Ricardo Severo: “A Arte Tradicional no Brasil” [1]

organização de Alessandra Xavier dos Santos, Andressa Amaral da Silva e Wesley Nunes Dantas

SANTOS, Alessandra Xavier dos; SILVA, Andressa Amaral da; DANTAS, Wesley Nunes (org.). Ricardo Severo: “A Arte Tradicional no Brasil”. [Originalmente publicado em Revista do Brasil, São Paulo, ano II, vol. 4, jan.-abr. 1917, p.394-424. Texto com grafia atualizada]. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/rsevero_atb.htm>.

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Ricardo Severo da Fonseca Costa, nascido em Lisboa, no ano de 1869, foi arquiteto, engenheiro, arqueólogo e escritor. Chegou ao Brasil exilado de Portugal, no início dos anos 1890, após ter se envolvido em um movimento revolucionário contra a monarquia lusitana, vindo a falecer na cidade de São Paulo, em 1940. Esta transcrição objetiva contribuir com o estudo da crítica à arquitetura dos edifícios públicos e da habitação feita por Ricardo Severo, tendo como foco a análise das influências estrangeiras na arquitetura brasileira durante os períodos colonial, monárquico e republicano. Severo defende a necessidade da existência de um estilo arquitetônico e artístico nacional, que se adeque às necessidades e costumes do povo brasileiro. Esta afirmação, no entanto, não desconsidera a importância de uma adaptação ao desenvolvimento temporal e social, sem que se perca a essência desta suposta tradição nacional.

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A ARTE TRADICIONAL NO BRASIL (1)

DA ARQUITETURA

I. NO BRASIL-COLÔNIA.

Ensaio da arqueologia.  Meio físico e social; arquitetura colonial.  As matizes portuguesas.  Caracteres originais da arquitetura da Renascença em Portugal e sua modalidades (século XVI a XVIII).

II. NO BRASIL-MONARQUIA.

A missão artística francesa de 1816; sua ação e influência.  A fundação da Academia de Belas-Artes.  A arte após a independência.  Degenerescência da arquitetura colonial.

III. NO BRASIL-REPÚBLICA.

Desorientação artística.  Ecletismo imigratório.  Reação nacionalista e moderna corrente de tradicionalismo.  A arte e o caráter nacional.  A arquitetura do edifício público e da habitação. A cidade moderna e a tradição.  Arquitetura tradicional.

I

Não é um estudo completo da Arquitetura no Brasil que vou expor-vos, e simplesmente, em uma lição, algumas notas sobre o seu passado e sua evolução até o presente, pesquisando aí alguns vestígios do filão precioso da Tradição Nacional.

Pretendo fazer história da arte, terei de ensaiar, portanto uma monografia arqueológica.  A clássica epigrafe de Arqueologia não deverá, porém, indispor contra mim a bondosa intenção que vos trouxe a esta solenidade de estudantes, cuja esperançosa juventude e inteligente iniciativa bem quisera também, em minha pouquidade, estimular com a honra e o brilho que merece.

[Pág. 395] Bem sei que nestas nações de recente formação, à falta de passado próprio, se pretende tomar o ciclo do presente como ponto de partida para a traça do futuro, de cuja diretriz se tenta arredar o tropeço de todos esses anacronismos arqueológicos a que tanto se apegam as civilizações dos velhos povos. É talvez uma ilusão americana; porque, qualquer povo é parcela da Humanidade, ligado organicamente a esse passado desde as suas primeiras origens; e nunca poderá eliminar de si, por mais que faça o seu gênio de diferenciação, a herança indestrutível dessas primitivas civilizações, que o cercam e o abraçam por completo, como os tentáculos de um polvo imenso, cujo corpo se estende e se esconde pelos mais escuros antros do passado.

A arqueologia não é apenas o estudo da antiguidade, analisada como uma ossatura morta, ou dissecada como um cadáver em laboratório de anatomia. Não se prende as coisas do passado, como petrificações imobilizadas na rocha sedimentar que é o seu eterno jazigo. Estuda manifestações da vida da humanidade, frases de civilização; analisa as criações do homem como integrações da coletividade em determinado meio e tempo. É ciência social, fundamentalmente tradicionalista, porque considera a obra d’arte como cristalização de uma tradição, na qual o artista representa apenas um fator de expressão, acidental e temporário; é uma filosofia de lógica evolucionista, porque estabelece os ciclos, os ritmos, as leis evolutivas da arte nas suas manifestações através do tempo e do espaço.

A arqueologia não compete, pois, tão somente a países velhos, a essas ruinosas decadências, que pela América se menosprezam na ansiosa esperança de vida nova; a arqueologia é também de países novos e dos povos inovadores; e porque estes, na sua febre de inovação, jamais poderão se isolar do meio tradicional o homem da atualidade, que é como retirar a célula viva do seu meio gerador. Por isso mesmo é que falham na história, na filosofia, nas artes, e também na política, os que se julgam aptos a criar fora do ambiente natural em que vive o gênio humano, fecundado pela Tradição.

[Pág. 396] Estas considerações justificam o critério arqueológico desta lição, e definem de começo uma atitude de oposição ao sentimento de indiferença, que por vezes se manifesta em alguns publicistas do Brasil, pelas tradições que se ligam à formação da nacionalidade, levados pelos motivos expressos: de que foi de lamentável pequenez o povo criador, a raça decadente e inerte no seu conservadorismo, a história um martirológio de opressão e revoltas, a civilização tacanha e da arte nula.

É vezo de escritores modernos, mais do que dos antigos. E este menosprezo filia-se, não só em autores dos tempos de revolta nativista, como também em autores da metrópole, entre os mais recentes dos quais prima Oliveira Martins, historiador e filósofo, cuja vasta obra por aqui se espalhou com o sucesso conquistado pelo seu notável brilho literário. Conduzido por um critério racionalista, afastado do método de investigação direta - da análise etnográfica e arqueológica - O. Martins não retratou com verdade os quadros históricos que descreveu, desvirtuando-os sob a lógica e uma ética que não se adaptam à natureza regional, à civilização da época, à religião e à moral do povo. O mesmo raciocínio de imaginativo humanismo tem guiado os inovadores e revolucionários de todos os tempos, que se devotam a um tipo de homem ideal, o qual, de verdade não existe em nenhures; pelo contrário os naturalistas e tradicionalistas reportam-se ao homem real, com todas as suas características especiais, produto do meio presente, gerado pelo passado, donde provêm todos os elementos criadores da sua individualidade física e do seu caráter moral.

Segundo aqueles autores, humanistas e moralistas d’aquém e d’além-mar, o meio social do Brasil-colônia terá de considerar-se como da pior espécie para a cultura de homens ou formação de um povo, e pior ainda para o desenvolvimento e progresso da Civilização.

O quadro dessas eras de formação teria sido em resumo o seguinte: A metrópole, decadente - após as últimas florescências do século XVI - lançou sobre a América Portuguesa o vírus dessa decomposição infectante; para este degredo foram deportados judeus e criminosos, [Pág. 397] transformando a terra de Santa-Cruz em retiro de quantos degenerados aqui procuraram couto e homizio; e, desta sorte se iniciou a colonização. A seguir, foi partilhada a terra em capitânias, partindo da costa, a eito, pelo sertão sem limite; e os donatários destas imensas coirelas começaram por devastar a terra, dizimando os povoados, pilhando e escravizando o indígena. Da misera população nativa, a que escapava, ia-se internado pelos sertões, fugindo à barbárie branca, onde a atinge a tenaz perseguição das Bandeiras; e enquanto uns, os aventureiros batalhadores, conquistavam pelas armas, outros, os missionários jesuítas, dominavam os homens pela evangélica persuasão do culto católico, do mesmo jeito escravizando e explorando o martirizante labor do indígena. Falhando o índio para a exploração extrativa da terra, veio o negro africano, aprisionado pelo mesmo brutal direito de conquista. E assim foi que, com o português degenerado, o indígena manso e aniquilado, o negro escravo, se caldeou o povo que foi colonizando o opulento território do Brasil. Montada na colônia uma burocracia de titulares com um Vice-rei investido de poderes majestáticos, a metrópole nunca fez mais do que extrair da colônia o máximo de riqueza, não retorquindo com o mínimo benefício, não prestando à gente e à terra a assistência da civilização que progredia no velho mundo sob o brilho do Renascimento. Fechou a colônia dentro de um monopólio absoluto, isolando-a do resto do mundo, sem liberdade de pensamento, de ação e de progresso; e desta sorte o Brasil-colônia teria sido duplamente vítima de Portugal, pela origem e pelo fatalismo desta infeliz hereditariedade. Eis, resumido, o tenebroso quadro.

