Pardal Mallet: O Projeto “Bernardelli – Amoedo” e Reforma da Academia

contribuição de Camila Dazzi

Em 30 de dezembro de 1889, o recém formado Governo Provisório republicano  nomeava uma comissão, formada por Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoedo, cujo propósito era a reforma dos estatutos da antiga Academia Imperial [1]. Na crítica  que se segue, o articulista Pardal Mallet  se posiciona a favor do Projeto, cuja proposta apontava no sentido de  uma escola moderna de arte, em sintonia com as inovações do seu tempo. O artigo conta ainda com uma transcrição parcial do Projeto Bernardelli-Amoedo.

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Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro - Sexta-feira, 6 de junho de 1890, p.l.

Academia de Belas Artes I

A posição especial em que o Sr. Conselheiro Maia me colocou, não só requerendo uma comissão de inquérito para averiguar acusações aqui feitas, mas também incluindo um exemplar da "Gazeta" onde vinha o meu primeiro artigo no oficio que dirigiu ao general Benjamin Constant, força-me à justificação completa do libelo que formulei contra a Academia de Belas Artes, mesmo antes de nomeada a referida comissão.

E eu gostosamente presto-me ao caso, sem antipatias pessoais para quem quer que seja, mas pouco me importando de passar por cima de individualidades, desde que se trata do interesse geral da Arte, alegrando-me com ódios que desperte desde que possa com eles comprar um pouco de adiantamento para a vida artística brasileira.

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A primeira proposição enunciada afirma não só a vetustez e imprestabilidade do atual regulamento, mas também a inconveniência de promulgar o projeto de reforma Bemardelli -Amoedo.

Do atual regulamento? Para adiantar matéria e mostrar desde já o que vale a administração da Academia, basta dizer que não há regulamento.

O velho sistema legislativo do Império tinha o costume de emendar leis, superpondo decreto sobre decreto, modificando-os com mais um aviso e mais uma portaria ainda. Daí nasceu o verdadeiro caos da nossa legislação, simbolizado no celebérrimo – ficam revogadas as disposições em contrário – que ao certo era possível determinar logo de primeira vista.

Lá na Academia houve o decreto 1603 de 14 de março de 55, referendado por Couto Ferraz,S houve depois o decreto 2423 de 25 de maio de 59, e houve mais ainda uma série interminável de portarias e avisos que é impossível achar em totalidade na coleção de leis do Brasil.

Uma providência, pois, se recomendava à administração, desde que ela tivesse critério e soubesse trabalhar: - ir refundindo de tempos em tempos o regulamento, deixando apenas as disposições, e imprimindo estas consolidações para que as pudessem conhecer os  interessados ou curiosos.

Mas isto não existe. O que existe, trancado a sete chaves, é um velho folheto seboso em cujas margens o Sr. Mafra, secretário recentemente demitido, ia anotando as alterações que apareciam. E a lei, por conseguinte, ficou sendo lá na Academia um deus misterioso que ninguém podia conhecer, em nome do qual vinham os castigos e que para intérpretes e sacerdotes na terra tinha apenas o Sr. Maia, o Sr. Mafra e o Sr. Porteiro.

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Não há lei de verdade por conseguinte. Mas o tal mito de lei, que se pode reconstruir como se reconstrói os fósseis, de antemão deve ser julgado imprestável.

O progresso faz-se hoje em dia muito rapidamente. A humanidade que Pascal figurava um homem só, constantemente a aprender, ganha mais atualmente em cinco anos do que antigamente ganhava em um século. É de urgência, pois, juntar ao epíteto de velho a significação de imprestável, sem que haja nisso, entretanto, uma profanação à velhice, sem que fuja do espírito a idéia do respeito e do reconhecimento que devemos aos nossos maiores, sem esquecer o muito que eles trabalharam para conseguir que nós trabalhássemos mais do que eles.

E a data desses decretos aí está dizendo que eles não podem mais servir, que não possuem condições para viabilidade nos tempos modernos.

O primeiro,  a base fundamental da lei vigente, tem por exemplo o:

Art.29 - A estatuária será ensinada conforme os bons princípios da escola clássica...

e mais ainda:

Art. 133 - O porteiro é obrigado:

8° - A embaraçar...

Como de justiça, enfim, esses velhos regulamentos, muito bons para o tempo em que foram promulgados, já não servem. Modelam-se em princípios que a arte já repeliu.

Não possuem, nem podiam possuir a compreensão das coisas atuais.

Por exemplo:

Art. 39 - Para qualquer aluno poder ser admitido na aula de matemáticas aplicadas é indispensável que saiba ler, escrever e contar as quatro espécies de números inteiros.

