Misteriosas e Indomáveis: uma análise da representação do corpo de duas protagonistas machadianas - Capitu e Sofia

Natasha Santos, André Mendes Capraro, Fernando Renato Cavichiolli e Fernando Marinho Mezzadri

SANTOS, Natasha; CAPRARO, André Mendes; CAVICHIOLLI, Fernando Renato; MEZZADRI, Fernando Marinho. Misteriosas e Indomáveis: uma análise da representação do corpo de duas protagonistas machadianas - Capitu e Sofia. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/capitu_sofia.htm>.

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Introdução

                     1.            Em se tratando do século XIX, o exercício direcionado ao público feminino era quase inexistente, já que às mulheres estavam reservados os papéis de mãe e esposa, e era para isso que elas seriam educadas. Desse modo, o corpo feminino era, até então, percebido de maneira alheia por parte das próprias mulheres, salvas exceções, sendo a virgindade, qualidade inexorável ao considerado “sexo frágil” (GOELLNER, 2003).

                     2.            Na Europa, devido às dimensões da taxa de mortalidade entre as mulheres,[1] cuidados referentes à higiene e aos partos são aderidos e, mais tarde, é implantado o sistema de ginástica com aparelhos nas escolas (RAMOS, 1983). Isso sem citar a grande massa feminina que, juntamente com crianças, eram exploradas nas fábricas, em especial no ápice da Revolução Industrial. Quanto à identidade feminina, pode-se considerar que:

                     3.                                                  Com efeito, se no início do século se pensa que todas as mulheres devem ter uma mesma destinação, uma única tarefa, a de esposa e de mãe [...], no final do século, consciente das transgressões e da diversidade das escolhas femininas, propõe uma norma mais sutil, a que faz de cada história feminina um destino controlado. Poder-se-ia entender que é dada a liberdade ao indivíduo feminino, a quem se reconhece a escolha de um percurso pessoal. (FRAISSE, PERROT, 1991, p.20)

                     4.            Assim sendo, tem-se ao final do século, na França, uma mudança significativa nas concepções dessas mulheres, porém conta-se com fatores médicos, sociológicos e estéticos para determinar a essência do que viria a ser feminino. Desse modo, presas a delimitações comportamentais pré-estabelecidas, as mulheres apenas correspondiam às exigências sociais, salvas aquelas consideradas à frente do seu tempo, as “pré-feministas” (FRAISSE, PERROT, 1991).

                     5.            O corpo feminino, cujos prazeres eram condenados pela Igreja Católica e, consequentemente, pela própria mulher, tornou-se símbolo de pureza e fragilidade, correspondendo à imagem imaculada enaltecida por algumas artes do século XIX - particularmente no período romântico.[2] Para as mulheres o sexo estava previsto apenas com a finalidade de reproduzir. Sendo assim, o prazer nas relações sexuais, ou uma suposta afinidade por qualquer comportamento vinculado à sensualidade, estavam reservados apenas às mulheres “não virtuosas”.

                     6.            Partindo-se dessas edificações construídas no decorrer da história e refletidas na ficção, questiona-se: de que forma o corpo feminino é retratado nas obras machadianas Dom Casmurro e Quincas Borba? Tomando por foco suas protagonistas, Capitu e Sofia, buscou-se discorrer sobre a mulher dos oitocentos, usando como referência a imagem de personagens femininas criadas (pelo autor) e recriadas (pelos leitores) de acordo com a mentalidade masculina, correspondente à época. Para tal, contou-se com o apoio referencial da obra de Antonio Candido (2000), quanto à análise dos textos, investigando algumas complementações dessa imagem feminina a partir de algumas vertentes das artes visuais, cujas obras representavam mais do que apenas o corpo feminino.

Dos olhos de ressaca aos ombros de cera

                     7.            É característico de Machado de Assis, a complexidade psicológica de suas personagens, uma vez que analisa a alma humana de maneira profunda, o que revela, frequentemente, conflitos de pensamentos e dilemas morais dessas personagens. Ao mesmo tempo em que as delimita, ao assumir a objetividade correspondente ao período realista, estabelece uma amplitude quanto às interpretações e conclusões por parte dos leitores.

