O Restaurante Assyrio é Persa... e o Café Mourisco também”, de Adolfo Morales de los Rios: Comentários e Anotações

organização de Renato Menezes Ramos

RAMOS, Renato Menezes (org.). “O Restaurante Assyrio é Persa... e o Café Mourisco também”, de Adolfo Morales de los Rios: Comentários e Anotações. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/persa_rmr.htm>.

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Ao escrever “O RESTAURANTE ASSYRIO É PERSA... E O CAFÉ MOURISCO TAMBÉM”, o já experiente e renomado professor da Escola Nacional de Belas Artes, Adolfo Morales de los Rios, não poupou elogios a um estudo publicado em O Jornal, quatro dias antes de sua publicação no mesmo periódico. Seu autor fora Gustavo Barroso, também importante personagem do palco de intelectuais da época, colaborador do periódico, e cujo pseudônimo mais conhecido era João do Norte. Ele escrevera um artigo intitulado “O RESTAURANTE ASSYRIO É PERSA...”, no qual tratava da tipologia decorativa utilizada no restaurante do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. João do Norte escreveu um longo, meticuloso e didático estudo procurando justificar que o estilo assírio era uma definição estilística equivocada no caso do referido restaurante. No dia seguinte à publicação, uma carta era enviada por Morales de los Rios a João do Norte, na qual comentava o texto do colaborador do periódico e procurava adicioná-lo informações que julgava fundamentais. Alguns dias depois saía no jornal essa carta, como uma espécie de resposta e complementação teórica por parte do arquiteto, haja vista o título de sua carta.

Embora tenha se mostrado extremamente satisfeito com o estudo de João do Norte, Morales de los Rios considerou importante complementá-lo, e também lhe acrescentar outra correção: a definição estilística do Café Mourisco, que, segundo ele, tratava-se de um café em estilo persa. Assim, ele aproveitara a chance de tentar solucionar erros antigos que perduravam até então. Mas se João do Norte revelou-se um grande conhecedor dos estilos em questão, como o próprio arquiteto reconhecera, Morales de los Rios ofereceu aos leitores uma “aula” sobre as artes persa e mourisca, demonstrando seus conhecimentos ainda mais amplos e aprofundados referentes à cultura médio-oriental.

Desde cedo Morales tivera contato com a arquitetura mourisca: ele era espanhol, nascido em Sevilha. Além disso, projetou edificações neste estilo tanto em seu país natal, quanto no Brasil. Mas o seu conhecimento acerca da arte oriental misturava-se ao profundo interesse em estudar as culturas consideradas primitivas. Seus interesses iam muito além das questões arquitetônicas. Suas habilidades eram multifacetadas: desempenhou atividades como historiador, crítico de arte, e também desenvolveu estudos antropológicos, a maioria dos quais procurou compreender ritos de feitiçaria, mitologia e história, e métodos construtivos dos “povos primitivos”, e entre estes estavam os índios brasileiros, que ocuparam um espaço especial em seus estudos, sobretudo em “Ôka, Taba, Tabajara” (MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Ôka, Taba, Tabajara. Documentação manuscrita, IHGB): um “tratado” sobre a arquitetura indígena.

Em um curioso estudo intitulado “Ahura-mazda” (MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Ahura-mazda. Documentação manuscrita, IHGB), manuscrito pertencente ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição da qual era membro, Morales de los Rios se dedica à reflexão do mazdeísmo e de outras doutrinas religiosas da antiguidade oriental. Sua extensa análise parte da discussão acerca da religiosidade persa e védica, e da doutrina de Zoroastro, que fora propagada pelo território do Irã antigo, como ele demonstra em suas folhas. Desde o início do estudo, o arquiteto se rende às análises iconográficas da antiga Pérsia. Mas se por um lado este estudo corresponde a mais um dos reflexos do interesse científico alimentado por Morales pelas culturas ditas “primitivas”, por outro, ao lançar mão de requintados estudos etimológicos, ele, mais uma vez, revela o seu alto grau de erudição, mostrando também ser capaz de traçar audaciosos paralelos e correlações entre as culturas oriental e grega antigas.

