Desconstruções e reconstruções do Brasil: a caricatura e o monumento equestre a D. Pedro I

Rosangela de Jesus Silva *

SILVA, Rosangela de Jesus. Desconstruções e reconstruções do Brasil: a caricatura e o monumento equestre a D. Pedro I. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/aa_pedroi.htm>.

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Talvez a grande singularidade de Angelo Agostini (1842-3?-1910) na imprensa ilustrada oitocentista esteja na manipulação e utilização das imagens. O caricaturista de origem italiana e naturalizado brasileiro poderia reproduzir, nas páginas de seus periódicos, imagens do cotidiano das pessoas, imagens criadas por outros, até mesmo retratos, mas fazendo um novo uso dessas, fornecendo-lhes assim um novo discurso, um novo lugar. Ao mostrar ao público algo que ele já conhecia, trazia conforto e condição de reconhecimento. Ao desconstruir, ou reconstruir essas imagens propunha novas interpretações e reapropriações, bem como o incômodo de uma nova assimilação.

Um exemplo original de ressignificação de imagens feito pelo caricaturista certamente foi aquele acerca da Estátua equestre de D. Pedro I [Figura 1], símbolo da independência do Brasil. A obra está localizada na praça hoje conhecida como Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Foi realizada pelo escultor francês Louis Rochet (1813-1878), a partir do projeto do professor da Academia Imperial de Belas Artes João Maximiano Mafra (1823-1908), e inaugurada em 1862. A estátua é composta por uma base na qual figuram índios que representariam quatro grandes rios brasileiros (Amazonas, Madeira, São Francisco e Paraná), diversos animais como jacaré, anta, tamanduá, tatu, aves, etc. Há também, no alto do pedestal do monumento, os brasões das vinte províncias imperiais. Sobre esta base está a estátua equestre de D. Pedro I, o qual segura com a mão direita a declaração de independência e com a esquerda as rédeas do cavalo .

O projeto do monumento, de acordo com Luciano Migliaccio, faria parte de uma política cultural de caráter nacionalista e civilizatória iniciada no governo de D. Pedro II, onde a imagem do índio surgiria como alegoria do Estado, símbolo da identidade brasileira.

Neste programa são evidenciados os conceitos que inspiram a ação social do soberano, através de personificações e representações de figuras históricas, em sintonia com a iconografia dos monumentos públicos promovidos pelas instituições estatais nas cidades européias da época. É abandonada a representação devota da imagem sagrada presente nas instituições religiosas da fase colonial em favor da representação personificada de conceitos racionais, conforme a orientação cívica, didática e filosófica da arte neoclássica.[1]

Paulo Knauss, no artigo A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX, recupera a história do monumento desde sua idealização, oferecendo ao leitor uma descrição detalhada da festa de inauguração da obra, onde uma multidão esteve presente. Segundo o autor, a importância desse conjunto escultórico, o qual marcou a história da escultura brasileira, se deu

Não apenas por seu tamanho, materiais nobres e qualidades artísticas. A estátua equestre de D. Pedro I, também abriu a era da escultura cívica de lógica monumental que mobilizava a sociedade em torno do culto da nação. A marca destas imagens é se caracterizarem, também, como representações do passado que afirmam leituras da história.[2]

Segundo Le Goff, o monumento seria “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar” (LE GOFF, 1992, 535); seria intencional, de forma que, no plano simbólico, nada seria mais representativo do Império brasileiro do que esse monumento em meados do século XIX, ou seja, objeto perfeito para atender aos interesses de um caricaturista em criticar as instituições responsáveis pela manutenção de tudo o que representava o governo de D. Pedro II. Além da significação que a obra propunha, é preciso salientar o alcance visual da mesma, pois figurava em um espaço público, de ampla circulação, de modo que todos que viviam na corte conheciam o monumento em seus menores detalhes. Uma imagem como esta ofereceria, através do lápis litográfico, um potencial gigantesco de comunicação com a população. Afinal, quanto mais próximo do público e mais facilmente reconhecível, maior poderia ser o sucesso de uma caricatura, tudo dependeria da maneira como trabalhar a imagem, com quais intenções e para qual público.

As revistas ilustradas na segunda metade do século XIX eram um empreendimento caro. Mesmo com a popularização das impressões facilitadas pela difusão da técnica litográfica, um jornal sem imagens apresentava um preço menor do que uma publicação ilustrada. No entanto, as imagens ofereciam um grande potencial de comunicação com o público, de maneira que mesmo com um menor número de revistas, seu alcance poderia ser muito superior ao número de exemplares vendidos. Através de seus desenhos, mesmo um público não letrado poderia ter acesso às discussões ali apresentadas.

Diante do exposto, não foi por acaso que esse grupo escultórico apareceu seis vezes na Revista Illustrada durante o Império, ocupando as duas páginas centrais ou a capa, tendo sido evocada num espaço de tempo de dez anos, entre 1878 e 1888, quase sempre por ocasião das comemorações da independência do país, no mês de setembro. Retornaria, anos mais tarde, nas páginas do Don Quixote, porém em um contexto e com propósito distintos, os quais serão levantados adiante. O valor documental que esses registros gráficos adquirem permitem ao pesquisador questionar sobre o poder de atuação da monarquia e seu discurso sobre a imprensa da época, fazendo com que um crítico do governo, como foi Angelo Agostini, reconsiderasse seu posicionamento, como será mostrado a seguir.