                     8.            Exemplo disso é a eterna dúvida sobre a traição de Capitu, em Dom Casmurro. Uns defendem. Outros atacam. Deve-se levar em consideração, o fato de que Bento Santiago, o Bentinho, protagonista e marido de Capitu, é o narrador da trama; e advogado de profissão - isto é, parte-se da ideia de que sabe persuadir, neste caso, sobre o caráter duvidoso da esposa.

                     9.            É atinente utilizar o conceito básico de Antonio Candido: fundir texto e contexto. Isto é, o advogado deveria ser a representação da certeza e da segurança, além de possuir um poder persuasivo bem-desenvolvido, partindo-se da qualificação destinada a um homem da lei. Entretanto, Bentinho representava exatamente o contrário: sua memória não era das melhores e demonstrava insegurança quanto à sua própria vida. Sendo assim, essa se torna uma situação paradoxal, na qual está embutida determinada crítica à sociedade de aparências, em que o cidadão confuso - o oposto do papel que lhe caberia desempenhar - atua em defesa da verdade absoluta e, principalmente, justa. Ou seja, alguém que cometeu uma injustiça consigo mesmo, sem sequer averiguar provas concretas para os fatos, devido à insegurança e às suspeitas frágeis tão bem alimentadas, era capaz de impor justiça a seus clientes e continuava sendo o doutor Bento Santiago.

                  10.            Capitu era filha de funcionário público, pobre, porém digna - também faz parte do rol de Machado associar a dignidade à vida modesta, talvez devido a sua origem paupérrima e sinuosa -, a moça se dedicava arduamente aos aprendizados condizentes às meninas da época, na concepção de Bentinho, uma maneira de ficar mais próxima a ele, já que a mãe do rapaz, dona Glória, era quem a ensinava.

                  11.            A título de esclarecimento, no final do século XIX, era de praxe que as garotas, abastadas financeiramente, aprendessem costuras, bordados e um pouco de Francês, em especial, para a leitura de romances. Cabe aqui lembrar que a moda e os costumes brasileiros eram inspirados na Europa, em especial França e Inglaterra (SEVCENKO, 1992; 1993; 1998).

                  12.            Capitu se mostra muito esperta e, mais ainda, curiosa em relação a esses afazeres e procura aprender as lições a fim de se equiparar às jovens da alta sociedade. Para tal, busca a ajuda da dona Glória, com a qual tem algumas aulas de bordado.

                  13.            Dona Glória era uma mãe dedicada, religiosa e recatada, dotada de habilidades domésticas. Correspondia aos padrões femininos estipulados para a época, características que não condizem com Capitu, nem com suas ousadias. Por outro lado, ao mesmo tempo em que dona Glória assume o papel adequado ao período, ela pode ser considerada uma exceção, pois assume os assuntos financeiros da casa, pelo fato de ser viúva, o que permite dizer que, de maneira bastante sutil, ela toma sobre si o papel de “homem da casa” - termo machista, indicativo do poder reservado ao gênero masculino.

                  14.            Segue o trecho descrito por Bentinho no livro Dom Casmurro:

                  15.                                                  Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava com trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes. (ASSIS, 1992, p. 21)

                  16.            E quanto às críticas discretas de Machado de Assis à sociedade da época em questão, tem-se o seguinte depoimento do professor doutor Basílio Losada:

                  17.                                                  [...] Vale dizer, não era um escritor de seu tempo, ainda que fosse também um escritor de seu tempo - a sociedade do Rio no Império com seus conflitos substanciais -, mas havia algo muito mais profundo: descobrir o outro lado da realidade, descobrir a face oculta das coisas. E isto numa linguagem cheia de ironia e de ambiguidade, uma linguagem prudente, nada definidora, que rompia com o que era tradição no romance realista europeu. (LOSADA, 2003)

                  18.            Isto é, há a possibilidade de que a postura adquirida por dona Glória, como as outras tantas assumidas pelas demais personagens, seja uma crítica à hipocrisia, retro-alimentada socialmente, quanto às divergências entre os comportamentos e os valores pré-estabelecidos pela própria sociedade.

                  19.            O casamento era a principal, senão única, aspiração feminina, além de ser o meio mais plausível para que as mulheres ascendessem socialmente, em outras palavras, o casamento poderia ser, também, um bom negócio. Era para isso que elas seriam preparadas e era isso, via de regra, o que elas esperavam de suas vidas, sendo a submissão voluntária ao marido, qualidade indispensável nessas mulheres (FILHO, 2001). Essa condição também é refletida nas histórias de Assis, em que a personagem feminina não trabalha e, se o faz, é devido a circunstâncias miseráveis e dignas de piedade.