Morales de los Rios, já era (em 1921, ano de publicação do texto em questão) um dos mais respeitados intelectuais da cena brasileira, além de estar entre os arquitetos mais requisitados da época. Ao se tornar professor da Escola Nacional de Belas Artes, ele pôde repassar todo o conhecimento que havia adquirido na França, onde estudara, disponibilizando aos seus alunos aquilo que pensava a respeito da consonância adequada entre História e Industrialização aplicadas à Arquitetura.

Para ele, História e Arquitetura compunham partes indissociáveis de um único elemento, e era essa união que garantia à edificação o seu potencial narrativo. Morales de los Rios mostrava, dessa forma, o seu fiel compromisso com a História, e isso pode ser visto no decorrer de sua carta. Nela, o arquiteto dispõe todo o seu conhecimento em prol da verdade histórica asseguradora do potencial narrativo a que devia pertencer o restaurante. E não só o restaurante, mas também o café: este, projeto de sua autoria, e cujo acompanhamento da execução fora feito sob os mais rigorosos critérios para que não houvesse falhas que o encaminhassem a um possível desvio histórico.

Mas quanto ao restaurante, Morales destila todo o seu perspicaz sarcasmo e humor quando abre parênteses para comentar a má execução das cerâmicas das fontes. Seu ímpeto crítico parece, inclusive, ultrapassar o objetivo inicial do texto, de apenas fazer alguns acréscimos no que tocava à história persa que estampava as paredes do restaurante.

Em um momento em que a liberdade decorativa desaguava em uma verdadeira fantasia edificada, Morales preferia, como poderá ser observado na carta, abrir mão desse “anarquismo”, como ele próprio diz, para fazer uso apenas da fantasia, à medida que trazia para o Brasil uma decoração persa, e transformava-a em um moderno espaço para os deleites da alimentação. Mas se por um lado parece fantasioso haver um ambiente com toda a ornamentação evocativa à Pérsia, não era nem um pouco fantasioso o longo e cuidadoso estudo que se deveria fazer para embelezar uma arquitetura.

Vale aqui observar que tanto o café quanto o restaurante atendiam às questões levantadas pelos debates arquiteturais da época, sobretudo no que tange a arquitetura como um instrumento dotado de amplas possibilidades comunicativas. Segundo esta tendência, a arquitetura deveria “falar” através de seus aspectos exteriores, de modo que ela fosse rapidamente associada à função a qual era destinada. Desta maneira, os assim chamados estilos “medievais” seriam mais adequados às igrejas; os estilos ditos “clássicos” cabiam aos prédios públicos, palácios de justiça etc., ao passo que os estilos considerados “exóticos” deveriam adornar os edifícios relacionados ao ócio e aos prazeres da vida cotidiana, e entre estes estilos “exóticos” estava o assírio, o persa, bem como os demais advindos do Oriente próximo ou distante.

Mas “O RESTAURANTE ASSYRIO É PERSA... E O CAFÉ MOURISCO TAMBÉM” envolve um outro lado: o do autor do texto que gerou a carta de Morales de los Rios: João do Norte.

Advogado por formação, Gustavo Barroso se fez um dos mais respeitados intelectuais da época, como já foi dito. Ilustração para isso é que em 1922, por exemplo, ele iniciava a sua gestão como o primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, o que mostra bem o seu alto envolvimento com os estudos históricos. Mas o que deve ser destacado aqui é o fato de também ter pertencido a instituições como o IHGB, tal qual Morales de los Rios, e também a Academia Brasileira de Letras, a Academia Portuguesa de História, a Sociedade de Numismática da Bélgica, e a Sociedade de Arqueólogos de Lisboa, entre outras. Portanto, Gustavo Barroso não escrevia à esmo um artigo sobre iconografia persa. Na verdade, assim como Morales, ele nutria mais que um profundo interesse pela História como uma disciplina científica, mas pela “verdade” como ela deveria ser apresentada.

É importante destacar ainda que Gustavo Barroso iniciara em seu texto aquilo que Morales de los Rios levaria a cabo em sua carta: a classificação estilística minuciosa, tão característica da cultura historiográfica acadêmica, a qual entendia os estilos como grupos herméticos e inabaláveis, cujas classificações poderiam ser feitas de modo preciso e categórico. Mas entender esse texto como um reflexo do método próprio da historiografia do século XIX é onde reside um dos aspectos que tornam esses escritos de singular importância.