Esta aula de matemáticas aplicadas é a inicial do curso. Dela se passa para todas as outras. E a exigência de habilitações intelectuais para a matrícula na Academia é por conseguinte de uma parcimônia que não pode ser mantida, que exige pronta e imediata reforma.

Se é assim de urgência a reforma, existe um projeto elaborado que não é somente um trabalho muito bem feito.

Pertence a Rodolpho Bernardelli e a Rodolpho Amoedo, traz a data de 25 de janeiro do corrente ano, e foi publicado na Gazeta de Notícias de 12 de março.                  

Extenso para uma reprodução, convém entretanto citá-lo nas suas disposições mais importantes:

Art. 1o  - A atual Academia das  Belas Artes passará a ter a denominação de Escola Especial de belas Artes, e será  destinada ao ensino da pintura, da escultura da arquitetura e da gravura, medalhas e pedras finas.

Art. 2o - Ela compreende:

1o - Um curso preparatório para pintores, escultores e gravadores; e outro para arquitetos;

2° - Cursos orais relativos aos diferentes ramos da arte;

3° - A escola técnica, dividida em cinco seções, a saber:

A seção de pintura;

A seção de escultura;                                        :                   .

A seção de arquitetura;

A seção de gravura;

A seção de ciências acessórias.

4° - Ateliers em número de cinco, a saber:

Dois para pintura, sendo um para estudos de modelo vivo;

Um para escultura;

Um para gravura.

5° - Coleções

6° - Uma biblioteca

Art. 3° - O ensino da escola, destinado à propagação e aperfeiçoamento das artes e do desenho, é gratuito e compreende:

1° - No curso preparatório para pintores, escultores e gravadores:

I - Desenho figurado, cópia do antigo e do natural;

II - Desenho de anatomia artística;

III - Elementos de arquitetura decorativa e desenho elementar de ornamentos;

IV - Preleções de história das artes, mitologia, costumes e roupagens, noções de química aplicadas às tintas, vernizes e secativos;

V - Ótica elementar, perspectiva prática, sombras geométricas e físicas.

2° - No curso preparatório para arquitetos.

I - Desenho linear aplicado à arquitetura, abrangendo as ordens toscana, dórica, jónica, coríntia, compósita e estilo gótico; desenho de aguadas e diversos estilos de ornatos;

II - Desenho figurado, cópia do gesso;

III - Ótica elementar, perspectiva prática e sombras geométricas;

IV - Geometria descritiva;

V - Cálculo e mecânica prática;

VI - Elementos de física (calor, acústica e eletricidade); noções de química aplicada.               

3° - Nos cursos orais:

Anatomia artística;

Fisiologia das paixões;

História da Arte;

Arqueologia.

Estes cursos, inclusive os preparatórios são livres e de franca admissão para qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, que queira freqüenta-los; e só obrigatórios para os alunos que se destinam à escola técnica, pretendendo obter  prêmios, recompensas, títulos e diplomas.

4° - Na escola técnica:

Estudos práticos, modelagem, exercícios de aplicação artística, composição, modelagem [sic] e concursos.

A escola técnica compreende dois cursos, a saber:

1° - Curso para pintores, escultores e gravadores, abrangendo:

I - Aula de desenho de modelo vivo;

II - Aula de pintura;

III – Aula de escultura;

IV - Aula de gravura.

2o – Cursos para arquitetos abrangendo:

I-Aula de desenho de arquitetura: plantas, perfis, cortes e elevações de edifícios antigos e modernos, em relação ao caráter fisionômico dos diversos estilos;      

II - Aula do estudo de materiais de construção e sua resistência;

III - Aula de teoria da arquitetura na construção dos edifícios, arcos, abóbadas, madeiramentos, tetos, vigamentos e escadas;    

IV - Aula de estereotomia e levantamento de plantas topográficas;

V - Aula de composição decorativa;

VI - Aula de história da arquitetura e legislação sobre edificação.

5° - Nos ateliers:

Exercícios técnicos, práticos e concursos.

O ensino no atelier deve ser feito de modo a aperfeiçoar o trabalho do aluno ate o ponto de poder criar por si mesmo obras de arte

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Art 7° - O pessoal docente compreende:

1° - Para os cursos preparatórios:

Um professor de desenho figurado, cópia do antigo e do natural, desenho de anatomia artística;

Um professor de elementos de arquitetura decorativa e desenho elementar de ornatos;

Um professor de preleções de história das artes, mitologia;

Um professor de ótica elementar perspectiva prática, sombras geométricas e físicas;

Um professor de desenho linear aplicado à arquitetura, abrangendo as ordens toscana, jónica, coríntia, compósita, e estilo gótico; desenhos de aguadas e de ornatos;

Um professor de geometria descritiva, cálculo e mecânica prática;

Um professor de elementos de física (calor, acústica e eletricidade); noções de química aplicada às tintas, vernizes e secativos.

