A Modernidade Acadêmica: Os primeiros tempos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo

Julio Lucchesi Moraes [1]

MORAES, Julio Lucchesi. A Modernidade Acadêmica: Os primeiros tempos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_liceusp.htm>.

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Introdução

O presente texto tem por objetivo promover uma análise histórica sobre o Liceu de Artes e Ofícios nas últimas décadas do século XIX e início do século XX. Através da análise de estatutos, regulamentos e programas das disciplinas dos cursos artísticos, pretendemos demonstrar que a referida escola encontrava-se em muito maior alinhamento com os programas acadêmicos do que querem crer certas leituras de viés modernista ou industrialista. Como veremos, diversos dos elementos tidos como “modernos” nos programas do Liceu de 1873 e, sobretudo, após a reforma curricular de 1895, encabeçada pelo então diretor-geral, Ramos de Azevedo, podem ser enquadrados dentro de uma proposta tipicamente acadêmica. A fim de demonstrar tal ponto, contraporemos alguns dos documentos referentes às atividades do Liceu com outras fontes do século XIX, tal como o Manuscrito inédito sobre o estabelecimento de dupla Escola de Artes no Rio de Janeiro, em 1816 de Joachin Lebreton [cf. link], documento capital e que orienta boa parte dos estudos sobre a produção acadêmica brasileira no XIX.

Com tal objetivo, dividimos o texto em duas seções: na primeira analisaremos as discussões e estatutos quando da criação da escola pela Sociedade Propagadora da Educação Popular, no ano de 1873. Em seguida, veremos em que sentido a reformulação do currículo de 1895, sob orientação do novo diretor, Ramos de Azevedo, pode ter intensificado, e não abrandado, a orientação acadêmica, contrariando a leitura tradicional.

A Sociedade Propagadora e os primeiros anos do Liceu

A organização de um Liceu de Artes e Ofícios na capital da então província de São Paulo dos anos 1870 foi encabeçada por um grupo de intelectuais paulistas ligados aos grandes capitais cafeeiros. A lista e o perfil dos membros da Sociedade Propagadora, a associação montada com o intuito de organizar e arrecadar fundos para a referida escola, não nega a imensa presença de membros da elite (D’ANGELO, 2000, p.112-113). A partir da análise do perfil socioeconômico e da análise da formação dos membros da direção da Sociedade, busca a pesquisadora Márcia D’angelo enquadrar o Liceu num plano maior, a saber, o de um grande programa educacional e moralista de vertente positivista (idem, p.106).

Tal leitura ganha força se tivermos em mente que as primeiras atividades do estabelecimento, antes mesmo da instauração dos cursos de artes propriamente ditos foram os ciclos de conferências relacionadas a temas “morais” (idem, p. 95). Também Roberto Dupré parte desse enfoque positivista. Contudo, ele vai além de D´angelo ao afirmar que:

A Sociedade Propagadora, fruto do positivismo vigente, acreditava na educação popular [...]. Introduziu no currículo uma inovação que estava sendo experimentada nos EUA e na Europa: os cursos profissionalizantes (1984, p.16).

As leituras divergem quando da avaliação desse plano positivista ou proto-industrialista. Assim, observar-se-á um espectro vastíssimo de análises, algumas delas em patente oposição. D’angelo, por exemplo, defenderá que o curso prestava-se, a bem da verdade, a um programa de “domesticação” e “disciplinarização” dos operários, a partir do rigoroso cumprimento das hierarquias internas e da obediência aos mestres e currículos escolares (D’ANGELO, 2000, p.106). Já Antônio Hélio Cabral, partindo de fontes similares, chega a uma visão completamente distinta. Para ele, o estabelecimento teria sido uma experiência de natureza quase “socialista utópica”. Em texto introdutório sobre a biografia de Divani e Norfini, dois professores da escola no período, afirma o autor sobre a escola:

Nós aqui também tivemos nossas manifestações de socialismo utópico. Em nossa Paulicéia, tivemos lugar para acolher transformações de mentalidade. O imigrante veio trazendo uma contribuição produtiva e cultural de qualidade indiscutível, rechaçando o imutável das classes sociais e tangendo as visões coniventes com os colonialismos (1981, s/p).