As cores são verdadeiras, a composição, porém, é falsa. A critica histórica não deve considerar os fatos pelo que deveriam ser mas pelo que foram e são; o homem não foi nunca o modelo imaginado pela razão humanista, mas uma realidade no seu meio físico e social de gestação e de vida.

Haverá talvez organismos políticos decadentes, nações destruídas nos seus vínculos históricos, povos vencidos, oprimidos, escravizados; não há, todavia, povos [Pág. 398] decadentes. Os povos que ainda existem, vivem e evoluem dentro do seu meio tradicional e local, onde persistem como núcleos vitais, de potência latente, criadora de novas nações. Para os definir e classificar, cumpre estudar esse meio em todas as suas realidades passadas e presentes, mas estudá-lo no tempo e no espaço, segundo o critério experimental, etnográfico e arqueológico, para o qual não há escala de hierarquias morais no que diz respeito a raças e povos, seus usos, costumes, mitos, religiões, artes e indústrias.

A composição do quadro, de conformidade com a razão natural e tradicionalista, é outra. Conservaremos as brilhantes cores do meio físico com a sua riqueza geológica, a beleza infinita da sua paisagem, a multiplicidade dos climas, a rica variedade de sua fauna e flora. A este torrão de bem-aventurança aportou o descobridor e o colono, irmãos gêmeos da mesma raça; aquele de uma nação em plena fase de epopeia, este, mais tardio, trazendo o vínculo dessa tradição heroica e o estigma de um povo, então dominado pela opressão da Contra-Reforma - influência que no velho mundo imobilizou, por mais de um século, os ideais humanos, despertados pela refulgente aurora da Renascença, para a obra gloriosa do progresso. Em presença do novo mundo, o colono encontrou-se só, apenas com os recursos da sua imponente robustez física e moral; e lutou in natura pela vida, batendo-se contra os elementos contrários do seu recente habitat, vencendo-os, escravizando-os ou destruindo-os; e construindo, com os elementos favoráveis que o novo meio lhe forneceu, o lar, a família, uma nação nova. A pátria de origem nunca pode prestar-lhe o patronato que lhe cumpria, impossibilitada pela sua pequenez de colonizar e gerir a imensidade mundial que conquistara, seguindo o determinismo do seu ciclo histórico, suportando as crises da sua vida política nesses tempos de ambições imperialistas, ora estrangulada pelo domínio estrangeiro, ora absorvida pelas campanhas da independência, e sofrendo as desordens íntimas das lutas religiosas e das revoltas dos ideais democráticos.

Organizou a colônia e explorou-a consoante os seus recursos e necessidades, os moldes do tempo, e estádio da ci- [Pág. 399] vilização. Ninguém por essa época, ao que conste, colonizou melhor; a tradição não reza que fossem superiores os modelos clássicos das colônias gregas, cartaginesas ou romanas. Ocupou a terra, povou-a em quanto foi possível à tão pequena metrópole, e defendeu-a da pirataria estrangeira, trespassando-a às gerações vindouras, íntegra na sua imensidade, e, o que é mais ainda, com as condições fundamentais de um poderoso império ou d’uma grandiosa república: uma população fixa ao solo, em que ora domina o sangue lusitano ora se caldeia em uma mestiçagem de firme adaptação ao meio, um só idioma unindo todos os habitantes deste país colonial, e uma tradição que os liga mais intimamente ainda do que o mesmo céu e o mesmo solo sobre que padecem em comum o martírio da vida quotidiana. A celebrada barbárie dessa colonização, é muito inferior à da escravatura branca no coração da Europa culta, para domínio dos povos menores, vitória do catolicismo e glória da democracia cristã; mínima é em confronto com a crueldade dos corsários invasores que lhe ameaçaram os portos, e atacaram o comercio marítimo, às portas da própria Europa e do século XIX; e nada é se a compararmos então à barbárie inexcedível da invasão teutônica, a que presentemente assistimos, pasmos de horror e desilusão, quando ao raiar do século XX se idealizara o governo pacífico do mundo consoante as táboas divinas da liberdade, igualdade e fraternidade.

O quadro do Brasil colônia transforma-se, pois, sob este ponto de vista, e o antepassado colono, injustamente caluniado in memoriam, é com plena justiça reintegrado no quadro verdadeiro do seu meio natural de existência, no ciclo histórico e político do seu meio social: de tirano passa a vítima, de mártir a herói nacional.

Claro é que, sendo apoucados os meios, elementares as necessidades, as artes e as indústrias limitaram-se a esse meio circunscrito de formação e desenvolvimento. A habitação reduziu-se ao abrigo do lar, adaptando as suas formas à natureza dos materiais e do clima; a povoação aconchegou-se em torno do primitivo templo, cuja proteção foi durante longo período a única guarda da primeira colônia, e distribui-se conforme a disposição do terreno [Pág. 400], serpenteando as suas ruelas pelos vales ou rodeando as encostas, adquirindo esse caráter pitoresco que só dá a perfeita coesão entre a obra do homem e da natureza, essa harmonia que constitui o caráter regional da arquitetura de uma aldeia ou vila.

A cidade formou-se em torno do núcleo aldeão, que tomou esse desenvolvimento nos portos marítimos e nos centros interiores de grande cultura ou mineração.  No regime patriarcal do antigo povoado produz-se, entretanto, a diferenciação social que traz a riqueza e a categoria oficial dos cidadãos; a arquitetura teve que vestir com diversa pompa a casa de rico, o palácio do nobre, a sede do governador, também o templo da opulenta Confraria e o mosteiro da Ordem, e por último o edifício público em que se instalam as repartições do governo, da justiça e da assistência do povo. Formada a cidade com a sua elite, as belas-artes não acompanham esse crescimento, e a arquitetura, que sobre todas as artes melhor exprime uma era histórica e uma fase social, conserva-se dentro de modestas proporções, mas na mais completa concordância com a tradição, com as condições físicas e sociais do meio.

Não se mede uma civilização pela grandeza dos seus monumentos; nessa avaliação intervém a arqueologia, para a qual ciência as mais rústicas ruínas têm um valor máximo e o mais modesto edifício têm uma brilhante significação, pela natureza dos seus materiais, técnica construtiva, caráter arquitetônico, época, estilo ou escola, seu destino e tradição.

Nos mais rudimentares motivos ornamentais, por vezes grosseiros, surpreende-se uma concepção artística, um símbolo religioso ou tradicional, uma orientação que descobre a sua origem e que, na sua adaptação a um meio novo nos conduz a uma nova concepção estética, a qual entra com todos os direitos na vasta gramática da Arte.

Não há pois elementos arqueológicos desprezíveis, quando se pretende reconstituir uma arte ou civilização; há unicamente dificuldades inúmeras à vencer, para colecionação dos documentos, sua classificação e interpretação, análise arqueológica e etnográfica, restabelecimentos das formas tradicionais, seus modelos e propor- [Pág. 401] ções e finalmente para a criação estética de expressões novas consoante a diferenciação do velho e novo meio, isto é... fazer arte tradicional.

Este trabalho não está ensaiado no Brasil, e, conforme no começo anotei, alguns dos escritores que se têm ocupado das artes entre nós, sob um ponto de vista crítico ou histórico, fundam-se no quadro, já reproduzido, que explica a decadência ou incapacidade do período colonial; e passam por alto todo esse labor artístico, que não julgam digno de nota, e menos ainda do interesse das gerações hodiernas. Não se julgue que pretendo fazer esse estudo, para o qual por completo me falecem as posses. Pretendo apenas, em grosseiro esquisso, orientar o estudo das artes no Brasil segundo o critério etnográfico-arqueológico e despi-lo por completo das falsas condenações de historiadores e estetas, cuja erudição se reporta aos tipos monumentais das grandes metrópoles (colecionados em livros ou rápidas viagens), das épocas mais brilhantes da sua civilização, modelos que muitas vezes se encontram deslocados no meio local e tradicional que os envolve, como criações de estranha suntuosidade, fulgurações de um gênio exótico, produzindo admiração e apreço, mas não o respeito e veneração do seu povo.