A primeira imagem foi publicada em 7 de setembro de 1878, por ocasião da comemoração da independência, tendo preenchido as duas páginas centrais da revista [Figura 2]. Foi também precedida por um comentário, onde seria o editorial da revista, cujo conteúdo parece relevante conhecer:

Há cincoenta e oito annos....

Dizem: o Sr. Macedo, em sua historia; e o Laemmert em seu almanach...

.... Que temos a nossa independência. Proclamada por Pedro I, segundo uns; por José Bonifacio, segundo outros, Por ambos, de collaboração, attesta o bronze esculpido pelo Sr. Rochet.

Três versões em pouco mais de meio século, e tão verossímeis todas, que o verdadeiro é não crer em nenhuma d’ellas.

A independência de um povo é tão grande empresa, que é impossível admittir que a nossa fosse obra de um individuo isoladamente.

[...]

Infelizmente porém os compêndios de historia, parecem todos escriptos por Trancoso.

E como supplemento á historia, vem logo a bajulação encarapitando Pedro I n’um Cavallo de bronze, quando a sua predilecção era pelas eguas.

Os historiadores mentem, os palacianos tratam de ilustrar mentiras.

É assim que Pedro I acha-se no largo do Rocio a fiscalizar os kiosques que vendem bilhetes falsos.

O povo impoz-lhe a independência, e elle aceitou-a, porque aquillo que não se póde ter, dar-se pelo amor de Deus.

Agora o que a história não diz, é que o nosso primeiro imperador tinha todos os vícios e nem uma qualidade soffrivel.

Mas é systema: cada individuo procura pagar pouco para ter um bom criado; a nação paga muito para ter um amo péssimo![3]

O texto é bastante ácido com relação à figura do primeiro Imperador do Brasil: além de questionar o papel de D. Pedro I na independência, aponta na escolha de sua imagem para ilustrar um monumento pura bajulação. Enxerga falseamento na figura do Imperador, na forma de representá-lo e no seu entorno. Palavras que desacreditavam totalmente o governo instaurado no Brasil.

O caricaturista opta por mostrar uma das faces do pedestal em diagonal, de maneira que parte da outra face também apareça. Há uma desconstrução das figuras que compõem a base, pois os quatro índios que aparecem estão voltados para os personagens que estão em frente ao monumento, como se estivessem curiosos para ouvi-los. O casal de índios de frente se inclina para trás, apoiando-se no pedestal e sobre os ombros da índia uma criança ergue sua mão direita em direção ao personagem que representa o país, como se quisesse tocá-lo. Na escultura de Rochet, a criança está nas costas na índia e tem a cabeça apoiada sobre a cabeça desta, não apresenta qualquer interação fora do seu grupo. À direita, na outra face do pedestal, um índio se volta para observar o que o grupo está fazendo e, à esquerda, aparece a cabeça de outro índio, bastante curioso, o qual não poderia estar ali, já que a parte do monumento onde este figuraria não está desenhado na imagem. No monumento de Rochet, os índios presentes em cada face estão voltados para frente, nenhum esboça qualquer movimento de aproximação ou interação com outras faces da escultura - são grupos distintos.

A imagem de D. Pedro I, bem como a do cavalo, também foram totalmente desconstruídas. O Imperador não está montado no cavalo, mas sentado no pedestal, inclinado para baixo. O cavalo não lembra em nada a altivez, força e beleza do cavalo feito por Rochet. Aparece em diagonal, com a parte traseira voltada para o leitor, está magro, tem as quatro patas apoiadas, a crina é rala e está caída ao longo do pescoço do animal, o qual tem a cabeça voltada para baixo e bastante triste.

Todo o grupo escultórico está voltado para um índio paramentado com penas e manto, o qual segura um papel grande, provavelmente um discurso, na mão direita e um ramo de flores na esquerda, o qual é ofertado a D. Pedro I. O índio está de pé, sobre um pedestal, formado por degraus e forrado com um tapete, de maneira a ficar mais próximo do Imperador. Na base dessa escada, aparecem cinco figuras de costas: uma delas segura uma arma e está fardado como uma autoridade militar; ao lado desse, figuram outros quatro, mas com roupas e chapéus utilizados pelos ministros do Império. Escondidos atrás do manto do índio aparecem a alegoria da política e um ministro. A primeira segura uma corrente que está atada aos pés do índio que representa o país, usa uma coroa e tem uma expressão de alguém que está tramando algo, algo sórdido. O olhar dessa figura chama a atenção pela força que tem, mistura algo de loucura e de diabólico ao mesmo tempo. Acima desta está o ministro do Império, o qual parece ditar as palavras que deveriam ser ditas pelo índio que representa uma alegoria do Brasil.

Se o leitor apresentasse qualquer dúvida com relação ao que a imagem sugeria, ou seja, um país enfeitado com os símbolos do poder, mas totalmente alijado deste, as legendas viriam para reforçar o discurso que a imagem sugeria. Em um diálogo entre o país e D. Pedro I, quem dava as respostas era o governo, representado pelo ministro:

O Paiz - Neste dia memoravel e solemne, nest.....

D. P. I - Muito bem... Mas dispenso o discurso. Como vae você com a independencia?

O governo - Diga: bem, muito obrigado.

O Paiz - Bem, muito obrigado

E, por fim a conclusão daquela situação: Coitado! Julga-se independente, e está mais escravisado do que nunca ao poder mais funesto que impera no Brazil!

