Comentário a ‘Peut-on parler d’une peinture pompier?’, de Jacques Thuillier

Marcelo Gonczarowska Jorge

JORGE, Marcelo Gonczarowska. Comentário a ‘Peut-on parler d’une peinture pompier?’, de Jacques Thuillier. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ha/pompier_mgj.htm>. [Français]

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O texto de Peut-on parler d’une peinture pompier? (Pode-se falar em pintura pompier?) de Jacques Thuillier[1] - publicado em 1984, em Paris - retoma o tema de uma palestra proferida pelo mesmo em 27 de março de 1980, no Collège de France, instituição na qual é professor. O livro investiga o significado do termo pompier, sua origem e a carga de valores conexa a ele, assim como a apreciação crítica da pintura pompier. No preâmbulo, o autor nos adverte que, à época que o manuscrito foi publicado, o termo pompier já ocupava um espaço bastante grande “para que nos perguntemos qual é o seu papel e qual será seu papel num futuro próximo”.

O texto é especialmente significativo se levarmos em conta que foi elaborado num momento em que as obras dos pintores do século XIX ditos acadêmicos - como Bouguereau (1825-1905), Gérôme (1824-1904) e Cabanel (1823-1889) - sofriam uma valorização vertiginosa, demonstrando uma ainda tímida mas firme retomada de interesse pela arte do século XIX no mercado de arte e nos meios acadêmicos europeus e norte-americanos. Em 1984, a primeira exposição retrospectiva do pintor acadêmico francês W. A. Bouguereau passou por museus no Canadá, nos Estados Unidos e na França, e o Museé d’Orsay, inaugurado em 1986, consagrou parte de sua exposição permanente a artistas acadêmicos, não sem receber uma saraivada de críticas[2].

No primeiro capítulo, Thuillier faz bem em citar Esopo[3] quando este afirma que “as palavras não são inocentes”[4]. O autor lembra que a disciplina da história da arte, ainda presa àquele espírito vitoriano obcecado com classificações, está sempre pronta a adotar termos classificatórios e subdivisões, quase infinitamente, sem levar em conta que se tratam de meras convenções. Aflige-lhe, sobretudo, a preocupação recorrente dos historiadores da arte em discutir mais os conceitos que as obras em si, alterando a percepção sobre estas últimas em função daqueles. No livro, em certo momento, faz-se o seguinte questionamento: se estudássemos a arte do período medieval focando antes nas iluminuras que na arquitetura, alguém conceberia dividir o Medievo em “românico” e “gótico”? Thuillier lembra o quão reais são as consequências da fé e da importância que depositamos nas categorias e conceitos: “Palácios, castelos, igrejas e imóveis precisarão ser restaurados ou substituídos daqui para frente; a chuva corrói monumentos e estátuas; [os conteúdos dos] ateliês dos artistas são dispersados aleatoriamente. Apenas o renome pode proteger e salvar. Mas esse renome depende do julgamento. E esse julgamento depende, em grande parte, das categorias.”[5]

Ao declarar que o grupo de conceitos utilizados atualmente em história da arte do século XIX é “pobre, precário em seus fundamentos, e sem nenhuma coerência”[6], ele lembra ainda que cabe ao historiador de arte a responsabilidade pelas escolhas feitas em relação ao legado da arte do século XIX.

As ideias levantadas pelo autor podem levar-nos a uma reflexão sobre a necessidade de se classificar e categorizar os estilos e períodos artísticos. Será que podemos considerar Poussin (1594-1665) um pintor barroco? Seu estilo não aproxima-se mais ao de um Rafael (1483-1520) que ao de um Rubens (1577-1640) ou de um Velásquez (1599-1660)? E Goya (1746-1828), como classificá-lo? Seu estilo assemelha-se mais ao neoclassicismo de David (1748-1825), ao romantismo de Delacroix (1798-1863) ou às imagens inquietantes do Simbolismo? Que dirá a temática, então? A divisão em estilos, períodos e movimentos nos ajuda a compreender a arte ou apenas facilita a tarefa de transformar a sua história em uma disciplina acadêmica?