Em uma conferência anterior me referi à habilitação no Brasil desde os tempos coloniais, analisando-a nas suas componentes e procurando definir as características de cada uma. Aí ficou demonstrado como certos tipos coloniais de habitação realizavam, sob o ponto de vista tradicional, um modelo perfeito, capaz de adaptar-se às condições atuais do meio e às exigências dos modernos preceitos de higiene, e como, com as suas características locais, se poderão compor tipos de arquitetura tradicional.

Vamos ocupar-nos agora mais especialmente da arquitetura do templo, porque nele se manifestou uma arte monumental, e à arte religiosa (pintura, escultura e arquitetura) se devotaram em especial os artistas nacionais.

Não temos que ir buscar muito longe a origem dos estilos em que foi construída a maioria das igrejas no Brasil, as quais datam do século XVII, XVIII e XIX. Nelas [Pág. 402] se manifesta a influência de todas as fases da arte portuguesa da Renascença, tomando como fundo o estilo pseudoclássico, do tempo do reinado dos Felipes, em que se enxerta o barroco italiano e o churrigueresco, mas em que se reflete uma origina fantasia, como sucedeu ao romano-bizantino no Norte do país e ao gótico na sua modalidade do manoelino, que tomou em Portugal foros de estilo nacional pela sua extraordinária e brilhante originalidade.  O português deu sempre um cunho particular à arte que importou, e este fenômeno que é notado pelos mais ilustres historiadores da arte portuguesa, sobressai também no Brasil-colônia onde o barroco, dito jesuítico, tomou expressões de modesta singeleza, mas de um cunho local digno de nota. Não me foi possível organizar uma resenha cronológica dos principais tipos de igrejas no Brasil, e também compendiar fotografias de todas, tendo que limitar-me à exposição de uma série, organizada apenas de algumas, segundo o critério arqueológico da sua composição arquitetônica, definindo alguns tipos genéricos.

Começando pelos exemplares de maior simplicidade, abrimos a série com os templos da Capitania de S. Vicente, com os exemplos de Est. I, capelas de Monserrate e da Fortaleza da Barra (figs. 1 e 2) igrejas da Conceição de Itanhaém e Santo Antônio (figs. 3 e 4) e as antigas matrizes de Santos e S. Paulo (figs. 5 e 6), as quais pela sua arquitetura de rústica ingenuidade formam um tipo, que se vai repetindo pelos antigos povoados do Brasil, onde a piedade dos cristãos levantou esses devotos padrões, sob a invocação do santo patrono.

Estes templos, que se filiam no estilo da media renascença, barrocos na curvatura caprichosa dos seus frontões, cimalhas e padieiras, são de um extravagante rococó na sua ornamentação, em que entram por vezes elementos do mais rude naturalismo. Dão uma nota comovente no quadro de algumas dessas velhas povoações, hoje afastadas, e quase esquecidas, das grandes estradas da civilização. Entretanto, a pequena ermida, caiada, leve e ondeante e na gracilidade das suas curvas, é como branca pomba, pousada sobre o outeiro do povoado, ave simbólica desse bando angélico, que do céu vem descendo à terra desde as eras - [Pág. 403] [n/p, Estampa I] blicas com a graça divina da paz, do amor e do Espírito Santo.

As proporções de humildade desses templetos, melhor definem o seu caráter; e com eles se pode formar um primeiro grupo arqueológico. Onde, porém, está patente a beleza arquitetônica dessas rudes igrejas de taipa, de grosseira composição, que nada mostram de Arte? Perguntais com razão; e respondo-vos que não se percebe com os olhos mas com o coração, não se vê, mas sente-se.

Só o sentimento profundo da tradição, é que pode transportar-nos em espírito até essa crença antepassada, e reavivar-nos a mesma esperança infinita com que os nossos maiores ergueram para os céus essa rude oração, bela de sinceridade; só o culto do passado é que nos faz perceber a linguagem das ruínas, traduzir o encanto e a poesia dessas grosseiras fábricas de taipa, amassada com a própria terra que nos alimenta a vida e nos dilui a morte na perpétua alma do universo. Para os que nada sentem, emudecem os poetas da antiguidade, e de boamente se recolhem à sombra do passado, onde pouco importa que os não percebam ou que os esqueçam.

Um segundo grupo pode construir-se com edifícios de maior porte, em que a arquitetura é mais erudita e estética. Começamos pela Catedral da Bahia (Est. II fig. 7) que constitui um modelo clássico, cujo severo estilo tem certa imponência. Com a sua fachada em três corpos e duas torres laterais, fornece-nos um tipo, em que o frontão central domina o edifício, com as suas monstruosas volutas laterais, deixando em nível inferior as duas torres, cobertas por uma pirâmide tetraedra, e que parecem apêndices secundários da fachada.  Em todos os outros tipos de duas torres, estas tomam maior desenvolvimento em relação ao corpo central e sobrelevam-se acima do frontão de contornos barrocos, com as suas cúpulas de linhas curvas, terminando em flechas ou acompanhadas de pináculos, como por exemplo nas igrejas da Penha (Recife) e do Carmo (Olinda), esta última em ruínas. (fig. 8).

A paixão pelas linhas curvas passa dos elementos decorativos da arquitetura ao próprio plano da igreja e suas torres, como no Rosário e S. Francisco de Assis de Ouro [Pág. 404] Preto, (fig. 10), e na I. do Carmo em São João D’El-Rei (fig. 9); são as duas últimas de igual modelo, tendo de notável graça particular das suas portas e janelas, de ornamento rococó, e a aplicação de saliência nas arestas da fachada da coluna jônica em todo o fuste. Pode dizer-se que este tipo de plano curvilíneo é original nessa parte do Estado de Minas, como se fosse composição do mesmo arquiteto (o “Aleijadinho”) da 2ª metade do século XVIII. A falada matriz de Caeté já se aproxima mais do tipo do Recife e Olinda.

Não se repete esta forma curvilínea; conserva-se o tipo prismático, com o corpo central de três vãos em dois planos, e frontão de perfil curvo terminado em ponta, em geral com a cruz; as duas torres elevam-se a altura muito superior, terminando em agulha, pirâmide, ou zimbório, por vezes forrado de azulejos. Dou-vos como exemplo deste quarto grupo, no Rio, as igrejas do Carmo e de S. Francisco de Paula (fig. 11) e em S. Paulo a do Carmo e S. Pedro (demolida) (fig. 12).

Lamento que o clichê do Carmo (no Rio) não reproduza a torre que lhe fica próxima, já visível, da matriz em construção, coroada pela Virgem de ouro; teria ocasião de mostrar com evidência como o novo campanário, no seu desenho, composição arquitetônica e ornamentação é de valor muito inferior às vizinhas torres coloniais; denunciaria, em flagrante corpo de delito, não só a dissonância entre certas modernidades e o meio local, como também a falta de caráter e inferioridade estética de muitas delas, em confronto com esses banais e toscos produtos da arte colonial.

Poderemos formar ainda um quinto grupo com as igrejas sem torres laterais em que se manifesta um barroco neoclássico com o frontão triangular, também com a composição tríptica das janelas, de que são exemplares mais modernos a Igreja de Santa Cruz no Rio e a Capela Imperial (Est. III fig. 13). Deste tipo vou mostrar-vos um exemplo curioso da Bahia, da época em que dominou a arte dos entalhadores; é a Igreja da ordem 3ª de São Francisco (fig. 14). O arquiteto foi certamente um entalhador que transportou para a fachada toda a exuberante riqueza de [Pág. 405] [n/p, Estampa II] [n/p, Estampa III] ornamentação da escultura em madeira que decora o suntuoso interior das igrejas na Bahia. Aí se tornou notável essa pompa de ornamento em talha dourada, na qual se empregou a imaginação do artista em encher os vazios com todos os motivos do barroco e do rococó, em aplicações do mais flagrante naturalismo: folhas, flores, frutos, aves, cariátides, arcanjos e anjos de encarnação viva. E toda esta imaginosa obra de talha enquadra pinturas religiosas e imagens, com uma harmonia de colorido e uma habilidade de composição tais, que parece sair de uma escola de artistas sacros voltados a esta pomposa e opulenta ornamentação dos templos cristãos. De fato parece que a Bíblia formou uma escola; em um recente livro biográfico de artistas baianos (de Manuel Querino - 1911) conta-se entre pintores, escultores e entalhadores, alguns dos quais trabalharam em outras cidades do Brasil.