Com exceção da figura da política, que foi uma criação do caricaturista, não há nenhum outro elemento estranho, que não fosse conhecido pelos leitores da revista. E é justamente, nessa figura alegórica que se concentra a crítica mais contundente. A presença da corrente nas mãos da política fazia uma alusão ao problema da escravidão. É também o personagem com a expressão mais inquietante, maquiavélica, a grande definidora da questão, pois estaria em suas mãos a resolução do problema em torno da independência do país, ou seja, colocar fim ao sistema escravista.

O índio alegórico que representa o Brasil, na imagem, não passaria de um joguete nas mãos do governo, sem autonomia, preso aos grilhões da corrente política. Embora seja apresentado como uma figura importante, no alto do pedestal, tenha paramentos nobres e ostente uma postura altiva, tem às suas costas a política e o governo, os quais decidiriam seus caminhos; além disso, prestaria homenagens a um político que muito pouco teria feito por ele.

É bastante curiosa a relação que o caricaturista parece propor do país com seus monumentos expostos aos olhos do leitor. O primeiro homenageia o segundo, e este por sua vez, hesita em aceitar, dispensa o discurso de homenagem e questiona sobre como estaria a independência do Brasil. Por que alguém que já teria estado no comando do país teria dúvidas sobre sua condição independente? Nem mesmo o Imperador, o qual teria estado à frente do governo, acreditaria nas ações deste. Descortinar-se-ia uma relação falsa, onde estariam presentes a desconfiança e a insegurança. Surgiriam então questionamentos: Os heróis e símbolos do país estariam, verdadeiramente, representando-o? O país teria feito as escolhas certas? Harmonia e sinceridade não deveriam pautar tal ligação? E como ficaria o cidadão diante desse conflito? Como se posicionar? Para o caricaturista, o Brasil parecia ser a grande vítima, sem sorte com seus governos e com seus heróis.

Não aparecem na imagem deformações, exageros, como o termo caricatura sugere. O caricaturista coloca o leitor diante de uma bela composição, mas também de uma grave questão. A crítica é clara e direta, tira o leitor de uma posição de conforto, afinal onde estariam os cidadãos do país? A situação cômica que surge, logo a primeira vista, pela desconstrução do importante monumento, torna-se depois motivo de grave reflexão.

Dois anos depois, novamente esse monumento voltaria a ser invocado por Agostini, o qual propõe uma nova escultura, nos mesmos moldes da anterior, para ser colocada lado a lado, fazendo um “pendant” [Figura 3]. Na capa do periódico, aparece um político do Império, Martinho Campos[4], montado sobre um negro, de quatro como um cavalo, tendo correntes presas aos seus pés, mãos e uma no pescoço, que servia como rédea para o cavaleiro. Este tem na mão direita um chicote e com a esquerda segura a corrente presa ao pescoço do negro, usa botas e chapéu como um fazendeiro usaria. As figuras encontram-se sobre um grande pedestal onde se lê, logo abaixo das figuras: “Escravidão ou Morte”. Observa-se, ainda, que há índios na base do pedestal, todos sentados em uma posição bastante desoladora, dois deles apoiam a cabeça, com uma das mãos, como se estivessem muito tristes, e o índio da esquerda está com a cabeça baixa e os braços cruzados na frente do corpo, em total isolamento. A posição em que se encontram os índios lembra a Melancolia de Dürer [Figura 4], todos isolados em seu próprio universo, totalmente compenetrados, com a diferença que a figura de Dürer olha para um horizonte perdido e as do caricaturista para baixo, em total desânimo. A figura que apresenta mais energia e algum entusiasmo é a de Martinho Campos que aparece na mesma posição da Estátua equestre de D. Pedro I, a qual pode ser observada ao fundo, apenas esboçada, o suficiente para que o leitor possa lembrar e fazer a comparação.

O caricaturista propõe a aproximação do símbolo monarquista com a escravidão e, para não deixar qualquer dúvida, escreveu o seguinte comentário:

Projecto de uma estátua eqüestre para o illustre chefe do partido liberal. Esta estatua deve fazer pendant com a de Pedro I e será collocada no dia 7 de setembro de 1881.

A iniciativa dos illustres fazendeiros de cebolas é que devemos mais esse monumento das nossas glorias.

Nas duas caricaturas sobre o monumento, a questão da escravidão se fez presente, e, nessa última imagem, de maneira ainda mais explícita, através da crítica ao partido liberal, o qual, segundo o caricaturista nada teria feito para colocar fim àquele sistema de trabalho responsável pelo atraso do país. Na página dois, os comentários sobre essa questão foram reforçados:

Eu tinha razão: o governo triumphou de todos os obstáculos.

Os horisontes momentaneamente ennegrecidos pelo projecto Nabuco, aclararam-se de novo; e o Sr. Saraiva continua a não pensar na substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.

É muito mais commodo.

Depois, o partido conservador já tem feito tanto pelo programma liberal que bem merece se lhe deixe, a elle o cuidado de extinguir de todo a escravidão.

Eusébio de Queiroz abolio o trafico, o Sr. Rio Branco libertou o ventre; e o quando mais tarde se perguntar aos liberais o que fizeram pela extincção d’essa chaga, elles dirão como o Sr. Martinho Campos:

- Fomos muito amigos dos escravos.