O termo pompier

Thuillier explica que não se sabe em que momento surgiu o uso do termo pompier[7] no contexto artístico, nem seu sentido original. Há diversas teorias, como enumerado abaixo:

1 - o termo seria uma referência maliciosa aos elmos usados pelos guerreiros gregos, que lembrariam os capacetes dos bombeiros (pompiers, em francês) [Figura 1];

2 - o termo poderia ser uma deformação do termo pompéiste (pompeísta, em referência aos estudiosos da cidade romana soterrada em 78 d.C.), com o intuito de ridicularizar o grupo de pintores neo-gréc formado no atelier de Charles Gleyre (1808-1874) por volta de 1848;

3 - a palavra também poderia fazer referência aos bombeiros de plantão nos eventos oficiais, como no Salon de Paris;

4 - ou ainda aos guardas nacionais, presentes na abertura dos Salons, que seriam saudados jocosamente pelos estudantes de arte: “Eis os bombeiros!”.

O autor explica que, entre as implicações “que fizeram o sucesso do termo”[8], não se pode negligenciar a “nuance zombeteira que, no século XIX, distingue o bombeiro (pompier), simples civil, apesar do capacete brilhante de cobre, do legítimo militar”[9], mais imponente. Mas, de acordo com o autor, é “sobretudo a homofonia com ‘pompe’ [pompa], ‘pompeux’ [pomposo]”[10] que torna a palavra mais colorida e que nos leva a conceber “conotações mais lógicas, como incêndio, sinistro, tragédia, devotamento ou coragem”, apesar de que a lógica por trás dessas conotações não está explicada pelo autor. Dessa forma, o artista pompiernão é apenas aquele que cobre seus heróis com elmos brilhantes, é o artista pretensioso e vão que trabalha num estilo empertigado, pomposo”[11].

A palavra só vai aparecer na imprensa no final do século, em meio a polêmicas, em declarações de Degas e de Gérôme, o que prova que, ao menos, a palavra e seu sentido pejorativo já eram amplamente conhecidos. O autor chama atenção para o que ele acredita ser um dualismo do qual dependia mesmo o próprio uso do termo - “art pompier” x “avant-garde”:

Pelo lado do pompier, a rigidez oficial, a expressão congelada, mas também a segurança e a tradição com o que comporta de ciência e de confiabilidade; pelo outro, a chama do entusiasmo, a audácia da pesquisa, mas também os riscos da aventura, a inexperiência, a destruição irrefletida. Sente-se aqui como funciona a perigosa imagem contida no termo: o pompier atrai para si todo o ridículo, deixando à parte adversária a vantagem da inovação poética.[12]

Quanto ao período de vigência da arte pompier, Thuillier explica que as datas variam de autor para autor, mas, como o conceito dependeria do dualismo pompier/vanguarda, o essencial é produzido enquanto esse antagonismo é mais patente - ou seja, entre 1863 (com Almoço na relva [Figura 2], de Manet (1832-1883)) e 1914, com a desordem devida à Grande Guerra. Dessa forma, seu senso pejorativo, “que subsiste plenamente, agrega assim uma acepção histórica capaz de inscrever nos anais da arte, para a edificação das gerações futuras, a lembrança de um confronto salvador”[13], explica ironicamente.

Tentou-se ainda, aponta o autor, fazer uma ligação entre pintura pompier e burguesia, e vanguarda e socialismo, numa dialética forçada típica da produção intelectual de jornalistas e críticos do século XX. Assim, a arte pompier faria necessariamente referência às instituições oficiais, ao capitalismo, à burguesia e às forças de repressão, enquanto a vanguarda referir-se-ia às forças revolucionárias, portanto proletárias. O autor cita a própria existência do Realismo Socialista e a organização “acadêmica” do ensino das belas artes nos países soviéticos como uma desconstrução clara desse ponto de vista.