Não consegui clichês bastante perfeitos desta obra prodigiosa de madeira. Apresento dois exemplos de muita distinção, de interiores da Bahia, um com o teto em caixotões retos, da sacristia da Catedral (fig. 15), outro com caixotões curtos, da sacristia do Carmo (fig. 16), que nos mostram a riqueza da ornamentação interna dos edifícios religiosos daquela Capital.

Teríamos muito ainda que apreciar, no tocante a detalhes arquiteturais dignos de estudo e que demonstram uma orientação artística muito superior ao medíocre apreço que no Brasil se dispensa a sua arquitetura colonial; faltam-me as reproduções, muito embora as aguarde para obras de maior fôlego; mostro-vos apenas uma porta de original barroco das ruínas do Carmo, em Olinda (fig.17), e um claustro do Convento de S. Francisco (fig. 18), também de Pernambuco. Este pátio, de pequenas proporções, coma sua arcadura em asa-de-cesto e a loggia superior em colunata, suportando o frechal de madeira e a caibradura do telhado, com os seus altos alisares de azulejos recortados, representando quadros do flos-santorum, realiza um conjunto de harmoniosa beleza, uma composição típica que poderia generalizar-se á habitação na sua forma tradicional de pátio interior.

[Pág. 406] Não creio que dos poucos exemplos expostos se possa concluir pela nulidade da arquitetura no Brasil, a qual manifesta, de fato, um cunho nacional que se conserva até meados do século XIX, não só no conjunto urbano, como na própria vila agrícola, conforme mostram as duas gravuras de Ribeyrolles que vou reproduzir-vos: uma vista geral do Rio de Janeiro com as elegantes torres da Candelária, e uma vista da Fazenda do Beco em Campos (Est. IV, fig. 19), que é tipo interessante e completo da arquitetura agrária com seu caráter tradicionalista e regional.

Como exemplos de habitação da era colonial, apresentarei algumas casas do Rio de Janeiro, as quais constituem um tipo arquitetônico generalizado pelas cidades do litoral: a casa de Niterói (Est. IX [sic] figs. 20 e 21), a casa do Derby (fig. 22), a Casa da Praia de Santos (fig. 23) com a varanda fechada por caixilhos vidrados. Este tipo foi assinalado como característico por J. B. Débuet [sic] na sua bela obra, Voyage Pittoresque Et  Historique au Brésil, que constitui um precioso repositório de arqueologia etnografia da ultima fase colonial. Aí terão um tipo original e local de arquitetura com um caráter próprio.

Em S. Paulo, a Casa de Cotia, (figs. 24 e 25), nas proximidades da Capital, representa igualmente um caso típico que, na sua apropriação ao quadro local e no seu aspecto de característica originalidade, deve entrar na nossa série tradicional. Já dela me ocupei noutra publicação.

Bem quisera dar-vos um quadro mais completo da Arquitetura Colonial; os exemplos que apresento porém bastarão para a tese desta lição, em que, consoante um critério arqueológico se pretende apenas definir o que é, ou poderá ser, a Arquitetura Tradicional no país brasileiro.

II

Os que condenam esta arquitetura, pelo mesmo espírito de parcialidade sistemática condenarão também as suas origens arqueológicas. Não obstante, seguiremos esse roteiro histórico através do pequeno país lusitano, de onde partirem para as Índias Ocidentais os construto- [Pág. 407] [n/p, Estampa IV] res da nacionalidade brasileira; e procuramos demarcar os afloramentos desse filão tradicional, para ver se, em troca do ouro e das pedras preciosas que daqui levou a metrópole, topamos cristalizações da tradição, diamantinos reflexos da arte, essências espirituais da alma nacional, isto é, da alma brasileira.

Durante o século da descoberta pairou pela Europa o renascimento das artes do mundo clássico greco-romano. Nasceu este em Itália, provindo de Roma e do Papado, que, na suprema vitória da sua autoridade espiritual e temporal, procurava governar todo o mundo. É pois uma arte aristocrática, cujo espírito de grandeza, de poder, e de domínio, a levou pelas autocracias europeias, vencendo as velhas artes medievais que eram a expressão elevada da democracia cristã. À nobreza dos poderosos da Igreja e das cortes reais, juntou-se uma aristocracia de herois, cuja fama é eterna, multidão brilhante de príncipes-artistas, os quais, mais do que os grandes da terra, governaram o mundo espiritual e divino da Arte. São uma legião, com chefes como Bramante, Leonardo da Vinci, Miguel Angelo, Rafael, Palladio, Fontana e muito mais.

Ao pequeno país do extremo ocidental da Europa, chegou também a influência desse poderoso Renascimento; mas aqui encontrou a resistência de um estilo original, que havia adaptado as últimas labaredas do gótico flamejante à opulência dessa pequena monarquia, também em período áureo de renascença, que imperava em um mundo novo de dilatados limites. O estilo da época, denominado Manoelino, representa em Portugal um período glorioso de brilhante prosperidade, mas tem raízes fundas no período medieval, e mais profundas ainda na tradição popular, na alma desse povo navegante; por isso a Renascença italiana se enxertou nas suas obras como floração parasitária, e só progrediu quando essa grande época findou, começando a manifestar-se no seu ciclo os primeiros sintomas da decadência. Os caracteres daquele estilo poderão ser originários uma parte do Norte, outra parte do Oriente, das civilizações descobertas e conquistadas através dos oceanos; os artistas dos seus monumentos, porém, são portugueses natos: Afonso Domingues na Batalha, os Casti- [Pág. 408] lhos nos Jerônimos, Garcia de Rezende na Torre de Belém. Quaisquer que sejam as características góticas, platerescas, mudejares, ou idianas [sic], o fato é que, sobre essas influencias, e dominando-as por completo, surge uma ornamentação de riqueza extraordinária, que mais parece obras de lavrantes de metais preciosos do que de escultores da pedra, com motivos de um flagrante naturalismo, que provém da flora da terra natal e do mar imenso que lhe banha as costas, e sobre o qual se expandiu e brilhou a epopeia maravilhosa do povo e do seu destino.

Por esse fato, o puro estilo antigo, grego-romano, não se fixou definitivamente em Portugal; se não fora o catolicismo político, o jesuíta, a inquisição e o domínio estrangeiro, o imaginoso lavrante português continuaria, com a persistência do seu conservantismo étnico, a esculpir e a burilar o Manoelino, com a riqueza ornamental com que mais entalhou na pedra e na madeira (cobrindo-as de lavores e de ouro) o Barroco italiano.

De resto, semelhante alteração sofreu o renascimento clássico dos países de raça latina; o compêndio de Vitrúvio teve de sofrer as modificações que no século XVII notabilizaram Borromini, Bernini, Cortone, e Rainaldi; a frieza hierática da arte clássica não podia abranger por completo o renascimento humanista, que se transformou em um movimento popular; por um lado a hierarquia teocrática (que aceitou a severidade do estilo clássico), por outro a aristocracia da arte para as castas nobres ou privilegiadas, não se adaptaram mais ao espírito liberal do século XVII. A vitória da Igreja Católica, a necessidade de adaptar o culto à sua obra de propaganda, e de decorar os templos para a sua suntuosa liturgia, concorreram para a libertação da nova arte. A igreja transformava-se em um salão de festas para a glorificação da obra triunfal do catolicismo; os Concílios permitiram essas liberdades: “nihil profanum nihilque inhonestum apparent”.