                  20.            Em Dom Casmurro, as descrições quanto à indumentária de Capitu, são bastante utilizadas pelo narrador com o intuito de relembrar a condição financeira da moça. Em contrapartida a isso, ela é um primor. Sedutora e graciosa, é capaz de manipular pessoas e conseguir o que quiser - aqui, implicitamente, a ascensão social por meio de Bentinho, segundo o ponto de vista dele, “[...] talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada”. Poder-se-ia fazer um paralelo ao contexto do próprio autor, que passou por sérios preconceitos para se casar com Carolina, pelo fato de não ser suficientemente branco para se unir a uma moça branca e de família renomada.

                  21.            Mas talvez não fosse essa a intenção de Capitu - assim como é bem provável que não foi a de Machado -, uma mulher à frente do seu tempo, que foi exilada na Suíça, pelo autor, não só pela suspeita de adultério, mas, muito provavelmente, pela dificuldade de sobrevivência no país de origem, em virtude desse comportamento moderno. Prova disso é a vontade de aprender Latim - idioma ensinado, via de regra, aos que tinham acesso à escolaridade padrão, inclusive os meninos aspirantes a padres - e o fato de não compreender o motivo dessa restrição, já que, do seu ponto de vista, não haveria mal nenhum nisso. Entretanto, essa concepção de Capitu poderia ser, também, encarada como uma tentativa de ficar perto de Bentinho, cujo destino seria o seminário, o que, supostamente, fez crescer ainda mais o tal interesse pelo idioma.

                  22.            O trecho a seguir, do livro Dom Casmurro, mostra a descrição de Capitu sob o olhar de Bentinho:

                  23.                                                  Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda da época, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos (ASSIS, 1992, p. 29).

                  24.            Aqui o autor torna explicita a beleza de Capitu e o encanto de Bentinho - que assume o papel de narrador da trama -, desde moleque pela moça. Porém, Capitu se faz mais bonita do que realmente é; ela consegue cativar as pessoas pelo modo com que fala, age e, principalmente, encara - os olhos são uma das obsessões machadianas. Seus “olhos de ressaca”, assim definidos por Bentinho, possuíam uma força, bem como o mar quando revolto, que o puxava para dentro daquele abismo sem volta.

                  25.            Há ainda os “sapatos de duraque”, um material barato e, segundo a descrição, os sapatos são velhos; e as mãos, tratadas com água do poço e sabão comum, muito provavelmente, reforçando a ideia de pobreza e união por interesse - o que remete à idéia de traição em virtude do caráter duvidoso.

                  26.            Ainda nos fins do século, a mentalidade masculina foi tomada por uma forte obsessão no que concerne à imagem feminina, principalmente por causa da superioridade, própria do homem, que começava a se desfazer.

                  27.            Nas artes, a femme fatale representa a transposição artística da mulher “não-virtuosa” que só deseja o prazer sexual, a qual acaba por não valorizar os laços familiares, conduzindo o homem à ruína moral - fazendo-o objeto. São inúmeros os romances e obras plásticas que exibem essa mulher, como Nana de Zola; Salomé de Stuck; Ishtar de Khnopff; Eda de Camille Lemonnier; ou Condessa Vesper de Aluísio Azevedo. Pode-se deduzir que a “pureza primitiva” não pertencia ao espírito feminino. Nesse sentido, o corpo feminino acaba percebido como algo malicioso, relacionado a degradações, sobretudo morais, vinculadas aos sentidos (DAZZI, 2008).

                  28.            Outra mulher cujo pai também era funcionário público, é Sofia, de Quincas Borba, casada com, o também modesto, Cristiano Palha - que recebe esse nome em virtude do seu caráter duvidoso e tão frágil quanto a palha (ASSIS, 1995). Extremamente vaidosa e bonita, Sofia não se mostra tão interessada em aprender tarefas, senão as necessárias para sua inserção social, e já apresenta a formação básica imposta na época, porém aprendida em idade adulta.