A argumentação política, segundo Thuillier, foi criada muito tempo depois da “existência” da arte pompier, buscando criar para ela um molde artificial que se encaixasse na dialética do discurso marxista. Basta lembrarmos, complementarmente à argumentação do autor, que artistas como Bouguereau participaram ativamente da Comuna de Paris[14], de que Gleyre (1806-1874) abriu um ateliê gratuito, no qual se conheceram Monet (1840-1926), Renoir (1841-1919), Bazille (1841-1870) e Sisley (1839-1899)[15], e que a Academia de Belas Artes, incorporada ao Institut de France, que administrava a École de Beaux-Arts de Paris, elegia seus próprios membros, na maior parte artistas egressos de um background familiar e econômico humilde, senão sofrido.

Mais adiante no livro, o autor retoma o assunto e recorda que, para se evocar as barricadas ou a resistência de Paris em 1870, o mais comovente é - surpresa - Meissonier [1815-1891]. E, por ocasião do Caso Dreyfus, é Degas [1834-1917] quem faz a figura de antissemita obstinado, enquanto é Debat-Ponsan [1847-1913] quem pinta e expõe A Verdade saindo do poço [Figura 3], pintura detestável, verdade, mas um manifesto irrecusável.”[16]

Ou ainda, num parágrafo que reproduzimos na integridade:

É necessário reconhecer que os impressionistas e muitos dos seus sucessores, longe de ser, como se defendia, espíritos revolucionários, traduziam [, na verdade,] valores tranquilizadores. A ruptura com a pintura tradicional não pode esconder por muito tempo o aspecto conservador, mesmo reacionário, de sua inspiração. O elogio da natureza, das paisagens da França, da juventude e da alegria, a rejeição de toda a angústia metafísica, a recusa em se questionar a condição humana ou o acordo fundamental entre o homem e o mundo que o cerca: não seriam estes valores capazes de agradar à burguesia, alta ou pequena, berço da maior parte deles, começando por Monet e Manet? O Impressionismo, não se pode negá-lo, se inscreve diretamente numa longa tradição da pintura francesa que passa por Boucher [1703-1770] e Corot [1796-1875]. Seu mérito eminente é o de ter, face às inquietudes do romantismo, reafirmado com mais clareza que nunca a aceitação simples da felicidade quotidiana, do prazer dos sentidos, da beleza das horas e das estações renovadas sem cessar. Le Chemin montant dans les [hautes] herbes [Figura 4] e Le Moulin de La Gallette [Figura 5] [ambas pinturas de Renoir] refutam tanto A Tomada de Constantinopla [Figura 6], de Delacroix, quanto A Lavadeira [Figura 7], de Daumier [1808-1879]. Renoir encontra Fragonard [1732-1806]. Mas a revolução social não é feita na Grenoullière [Figura 8], nem se escutando os álamos balançarem nas margens do Epte [Figura 9].[17]

Arte pompier na França e no exterior

No terceiro capítulo de seu livro, Thuillier faz uma suposição falsa, mas que ele toma ingenuamente como verdadeira: a de que a memória dos pintores acadêmicos estrangeiros teve, em seus países, melhor sorte do que aquela dos pintores franceses. Afirma o autor, à página 26, que, enquanto os críticos e historiadores da arte estrangeiros estão prontos para aceitar o julgamento negativo imposto aos artistas franceses, “não tencionam absolutamente incluir nessa condenação seus próprios artistas” e “repelem vigorosamente o termo pompier, se aplicado às suas glórias nacionais”.