E realmente tão amigos, que tudo fizeram para sempre os ter - escravos![5]

No ano seguinte, 1881, o monumento reapareceu nas páginas centrais da revista, por ocasião das comemorações da independência, de maneira totalmente subvertida [Figura 5]. Todas as figuras que compõem o monumento saem de sua posição original, tentando se proteger dos fogos de artifício - utilizados pela população e pelo poder imperial para lembrar e comemorar o Sete de setembro. A imagem explora bastante os efeitos de claro-escuro. Os clarões seriam provocados pelos fogos de artifício que atravessam toda a composição, deixando um rastro de fumaça, o qual ofusca algumas partes do monumento sem prejudicar a visualização do conjunto. A cena apresentada é de total confusão, os índios da base escalam o monumento para tentar se esconder sob o cavalo de D. Pedro, bem como uma onça pintada, bastante assustada. O jacaré parece querer saltar do monumento, enquanto o tatu parece querer entrar na escultura. Em primeiro plano, aparece uma índia de frente, retorcendo o corpo para se segurar no alto do pedestal e seu filho está agarrado em seu pescoço, tendo conseguido escapar, por muito pouco, de um foguete que passou a alguns centímetros. No alto da estátua, o sufoco não foi menor, D. Pedro I tenta se equilibrar no cavalo, abraçando-lhe o pescoço, ao passo que este empina assustado em meio a tantos fogos. O caricaturista satiriza com muito humor o monumento, colocando em sérios apuros o primeiro imperador do Brasil. Na legenda, fez a seguinte observação: “A brava gente não tendo até hoje achado outro modo de manifestar o seu enthusiasmo se não por meio de foguetes, o brônzeo monumento da independência e todo o seu sequito, acabarão um dia por escamar-se deveras.”

Nesse mesmo número da Revista Illustrada, na última página, as comemorações da independência foram retomadas, agora de uma maneira não cômica, com uma crítica mais direta e ácida. Os desenhos estão em diálogo, pois o que o caricaturista fez foi primeiro mostrar o detalhe do que ocorria com o monumento, para depois mostrar a praça onde ficaria o monumento, em uma visão geral, porém com um elemento alegórico em primeiro plano, cujo objetivo era o ataque direto à coroa brasileira, literalmente [Figura 6].

O caricaturista apresenta um fundo nebuloso, onde é possível identificar apenas alguns elementos: à esquerda, a Estátua eqüestre de D. Pedro I, rodeada de fumaça - provável resultado da quantidade de fogos de artifício utilizados na comemoração - e logo abaixo o esboço de uma tropa militar desfilando, identificável, sobretudo, pelas baionetas. Mas foi para o primeiro plano que o caricaturista reservou o desenho mais impactante, uma enorme coroa composta por grades e enfeitada por duas bandeiras do Império e no topo uma pequena cruz. Dentro da coroa um índio, preso, olhando para os festejos e ao seu lado, um negro, cabisbaixo, totalmente alheio às comemorações. Na base da coroa, um trinco fechado. Se, na primeira imagem, o caricaturista apenas brincou com as figuras do monumento de D. Pedro I, nessa segunda foi extremamente direto na sua crítica à monarquia e seus representantes. Na legenda, retoma qual seria o real sentido para o país nos festejos da independência: “O paiz, que não vê festejar o dia 7 de setembro senão pelo canhão e foguetório official, começa a comprehender que a sua independência só se traduz em fumaça, em muita fumaça...”

Se, na composição cômica, não apareceu qualquer elemento que lembrasse a escravidão, a última imagem tornou tal fala explícita, evocando mais uma vez um discurso que culpava a monarquia pela continuidade do trabalho escravo e consequente atraso do país, afastando-o do caminho da civilização.

A questão da escravidão foi tema frequente nas páginas da Revista Illustrada. Agostini teve uma atuação próxima de grupos abolicionistas que buscavam o fim da escravidão através de um meio legal, próximo de nomes como o de Joaquim Nabuco (1849-1910). O caricaturista divertia o leitor, mas não sem chamá-lo para uma reflexão, desinquietá-lo.

Ficamos sempre muito satisfeitos, quando se nos acha alegres e de bom humor; mas penhora-nos sobre maneira, se entre as observações e gracejos da Revista Illustrada alguém descobre um fundo de verdade e de justiça, podendo ter influença sobre o espirito publico, pois é este o programma que procuramos realisar.[6]

Angelo Agostini sabia do poder de sedução que a imprensa ilustrada tinha sobre o público, por isso não hesitou em utilizar sua habilidade artística como um instrumento de convencimento e persuasão das pessoas em torno dos seus projetos, de seu ideário. Em um conjunto de imagens como as apresentadas acima, fica clara a estratégia do caricaturista. Primeiro, conquistaria o público com o riso, para em seguida mostrar-lhe como um divertido festejo comemorativo poderia revelar uma face perigosa do governo, o qual teria optado por divertir o povo ao invés de melhorar a sua vida, de afastar as mazelas que impediriam o país de crescer e prosperar. Não fosse a sagacidade do lápis do caricaturista, parece afirmar a revista, a população poderia ter sido enganada mais uma vez. Diante desse raciocínio a imprensa teria grande importância pois sua tarefa seria a de alertar sobre os desvios do caminho da civilização, bem como atuar como a luz que iluminaria, guiaria e direcionaria. Em maior ou menor grau, esse discurso esteve sempre presente na obra de Angelo Agostini.