                  29.            Gosta de ser vista e desejada, porém não tem a finalidade de trair o marido, a não ser a pura vaidade em se sentir cortejada. Palha, por sua vez, tenta empurrar a mulher para o adultério, tendo em vista fins lucrativos, e com a certeza de que essa traição, se consumada, seria apenas física, pois está certo de que Sofia o ama. Esse posicionamento do Palha, pode se referir, mais uma vez, a uma crítica sutil à hipocrisia de uma sociedade de aparências, que preza pela moral e pelos bons costumes, mesmo que sejam apenas superficiais - o suficiente para não ser apontado na rua.

                  30.            Rubião, protagonista da trama, herdeiro de uma fabulosa herança e vítima da ganância provinda do casal supracitado, apaixona-se perdidamente por Sofia. Esse sentimento deveras intenso, causa certa inversão de valores, já que Rubião passa a sentir ciúmes dos homens que ousam cortejar a dama, quer dizer, ele tolera a existência de um marido, mas não a de outros amantes. Ele presenteia a bela dama com as mais caras jóias, muito bem usadas por ela, sem o mínimo de receio diga-se de passagem, e apesar da repulsa pelo homem, sorri para si mesma ao se sentir tão adorada pelo matuto que enlouquece de amor e, por conseqüência, perde a fortuna herdada.

                  31.            Segundo o trecho extraído do livro Quincas Borba, Rubião nutre um fascínio descomunal pela amada:

                  32.                                                  Foi ela que me recomendou aqueles dois quadrinhos, quando andávamos os três, a ver coisas para comprar. Estava tão bonita! Mas o que eu mais gosto dela são os braços e os ombros, que vi no baile do coronel. Que ombros! Parecem de cera; tão lisos, tão brancos! Os braços também; oh! Os braços! Que bem-feitos! (ASSIS, 1995, p. 14).

                  33.            Sofia é formosa e sua presença torna as demais senhoras invisíveis, não apenas aos olhos de Rubião, mas do público masculino fictício, que aprecia sua aparência quase surreal, em meio a feitios tão normais e opacos. Seu olhar, por vezes, convidativo e evasivo, não se dirige para um único homem, provoca o instinto de vários. Um deles, Carlos Maria, com quem costumava dançar longos minutos, até “perdê-lo” para a prima de pouca cultura, vinda da roça, a quem ensinou as boas maneiras correspondentes à vida urbana.  É bem possível que Machado de Assis, como escritor preso ao cotidiano das cidades, o que seria uma exceção para a época, tenha permitido transparecer essa característica, ao estereotipar a prima Maria Benedita -, pois, o contexto é um “[...] elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2000, p. 6).

                  34.            O recalque por esse fracasso imaginário e comedido, torna clara, mais uma vez, a satisfação de Sofia em ser admirada pelos homens que a cercam. Lembrando que a dama não pretendia cometer o adultério propriamente dito, mas se manter musa - revelada apenas em olhares fervorosos - na lembrança masculina, como já se mantinha para Rubião. Como se pode concluir na partida dos noivos, Maria Benedita e Carlos Maria, para a lua-de-mel:

                  35.            Sofia não foi a bordo, adoeceu e mandou o marido. Não vão crer que era pesar nem dor; por ocasião do casamento, houve-se com grande discrição, cuidou do enxoval da noiva e despediu-se dela com muitos beijos chorados. Mas ir a bordo pareceu-lhe vergonha. Adoeceu; e, para não desmentir do pretexto, deixou-se estar no quarto (ASSIS, 1995, p. 148).

                  36.            Associando ao contexto em que o livro está inserido, essa é uma típica atitude humana: o desconforto ao se deparar com situações mal-resolvidas, em especial as que reafirmam a preferência por outrem, sobretudo alguém que lhe soa inferior.

                  37.            A prima, Maria Benedita, é aqui um típico exemplo feminino, tendo em vista sua submissão a Carlos Maria e seu esforço para que tudo esteja sempre ao gosto do marido. Por exemplo:

                  38.            - Você me perdoa? Perguntou a mulher, quando o viu fechar o folheto. Daqui em diante vou ser menos tagarela. Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindo e respondeu com a cabeça que sim. Foi como se lançasse uma onda de luz sobre ela; a alegria penetrou-lhe a alma. Dir-se-ia que o próprio feto repercutiu a sensação e abençoou o pai (ASSIS, 1995, p. 189).

