pressuposta pela própria existência do enunciado e pode ser reconstituída a partir da observação e da articulação das marcas deixadas por ela neste enunciado, permitindo conhecer as estratégias das quais se vale o sujeito da enunciação para a construção de um certo efeito de sentido. Vamos ver como a construção do espaço, a concepção e disposição dos personagens na cena, o vestuário e suas atitudes, produzem esta construção de sentido.

O óleo sobre tela em questão, de 1893, mede 152 x 89 cm, está assinado e datado no canto superior esquerdo e pertence ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Como se pode ver, pela reprodução em anexo, trata-se de uma obra de formato retangular e orientação vertical, onde se encontra um casal jovem em uma paisagem externa, sugerindo um jardim, pela organização e pelo aspecto bem cuidado das plantas que lhe servem de cenário.

Este casal constitui o eixo de verticalidade da pintura, homologado pelas outras verticais configuradas pelas árvores situadas atrás dos dois que, entretanto, não criam uma moldura para a cena estando a composição coerente com o realismo vivenciado por Belmiro quando de sua viagem à Europa, pois mostra um recorte de um momento despretensioso do cotidiano de personagens simples e anônimos, configurados pelo local, pelos objetos e pela indumentária dos mesmos.

As verticais são equilibradas pelos elementos horizontais constituídos pelas formas circulares do poço, dos canteiros e vasos onde se encontram plantadas as árvores, encaminhando assim nosso olhar para o fundo do quadro, com um bom efeito de profundidade, onde se percebe a sombra de uma abertura retangular vertical à direita, sugerindo uma porta aberta e uma temporalidade passada ou futura, uma vez que o jovem pode ter saído de lá ou para lá poderá se dirigir com a jovem, se a estratégia de sedução empreendida por ele em relação a ela for bem sucedida.

O plano de composição da obra demonstra simetria, já que o casal a divide em duas partes também verticais e de configuração retangular - repetida no espaço ocupado por eles, circunscritos em um pequeno retângulo centralizado e na vertical, e demonstra também equilíbrio, promovido pelas horizontais circulares dos vasos, porém não estático, pois a circularidade das formas acima e as linhas diagonais - da inclinação dos troncos e braços do homem e da mulher, e aquelas em sentido contrário, articuladas pelos rostos e pescoços do casal, produzem o necessário movimento que atrai e conduz nosso olhar para o essencial da cena, lembrando que é a pintura que determina o lugar a partir do qual será observada por nós, sujeitos e não o oposto.

Se traçarmos um diagrama, teremos diagonais paralelas no tronco e braços da jovem, bem como no tronco, pescoço e cabeça do rapaz, contrárias às paralelas do braço direito dele e do pescoço e cabeça dela, aparentando uma atitude de indecisão. Sendo assim, podemos considerar a narrativa concentrada na parte central da obra, em seu principal eixo vertical onde, em primeiro plano está a jovem sentada à beira do poço, enquanto que em segundo plano, de pé atrás dela e parcialmente oculto pela mesma, está o rapaz, sugerindo uma aproximação sorrateira e de aparente surpresa. Estaria ele interrompendo um momento de devaneio ou estaria a moça aguardando sua presença, revelada através da carícia que lhe faz no pescoço com um pequeno galho?

Ao analisarmos a indumentária, verificamos que o rapaz está trajando camisa branca de mangas compridas folgadas, com colarinho pequeno e gola convencional, bem como um colete aberto, em cor clara e em vermelho com manchas amarronzadas. Está portando também um chapéu de coloração marrom com abas pequenas, sugerindo tratar-se de feltro ou pelo de animal, com tira estreita bege, sugerindo uma faixa de couro. Quanto à moça, além de saia de tecido azulado e debruado com fitas vinho, está trajando um avental azulado mais escuro, com barrado inferior e superior em tons de bege, verde e avermelhado, sugerindo bordados com temática geométrica e floral - que quebram a sobriedade do traje, bastante recatado. Sua blusa, branca como a do jovem, é de mangas largas com punhos de cor vinho sobreposta a uma outra, também branca de mangas compridas justas terminadas por punhos com abotoamento. Traja também um corpete em preto e marrom avermelhado, com debrum vermelho na parte superior, além de meias brancas e sandálias rústicas e simples de couro, abertas na frente e com trançado de duas tiras horizontais e uma outra em V, que une as duas. Aqui, como podemos observar, as referências temporais das roupas e cabelos situam-nos em seu tempo histórico, real.

Tanto o aspecto das roupas, que sugerem tecidos de algodão, quanto o de seus modelos, dão indícios acerca do status camponês dos personagens e seu papel social, participando da construção da significação da pintura e indo de encontro a um dos títulos dados a esta obra, Idílio Campestre.  Aliás, o termo idílio, segundo Aurélio Buarque de Holanda,[6] pode significar “pequena composição poética de caráter campestre ou pastoril”, “amor poético e suave” e também, “entretenimento amoroso, galanteio”, que vem corroborar a construção de sentido desta obra, nas atitudes dos personagens, em sua indumentária, bem como no espaço em que se encontram inseridos. Ambos os títulos atribuídos pelo artista a esta obra são altamente indiciais de onde e do quê acontece na cena entre os jovens camponeses, uma vez que remete à conotação de envolvimento amoroso do termo idílio e à aventura e deleite do momento vivido, do assediar e ser assediado, do ceder e do não ceder, situações que configuram um bom tempo.