Mais que um debate em torno das artes persa, assíria e mourisca, esses textos correspondem às querelas geradas em um momento no qual a História e a Arqueologia estavam a serviço da Arquitetura (e vice-versa), e, logo, deveriam fornecer testemunhos verídicos em sua “transtemporalidade” a que se propunha. Através dessa carta pode ser percebido o motivo de Morales de los Rios ter reconhecida a sua intelectualidade. Nela é possível identificar tanto as características do pensamento do próprio arquiteto, quanto do espírito da época. Pode-se compreender não somente a dimensão da importância dos estudos históricos e arqueológicos, mas também a força que os assuntos orientalistas tinham neste período. Sendo assim, segue a carta.

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MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. O Restaurante Assyrio é persa...e o Café Mourisco também. O Jornal, Rio de Janeiro, 9 jun., 1921. p. 2.

A propósito de seu artigo sobre a arquitetura pérsica[1] do Restaurante Assyrio [Figura 1], o nosso colaborador João do Norte recebeu do arquiteto e professor da Escola de Belas Artes, sr. Morales de los Rios, a seguinte interessante carta:

Meu caro Gustavo Barroso e amigo “João do Norte” - Meus mais sinceros parabéns pela bonita lição de arqueologia assyrio-persa, que V. deu ontem, pelas colunas do muito apreciado O JORNAL, aos seus patrícios vizinhos e habitantes desta nova e futura “Babylônia”, onde já dois morros se disputam essa denominação...

Efetivamente, nada menos adequado do que o nome de “Assyrio”, dado ao “Ratzkeller-Zebanden”[2], ou porão do Theatro Municipal, muito semelhante, por causa desta última feição, a certas cervejarias municipais, subterraneamente estabelecidas, que existem com essa denominação tudesca[3], em cidades como der-Zaal e outras de recordação estudantal...

Um professor, na matéria arqueológica que V. desenvolveu, não faria com o melhor método e eu, atentamente e com satisfação crescente, fui lendo e saboreando a sua excelente crônica, sem lhe achar, até o final, “uma cincada”, - desculpe a locução, - o que seria perdoável em quem não pretende ser um especialista na matéria, mas que, folgo em dizê-lo, já se revela um excelente crítico.

Na idade em que atingi, enche-me de alegria, ver esse movimento que leva V. e outros ilustres colegas seus a dar a semelhantes assuntos a relevância que merecem no meio da nossa cultura no momento preciso em que uma plêiade de jovens arquitetos, em cuja formação tive parte, como professor[4], animados de patriótico ardor, se acham dispostos a honrar a profissão e a terra em que nasceram, com as produções da sua cultivada inteligência.

Permita-me, agora, que venha sem nada tirar à sua crônica, acrescentar-lhe uns certos corolários à maneira de pontos nos seus bens escritos iii...

Assim, por exemplo, os capitéis zoomorfos [Figura 2] do referido restaurante, representando bois propiciatórios, ajoelhados e enfeitados, prestes a serem sacrificados, são os irmãos gêmeos dos daqueles cavalos, na mesma posição de vítimas a imolar, que formam, por sua vez, os capitéis da “Sala-hipostílica”, do templo de “Persépolis”, assim denominada pela sua alusão hípica àqueles capitéis[5]. O boi e o cavalo eram vítimas propiciatórias do culto do “parsi”, ou zoroastriano, dos persas do antigo império desta denominação. O culto “parsi” nada tem a ver com o “védico” ou “brahmânico”, no qual tais imolações sangrentas não têm os bovinos como vítimas e que, antes pelo contrário, exclui a matança desses animais, como é bem sabido[6].

Trata-se, pois, no caso dos capitéis do mal chamado restaurante “Assyrio” e, como V. perfeitamente demonstra, de um motivo arqueológico de puro sabor pérsico; até na denominação do templo persepolitano em que tais capitéis figuram como magníficos exemplares da respectiva arte.

Quanto aos compridos painéis cerâmicos, que ladeiam o âmbito do mesmo restaurante, o dos “Soldados em paralela”, ou em “teoria”, como V. explica é a magnífica “Frisa dos arqueiros”[7] [Figura 3], como a outra é a celebrizada “Frisa dos leões”[8] [Figura 4], cópias fidedignas, em matéria e em esmaltes coloridos das que o casal Dieulafoy[9] descobriu em Susa, que dali trouxe e que hoje decoram uma das salas do Museu do Louvre, em Paris [Figura 5].