O novo estilo ou nova renascença propaga-se pelo século XVIII cada vez com maior excesso de ornamentação; e produz em Portugal o rococó de tempo de D. João V., monarca com hábitos de ostentação, que a igreja amimava na sua ambição de catequese universal pelo deslumbramen- [Pág. 409] [n/p, Estampa V] to. À exuberância da escultura e da pintura, junta-se a riqueza se mármores, alabastros, lápis-lazúlis, serpentinas, jadeítes, malaquitas, etc., e só faltou que gemas preciosas brilhassem também sobre o ouro dos retábulos, entrando como material decorativo da arquitetura religiosa de então.

O Renascimento aparece, pois, em Portugal como um enxerto exótico, de que vos darei um exemplo histórico na portaria da Igreja de Santa Cruz de Coimbra - obra de Diogo Castilho - com a feição manoelina (Est. V, fig. 26), mas em cuja escultura aparece a influência da renascença; a janela superior é que conservou a beleza do estilo nacional. Acentua-se a penetração da arte italiana, e vai-se perdendo a rica imaginativa que levou os criadores lusitanos à criação maravilhosa do convento de Tomar, da Ordem de Cristo. Neste monumento repassa-se a história da arte em Portugal desde o românico do século XII ao manoelino e ao renascimento clássico. Apresento-vos um clichê da sala capitular com a janela central, tão celebrada e discutida, mostrando ao lado um pequeno claustro de comezinho estilo renascença, semelhante ao de Olinda, que já vimos. Neste convento há um grande claustro, chamado dos Filipes, atribuído a Terzi ou Torralva, sucessor do mestre Castilho na direção das obras; é de puro renascimento romano, e constitui um exemplo deste estilo em Portugal, justificando a série arqueológica na história artística do país (fig.28) . Todavia nem só de Itália vieram as influencias da renascença, mas também dos países do Norte como na porta lateral da Sé Velha de Coimbra (fig. 29), que é o mais notável templo românico do país (séc. XII). Este pequeno modelo de variedade flamenga é da mais fina composição e execução, comprazendo-se com o espírito popular, fácil de entusiasmar-se, quando a arte toma uma expressão bem falante ao seu sentimento tradicional.

No monumental mosteiro de Alcobaça, a primitiva fábrica gótica foi revestida com o barroco do século XVIII, delineado com proporções tais que, destoando por completo do estilo primeiro do templo, não lhe tirou a majesto- [Pág. 410] sa imponência no seu quadro local, na vasta Praça da Vila (fig. 27).

Do estilo da Renascença é também a Cartucha de Évora (séc. XVI) construída em finos mármores, com a sobreposição das três ordens - dórica, jônica, coríntia -, modelo que se encontra na Itália e na França e foi reproduzido com variantes barrocas em igrejas coloniais (fig. 30). Como exemplo curioso de desarmonia, do segundo período do barroco apresentar-vos-ei a capela de N. S. do Desterro de Alcobaça (fig. 31), em que se combinam os primeiros elementos deste estilo e a própria característica, assaz repetida em muitas outras capelas do país, desta modalidade desarmoniosa e defeituosa.

Do século XVIII, do reinado de D. João V., teria que preencher a série com o Mosteiro de Mafra, colossal edifício em que se pretendeu ofuscar o monumento espanhol do Escorial, traçado por Herrera no estilo clássico; muito mal se tem tido desta monstruosa construção, mas a crítica, sempre fácil, tomou de ouvido a toada de maledicência, sem a análise das seus detalhes arquitetônicos, da riqueza da sua ornamentação interna com os mais belos mármores, e das proporções do seu conjunto monumental. A fachada principal é um tanto desarmoniosa, mas as partes do edifício - mosteiro, passo, basílica - tem qualidades artísticas de valor que lembram as composições da época de Bernini; e por toda a parte se revela a expressão de colossal grandeza que se pretendeu dar a este composto arquitetônico maciço e monumental. O imenso edifício teve diversas aplicações simultâneas - para convento, habitação real, universidade e escola de risco, da qual saíram alguns tracistas notáveis da época.

A Basílica de Coração de Jesus, no alto da Estrela, em Lisboa, é da escola de Mafra, e foi delineada no tempo de D. Maria I; como a de Mafra tem o zimbório sobre o cruzeiro, caso pouco comum nos templos de Portugal. O estilo é elegante, harmonioso e conserva um caráter acentuadamente nacional na sua ornamentação do segundo período do barroco; neste templo se espelha a Candelária do Rio de Janeiro. A reprodução dos tipos portugueses é aqui acentuada; para muitas das obras vieram até da metrópole os próprios materiais; um exemplo curioso des- [Pág. 411] [n/p, Estampa VI] sa adaptação, em um caso exótico, é a frontaria da ordem 3ª de S. Francisco (Bahia), cujo traçado, estilo e feitio da escultura estão representados na catedral da Igreja da Vitória, no Porto (Est. VI, fig. 33). Parecem obra do mesmo entalhador. E neste particular a nossa série tradicional teria em Portugal uma riquíssima documentação.

Vou apresentar-vos, de corrida, alguns tipos de arquitetura civil portuguesa, onde encontrareis a filiação que vem do gótico e as características nacionais que se fixaram no país e se transportaram para vários padrões coloniais, nos quais quase todos os seus elementos arquitetônicos se adaptam perfeitamente às condições regionais do meio. Por exemplo: o palácio dos Condes da Carreira em Viana (manoelino) (Est. VI, fig. 34), a casa de Misericórdia, Também de Vianna (renascimento), (fig. 35), o Solar de Mateus, de Vila Real (barroco) (fig. 36), e a casa da Quinta dos Cavalheiros, de Ponte do Lima (fig. 37), tipos de palacetes provincianos, abastadas habitações de ricos homens. Por último vos dou um exemplo de Palácio Real, o Passo de Queluz, nas cercanias de Lisboa, ligado à vossa história por acontecimentos da Casa Real de D. João VI, (Est. VII, fig. 38), onde nasceu e morreu o primeiro Imperador do Brasil; foi o Versailles da Corte de Lisboa; o seu estilo e dos seus parques, na graciosa arte do século XVIII, dá-nos um modelo digno de ser mostrado no ponto de vista artístico e arqueológico. A sua arquitetura não desonra uma época de turvação política, em que mal podia cuidar-se em Portugal das artes e dos monumentos nacionais, recentemente violados, demolidos, saqueados, pelas invasões das aguerridas falanges napoleônicas, contra as quais o pequeno reduto lusitano teve mais de uma vez de defender o sagrado relicário da pátria, único que ficou intacto, porque jaz no coração do povo, velado pela mais bela e pura alma da liberdade e independência.

Em rápidos traços fiz uma exposição da arquitetura da renascença, do barroco, no Brasil e Portugal, firmando a linha central duma tradição, que poderá ser o tronco de uma luxuriante ramificação artística, se as variadas condições do meio, os novos tracistas houverem por bem ap- [Pág. 412] licar-lhes os princípios de composição e decoração deste estilo admirável, duma maleabilidade que o mantém ainda hoje nas múltiplas produções de arquitetura moderna.

Não faltam, pois os moldes tradicionais, faltam apenas os seus artistas; e só não existem aqueles para quem os ignora ou não os quer ver.

Nada valem também para os que detestam o barroco, porque dizem ser uma decomposição avariada do neoclassicismo. Entretanto aquele estilo é, como o gótico, das mais belas expressões artísticas duma época e dum meio social, tem uma legitimidade tão legal quanto o dogma clássico das ordens arquitetônicas dos panteões greco-romanos. Na arte não há estilos privilegiados.

Não me compete fazer aqui a reabilitação do Barroco. Apresentarei para fecho deste comentário um projeto deste comentário um projeto desenhado em 1648 para o Duomo de Milão e que simboliza as qualidades estéticas do barroco; foi executado no monumento milanês o projeto anterior da Carlo Buzzi (1638); mas este, de Francesco Castelli, ficará em desenho como uma das surpreendentes criações da arquitetura, acolhido com entusiasmo pelos mais distintos arquitetos da Itália. Bernini diz deste projeto que era “a maravilha dos olhos e a última palavra da arte”. Estão aí todos os elementos capitais do barroco unidos em um conjunto de expressão gótica; e é uma verdadeira síntese das aspirações da arte religiosa no século XVII, querendo dar ao templo cristão uma alta expressão de misticismo religioso, de elevação para o firmamento - aonde vão todas as preces e sobem as chamas dos círios, luzes espirituais dos altares da fé erigidas ao Deus onipotente das infinitas alturas.