Em novembro de 1881, a imagem voltaria a se repetir, em mais uma crítica à monarquia [Figura 7]. Dessa vez, todos os personagens do monumento se voltariam contra uma multidão furiosa, a qual carregava paus nas mãos e atacavam, uns aos outros. Até D. Pedro I desceria do seu cavalo, empunharia a espada e se voltaria para a multidão. Um dos índios resgata um homem da multidão - provavelmente o orador de um meeting republicano, José Lopes da Silva Trovão (1848-1925)[7] -, enquanto os outros parecem argumentar ou discutir com a massa. Os animais se colocam em posição de ataque contra aquelas pessoas prontas para invadir a cerca que protege o monumento. Na legenda a descrição do episódio:

O meeting do dia 30 de outubro no Largo da Constituição. Pedro 1º, vendo um grupo de desordeiros, apoiado pela polícia, attacar um cidadão no exercício pacífico de seus direitos civis, políticos e oratórios, aos gritos de viva a monarchia, esteve quase a metter a espada em todos esses monarchistas e gritar: Viva a República!

O caricaturista afirmaria que a fúria monarquista estaria assumindo tal grau que até mesmo D. Pedro I se indignaria com este fato, desejando, para que tudo aquilo tivesse um fim, a República. A afirmação, de tão absurda, assumiria ares cômicos, ou seja, nem mesmo os monarquistas se suportariam, ou acreditavam naquele sistema de governo. Tudo isso teria ocorrido em reação ao discurso do republicano Lopes Trovão, ocorrido no Largo da Constituição, para sensibilizar a população em torno da causa republicana, já que ocorreriam eleições naqueles dias. Os monarquistas teriam reagido com violência. Segundo relato da Gazeta de Notícias:

Pouco depois das 5 horas da tarde assomou o Dr. Trovão à tribuna que improvisára, junto à estatua do fundador do império. As suas primeiras palavras, convem notar, eram de ordem. [...]

Pouco depois, porém, um grupo numeroso interrompeu o orador apupando-o, e entraram os que  formavam esse grupo a fazer tropelias, aos gritos de viva a monarchia e fora a republica. Foi assaltada a mesa sobre a qual se achava o  ordador e este teve de refugiar-se dentro da grade que cerca a estátua.[8]

Outra crítica que aparece nessa legenda e se repete em vários outros números das revistas de Agostini, mesmo depois da República, seria contra a força policial, a qual era acusada de não evitar, e às vezes de incentivar a desordem pública:

Os capoeiras, tristes pela paz das eleições, consolaram-se quebrando typographias e fazendo mil das suas; aos gritos alegres de viva S. M. o imperador!

É a nostalgia da desordem e da navalha.

Mas o que é sobretudo grave é que, em quanto esses attentados se commetteram à vista de todos, a policia venha dizer-nos n’uma nota inserta em todos os jornaes, que não conhece os criminosos e que chega sempre tarde em socorro das typographias!

Esta nota cheia de alarmas permitte-nos de ver claramente nos negócios da policia e de medir d’uma vez a utilidade do nosso paternal chefe de policia, que todo entregue ás suas aspirações, nos garante a chança de sermos impunemente assassinados nas nossas casas, em pleno dia, ruidosamente, ao som de viva S. M. o imperador! Porque os seus delegados, como os carabineiros de Offenbach, chegam sempre demasiado tarde ao socorro dos particulares.[9]

Um monumento público teria sido solicitado para mostrar-se como testemunha do que estaria ocorrendo nas ruas da cidade, sem que qualquer autoridade, política ou policial tomasse providências a fim de evitar tais situações. Abre-se, assim, uma discussão acerca da utilização dos espaços públicos. O caricaturista os apresenta como locais de construção de memórias, através da instituição de monumentos, mas questiona as manifestações públicas nesses espaços, chamando-as de “desordem”, as quais deveriam ser contidas por força policial. A fim de evitar aquele tipo de conturbação, o caricaturista evoca a autoridade, mesmo que seja a de D. Pedro I, várias vezes questionada. Afinal, só ele estaria vendo o que ocorria e, por isso, tomava uma atitude desembainhando sua espada.

Em 1886, a imagem do monumento voltaria às paginas da Revista Illustrada, numa composição em que os personagens demonstraram interação [Figura 8]. Todos os índios aparecem fora do pedestal, ao redor do monumento com braços e rostos voltados para o alto, olhado e dando vivas a D. Pedro I. Até os animais se voltam para o imperador reverenciando-o. Este por sua vez, assim como seu cavalo cumprimentavam os índios e animais, em sinal de agradecimento. O cavalo equilibra-se em três patas, semi-flexionadas, levanta a pata dianteira direita, e abaixa a cabeça. D. Pedro tira o chapéu e também se inclina para baixo, reconhecendo as reverências feitas pelo grupo abaixo.

Na legenda a constatação de algo diferente das outras vezes seria destacado pelo caricaturista:

No dia 7 de setembro. - Vendo a indifferença da brava gente moderna para o grande dia da Independência, os índios do pedestal festejaram elles mesmos o seu monumento, soltando os vivas do estylo.

D.Pedro I, houve por bem gradecer a manifestação. (Dizem que elle mesmo a mandou fazer).

O primeiro ponto seria a qualificação conferida ao povo: “brava gente moderna”. Ora, teria a população começado a se dar conta dos alertas dados pelo caricaturista acerca da farsa que seria aquela comemoração? O adjetivo “moderna” designaria um avanço da população na busca de civilizar-se? Os únicos a prestarem homenagem teriam sido os índios e os animais, ambos considerados selvagens.