Aproveito o ensejo para lhe fazer reparar em certo pormenor esdrúxulo da iluminação desse restaurante [Figura 6], e que destoa, no meio do estilo, “bem sustentado”, - como dizemos nós, os engenheiros-arquitetos[10] - do resto da decoração dessa sala.

São umas espécies de enormes e compridas lombrigas de terra[11], que o [...] [12] deu em inspiração vermiforme, não sei quem, e que se contorcionam, como “tênias”, expulsas da sua costumeira hospedaria intestinal, para servirem como suporte, a lindos globos opalinos* de iluminação, sugerindo como em muita* e torturosa armadura córnea ao alto* de certas testas zoomorfas, aplicadas em relevo, como troféus, sobre as paredes da sala.

Aquilo não é persa, nem é assyrio, nem...cascadurense; é simplesmente um feio anarquismo[13], e do pior gosto.

Agradeço a lembrança que me dedicou[14], aludindo as referências arqueológicas das frisas do edifício da Escola Nacional de Belas Artes, cujos baixos-relevos são do Rodolpho Bernardelli e em cujos pormenores aparecem, simbolicamente, os mais enérgicos protestos contra a menos apropriada denominação dada ao “Restaurante Assyrio”, e cuja decoração brada pela sua originalidade pérsica[15] [Figura 7a e Figura 7b].

Já que estou com a mão na massa, - como se costuma dizer, - chamarei a sua atenção para outra anacrônica denominação, que também é vulgarmente dada a outro edifício na mesma avenida Rio Branco, onde se enfileira a fachada do mal chamado “Restaurante Assyrio”.

Ainda nesta ocasião a vítima é a arte pérsica.

Trata-se daquele prédio que faz esquina com a rua do Rosário, vulgarmente conhecido pelos nomes de “Pavilhão Mourisco” ou de “Café Mourisco”[16] [Figura 8]. De mourisco é que ele não tem nada.

Mourisco” vem de “Mouro” e “Mouro” da “Mauritânia”, ou seja, do litoral africano sobre o mediterrâneo, ao qual a antiguidade deu esse último nome, como também o de “Numidia” a uma parte dessas terras. Estas, sob domínio muçulmano, criaram suas arquiteturas regionais e é assim que temos os estilos arábico-marroquino, arábico-argelino, arábico-tunesino, etc., como temos o arábico-espanhol e o consequente “mudéjar”, da mesma nacionalidade, também denominado masarabe[17]. Pela mesma forma e razão, teve-se o arábico-persa, produto genuíno da arte árabe, num meio e ambiente pérsico[18] e tão influído por estes, que é considerado heterodoxo pelos crentes pelos sectários ortodoxos de Mafoma.

É esse o estilo do mal denominado “Café Mourisco” e que, com propriedade, melhor deveria chamar-se “Café Pérsico”.

Fui o autor dos planos desse edifício e o diretor das suas obras, havendo caprichado em todos os seus pormenores e desenhado e colorido cada um dos seus azulejos, conforme a encomenda expressa de adotar esse estilo, o “arábico-persa”, que recebi do meu distinto amigo e cliente, dr. J. J. Silva Freire.

O “Restaurante Assyrio” e o “Café Mourisco” são, pois, na avenida Rio Branco, duas épocas diversas desse país asiático, ao lado do glorioso nome que apropriadamente designa a mais bela artéria urbana da capital do Brasil.

A sina de “Babilônia”, uma das antigas capitais do antigo império persa, foi a de estabelecer tradicionalmente a confusão...

Terminarei, brindando-o, neste propósito, com uma achega, que considero importante, devido às minhas pesquisas dos primitivos povoadores ou aborígines brasílicos.

Sabe V. como alguns desses “mais primitivos” indígenas e os seus atuais sucessores denominaram a “Confusão”?

Pois, chamam-na de “Babylon”, o nome da celebrizada capital, em cujas redondezas existem as ruínas da famigerada “Torre de babel”, e tenho por certo que o termo “Babylon”, entre os indígenas sul-americanos, não o deveram eles às influências da descoberta e da conquista europeia...