O desenho de Francesco Castelli é o poema da arte Bernini; e nada mais me cumpre dizer ao bem da sua glória.

III

Com a vinda da corte de D. João VI para o Rio de Janeiro tomou novo impulso à arquitetura da Capital, e os fatos mais notáveis desta nova Era foram a escolha da [Pág. 413] [n/p, Estampa VII] missão francesa de 1816, por empenho do Conde da Barca e do Marquês de Marialva, e a fundação da Academia de Belas-artes.

A Missão, chefiada por Lebreton, compunha-se de: dois pintores, Nicolau Taunay e Debret, um escultor Augusto Taunay, um arquiteto Grandjean de Montgny e, como adjuntos, os escultores e gravadores Pradier, Irmãos Ferrez [Marc e Zepherin], os auxiliares arquitetos Levavasseur e Meunié.

Eram portadores do neoclassicismo francês, e o arquiteto, discípulo querido de Percier e Fontaine, manifestou de começo a sua escola no projeto para o edifício da Academia de Belas-artes, que é do mais severo estilo clássico. (Est. VII, fig. 39). Esta arte, que define a orientação da missão francesa - na qual sobressai Nicolau Taunay como pintor da raça - não encontrou eco no sentimento popular, nem podia acomodar-se ao meio físico e social da época, devido à imperturbável rigidez dos seus moldes clássicos. Não constitui aqui uma escola; ensinou porém e propagou a gramática da arte, a técnica perfeita do desenho, e criou uma academia de artistas que foi o laço entre o meio colonial e a orientação da renascença artística do século XIX. Nenhum dos discípulos, porém, reproduziu rigorosamente os modelos desse aticismo greco-romano; o meio tradicional emoldurou-os na sua influência absorvente, e foram persistindo os tipos coloniais do barroco até a independência da nação brasileira.

Desde então, a febre de criar uma nacionalidade nova, diferente da colônia e da metrópole, provocou a degeneração da arquitetura colonial. Os artistas nacionais recebem diretamente o influxo das civilizações estrangeiras e, emancipados, transportam materiais, modelos e estilos com que compõem obras sem um caráter definido, na sua faina de diferenciação e de construir rapidamente uma nova pátria, que nada tinha dos tempos ominosos do domínio português; que seja somente brasileira.

Vou narra-vos, a este propósito, um episódio histórico passado no dia 7 de abril de 1831, em que a exaltação dos ânimos não consentia vestígios de estrangeiros em ter- [Pág. 414] ra brasileira. Na capela do Carmo estava exposto um dos melhores retratos de D. João VI,  pintado pelo hábil artista nacional José Leandro; a multidão protestava em tumulto que se destruísse o painel; foi reclamando o autor; aos gritos de viva o Brasil, Leandro entrou na capela, pálido, a cabeça baixa, os olhos postos no chão; atrás dele o aprendiz com uma caçarola e uma broxa. O artista subiu então por uma escada e começou a pincelar de cola o painel, que era a sua obra-prima; desceu mais pálido ainda, murmurando: “está consumado”. Grossas lágrimas lhe desciam pelas faces entristecidas, e sumiu-se por entre a multidão satisfeita, refugiando-se em Campos, onde morreu quatro anos depois.

A cena passada com o pintor Leandro constitui um quadro histórico que representa ao mesmo tempo uma fase nas artes brasileiras; a nobre revolta da Independência, o violento ressurgimento do nativismo, pretendeu destruir tudo quanto era tradição, e, tal como o desventurado pintor Leandro, cobriu de novos vernizes a obra dos antepassados e até a luxuriante paisagem do solo brasileiro.

Em uma interessante memória sobre o Brasil, preparada para a Exposição Universal de 1889, na véspera do advento da Republica, diz o Barão de Rio Branco: “a arquitetura parece, há trinta anos, ter retrogradado, exceto para a construção das habitações particulares e sobre tudo as casas de campo”; atribui a insuficiência nacional de cultura artística à falta de modelos, ao pequeno número de professores, a ausência quase completa de educação artística nas classes dirigentes, a diminuta clientela de amadores e colecionadores, e por conseguinte ao pouco encorajamento concedido aos artistas de talento. E denuncia ainda o inconveniente da taxa alfandegária ad-valorem sobre as obras de arte estrangeiras, consideradas mercadorias não favorecidas pela tarifa. Com efeito, neste particular o Brasil parece ter imitado o antigo monopólio da metrópole, pela muralha chinesa da sua alfândega, impedindo o livre intercambio das Artes; não leva a melhor o antigo descaso do Reino, do qual a colônia foi tão queixosa vitima.

[Pág. 415] IV

Depois do advento da Republica persiste a desorientação artística provocada pela diversidade de elementos imigratórios. E estas variegadas influencias estão estampadas nas frontarias das construções da segunda metade do século XIX, em que se manifesta o mau gosto do proprietário e do mestre de obras, combinados em mútua colaboração de inteiriça harmonia.

A influência do Mestre Valentim que representa uma época e um grupo de G. de Montigny, e dos discípulos da primeira fase da Academia de Belas-Artes, não conseguiu vencer a resistência dos hábitos estabelecidos na construção das casas. Os habilidosos estucadores que vieram da Itália e de Portugal (das bandas de Viana e Afife) trouxeram um elemento valioso de decoração arquitetônica, mas produziram por excesso e abuso do ornamento modelado aplicado sobre fachadas completamente lisas, sem compostura arquitetural, sem o mínimo senso estético. Uma mistura de formas exóticas surge pelo casario urbano dos novos bairros; a fachada procura estilos incompreensíveis e que chocam principalmente pela sua desconexão com o quadro local e o seu destino; surgem as platibandas com cimalhões e filas de consolos, os beirais de telhões de faiaça [sic] azul e branca do Porto, os frisos e requadraturas de estuque e os panos de azulejos portugueses; como coroamento de pilastras e frontões, os vasos, as pilhas de cerâmica de Gaia, alegorias das cinco partes do mundo, do comércio, da indústria e da navegação! Aparece também o chalet com lambrequins de madeira recortada e longos avarandados nas casas burguesas, cuja variedade mais humilde em forma de casota de cachorro se espelhou profusamente pelos arrabaldes do Rio de Janeiro, substituindo o antigo modelo de telhado de quatro águas, com beiral saliente, que tão bem se apropriava ao clima local. Nas melhores ruas despontam variadas casas do catálogo europeu, que são a surpresa do visitador erudito em viagens, com aberturas mouriscas, ogivais ou redondas, sem a menor harmonia estética. Modernamente desponta na Capital o estilo [Pág. 416] das altas mansardas, das cúpulas, dos zimbórios, das flechas e dos torrões; mas nesta nova Era, suspenderemos o nosso comentário.

Os engenheiros das cidades novas procuram dar uma razão de ordem a este desordenado crescimento dos povoados, e estabelecem um plano geométrico, em xadrez, de ruas travessas e praças. O Barão do Rio Branco julga, também, que tem sido um grande mal no Brasil a intervenção do engenheiro na arquitetura dos edifícios públicos, mau habito este que já vem do período colonial, durante o qual grande numero de igrejas foi construído segundo planos de oficiais de engenharia militar: Santa-Cruz pelo brigadeiro Sá e Faria, a Candelária pelo sargento-mor de engenheiros João Rocio. O fato, porém, e que tempo houve em que a profissão de arquiteto era considerada de inferior categoria social, como grosseiro mister de tracistas, ofício leve de riscar casas, cuja genealogia vem do simples operário - antigo servo, passando pelo mestiço esperto e contramestre - ou então próprio de gente vinda de fora, diplomada por vezes, mas de suspeita linhagem.

Como quer que seja, perdeu-se completamente o fio tradicional nesse eclético labirinto de influências estranhas, que se precipitam em carreira vertiginosa para acompanharem o desenvolvimento que tomaram as principais cidades do Brasil. Deixou-se de considerar o meio físico, na conformação orográfica do seu terreno e paisagem local, o quadro social com seus usos e costumes, hábitos de vida familiar e coletiva, e não se adotaram com justeza as formas construtivas próprias dos materiais do país.