Thuillier cita a popularidade nacional de artistas acadêmicos como o polonês Jan Matejko (1838-1893), os venezuelanos Arthuro Michelena (1863-1898) e Tito Salas (1887-1974), Feuerbach (1829-1880) e Max Klinger (1857-1920) na Alemanha, Alma-Tadema (1836-1912) e Lorde Leighton (1830-1896) na Inglaterra, e Eakins (1844-1916) e Sargent (1856-1925) nos Estados Unidos (apesar de que estes dois, como alguns outros citados pelo autor, dificilmente são enquadrados como acadêmicos ou pompiers por qualquer historiador). Contudo, fiando-nos na realidade brasileira e em testemunhos como os que encontramos em sites como o americano Art Renewal Center[18], é possível deduzir que houve aí um erro de julgamento. No Brasil, pintores como Vitor Meirelles e Pedro Américo, apesar de fundamentais para a imaginária histórica nacional, não receberam nenhuma leniência crítica em manuais nacionais de história da arte, principalmente naqueles produzidos a partir da segunda metade do século XX, como os de Campofiorito, Bardi e Zanini.

A damnatio memoriae a que foram submetidos os pintores do século XIX não foi privilégio de nenhum país, mas um fenômeno no âmbito de toda a civilização ocidental. Os americanos, por meio do crítico Clement Greenberg, cunharam outro termo para se referir à arte do período: kitsch, que em português poderia ser traduzido como brega[19]. O fato de termos obras de pintores como Rodolfo Amoedo, Zeferino da Costa e Oscar Pereira da Silva penduradas permanentemente nas paredes do Museu Nacional de Belas Artes desde 1937, por exemplo, enquanto pintores como Baudry (1828-1886), Amaury-Duval (1808-1885) e Lenepveu (1819-1898) não tiveram o mesmo privilégio no Louvre, não quer dizer que aqueles artistas tenham merecido melhor acolhimento pelos críticos brasileiros no século XX - nos textos publicados sobre história da arte brasileira, durante a maior parte do século passado, era difícil encontrar qualquer referência a esses pintores, quanto mais reproduções de suas obras.

Os surrealistas e a revalorização da pintura pompier

De acordo com Thuillier, os pintores surrealistas foram os grandes responsáveis pela retomada de interesse na pintura pompier. Essa atenção renovada teria reabilitado, principalmente, a pintura Simbolista, à qual foram dedicadas diversas exposições durante a década de 1970, e teve um papel fundamental na consagração de Gustave Moreau (1826-1898) como um dos grandes gênios do século XIX, não sem um certo jogo “de retórica e uma apresentação hábil, que fizeram do membro do Instituto e professor da École des Beaux-Arts um pintor solitário da ‘avant-garde’”[20].

Salvador Dalí (1904-1989), em especial, apreciava os acadêmicos por sua “ciência do ‘métier’, a pintura sem marcas de pincelada, a preocupação com a obra-prima”[21], e exaltava Meissonier, Detaille (1848-1912), Moreau, Bouguereau, de Neuville[22] (1836-1885), Cormon (1845-1924) e Boldini (1842-1931). O surrealista chegou a profetizar: “Nós veremos a arte pompier se reabilitar, repentinamente mais viva, fresca como a rosa”[23].

Considerações sobre a arte contemporânea e reapreciação da pintura pompier

Thuillier abandona por um momento a análise histórica sobre o termo pompier e divaga sobre o que lhe parece ser um “questionamento das vanguardas”[24]. Ele defende o que acredita ser um cansaço em relação às vanguardas que se sucedem sem cessar desde 1863, e culpa os Estados Unidos por empreenderem um esforço de propaganda internacional cujo objetivo era demonstrar que o “centro criativo”[25] havia deixado Paris em direção a Nova York[26]. Ele se pergunta: “Conseguir capturar a atenção garante que alguém seja digno de retê-la?”[27], e conclui, um pouco a frente e não sem uma dose de humor involuntário, que “sempre há um artista, mas a obra de arte evaporou completamente”[28]. Thuillier acusa a crítica de arte de temer fazer seu trabalho, por medo de perder sua imagem de “campeões da inovação”[29], e afirma que a iniciativa de mudar as coisas vinha partindo dos próprios artistas, cujo interesse estava se voltando para as técnicas e métodos tradicionais de pintura. Ele cita o hiperrealismo, ou fotorrealismo, como um exemplo dessa reação.