Ainda teria a dizer a V. algumas coisas muito interessantes sobre “Ahura-mazda”[19], o Deus único dos zoroastrianos, cujo nome V. citou e a composição errou[20], bem como sobre a sua opinião exarada da sua bela crônica, a respeito da origem do estilo barroco e com a qual sinto não concordar[21]... Mas esta vai longa e apenas me fica o papel para mandar-lhe um abraço de admirador e amigo.

A. Morales de los Rios.”

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[1] Como poderá ser notado, a transcrição encontra-se com a língua portuguesa em versão atualizada. Entretanto, foram respeitadas as formas de algumas palavras que, mesmo fora de uso, imprimem uma certa autenticidade ao texto, como é o caso tanto dos títulos dos locais aos quais se fazem referências no decorrer do documento, quanto, por exemplo, da palavra “pérsica”, atualmente utilizada em seu lugar a palavra “persa”.

[2] Palavra cuja tradução literal do alemão é “adega de ratos”. Designa um tipo de taberna ou restaurante tipicamente alemão, localizado normalmente abaixo do nível da rua, especializado em servir cerveja.

[3] Relativo á língua dos antigos germânicos.

[4] Em 1897, Morales de los Rios foi aprovado em primeiro lugar para a cadeira de Estereotomia: disciplina que estuda o corte exato dos materiais do sistema construtivo, como a pedra e a madeira. (Sobre a trajetória do arquiteto, ver: RICCI, Claudia Thurler. Sob a inspiração de Clio: O Historicismo na obra de Morales de los Rios.  19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_mlr_ctr.htm>.

[5] Morales considera importante complementar aquilo que João do Norte diz em seu artigo: “As colunas que sustentam o forro nunca foram assírias. Toda coluna com cabeça de touro como essas, com cabeças de licornes, de cavalos no capitel, em volutas, pertence ao estilo persa. Essas especialmente, porque são a cópia exata das que estão no Museu do Louvre e foram trazidas do Oriente pelo casal Dieulafoy. Há um desenho delas na página 738 do tomo III de Maspero, obra já citada, e a sua fotografia consta da obra de Dieulafoy, ‘L’Acropole de Suse’ [...]. Se essa prova de que tais colunas são persas não fosse suficiente, bastaria ver-se o túmulo de Dário, rei da Pérsia, heliogravura da obra de Dieulafoy, ‘L’Art antique de la Perse’, onde elas figuram, para se verificar que nada tem de Assírio” (NORTE, João do. O RESTAURANTE ASSYRIO É PERSA... O Jornal, Rio de Janeiro, 5 jun., 1921, p. 1).

[6] Aqui, o arquiteto parece valer-se do conteúdo abordado em seu amplo estudo sobre “Ahura-mazda” - manuscrito sob a guarda do IHGB, Rio de Janeiro.

[7] João do Norte, ao se referir à arte assíria como essencialmente bélica, diz: “No entanto, o nosso restaurante nada tem de militar. Os próprios soldados que, numa das paredes, se enfileiram atrás do seu soberano, marcham pacificamente, em parada”. E depois ele aprofunda seus comentários a respeito deste painel cerâmico: “na parede do fundo do nosso restaurante, há um grande baixo relevo em tijolos esmaltados. É uma cópia do que se acha no Louvre e foi da referida Apadana [sala hipostílica destinada à realização de audiências, que havia nos palácios dos antigos reis da Pérsia]. Sob o guarda-sol real, sustentado por um eunuco ou por um flabelífero, o Real derrama óleo sobre o fogo do altar, acompanhado por uma longa teoria de soldados. [...]

Seus soldados voltam da guerra da Babilônia. São guerreiros iranianos clássicos, no tipo e nas roupagens: persas e medas. Alternam os seus uniformes amarelos e brancos, de mangas caídas, mas é sempre o mesmo o seu armamento: carcaz, arco, lança terminada em baixo por um pouco de metal.”( NORTE, João do. Op. cit.)

[8] Sobre essa reprodução, João do Norte diz: “[...] um dos característicos da arte assíria é o leão deitado ou de pé, ferido com uma seta ou vivo, andando ou parado, cariátide ou ornamento, mas sempre grande, grosseiramente entalhado e feroz. No nosso restaurante Assyrio, há uma frisa dos leões ao alto, rodeando toda a sala e, positivamente, se trai nela a influência do estilo de Assur [primeira capital do Império Assírio] na arte persa. São, contudo, muito mais bem acabados e menos ferozes do que os seus antecessores [...].” (NORTE, João do. Op. cit.)