É este um fenômeno natural em um país no seu período de desenvolvimento, que tem pressa de atingir a meta da civilização e do progresso; e esta consideração fundamental, que responde as exigências da crítica, muito mais valoriza as exceções notáveis que se manifestam no ultimo quarteirão do século XIX, e que tem produzido um período de verdadeira reforma nas artes brasileiras, em especial na arquitetura da habitação, do edifício publico e dos centros urbanos.

[Pág. 417] A cidade de São Paulo é um exemplo brilhante desta última era de melhoramento no campo da arquitetura, pela sábia aplicação da arte de construir - que também é a ciência da justa medida e proporção - pela cuidadosa formação do operário nacional, aproveitamento e escolha dos materiais do país, aplicação dos mais modernos recursos e processos da indústria das construções, da higiene doméstica e urbana.

Acompanhando a orientação universal de todos os velhos países, segundo o princípio das nacionalidades, surge também no Brasil uma nova reação popular de nacionalismo, movimento centrípeto de concentração, que procura equilibrar o efeito dispersivo e desnacionalizante do moderno e utilitário cosmopolitismo. É impulsionado este movimento por intelectuais brasileiros de talento e prestígio, e fundamenta-se no estudo etnográfico do povo brasileiro, na reviviscência do seu folclore, no renascimento da tradição que é a alma da nacionalidade, o laço invisível que reúne em torno do lar sagrado da pátria, que é um só, toda a família brasileira que deverá ser sempre uma e inseparável sobre a terra e através do tempo.

Formado um caráter nacional, surgira uma arte própria; mas esta só nasce quando a nacionalidade é uma entidade moral, integrando a alma de todo o povo. O artista pode inventar ou imitar obras primas, a que seu gênio imaginativo ou habilidade da sua técnica poderão dar o máximo de perfeição; a sua obra, porém, não terá a sagração da popularidade, quando não cristalizar em si a tradição desse ideal artístico; e somente quando deixar de ser artificial para ser nacional.

Na arquitetura é este caráter o que deve predominar, porque é por excelência uma arte social. E o seu conservantismo pronuncia-se ainda mais na simples habitação do que no edifício público, porque aquela é que está mais intimamente ligada aos elementos tradicionais do organismo familiar, que é a unidade constituinte da nação. Conservar o caráter da habitação familiar não é portanto ato de retrocesso, de resistência ao progresso, mas de elementar defesa do passado, que é a fonte original do presente; e cada qual, indivíduo, família ou nação, que deixar [Pág. 418] estancar esse manancial de cristalina linfa, deixa falecer a misteriosa essência da vida que anima o seu organismo tradicional.

A arte do monumento tem outra significação; não só é uma arte de comemoração e de culto patriótico ou religioso, como também representa uma elite social e um expoente da cultura superior da coletividade; é obra do Estado, mas nem por isso devera deixar de obedecer a um principio fundamental de estética, que impõe a mais perfeita harmonia entre a sua forma e o seu destino, no seu lugar e no seu tempo.

Dum interessante opúsculo do Bourgméstre [sic] de Bruxelas, o Sr. Ch. Buls, escrito em 1893 sobre a Estética das Cidades, vou transcrever alguns períodos que se aplicam a nossa tese; preciso munir-me de documentos de autoridade. “Não vemos senão duas fontes de inspiração para os artistas do seu tempo e do seu país. É a interpretação ornamental das formas que derivam dos materiais empregados na construção e adaptação de motivos tirados de nossa arquitetura nacional ao destino do edifício. Não se cria por deliberado propósito um estilo novo; os estilos de arquitetura formaram-se lentamente conformando-se insensivelmente as exigências dos materiais, do uso e do clima... Desgraçadamente em certas épocas os arquitetos desconheceram o transformismo da floração arquitetural transportando bruscamente edifícios exóticos para climas que não lhes convinham, adaptando-os cruelmente, ao mesmo tempo, a usos para os quais nunca foram destinados... Romperam a tradição nacional para importar um estilo proveniente de outras raças que não tinham nem o nosso ideal nem as nossas necessidades”.

Como se aplicam perfeitamente ao nosso caso estas justas considerações dum Prefeito que estuda o desenvolvimento de sua cidade! De certo lhe foram opostos os mesmos argumentos que por aqui se levantam a propósito da arte tradicional, forjados pela moda do dia e pelo que se chama o bom-gosto da ocasião.

Desde o começo desta exposição ficou bem definido que a arquitetura foi sempre o reflexo do meio social em que evoluiu. Todos os estilos sofreram influência dos [Pág. 419] meios, moldando-se dentro de cada um às suas condições gerais e especiais e ao seu caráter artístico. A Renascença clássica evoluiu também, consoante o tempo e as civilizações que percorreu; cada país teve a sua renascença, diferente das outras, mas conservando a mesma filiação no renascimento grego-romano. As leis da tradição e da evolução acompanham todos os ciclos e ritmos da Arte por toda a parte do mundo; esta é a pura verdade.

Aqui, a arquitetura teve um cunho estético e um caráter próprio enquanto foi tradicional, muito embora tenham sido humildes os seus princípios; deixou, porém, de ter essa particular expressão artística quando foi cópia de estilos ou de modelos estrangeiros. Readquirirá os foros de arte brasileira, quando se reintegrar no seu meio local e tradicional, mesmo com modelos importados, e desde que estes provenham de uma mesma civilização ou raça afim da nossa e se amoldem por completo as condições mesológicas nacionais.

Não me atrevo a insistir no filão português, origem da tradição brasileira, porque é certamente o que menos se conhece aqui na sua evolução etnográfica e arqueológica, e porque, por demasiada insistência, poderia o meu lusitanismo ser tomado em suspeição pela vossa muita benevolência. Para vos indicar esse velho roteiro, através do passado comum aos dois países, é que esbocei este ensaio crítico de arqueologia portuguesa e brasileira do qual sobressai uma arte em que o principio da estética é satisfeito com originalidade e com caráter. O valor da arte lusitana não é somente celebrado por escritores nacionais, mas também por sumidades do estrangeiro; poderia citar-vos os ingleses Murphy e Watson, o polaco Conde Rackzynsky, o italiano Vasari, os alemães A. Haupt e C. Justi, os franceses Dieulafoy e Berteaux, os quais escreveram livros sobre essa arte originalmente portuguesa; mas não desejo enfadar-vos com o abusivo prolongamento desta leitura.

O progresso do urbanismo no Brasil confirmará a tese tradicionalista, no que diz respeito ao plano das cidades sobre o seu fundamento regional, os seus parques e jardins, a arquitetura da habitação e dos edifícios públicos. Na cidade, que é obra da coletividade, deverá paten [Pág. 420] tear-se a tradição nacional na sua síntese superior, como razão de estado, se este estado dominar todas as influências da imigração, todas as torrentes de intempestivo exotismo, que deverão fundir-se intimamente em uma só caudal, cuja nascente está no passado e banha generosamente todo o solo da pátria.

A Câmara Municipal do Porto - a segunda cidade de Portugal - entendeu reformar e melhorar o seu centro cívico. Convidou entre outros o Sr. Barry Parker, arquiteto da primeira cidade-jardim de Letchworth, da aldeia jardim de Earswich, do subúrbio-jardim de Hampstead, modernamente considerado como um dos mais distintos town-planners. Este ilustre arquiteto planeou o centro cívico da cidade do Porto na mais completa harmonia com o meio tradicional do velho burgo portuense. No seu relatório, dirigido à Municipalidade do Porto, dá a orientação base da arte ou ciência urbanista, que constitui hoje, não só uma profissão especializada, mas também um ramo importante da engenharia e arquitetura civil. Transcreverei alguns de seus conceitos que, pela definitiva precisão, podem tornar-se como dogmas tradicionalistas do urbanismo moderno.

“Um dos primeiros deveres do planejador duma cidade é de observar os hábitos do povo no meio do qual é chamado para trabalhar. O seu principal dever é de analisá-los e determinar quais deles são devidos ao gênio da raça (racial genius), quais às condições da natureza e quais à ignorância de outros hábitos; pode tomar como certo que todos os usos e costumes que sobreviveram durante longo tempo e são ainda seguidos, tem as mais sólidas e melhores razões da sua existência. Considerará que não obstante estas razões não serem aparentes à primeira vista, todos os usos e costumes que conservaram o cunho do tempo tem geralmente a sua origem no temperamento nacional, nas condições do clima ou na natureza do solo e do país. Cabe-lhe descobrir e ajudar a perpetuar os que tem bom fundo, abandonando aqueles cujas razões não tem base real.”