                  39.            Esse excerto torna clara a submissão voluntária, por parte das esposas, segundo a qual, caberia à mulher fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para a estabilidade da relação. Novamente uma brilhante associação ao contexto da sociedade oitocentista.

                  40.            Não se pode dizer que Capitu e Sofia fossem femme fatale, entretanto essas personagens representam parte da obsessão sexual do homem moderno, que podia ser lida em Machado de Assis ou mesmo nas pinturas de Rodolfo Amoedo - pintor dos fins do século XIX e início do XX que encarnava o olhar dos jovens atrevidos, em suas obras (MIGLIACCIO, 2007).

Considerações finais

                  41.            Ambas as obras se passam no mesmo período em que foram escritas, ou seja, no tempo presente, no fim do século XIX, durante o segundo império brasileiro, o que as torna mais realistas e compatíveis à realidade em que o autor está inserto. A relação entre elas não é apenas temporal, mas, principalmente, moral. Tanto Dom Casmurro quanto Quincas Borba trazem uma crítica enrustida, porém ferrenha, no que se refere à reverência aos comportamentos sociais estabelecidos - mesmo que isso se dê apenas de forma simulada e moralmente inválida.

                  42.            Os livros em foco, também se assemelham quanto ao enredo, uma vez que ambas as histórias giram em torno de figuras femininas, isto é, mesmo não sendo, efetivamente, protagonistas das histórias, são elas que dão todo o sentido aos dilemas e às críticas tecidas. Entretanto, as obras não são intituladas por elas, mesmo sendo o centro das narrativas. A isso se pode atribuir dois fatores: o primeiro seria o papel ocupado pelas mulheres naquela sociedade, o qual não era de destaque e o título da obra seria um reflexo disso. Cabe a ressalva de que se buscava por uma “mulher-objeto”, sem vontade própria, sequer questionamentos. Ou, então, o simples fato de que os títulos se apresentam como um resultado - no caso de Dom Casmurro, apelido referente à amargura expressa por Bentinho - ou um início - Quincas Borba, de quem Rubião herdou a cobiçada fortuna - da influência dessas mulheres, Capitu e Sofia, nas “tragédias” subsequentes.

                  43.            Ao contrário de Quincas Borba, Dom Casmurro apresenta um narrador que também é personagem da obra, isto é, Bentinho não tem acesso às transparências das personagens e se o tivesse, todo o seu drama em torno da suposta traição de Capitu não existiria. Já em Quincas Borba, o narrador é onisciente, ou seja, está alheio ao universo narrado e expõe as intimidades das personagens ao leitor e, naturalmente, essas particularidades são desconhecidas entre as personagens.

                  44.            As obras machadianas se adequam a praticamente todos os gêneros literários, devido à mescla de traços característicos de cada um. Quanto às prosas, teve duas fases: uma romântica e outra realista, embora suas obras não correspondam completamente à classificação quanto a uma escola literária - como é o caso de Quincas Borba e Dom Casmurro.

                  45.            Em oposição aos romances românticos, as figuras femininas em pauta não são descritas como divindades inatingíveis, sequer assumem a postura de lutar pelo amor acima de todas as coisas. Aqui, apesar de irreais, elas são descritas de acordo com os conflitos intrínsecos, somados aos da vida em sociedade, em especial, os de caráter, por vezes, relacionado diretamente à ascensão social e hipocrisia aos valores tão bem defendidos.

                  46.            Embora a mulher do século XIX fosse submissa ao homem e à sociedade de um modo geral, ela é retratada, por Machado de Assis, como manipuladora das atitudes e desejos masculinos. Isto é, mesmo devendo obediência, a mulher tinha o domínio camuflado das situações, era capaz de manter seus mistérios corriqueiros, não grandiosos segredos, mas detalhes que se faziam anônimos, além de provocar e, desse modo, fazer-se indomável aos olhos do sexo oposto.

                  47.            Embora se conheça apenas a Capitu do ponto de vista de Bentinho, ela era bela, bem como Sofia, o que não é de espantar, partindo-se do pressuposto de que elas se referem a imagens confeccionadas por Machado de Assis, que acaba por anunciar um outro lado masculino. O mistério, somado à beleza, são atributos que encantam e inebriam a alma do homem - representada por Machado. Essas mulheres existiram apenas no papel, em um misto de fantasia e desejo intrínsecos do próprio autor.