Ante esse emaranhado de interpretações e agenciamentos ideológicos, cabe perguntar-se o que se aprendia no Liceu de Artes de ofícios nestes primeiros anos. Vimos que as primeiras atividades do local foram as conferências, mas ao que tudo indica, o estabelecimento abandonou esse tipo de atividade em prol de um programa mais bem definido. Há, sem embargo, grande ênfase no desenho nestes primeiros anos do Liceu, pelo menos no que tange aos cursos ligados às artes (SILVEIRA, 1983, p.23). Na fala à Assembleia Legislativa feita pelo então Conselheiro Francisco C. Brandão em 1883, veremos que das 14 disciplinas pertencentes ao chamado “Grupo das Artes”, 6 eram dedicadas ao desenho (SEVERO, 1934, p.167). Vejamos de que maneira a bibliografia analisou essa ênfase no desenho. Afirma Paulo César da Silveira que:

A defesa do ensino do desenho como parte do currículo das escolas primárias e secundárias nasce, então, da articulação entre esses elementos liberais e positivistas, com repercussões que chegam até nós. Não se configura muito difícil mostrar que o Liceu repousa nestas concepções (SILVEIRA, 1983, p.23, destaque meu).

Estabelece-se, uma vez mais, a ligação entre o Liceu e um programa de proto-industrialização paulista, avaliação símile àquela feita por Márcia D’angelo. Parece-nos, contudo que o grande modelo curricular para a criação do programa do Liceu não eram as nascentes escolas profissionalizantes dos EUA e da Europa, mas sim o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, criado há mais de três décadas, no ano de 1858. A comparação entre o Regulamento de artes ofícios publicado pela Sociedade Propagadora das Belas Artes no Rio e o discurso de Brandão tem analogias impressionantes. No Rio, o chamado “Grupo das Artes” era composto por 10 cadeiras, sendo 6 na área do desenho (DURAND, 1989, p.63). Diversas cadeiras têm o mesmo nome, como a de “desenhos de máquinas”. Noutras, há pequenas variações: enquanto em São Paulo ensina-se “desenho de ornato, de flores e de paisagem” e “Escultura de ornatos e arte”, no Rio encontraremos “desenho de ornato, de flores e animais” e “Escultura de Ornatos e Arte Cerâmica” (cf. idem, ibidem e SEVERO, 1934, p.167). Mesmo o nome da associação responsável pela organização do estabelecimento, a “Sociedade propagadora da educação popular” de São Paulo, tem inegáveis semelhanças com a Sociedade Propagadora das Belas Artes fundada nos anos 1850 no Rio.

A lista de homologias entre os dois liceus não se encerra por aí. Afirma Ricardo Severo que desde cedo, a direção do Liceu passou a reivindicar do governo da Província a criação de exposições de Belas Artes, a criação de prêmios aos artistas e aquisição de obras clássicas, notadamente de gessos para a composição de uma gipsoteca, tida por fundamental para a plena realização dos estudos do Liceu (idem, p.40 e 33). Ora, não nos parece coincidência que tal reivindicação esteja presente também na proposta para a criação de uma Escola de Belas Artes e Ofícios no Rio de Janeiro feita por Joachin Lebreton ainda no início do século XIX. Afirmava o francês que:

Com relação aos diversos graus do ensino do desenho, falei dos modelos em gesso, moldados do antigo; é necessário voltar aos mesmos e completar o ponto dos modelos em geral, tirados das belas obras de arte [...]. Esses modelos serviriam não somente para a escola de belas artes, mas, em parte, para a de artes e ofícios (1815, s/p).

Sabemos, pela compilação de documentos e inventários feita por Ricardo Severo que o Liceu de Artes e Ofícios realmente efetuou a compra desses modelos, contando com pelo menos 380 modelos de “obras do Louvre, Prado, de Milão e de Florença” (SEVERO, 1934, p.40)[2]. Outras comparações entre as atividades do Liceu e o documento de Lebreton mostram homologias. Também no documento de 1815 dar-se-á grande relevância ao ensino do desenho. O curioso é que essa predominância do desenho não se observa apenas no curso de Belas Artes, mas também no programa de formação de artesãos e aprendizes. Note-se, na passagem abaixo, que o programa de Lebreton envolvia a implantação de uma dupla escola na corte carioca, isto é, uma escola de Belas Artes mas também um Liceu de Artes e Ofícios:

As artes do desenho, que produziram em poucos anos, no México, surpreendente melhoria em muitos ramos da indústria e das Belas Artes, e a propagação simultânea do desenho nas artes e ofícios que dele podem aproveitar, devem ter em todos os lugares o mesmo efeito; mas eu proporei não se esperar a sucessão de tempo necessária para que a influência de vossa principal escola chegue às oficinas de Artesão, e ofereço-me para organizar, com o ensino das Belas Artes, a propagação simultânea do desenho nas artes e ofícios que dele podem tirar proveito (1815, s/p) [3].