Nossos personagens, além de jovens, são saudáveis e corados. O rapaz é moreno -  cabelos escuros, ligeiramente longos, profusos e desalinhados e sobrancelhas marcantes, espessas e arqueadas, combinando com um ralo bigodinho e um pequeno cavanhaque, contribuindo para dar um ar descarado e desavergonhado ao mesmo, reiterado por um olhar incisivo e por um sorriso confiante. A jovem é alourada e traz as madeixas presas em coque, com pequenos cachos emoldurando o rosto, como era costume na época. Suas sobrancelhas são também marcantes e espessas, acentuando olhos cor de mel em um rosto de tons alaranjados quentes com boca rosada. Sorridente, ela se apresenta recatada, mão esquerda posicionada sob o queixo sugerindo indecisão ou meditação em relação à qual atitude tomar diante deste assédio, desta tentativa de sedução.

Sua atitude, em que pescoço e cabeça se afastam em sentido contrário à inclinação de seu corpo e ao do jovem, poderiam apontar para uma tênue resistência à sedução, para a difícil decisão de ceder ou não à investida do rapaz, mas também para um percurso oposto, em que seu pescoço se alonga para melhor receber a carícia das folhas, enquanto a expressão de seu rosto tenta dizer o contrário, dar conta de um pudor e recato desejáveis às mulheres da época.

Há também a flor, uma rosa branca que pende de sua mão direita sobre seu colo e cuja cor contrasta e é realçada pelo avental azulado. Esta, que é a flor simbólica mais empregada no Ocidente, pode simbolizar, segundo Chevalier e Gheerbrant,[7] o amor e a harmonia que caracterizam a natureza primordial, a infância, o estado edênico e a alma, o coração, noções de pureza e de castidade, todas aplicáveis ao discurso pictórico em questão. As atitudes dos personagens, sugestivas de envolvimento amoroso, a situação da jovem – aparentemente recatada e casta que remete ao estado inicial referenciado no paraíso, estariam ratificando o simbolismo desta flor.

Se levarmos em consideração em nossa breve análise o cromatismo desta obra, já que as cores são também constituintes da linguagem pictórica, vamos notar que esta flor atrai nossa atenção, por seu branco vivo e mais intenso do que os brancos da indumentária do casal, e pelo verde iluminado das folhas, reiteradas pela textura das pinceladas, criando o relevo real de uma rosa branca, que contrastando com o avental azul escuro se projeta em direção a nós,  apontando para a pureza da jovem que se encontra ameaçada. Notamos também regularidade cromática no fundo - de coloração mais neutra, com utilização de tons terrosos no solo, na estrutura do poço e nos canteiros e vasos nos quais as plantas se encontram, bem como dos tons de verde-acinzentado das folhas das árvores e arbustos que ambientam a cena, enquanto nosso casal se encontra em cores mais nítidas e mais vivas do que as empregadas no cenário, mesmo sendo o branco e tonalidades de azul e de marrom avermelhado, contribuindo para direcionar nosso olhar para eles - elementos centrais da obra, emoldurados e evidenciados pela natureza.

Finalizando, consideramos também que o tratamento dado ao fundo o torna secundário pelo aspecto mais uniforme devido não só à cor, mas também devido às marcas deixadas pelas pinceladas, de aspecto mais difuso. Muitos dos elementos observados aqui, são tratados por pinceladas soltas, manchas de cor que se tornam formas mais nítidas ou apenas sugeridas, à medida que nos afastamos da obra, criando vegetação, sombreados ou texturas específicas dos diversos materiais que constituem os objetos presentes na obra.

Enquanto isto, o casal é tratado de forma mais nítida, sendo a percepção das pinceladas mais suave, apesar das manchas que constatamos quando nos acercamos da obra. Há um recorte das figuras em relação ao fundo, como se pudéssemos excluí-los fisicamente da cena, como se, apesar do cenário idílico que lhes serve de palco, não estivessem ali presentes, abstraídos do mundo, voltados apenas para seu envolvimento um com o outro, enunciando um bom tempo, de interação entre eles, de troca de olhares, sensações e sentimentos, tempo de idílio.

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[1] MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

[2] MORESI, C.M.D.; NEVES, A.R.A.; ALVARENGA, I. L. A técnica de Guignard no retrato de Cecília Meirelles. Anais  11º ANPAP, 2001.

[3] CADORIN, M.de A. A pintura de retratos de Victor Meirelles. 1998, 130f, Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio de Janeiro – Artes Visuais, Rio de Janeiro. 

[4] COSTA, Maria Cristina Castilho. Retrato feminino na pintura brasileira. 1800-1950 do realismo ao romantismo análise estética e sociológica, 1985, 268, Dissertação (Mestrado), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP, São Paulo.

[5] CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura Brasileira no Século XIX. Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1983. 

[6] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fonteira, 1986. 

[7] CHEVALIER , Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução por Vera da Costa e Silva et al., Rio de Janeiro, José Olympio, 2001.