Em seguida, ainda de acordo com o autor, uma série de exposições que surgiram na Europa a partir dos anos 1970, temáticas ou monográficas, causaram a reabilitação de pintores “facilmente colocados sob o termo pompier e que pertenciam, na verdade, a uma geração anterior”[30]. Esse seria o caso de artistas como Amaury-Duval e Charles Gleyre. Exposições realizadas em galerias comerciais, em Paris, exibindo principalmente desenhos, ajudaram numa nova apreciação de artistas como Georges Brillouin (1817-1893), Henri Lehmann (1814-1882), Gérôme e Ménard (1862-1930). Dessa forma, explica o autor, a grande massa de pintores pompier começou a se individualizar, o que tornaria impossível uma “condenação geral”[31], nos moldes da que vinha sendo feita.

Ainda nos anos 1970, começaram a surgir grandes exposições (raramente em Paris), sobre pompiers como Gérôme, Bouguereau e de Neuville. Em 1966, apareceu o primeiro livro importante sobre o período desde os anos de 1920: Les Maîtres de La Belle Époque, de Crespelle, mas que ainda não escapava aos lugares comuns e sarcasmos sobre a pintura pompier, como boa parte da crítica, ainda bastante hostil. Contudo, aquelas exposições e outras - como Le Musée du Luxembourg en 1874 e Art pompier - Anti-impressionism, ambas de 1974 -, assim como livros como The Academy and French Painting in the Nineteenth Century (1971), de Albert Boime, foram suficientes para acender o interesse do público e dos colecionadores de arte. Na academia, teses e artigos vieram esclarecer alguns mitos sobre a arte pompier e o Estado francês da 3ª República, como o caso do Legado Caillebotte[32].

Thuillier reclama ainda uma apreciação dos pintores pompier - e dos pintores de vanguarda - além dos clichês, dos estereótipos e das opiniões formadas. Quanto aos pintores acadêmicos do século XIX, já avisa: “sua canonização não é solicitada”[33]. Contudo, reconhece, os grandes admiradores da vanguarda dificilmente baixarão a guarda em relação à arte acadêmica. “Seja esclerose do olhar,” lamenta o autor, “seja medo de serem acusados de arrependimento, eles se recusam sempre a tratar esses pintores [acadêmicos] [...] no mesmo nível que todos os outros pintores do passado”[34], o que, segundo ele, já havia sido denunciado por Thérèse Burollet, em 1968, como “um fenômeno análogo à recusa do gótico pela Renascença e pelo século XVII”[35]. Entretanto, uma abordagem sem preconceitos lhe parecia algo natural “para as gerações mais novas”[36], profecia essa que parece ter se concretizado, com o boom de interesse por artistas do período, seja em pesquisas, livros ou no mercado da arte.

Ele adverte que é um erro estudar a arte do século XIX excluindo-se a noção de “gênero”. A história e a evolução da pintura de paisagem, do retrato, da natureza-morta, por exemplo, “não são necessariamente, nem inteiramente, ligadas”[37]. Por isso, não é metodologicamente correto meter no mesmo saco pintores vanguardistas como os impressionistas, autores essencialmente de paisagens, e muralistas como Baudry.