[9] Em seu livro “FEMINÁRIO”, o jornalista, escritor e crítico de arte Manuel de Sousa Pinto (1880-1934), brasileiro, mas radicado em Portugal, dedica algumas páginas a esse casal. Trata-se do capítulo VI, intitulado “CASAL D’ARCHEOLOGOS”, no qual versa sobre a importância de Mareei Dieulafoy e Jane Dieulafoy: casal de franceses, que dedicaram parte de suas vidas à arqueologia persa, sobretudo no sítio de Susa, Iran. Esse casal também desempenhou um papel fundamental para a consagração dos estudos os quais desenvolveram (estes citados com frequência no artigo de João do Norte), além de terem contribuído enormemente para a museografia do Museu do Louvre (PINTO, Manoel de Sousa. FEMINARIOS. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1911, p. 41).

[10] Morales de los Rios, como pode ser constatado, declara-se um “engenheiro-arquiteto”. O nascimento da Engenharia Civil no século XIX, em decorrência de Revolução Industrial, ainda no século anterior, que possibilitou a introdução do ferro e do aço em uma construção, provocou um complexo debate devido à sua penetração na metodologia e na prática arquitetônica. O assim chamado “Século da Indústria”, como ficou conhecido o século XIX, ofereceu um amplo espaço para a experimentação na arquitetura, possibilitando a inserção da metodologia da Engenharia Civil e criando, por consequência, a dita Arquitetura Racionalista, que, por sua vez, ensaiava aquilo que foi rigorosamente colocado em prática pelos arquitetos “modernos”, no século XX. Morales de los Rios, por preconizar a utilização do ferro e do aço no sistema estrutural de suas edificações, se auto-inseria no conjunto dos “engenheiros-arquitetos”, os quais assumiam a penetração não só dos novos recursos técnicos na arquitetura, mas junto a este, o progresso estético, como disse certa vez César Daly, em uma das edições da Revue générale d’architetcure e des travaux publics.

[11] O arquiteto se refere às duas fontes que existem no Restaurante, as quais, segundo João do Rio, representam “Guilgamesh, do palácio de Sargão, em Khorsabad”. Esses relevos também são copiados dos existentes no Museu do Louvre, França, conforme aponta esse mesmo autor em sua obra sobre o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (RIO, João do. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edição da Photo. Musso, 1913.). Já João do Norte, sobre essas mesmas fontes, escreve: “Dos dois lados do restaurante, dois baixos relevos em tijolos vermelhos, chamam a atenção. Eles dominam duas fontes cantantes. Um representa um homem barbudo enfiando o punhal no peito dum grifo terrível. Esse baixo relevo existia em Susa, capital da Pérsia [...]. Nele o rei da Pérsia triunfa numa luta contra um gênio perverso. Pode-se vê-lo também repetido no reverso das moedas persas de Artaxerxes [...]. O outro mostra um indivíduo barbudo estrangulando um leão. É Gilgamés, o Hércules da chaldéa, cuja lenda retumbante de façanhas emocionou os iranianos, quando conquistaram a planície do Eufrates. Mas foi esculpido para os edifícios persas e os seus traços, por lisonja, reproduzem o do grande Dário”(NORTE, João do. Op. cit.)

[12] Por apresentar um dano no material digitalizado, tornou-se impossível a leitura desta palavra, e devido a esse mesmo dano, as palavras assinaladas (*) tiveram que ser sugeridas pelo organizador.

[13] Esta frase revela o quanto Morales de los Rios se opunha à liberdade histórica. Torna-se notável que, para ele, a pesquisa histórica e a fidelidade estilística ocupavam locais importantes em sua atividade profissional. Ele acreditava que a arquitetura deveria possuir “verdade histórica” que acabava por torná-la diferente da pintura, por exemplo, na qual a liberdade compositiva do pintor permitia fantasias inadmissíveis no caso das artes tridimensionais, incluindo a escultura. Esse posicionamento fica bastante claro em seu “Projeto para o Monumento ao Almirante Barroso”. Ao fim do projeto descritivo, Morales aponta que no grupo escultórico que coroará o monumento, a figura do Almirante Barroso não poderia ser baseada na pintura heroica de Vitor Meirelles - Combate Naval do Riachuelo, 1883, hoje no Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Morales mostrava-se, portanto, altamente comprometido com a história, no sentido de que a atitude do Almirante, em verdade, não fora guerreira, mas sim calma, diferente da pintura de Meirelles, que trazia um Almirante audaz. Para chegar a essa conclusão, o arquiteto diz ter recorrido aos depoimentos de testemunhas e aos textos, segundo consta no projeto (MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Projeto de Monumento ao Almirante Barroso. Documentação datilografada, IHGB. 1907).