[Pág. 421] O Sr. Barry Parker religiosamente cumpriu estes preceito, planejando o centro cívico portuense de acordo com a sua arquitetura tradicional. Conservou os caracteres da habitação que julgou úteis e reais, os motivos da sua arte regional e mesmo a disposição do conjunto urbano no seu conspecto [sic] arqueológico. Aproveitou habilmente o tipo da fachada em arcaria que abrange a loja e sobreloja; e assim com a sucessão das casas alinhadas, forma uma galeria continua em colunata, marginando a avenida, conforme se vê nas antigas ruas e rocios peninsulares; e deu uma nova aplicação ao pátio das nossas casas, de fundo romano-árabe, interrompendo a linha das fachadas para construir o tipo modelar da higiene urbana de rua, em linha serra, ou cour ouverte, forma que melhor realiza as condições de sanidade, de aereação e insolação; respeitou o beiral, o tipo das janelas e a própria ornamentação arquitetural de que fazem parte integrante as aplicações dos azulejos de faiança colorida. Realizou um tipo ultramoderno de centro cívico, adotando com inteligência e critério a sua própria arquitetura tradicional.

Apresento-vos deste notável trabalho, em via de execução, duas projeções que devo a amável concessão do seu ilustre autor, há dias entre nós, a convite da Companhia S. Paulo Improvements. (Est. VII, figs 42 e 43) É a prova de como pode fazer-se a arte tradicional, modernizando-a na sua aplicação à civilização da atualidade.

Ora acontece que o problema da construção das cidades está neste momento na ordem do dia, nos países devastados pela invasão alemã. A União Internacional das Cidades e Comitês de Arte Cívica Pró-Bélgica, com sede em Haia, e a “Associação Geral dos Higienistas e Técnicos Municipais da França” estão se ocupando desta obra grandiosa de arte e de patriotismo, para a reconstituição das cidades, vilas e aldeias destruídas. A União organiza um Comitê Neerlando-Belga da arte cívica e uma Enciclopédia-das-cidades a que agrega a colaboração de todos os institutos técnicos da Europa e da América. A sua divisa é “a reconstrução da Bélgica para os belgas” e coloca em primeira linha o regionalismo e o caráter fisionômico dos distritos, os estudos sistemáticos das relações [Pág. 422] entre estes e a cidade, verdadeira escola de urbanistas e arquitetos que ali se habilitarão a descobrir os ritmos geradores das relações e correspondências entre a Natureza os Seres e as Coisas.

No seu prospecto há uma página, que vou reproduzir da “Comissão para a beleza da cidade de Amsterdã”, e que define a orientação tradicionalista da arte moderna da urbanização. O proprietário de duas casas urbanas quis reformar as suas fachadas e, procurando um construtor incapaz, este concebeu um plano retangular cuja expressão anodina revoltou a Comissão da cidade; esta persuadiu então amigavelmente o proprietário a procurar um arquiteto qualificado o qual conseguiu, sem o menor falseamento do estilo e com as mais simples formas, compor um conjunto que se harmoniza perfeitamente com o ambiente arqueológico e o caráter nacional do quarteirão.

A associação francesa organiza por sua vez a Exposição da Cidade Reconstruída, com um programa de estética e higiene que abrange a restauração das cidades e aldeias destruídas, planos gerais das casas de habitação e edifícios públicos, construções rurais e industriais, materiais de construção, processos e legislação. O programa abrange vários grupos, mas especialmente se orienta segundo o respeito absoluto dos estilos regionais, conservação dos monumentos históricos e dos sítios particularmente belos. De Julho a Agosto de 1916 inaugurou-se o Concurso das Aldeias, que principiou por levantar protestos de sentimento nacional, por causa dos projetos em que eram propostas construções uniformes, geométricas, econômicas; eram, com efeito, resoluções matemáticas perfeitas, mas contrárias ao espírito da tradição regional. Novo concurso se estabelece com maior sucesso, em que a orientação é completamente tradicionalista. A este respeito diz o Sr. A. Agache, ilustre arquiteto-urbanista: “a fisionomia dos aglomerados rurais da nossa velha França é diversa, e convém que, mesmo restaurados, ressuscitados, eles evoquem, senão as lembranças dum passado destruído, pelos menos o encanto do torrão natal, que se exterioriza no aspecto e na disposição das habitações.

[Pág. 423] Foi organizada uma bela série de conferências pelos mais distintos engenheiros, arquitetos, higienistas, e economistas da França. Alguns tópicos duma conferencia do Sr. Joseph Reinach sobre a aldeia reconstruída servir-me-ão para por o problema do tradicionalismo na exata equação. Surpreendo aí a citação dum crítico alemão propondo que a restauração das povoações belgas e francesas das regiões conquistadas, seja confiada a arquitetos do Reno ou do Sul da Alemanha, que conhecem e sentem melhor as necessidades dos seus vizinhos do Oeste, de preferência aos arquitetos da Alemanha do Norte.

Os próprios alemães mantém, neste particular, o critério regionalista, e não pretendem fazer na França ou na Bélgica arte alemã, nem adaptá-la às condições do meio regional; não desejam mesmo empregar o modern-style, tão simpático aos impérios centrais, extravagante criação da modernidade, destinada a desaparecer, felizmente, em presença da corrente tradicionalista, que é a verdade na arte, contra a mentira de todos esses caprichos de exotismo ou nevropatia artística.

Todavia, nem um, nem outro excesso; e não reduzir-se também o regionalismo a um dogma absoluto, tiranizando a liberdade que é a condição vital da Arte: orientação geral, critério e método tradicionalista, mas livre expansão do espírito criador do homem, apenas adstrito à terra e à alma nacional, que são os motivos naturais de inspiração em toda a arte representativa da ideia de Pátria e do ideal do Belo.

Arquitetura tradicional, não quer dizer, portanto, reprodução literal de coisas tradicionais, de fósseis arqueológicos, de casas de taipa ou pau-a-pique, de igrejinhas de adobe, de velhas ruelas entre tugúrios de 3 braças craveiras, com porta e gelosia, ou de sorumbáticos sobrados dos centros urbanos d’antanho, sem higiene e sem aparência estética.

Arte tradicional é a estilização das formas artísticas anteriores que integram em determinado tempo o meio local, o caráter moral dum povo, o cunho da sua civilização; é o produto duma evolução rítmica de ciclos sucessivos de arte e estilos; é uma expressão coletiva, es- [Pág. 424] tranha à vontade individual, do pleno domínio do sentimento, determinada em povos de tradição definida, nos quais o sentimento estético é estável como o sentimento da nacionalidade pátria.

Dentro do determinismo da sua criação e desenvolvimento, a arquitetura tradicional será uma realidade no Brasil-república, se for íntegro o organismo nacional, como um cristal diamantino, cujas múltiplas facetas de irisados reflexos são as infinitas modalidades da sua brilhante civilização.

Tomem os mais diversos estilos ou modelos para a arquitetura no Brasil, se assim o quiser a fantasia dos seus artistas; mas se, em vez de copiar, procurarem imitá-los apenas, adaptando-os ao meio físico e social, ao caráter tradicional do povo, terão praticado, de qualquer forma, Arte Tradicional.

Um movimento de concentração nacional se vai manifestando no povo brasileiro, guiado por um de seus maiores poetas, herói de uma nova cruzada, contra a decomposição da nação brasileira, pela cristalização da pátria no meio tradicional da nacionalidade. Se esta somenos palestra valer um voto mais, junto aos votos de todos os brasileiros, neste seu culto perante o altar da pátria, terei a satisfação de não ver desperdiçada esta lição e a bondade com que a haveis escutado.

RICARDO SEVERO.

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(1) Conferência realizada no dia 31 de Março, a convite do grêmio Politécnico de S. Paulo.


[1] Versão do trabalho final apresentado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão - História da Arte, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrado pelo Prof. Dr. Arthur Valle, no segundo semestre de 2011.