2° - Para os cursos orais:

Um professor de anatomia artística e fisiologia das paixões;

Um professor de desenho figurado, cópia do antigo e do natural, desenho de anatomia artística;

Um professor de arqueologia, costumes e roupagens.

3o - Para a escola técnica:

Um professor de escultura;

Um professor de gravura em medalhas e pedras preciosas;

Um professor de desenho de modelo vivo;                  
Um professor de desenho de arquitetura: plantas, perfis, cortes e elevação de edifícios antigos e modernos, em relação ao caráter fisionómico;

(Estes cinco professores técnicos são os que constituem o conselho)

Um professor de materiais de construção e sua resistência; teoria da arquitetura na construção dos edifícios, arcos, abóbadas, madeiramentos, tetos, vigamentos e escadas;

Um professor de estereotomia e levantamento de plantas topográficas;

Um professor de composição decorativa, história da arquitetura e legislação sobre edificação.

4° - Os ateliers ficam respectivamente a cargo dos professores de pintura, de escultura, de gravura e modelo vivo.

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Art. 8° - O diretor será nomeado por decreto, que confirme a eleição feita pelo conselho de professores, escolhendo dentre as pessoas de reconhecida probidade e talento que pertençam ao pessoal docente. O seu exercício será de cinco anos consecutivos, podendo ser reconduzido.

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Art. 54 - Os professores efetivos da escola, em virtude destes estatutos, servirão dez anos consecutivos, findos os quais, passarão a pertencer à junta superior de Belas Artes, sem direito a vencimento algum.

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Art. 89 - Ninguém se poderá matricular tendo menos de 15 e mais de 30 anos de idade.

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Art. 92 - Os ouvintes e os amadores serão admitidos mediante requerimento

Para estes não haverá limitação de idade

Art. 93 - Para ser admitido à matrícula em qualquer dos cursos preparatórios, é  necessário:

1° - Ter a idade exigida no art, 89.                          

2° - Apresentar certidões de aprovação em português, francês, geografia, aritmética e desenho elementar de imitação; além destes preparatórios, álgebra, geometria e desenho linear, para o curso de arquitetura.

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Art. 94 - Para a admissão no curso da escola técnica e nos ateliers, exige-se habilitação no respectivo curso preparatório e nas respectivas matérias dos cursos orais.

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Art. 95 - Os ouvintes ou amadores poderão ser admitidos em qualquer aula ou atelier, independentemente de habilitação preparatória.

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Art. 129 - Os artistas que, pela especialidade de seus estudos, houverem adquirido conhecimentos excepcionais sobre qualquer parte da teoria, da história ou da técnica das artes, poderão abrir, na escola ou suas dependências, cursos livres em que exponham seus métodos, idéias úteis sobre as matérias que compõem o ensino oficial das belas artes, e para isso deverão dirigir ao conselho de professores um requerimento acompanhado dos documentos de sua idoneidade profissional e folha corrida, no qual designem a matéria que pretendem ensinar e o programa que se propõem seguir.

Art. 227 - Enquanto a difusão do ensino do desenho de imitação não se generalizar por meio da instrução pública, haverá na Escola uma aula anexa para o ensino elementar do desenho artístico.

Esta aula, que será dividida em duas ou mais seções, segundo a freqüência, ficará a cargo de um ou mais professores comissionados, que serão dispensados desde que não sejam necessários.

Não poderão servir nesta aula professores efetivos da Escola, nem honorários em exercício.

A gratificação pecuniária que os professores desta aula tenham de receber será arbitrada pelo conselho, podendo caber a cada um, além de um vencimento fixo, uma quota por aluno que exceda a um determinado número.

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Animado ao mesmo tempo do sentimento o mais liberal e do desejo de fazer efetivo o nosso desenvolvimento artístico, este projeto tem a grande vantagem de não estagnar professores lá na Academia, de deixar sempre a porta aberta aos novos. É, enfim um projeto de artistas.

E, apelando para ele, tenho o direito de julgar demonstrada a primeira afirmação do libelo.

Pardal Mallet.


[1] Acervo Arquivístico do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Notação: 3518.  Ofício da Secretaria Nacional do Interior, datado de 30 de Novembro de 1889, comunicando a nomeação dos professores da Academia das Belas Artes,  Leopoldo Miquez, Rodolpho Bernardelli, Rodopho Amoedo, José Rodrigues Barbosa e Bevilacqua, para elaborarem um projeto de reforma da mesma instituição e do Conservatório de Música, “em audiencia e consulta da Diretoria dos dois estabelecimentos”.