[14] No penúltimo parágrafo de seu texto, João do Norte cita o projeto de Morales em parceria com o escultor Bernardelli. Ele diz: “Diante do próprio restaurante Assyrio (?), há uma emenda ao erro de seu nome: nos baixos relevos das fachadas da Escola de Belas Artes, representativos de várias civilizações do passado, o que representa a Pérsia contém todos os motivos arquiteturais que estão lá dentro do Municipal. É uma repetição em conjunto do Apadana persa restaurado por Dieulafoy. O baixo relevo da Assíria mostra a porta do paço de Dur Sharrukin. É facílimo verificar isto.” (NORTE, João do. Op. Cit.) 

[15] A fachada principal e as laterais do prédio da Escola Nacional de Belas Artes, projetado por Morales, e que faz clara referência a uma das fachadas do Museu do Louvre, contém oito nichos que homenageiam as consideradas grandes civilizações antigas. Esses nichos, embora vazios, são encimados por um baixo relevo, de autoria do escultor Bernardelli, como comenta o arquiteto, e embaixo deles há o nome da civilização a qual o relevo se refere. De certa forma, esse é mais um dos reflexos que transparecem o apego que o arquiteto tinha ao estudo da História. Em texto elaborado a partir de uma entrevista concedida ao jornal O Imparcial em 1916, Morales argumenta que para irmos para frente precisamos olhar muito para o passado. Reconstruir é aproveitar terreno que já foi alicerçado”. Desta maneira ele revela o quanto o estudo da História era importante para a atividade do arquiteto. Sendo assim, nada melhor do que fazer uma homenagem à História na própria arquitetura, uma vez que era ela (a História) que fornecia a substância intelectual da qual a arquitetura iria se constituir (MORALES DE LOS RIOS, Adolfo. Presentes do Passado. O Imparcial. Rio de Janeiro, 2 jul. 1916, p. 5).

[16] Diferentemente do Restaurante Assyrio que se encontra conservado e fora, recentemente, restaurado, o Café Mourisco já foi demolido.

[17] Vide nota 1.

[18] Aqui Morales parece introduzir-se no ponto fulcral a ser desenvolvido no terceiro parágrafo seguinte: o tocante à diferenciação dos estilos de mesma origem - o Persa. Para ele, embora ambos os estilos sejam de origem persa, o que o fazem ser tão distintos diz respeito à referência histórica que serviu de base para a elaboração do projeto decorativo das obras arquitetônicas. Enquanto no restaurante foi optado pelo estilo da Pérsia antiga, no café optou-se pelo estilo da pérsia já dominada pelos muçulmanos - daí o dito estilo arábico-persa, que Morales localiza dentro de um amplo conjunto de manifestações arquitetônicas de influência árabe de acordo com o local em que esta influi. Neste momento observa-se uma das características próprias da historiografia acadêmica deste período: a tentativa de separação categórica dos estilos, tomando-os como um bloco hermeticamente fechado, no qual cada arquitetura deve ser inserida, como já foi falado no décimo parágrafo da Apresentação.

[19] Mais uma vez, Morales de los Rios se refere, desta vez diretamente, ao seu estudo “Ahura-mazda”.

[20] Em seu artigo, João do Norte se refere à “Almrahagda”. Coube a Morales de los Rios corrigi-lo.

[21] Morales de los Rios diz não concordar com a seguinte afirmação de João do Norte: “Que a arte assíria e babilônica tenha influído na arte persa, não há dúvida. Mas que um edifício persa possa ser chamado assírio, isso nunca. O Barroco e o Rococó saíram do Renascimento, porém ninguém diz que uma igreja é do estilo da Renascença, quando ela pertence a um desses dois” (NORTE, João do. Op. Cit.).