A segunda questão seria: os índios teriam se manifestado porque faziam parte daquela Independência e assim se reconheciam, ou teriam apenas respondido a uma imposição do Imperador? Para não colocar em dúvida o que sugeria a imagem, o caricaturista sempre encontrava uma forma de reafirmar suas colocações:

A data da nossa independência esteve, este anno, muito característica!

O dia amanhecceu bisonho, e passou-se de um modo, que ninguém podia dizer se era dia de trabalho, se de festa, se de regosijo ou se de penitencia. Algumas bandeiras velhas nas repartições publicas, alguns escravos libertados pela camara municipal e profunda apathia na população, eis como se commemorou essa data, a que uma folha chama, e muito bem, a da nossa supposta independência!

Pelo que foi esse dia, faz-se uma idéia perfeita do Brazil.

Profunda tristeza no povo, por ver as suas regalias, todas empalmadas, e por só ter uma esperança, muito longínqua, de melhorar de sorte, e libertações de alguns escravos, ao fim de 64 annos de nação independente.

Eis ao que nos reduziram!

O dia 7 foi o imbroglio perfeito.

Se fosse possível tirar uma photographia d’esse regosijo em falsete, ficaria archivado que em 1886, o povo comprehendeu, finalmente, as mystificações de que é victima, e não se deixou arrebatar nem pelos vivas da policia, nem pelos foguetes á custa de contribuinte, nem mesmo pelas notas das phylarmonicas desafinadas.

Muito bem! É assim que se cria juízo.[10]

Diante desse cenário o caricaturista se reservaria um lugar muito relevante, colocando-se como testemunha através do registro realizado pelo lápis litográfico, ou seja, teria mostrado o que representaria o abandono do símbolo da “falsa independência”: o registro de um marco histórico para o Brasil. O caricaturista propõe, até esse momento, a desconstrução de um símbolo do país, criando um novo documento, no qual a leitura daquele monumento passaria necessariamente pela ligação da monarquia com a escravidão. Indicaria uma movimentação da sociedade a favor do fim da escravidão, através de certa recusa ao símbolo monárquico. Ao apontar para o que seria a “conscientização” da população, o caricaturista se coloca como um agente da história, afinal teriam sido vários anos de denúncias nos seus jornais.

Se o discurso em torno da imagem em 1886 indicava mudanças por parte da população, a última ilustração do monumento no Império, publicada em 1888, apontaria mudanças ainda mais radicais, tanto por parte do governo, como nas próprias concepções do caricaturista.

No dia 8 de setembro de 1888, nas duas páginas centrais do periódico, o monumento a D. Pedro I foi representado com grande reverência e algumas ausências. Desta vez não foi Angelo Agostini que o desenhou, mas Pereira Neto - a assinatura aparece no canto esquerdo -, no entanto, certamente foi uma imagem criada a partir da orientação de Agostini [Figura 9]. Algo que logo se destaca no primeiro plano, centralizada, seria a bandeira do Império, tremulando, à frente do pedestal. Outro elemento, novo nessa composição, seria a presença de uma escada apoiada na base do monumento, como um auxílio utilizado para se chegar ao topo deste. Nos degraus dessa escada, a qual tem gravada a frase “Lei de 13 de Maio”, alguns nomes podem ser lidos do primeiro ao último degrau: Nabuco, Dantas, J. Alfredo, Regência. O brasão do Império, ladeado pelas duas gárgulas, aparecem claramente no centro da composição. Na parte superior, D. Pedro I em postura altiva, segurando a declaração da Independência, está montado sobre um belo cavalo. E em pé, apoiado nas costas do cavalo e com a mão esquerda sobre o ombro do imperador está a alegoria do Brasil, um índio entusiasmado levanta na mão direita, na mesma posição que ostenta D. Pedro I, um papel com a palavra “LIVRE”, estampada em letras garrafais. Ao redor do grupo, é possível observar fogos de artifício que explodem, mas desta vez não oferecem qualquer risco para as figuras, nem as assustam. Os índios e os animais do pedestal foram subtraídos, talvez porque naquele momento se tornaram elementos secundários: o destaque seria dado para a nação livre, independente, assim só interessava mostrar aqueles considerados fundamentais no processo. Além disso, em outras edições da revista, os índios foram associados ao não civilizado, ao selvagem. Em um momento no qual se comemorava um passo grande no caminho do progresso, ocultar esses elementos poderia ser prudente.

A revista, como das outras vezes, também elaborou comentários escritos para reforçar o sentido da imagem no artigo denominado “Sete de Setembro de 1888”:

A data gloriosa da independência, póde hoje brilhar entre as mais fulgidas constellações da nossa pátria, porque o crepe que a velou durante 65 annos, rasgou-se e desappareceu para sempre.

O pallido brilho official, que n’este dia tentava sensibilisar a nação, por meio das salvas, dos cortejos ou das luminárias, está hoje substituído por um alvoroço intimo e patriótico, que seduz as imaginações e arrebata as almas.

A escravidão já não humilha as evocações cívicas, acompanhando-as, por toda a parte, como a grilheta acompanha o condemnado, como a sombra o corpo, como o remorso o crime.

Durante 65 annos a liberdade e o captiveiro sentaram-se á mesma mesa do festim e beberam pela mesma taça, em honra á independência de um povo.

Eram festas glaciaes, em cujo triste convívio, tomava sempre parte, um phantasma sinistro.