Thuillier faz o mesmo comentário em relação à hierarquia de qualidade dos pintores de uma mesma corrente. Não estão todos no mesmo nível. Segundo ele,

A mistura [de bons e maus pintores] não serve para aprofundar a análise histórica, mas para ridicularizar todo o conjunto considerado. Veja-se: em todas as épocas, a genialidade convive com o talento, e o talento convive com a pior mediocridade. É desonesto associar Bonnat [1833-1922] e Paul Gervais [1859-1936]; Besnard [1849-1934] e o escabroso Albert Guillaume [1873-1942]; as evocações líricas de Jean-Paul Laurens [1838-1921] e as inópias picantes de Paul Jamin [1853-1903]. A ressurreição dos mortos ocorre necessariamente em meio a grande desordem. [...] [Porém,] Ainda não é, em História da Arte, o Julgamento Final, e ninguém pode pretender fazer o papel de Deus Pai: mas a tarefa dos próximos anos será a de estabelecer uma hierarquia severa segundo os méritos, e uma hierarquia baseada num inventário científico de quadros limpos e vistos sob uma boa iluminação, e não fundamentada em algumas fotos em preto e branco remontando muitas vezes a 1900.[38]

O destino do termo pompier

O autor reconheceria, ainda no segundo capítulo do texto, que alguns autores preferem usar o termo “acadêmico” ao invés de “pompier”, já que aquele

lhes parece mais imparcial e, portanto, menos coloquial. Mas essa palavra possui uma etimologia tão conhecida quanto vinculadora, e já é usada em excesso em outros campos - especialmente na universidade e na literatura; de maneira que lhe falta flexibilidade, correndo-se o risco de não poder enriquecê-la com as implicações novas e múltiplas que são necessárias a um instrumento conceitual.[39]

Já no capítulo final, ele aventa a possibilidade de que se adote algum termo para cobrir todo o período de 1848 a 1914, assim como se faz, correspondentemente, com barroco e neoclássico. Ele afirma que, Por razões diversas, ‘vitoriano’ e ‘acadêmico’ não têm nenhuma chance. Apenas pompier é vago o suficiente, intraduzível o suficiente, ‘absurdo’ o suficiente para batizá-lo [o período], como o foram uma vez o gótico ou o barroco.[40]

A aposta que Thuillier fez na sobrevivência do termo pompier tem se provado errada. Apesar de todos já termos lido - e, raramente, ouvido - o termo pompier em algum lugar, os autores têm ignorado sistematicamente seu uso. Acadêmico - este sim - foi o termo afinal de contas eleito pelos pesquisadores, sejam americanos, franceses ou brasileiros, de acordo com a maioria absoluta dos textos produzidos nos últimos 15 ou 20 anos. Na Inglaterra, também em oposição à aposta de Thuillier, victorian tem sido o termo utilizado para a arte britânica do período correspondente ao do pompier. Acadêmico é, decerto, um termo tão impreciso quanto pompier, mas talvez tenha sido escolhido favorito entre os autores por não estar tão carregado da conotação desdenhosa com a qual o termo francês foi usado durante a maior parte do século XX, ou talvez por ser até mais abrangente que pompier.

O autor explica, possivelmente vislumbrando a derrotada de seu escolhido, que

o sucesso de uma palavra e sua duração, sobretudo no plano internacional, dependem de fatores imponderáveis e, mais ainda, imprevisíveis. O prestígio de uma exposição, a autoridade de um crítico, a popularidade de um livro são suficientes para mudar o destino de uma palavra. Nós dissemos que o historiador deve, às vezes, se interessar pelo presente: ele não deve nem pode fazer previsões.[41]

O autor acredita que, assim que se deixe de estudar a arte do período por meio da oposição pompier x vanguarda, é possível que o termo desapareça - o que parece ser o caso neste momento. De acordo com Sônia Gomes Pereira, os pesquisadores das últimas décadas têm rejeitado essa abordagem dicotômica sobre a arte do século XIX: Vários trabalhos vêm demonstrando que as fronteiras entre essas duas categorias [acadêmica e vanguardista] nunca estiveram demarcadas de forma absolutamente nítida; ao contrário, os limites são muitas vezes movediços na prática dos artistas, apesar do discurso sobre a arte caminhar frequentemente para a radicalização.[42]

De fato, talvez seja o caso de voltarmos ao questionamento inicial do autor, e nos perguntarmos até que ponto os termos e conceitos nos ajudam a estudar a história da arte, principalmente a arte desse período - tão rica e tão complexa, de forma a ser considerada pelo próprio Thuillier como uma “segunda Era de Ouro da pintura europeia”[43].