Parece-nos, pelo que foi apresentado, que já alguns argumentos no sentido de relativizar as leituras modernistas ou proto-industrialistas ligadas ao Liceu. Nosso trabalho, contudo, não estaria completo se não analisássemos a atuação de Ramos de Azevedo no local, analisando a reforma curricular por ele conduzida no ano de 1895. Será este o tema de nossa próxima seção.

Ramos de Azevedo e o programa de 1895

Ramos de Azevedo é uma das figuras mais lembradas e citadas pelos diversos estudiosos sobre o período inicial do século XX. Seja pelo grande número de projetos entregues por seu escritório a partir de 1896, seja pela sua ligação com os membros da elite cafeeira paulistano, a reconstrução de sua biografia vem sendo tema recorrente nos mais diversos campos da Academia. Acreditamos, junto com Maria Cristina Wolff de Carvalho, que o primeiro passo numa tal direção é o de remover o adjetivo “eclético” de sua produção, tentando contextualizá-la de maneira mais sólida (2000, p.25). Discordamos, contudo, da maneira pela qual boa parte da bibliografia conduziu o tema, vendo no arquiteto e engenheiro paulista uma espécie de “precursor” do modernismo arquitetônico.

O argumento é defendido, por exemplo, por Ana Maria de Goés Monteiro ao analisar a produção do jovem Ramos de Azevedo. Recém chegado de sua estadia na Bélgica, Azevedo assinou diversos projetos na cidade de Campinas. Ao falar sobre o projeto da Escola Ferreira Penteado, encomendada por Joaquim Ferreira Penteado, futuro Barão de Itatiba, vê a autora no político campinense um homem de caráter dinâmico e moderno:

Em sintonia com as ideias positivistas de ordem e progresso [...]. Expressivo representante da burguesia local, simpatizante da ideia de produzir uma nova Campinas, mão-de-obra qualificada e edifícios modernos para o cumprimento de tal anseio (2000, p.45).

Vemos na passagem de Monteiro a tentativa de alinhar a parceria Penteado- Ramos de Azevedo uma vez mais àquela leitura modernista e proto-industrialista, agenciando nesse sentido sua passagem pela direção do Liceu. De fato, sua biografia e a do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo se confundem: Azevedo seguiu à frente do Liceu por 30 anos (D'ANGELO, 2000, p.98), sendo, por tal razão fundamental reconstruir sua atuação à frente da instituição. Vimos que já em seu primeiro ano como diretor-geral, em 1895, Ramos de Azevedo promoveu mudanças na estrutura curricular. Sobre o tema, afirma Paulo César da Silveira:

Aquele programa original de 1882, que atribuía importância muito grande ao ensino do desenho, foi reestruturado com a supressão de algumas disciplinas teóricas, dando-se maior ênfase ainda ao ensino do desenho linear, de ornato, arquitetura e máquinas (1983, p.23).

São diversas as avaliações feitas ao longo da bibliografia sobre essa reforma curricular de 1895. Há, por exemplo, bastante enfoque naquele que seria a grande “marca” pessoal (e “moderna”) de Azevedo: sua grande capacidade empresarial e seu perfil comercial (D’ANGELO, 2000, p.100). Não são raros os epítetos de “pai da construção civil”, “empresário inovador” ou “empreendedor pioneiro” a ele atribuídos. De fato, Ramos de Azevedo abre em 1896 seu escritório em São Paulo valendo-se, para seus projetos, de inúmeros alunos saídos dos quadros do Liceu, fazendo com que, inclusive, a escola atingisse, já no século XX, auto-suficiência financeira (idem, ibidem). Em que sentido podemos ver nesse ímpeto empresarial uma personalidade e um projeto efetivamente “modernos”? Ora, se voltemos ao documento de Lebreton de 1815 veremos que também lá se aventava a criação de oficinas de artes e ofícios auto-sustentáveis. Destacando as possibilidades de independência financeira de tais oficinas, afirma o artista francês que:

Não desejaria que o Governo se encarregasse dessas oficinas, nem de nenhuma outra despesa a não se a da viagem dos indivíduos que as integrassem; seria dispensar demasiado e torná-los menos ativos. Basta que alguns negociantes lhes assegurem trabalho e existência, fornecendo-lhes locais para as oficinas e as matérias-primas; façam tais negociantes com que se vendam os produtos do trabalho e deixem parte do lucro aos chefes das oficinas e o objetivo será alcançado (1815, s/p).