Hoje, porém a liberdade póde expandir-se, sem receio de que em meio dos seus transportes lhe venha cahir aos pés, ensangüentado, fazendo tinir as suas correntes, a figura mizeranda de um escravo trucidado, pedindo misericórdia.

[...]

Como quer que seja, o 7 de Setembro, já póde vangloriar-se, porque também tem a sua carta de liberdade.[11]

O ciclo de imagens se encerra dando a redenção ao monumento, salvando-lhe do ciclo de falsidades ao qual teria sido associado: afinal, teria sido sob um governo monárquico que a abolição dos escravos se concretizaria. O discurso adotado pela Revista Illustrada após a abolição foi de reconciliação com a monarquia, nesse sentido, nada mais coerente do que recuperar um monumento símbolo daquele governo.

Através de uma imagem conhecida pela população, de um monumento representativo da monarquia, Agostini agregou vários discursos na exposição do monumento, recriou a imagem a partir de seus próprios elementos, propondo que seu público leitor também reconsiderasse sua relação com aquele objeto. Aproximou da população a nobre arte da escultura através de uma metamorfose gráfica, sugerindo por vezes: repulsa, comicidade, ou ainda, identificação.

Ao retomar a reflexão que Le Goff empreende no texto “documento/ monumento” percebe-se que o caricaturista reconhece a importância dos monumentos na criação de memória. Mesmo ao questionar, inicialmente, a memória do Império que a monarquia empreendia, recorreria a esse mesmo símbolo para evocar a importância de valorizarem-se os mitos e heróis da pátria, produzindo documentos que atuariam como uma espécie de confirmação e revalorização do monumento. Teria então triunfado o símbolo monárquico? Ao retomar o monumento, o caricaturista reavaliaria sua posição inicial e, sem negar a produção dos documentos anteriores, iniciaria um novo ciclo documental, no qual, o discurso do monumento enquanto um elemento necessário para a perpetuação e criação de memória surgiria como fundamental na constituição da nação, mas de uma nação livre do trabalho escravo.

O monumento na República

O interesse de Angelo Agostini por monumentos públicos já tinha aparecido em 1872, quando este ilustrava O Mosquito. Curiosamente, o monumento escolhido era do mesmo artista e ligado à independência do Brasil. Louis Rochet também foi o responsável pela execução da estátua em homenagem a José Bonifácio [Figura 10], considerado o patriarca da independência, cuja inauguração ocorreu em 1872 . A obra está localizada, no que hoje se conhece como largo São Francisco de Paula, no centro do Rio de Janeiro. A caricatura [Figura 11][12] traz um comentário de cunho satírico, que talvez revelasse um descontentamento com a composição do pedestal . Pelo menos é o que sugere a legenda vista abaixo da imagem de duas figuras vestidas como artistas circenses, as quais se equilibram, cada uma sobre alguns objetos como uma mesa, garrafas, madeira e um banquinho: “Onde o Sr. Rochet se inspirou para o pedestal da estatua de J. Bonifacio.” Logo abaixo aparecem duas versões da escultura: a primeira lembra a posição original, já na segunda o personagem está sentado no banco que apoiava os livros, de pernas cruzadas e escrevendo sobre um dos livros. A primeira legenda lembraria que teria sido o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro que financiou o monumento e, na segunda sugere uma função para o banco presente na obra: “Em vista d’isto não se pode dizer que o Sr. Rochet fez mal em lhe por um banquinho.”

Independente de o crítico apreciar ou não a execução dos monumentos e suas funções simbólicas, estes objetos tinham uma importância social e política relevante na corte brasileira, além de serem representantes de uma política artística, tantas vezes reclamada por Agostini. Apenas o fato dessas esculturas serem escolhidas para estampar as páginas dos periódicos seria um indicativo de sua importância. No discurso civilizador de Agostini, os monumentos apareciam como sinais de progresso, afinal, um povo civilizado cultivaria a memória de seus heróis. O crítico poderia discordar das escolhas, mas reconhecia a necessidade da presença desses símbolos na constituição da nação. Seria justamente nessa chave de civilização e constituição de memória que o Monumento Equestre a D. Pedro I, retornaria ás páginas do periódico de Angelo Agostini em um momento onde a República estava constituída, com a peculiaridade de estar em diálogo com o monumento a Bonifácio [Figura 12][13] .

Após acompanhar o percurso do monumento na Revista Illustrada, sobretudo, sua última aparição, o ciclo parecia estar encerrado. No entanto, em meio à conturbada estabilização da República, com o crítico tendo sido acusado inúmeras vezes de monarquista, Agostini decide estampar nas páginas do seu periódico um símbolo do Império, na verdade dois, já que D. Pedro I seria retratado em diálogo com José Bonifácio. Nessa versão a figuração do pedestal seria recuperada, e os índios e animais pareciam intrigados, curiosos, talvez até assustados, com o diálogo que se estabelecia. Apenas um índio não voltaria o rosto para certificar-se do que ocorria; pelo contrário, aparece encolhido, fechado sobre si mesmo, com as pernas dobradas junto ao corpo, braços cruzados e apoiados sobre os joelhos e a cabeça encoberta pelos braços. O índio que aparece à esquerda da composição, atrás do pedestal, está até com a boca aberta, e observa atentamente José Bonifácio. Este por sua vez, está no meio de uma escada apoiada no pedestal, segura sob o braço esquerdo seu banquinho e livros, e a mão direita está apoiada no topo da escada. Sua cabeça está levemente inclinada para trás e seu rosto virado para D. Pedro. O imperador por sua vez, está montado, tem as duas mãos apoiadas no cavalo e se inclina na direção de Bonifácio. Já o cavalo está estático, não esboça nenhuma movimentação.