                  48.            Essas imagens recriadas pelo autor, podem ser explicadas pelo fato de que, naquele período, o público a quem esses romances alcançariam, eram, em grande parte, as mulheres pertencentes à elite da época. Quer dizer, além de Assis revelar o lado oculto masculino - escondido por trás das atitudes exibidas comumente -, ele torna a presença feminina dominante, com uma sensualidade extrema e livre (LOSADA, 2003). Esse atributo é capaz de atrair o interesse da leitora e criar certa cumplicidade com o seu público cativo por meio de diálogos, “a leitora, que é minha amiga [...]”, que estabelecem um tom de veracidade maior no discurso fictício, neste caso uma façanha de Bentinho para persuadir a leitora sobre a suposta traição de Capitu; isso sem citar a questão da aceitação do público, o que intervém diretamente nas características da obra.

                  49.            Como já se sabe, Machado de Assis buscava, em seus textos, uma tênue ironia ao contexto, e essa sutileza se pauta na amplitude das delimitações feitas por Assis, permitindo leituras distintas, de acordo com a bagagem cultural do leitor.

                  50.            Ainda em seu depoimento, Basílio Losada completa:

                  51.                                                  Assim, o que Machado de Assis sabe perfeitamente, é que por trás do que a sociedade nos fez ser, dos elementos que tivemos que construir, nós mesmos, para sermos apresentáveis na sociedade, há sempre uns tremendos abismos [...] Não é um escritor provinciano, de uma província da literatura, quero dizer, é pai de uma literatura, e em certa medida, pai de um país que se encontrou a si mesmo lendo e analisando a obra de Machado de Assis, e descobrindo em seus poços escuros esses abismos inquietantes que existem sob a aparência de serenidade e de conformismo social (LOSADA, 2003).

                  52.            As atitudes e posicionamentos da humanidade se moldam às exigências sociais, enquanto as preferências pessoais de cada indivíduo são dissimuladas, a fim de uma inserção bem-sucedida - hipocrisia.

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 13ª edição. São Paulo: Editora Ática, 1995.

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 26ª edição. Rio de janeiro: Editora Ática, 1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro).

DAZZI, Camila. “Augusta Meretrix” - Decadentismo no Meio Artístico Brasileiro Finessecular. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_messalina.htm>.

FILHO, Domício Proença. Capitu, a moça dos olhos de água. In: MOTA, Lourenço Dantas; JUNIOR, Benjamin Abdala. (Org.). Personae: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Senac, 2001. p. 69 - 99.

FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle. História das mulheres: o século XIX. Porto: São Paulo: Afrontamento, 1991.

GOELLNER, Silvana. Bela, maternal e feminina. Imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuú: Editora da Unijuí, 2003.

LOSADA, Basílio. Depoimentos. Disponível em: <http://www.machadodeassis.org.br/>. Acesso em: 18 dez. 2007.

MIGLIACCIO, Luciano. Rodolfo Amoedo. O mestre, deveríamos acrescentar. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/ra_migliaccio.htm>.

RAMOS, Jayr Jordão. Os Exercícios Físicos na História e na Arte. São Paulo: Ibrasa, 1982.

RIBEIRO, Luís Filipe. Mulheres em Machado de Assis: um desejo masculino... Mulher, gênero e sociedade. 1ª edição. Rio de Janeiro: Dumará distribuidora de publicações Ltda, 2001. p. 137 - 146.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

____. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 1993. 

____. (Org.). História da vida privada no Brasil. Vol. III. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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[1] Eterna enferma, a mulher da época tem uma taxa de mortalidade superior à dos homens: a tísica, a tuberculose, a sífilis (transmitida pelo marido) e as próprias condições de vida que lhe são impostas desde o nascimento contribuem para isso (KNIBIEHLER Apud FRAISSE, PERROT, 1991).

[2] Como por exemplo, A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, considerado o primeiro romance significativo nacional, em que o sofrimento por um amor impossível se transforma na felicidade absoluta dos indivíduos. Ou ainda, Álvares de Azevedo, com o livro Lira dos Vinte Anos (1853), que em sua primeira parte revela um rapaz sensível e sonhador que vê na imagem da virgem pálida e idealizada a possibilidade do amor.