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[1] THUILLIER, Jacques. Peut-on parler d’une peinture “pompier”?. Paris: Presses Universitaires de France, fevereiro de 1984.

[2] Sobre as críticas à exposição permanente de obras acadêmicas no Musée d’Orsay no momento de sua abertura, consultar ROSEMBLUM, Robert. Paintings in the Musee d'Orsay. Nova York: Stewart, Tabori & Chang, 1989.

[3] Autor grego, teria vivido no século VI a. C.

[4] THUILLIER, op. cit., p. 9.

[5] Idem, ibidem, p. 14.

[6] Idem, ibidem, p. 14.

[7] Pompier, em francês, significa bombeiro.

[8] Idem, ibidem, p. 19.

[9] Idem, ibidem, p. 19.

[10] Idem, ibidem, p. 19.

[11] Idem, ibidem, p. 19.

[12] Idem, ibidem, p. 20.

[13] Idem, ibidem, p. 22.

[14] BARTOLI, Damian; ROSS, Fred. William Bouguereau (1825-1905). Nova York: Art Renewal Center, 2000. Disponível em: http://www.artrenewal.org/articles/On-Line_Books/Bouguereau_William/bio3.php#Career Acessado em 13/03/2011.

[15] MARTIN-FUGIER, Anne. La vie d’artiste au XIXe siècle. Paris : Hachette Littératures, 2007, p. 52.

[16] THUILLIER, .op. cit., p. 46.

[17] Idem, ibidem, p. 46-47.

[18] Disponível em: www.artrenewal.org

[19] O termo também é adotado atualmente para designar alguns artistas contemporâneos como Jeff Koons, egresso da pop arte, ou a Odd Nerdrum, que reconhece o libelo de kitsch de maneira irônica.

[20] THUILLIER, .op. cit., p. 33.

[21] Idem, ibidem, p. 34.

[22] No original, Thuillier redige “Deneuville”, sendo esta ortografia incorreta.

[23] THUILLIER, .op. cit., p. 34.

[24] Idem, ibidem, , p. 36.

[25] Idem, ibidem, , p. 36.

[26] Sobre este assunto, ver SAUNDERS, Frances Stonor. Quem pagou a conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura. Rio de Janeiro: Record, 2008. O livro demonstra os esforços empreendidos pelo governo americano, a partir do fim da 2ª Guerra Mundial, para exportar a arte americana principalmente para a Europa, numa tentativa de neutralizar a influência comunista sobre os intelectuais europeus.

[27] THUILLIER, .op. cit., p. 36.

[28] Idem, ibidem, p. 36.

[29] Idem, ibidem, p. 37.

[30] Idem, ibidem, p. 38.

[31] Idem, ibidem, p. 39.

[32] Sobre esse assunto, ver VAISSE, Pierre. A estética do século XIX: da lenda às hipóteses. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ha/vaisse.htm.

[33] THUILLIER, op. cit, p. 52.

[34] Idem, ibidem, p. 55.

[35] Idem, ibidem, p. 56.

[36] Idem, ibidem, p. 55.

[37] Idem, ibidem, p. 59.

[38] Idem, ibidem, p. 60.

[39] Idem, ibidem, p. 18.

[40] Idem, ibidem, p. 64.

[41] Idem, ibidem, p. 64.

[42] PEREIRA, Sonia Gomes. Depois do moderno e em plena contemporaneidade, o desafio de pensar a arte brasileira do século XIX. VIS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte, v. 7, n. I, 2008. Brasília, Editora PPG, 2008, p. 73.

[43] THUILLIER, .op. cit., p. 61.1