O desenho não apresenta nenhuma particularidade em relação à produção do caricaturista, mas o diálogo da legenda seria bastante revelador:

J.B. - Venho cumprimentar V.M. e, com pezar, vejo que a brava gente brasileira é meio ingrata. Nem mais um bico de gaz,  nem bandeirolas, nada emfim para o fundador de sua nacionalidade!

Pedro I - E tu, meu Bonifácio, que tanto trabalhaste para isso, deixaram-te ficar ás escuras. Não admira: com um Alvarenga á testa da Sociedade Comemorativa das Datas Nacionaes, não era de esperar outra cousa. Há jacobinos que esquecem que são brasileiros.

Várias questões são colocadas pelo caricaturista: a primeira delas seria a falta de memória da população, a qual não estaria reconhecendo e valorizando seus monumentos, algo bastante negativo para um país que pretendia figurar entre as nações civilizadas. Por outro lado, anteriormente os fogos de artifício e festejos foram avaliados como certa cegueira da sociedade, assim como, em outro momento, o fato das pessoas ignorarem tal comemoração, visto positivamente como um despertar. Agora se reclamavam comemorações.

E o dado mais relevante apresentado pelo crítico estaria na evocação dos jacobinos como responsáveis por tal atitude diante dos monumentos, os quais agora seriam apresentados não como símbolos de um ou outro governo, mas como obras de arte representantes da independência do país, portanto, deveriam estar acima de qualquer divergência política. A relação de Agostini com os jacobinos foi bastante conturbada, tendo o caricaturista conquistado toda a antipatia e radicalismo dos jacobinos contra si. Enquanto republicanos radicais, esse grupo acusava o jornalista de sebastianista e anti-republicano - talvez, justamente pela postura conciliadora com a qual Agostini trataria a monarquia nos últimos momentos desta, além de suas críticas contra o governo de Floriano Peixoto. Nesse sentido, a recuperação desses monumentos pelo caricaturista poderia representar uma afronta aos “radicais da República”, mas também a constatação de que o monumento público teria um papel relevante na educação artística e moral da nação, duas temáticas bastante caras ao artista.

A arte de Angelo Agostini atravessa de forma singular toda a sua atividade na imprensa, deliciando os olhos até do leitor menos atento, mas propondo também diálogos bastante complexos, recheados de proposições políticas, de ambições pedagógicas, pautados pelo projeto de civilização - nos moldes europeus - do Brasil.

Referências Bibliográficas

KNAUSS, Paulo. A festa da Imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. In: CAVALCANTI, A. M. T.; DAZZI, C.; VALLE, A. (Orgs). Oitocentos: Arte brasileira do Império a Primeira República. Rio de Janeiro EBA-UFRJ/DezenoveVinte, 2008. p.178-186

LE GOFF, Jacques. Memória e História. Tradução: Bernardo Leitão et al.. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

MIGLIACCIO, Luciano. A escultura monumental no Brasil do Século XIX. A criação de uma iconografia brasileira e as suas relações com a arte internacional. In: Anais do XXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro, 2004. p.240-241.

SILVA, R. J. O Brasil de Angelo Agostini: Política e sociedade nas imagens de um artista (1864-1910). [Tese], IFCH-UNICAMP, orientador: Luciano Migliaccio. Campinas, dezembro de 2010.


* Pós-doutoranda no Instituto de Artes da UNICAMP com financiamento da FAPESP.

[1] MIGLIACCIO, Luciano. A escultura monumental no Brasil do Século XIX. A criação de uma iconografia brasileira e as suas relações com a arte internacional. In: Anais do XXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro, 2004. p.240-241.

[2] KNAUSS, Paulo. A festa da Imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. In: CAVALCANTI, A. M. T.; DAZZI, C.; VALLE, A. (Orgs). Oitocentos: Arte brasileira do Império a Primeira República. Rio de Janeiro EBA-UFRJ/DezenoveVinte, 2008. p. 180. Uma versão eletrônica pode ser lida em: KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/pknauss.htm>. Acesso 1 dez. 2012.

[3] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.128, 07/09/1878, p.2

[4] Martinho Álvares da Silva Campos (1816-1887) esteve à frente do 25º Gabinete do Império, um gabinete liberal, porém bastante curto. Teve início em 21 de janeiro de 1882 e foi dissolvido em três de julho do mesmo ano.

[5] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.222, 04/09/1880, p.2. “Chronicas Fluminenses”

[6] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.136, 02/11/1878, p.2 “Forma-se a opinião”

[7] Lopes Trovão era médico e atuou ou jornalista e político. Foi um defensor da causa republicana e abolicionista. Assinou o manifesto republicano de 1870 e foi um crítico ativo da monarquia.

[8] Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1881, ano VII, N. 300. p.1

[9] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.272, 05/11/1881, p.2 “Chronicas Fluminenses”

[10] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.439, 24/09/1886, p.2 “Pequenos Eccos”

[11] Revista Illustrada, Rio de Janeiro, N.523, 08/09/1888. p.2 “Sete de Setembro de 1888”.

[12] O Mosquito, Rio de Janeiro, N.157, 1872.

[13] Don Quixote, Rio de Janeiro, N.93, 1899, p.4