Além de seu perfil empreendedor, costuma-se destacar outro ponto da biografia de Ramos de Azevedo que supostamente comprovaria sua adesão à modernidade: trata-se de sua incursão à Bélgica na década de 1870 onde realizou o curso de Arquitetura e Engenharia da École Du Génie Civil e a École de Arts et Manufactures da Universidade de Gante (MONTEIRO, 2000, p.20). Intriga-se Monteiro pelo fato de Ramos de Azevedo ter escolhido uma instituição belga em detrimento de uma francesa, destino mais comum dos estudantes brasileiros do período (idem, p.21). Embora destaque certas dificuldades financeiras de sua família, a princípio incapazes de bancar uma estadia em Paris, a autora prefere interpretar a “escolha” do estudante de outra maneira: “é provável que ele já estivesse imbuído do espírito de ver in loco cidades nas quais uma nova urbanidade estava se configurando” (idem, p.24). Seria de se esperar, nesse sentido, que a autora fosse adiante na tentativa de efetivamente reconstruir o ambiente belga no final do século XIX, bem como os conteúdos e currículos do referido país no período. Sem embargo, não há um esforço nesse sentido, embora haja referência ao trabalho de Maria Cristina Wolff de Carvalho.

Há, de fato, nesta pesquisa uma preocupação muito maior com a análise dos programas oferecidos pelas instituições e cursos frequentados por Azevedo quando de sua estadia em Gante. Aqui, temos maior acesso ao tipo de educação que Ramos de Azevedo teve na Bélgica. A autora chega inclusive a listar as disciplinas e as notas obtidas pelo brasileiro (2000, p.72-75). A proposta da escola politécnica belga era distinta daquela das Escolas de Belas Artes, sobretudo a partir de uma reforma de currículo promovida pelos inspetores de ensino E. Boudin e Ch. Andriers nos anos 1860, alterando o perfil do ensino e afastando o ensino da escola do paradigma francês (idem, p.69).

Exemplo disso é a inclusão de aulas de química e física em laboratórios. Curiosamente, o desenho a mão-livre seguia sendo o carro chefe da pedagogia. Afirma Richard Chafee que o desenho era “a verdadeira linguagem escrita do engenheiro. Com ele [Ch. Andriers] o desenho a mão livre tornou-se uma verdadeira obsessão” (apud idem, ibidem). Tais depoimentos colaborariam para uma leitura “modernizante” a partir do ensino oferecido a Ramos de Azevedo na Bélgica. Contudo, continua Chafee, ao afirmar que:

No novo rumo dado ao programa no setor de engenharia civil, em particular no setor de engenharia civil, em particular para o curso de engenheiro-arquiteto, não foi elaborado um programa mais diversificado. Consequentemente, aqueles estudantes engenheiros-arquitetos que na universidade sentiam falta do componente artístico eram aconselhados a fazer um curso noturno na Academia de Belas Artes (apud idem, ibidem).

A recomendação adere-se perfeitamente à biografia de Ramos de Azevedo. O então estudante matricula-se em disciplinas de cunho artístico junto à Academia Real de Belas Artes de Gante. Embora os dados sobre esta instituição sejam escassos, sabemos que os colegas de turma de Azevedo dedicavam-se, sem exceção, às artes aplicadas - marceneiros, estucadores, vitralistas etc. (idem, p.72). Outra informação fundamental levantada pela autora é uma contextualização da referida academia dentro do panorama educacional belga. Afirma ela que:

A Academia de Belas Artes de Gante parece ficar a meio caminho entre as demais. Na medida em que não se propõe ao ensino superior, pelo menos no período estudado, ela não compete ou tem um lugar ao lado das demais. Infere-se também que a tradição acadêmica das “artes do desenho” deva ter proporcionado, na “classe de arquiteto”, o ensino voltado ao adestramento da apresentação arquitetônica através desse meio (idem, p.93).

Esse breve resgate biográfico de Ramos de Azevedo nos leva a uma situação inconclusiva: se, por um lado, o ensino junto a École Du Génie Civil já apresentava um currículo mais afeito às linhas “modernas”, o mesmo não pode ser dito dos cursos da Academia de Belas Artes. Em todos os casos, vemos uma vez mais o triunfo do desenho, esteja ele vinculado a uma programática moderna ou acadêmica. Parece-nos, sem embargo, que foi inspirado em sua estadia na Bélgica e sob a influência de um desses currículos (senão os dois) que Ramos de Azevedo promoveu sua reforma de 1895 no Liceu[4]. O desenho, que já era importante no plano anterior, chega agora a níveis incríveis. Numa descrição da grade do Curso Geral de Artes no ano de 1908, cursado ao longo de 5 anos, oferecia-se aos alunos o seguinte programa:

Desenho linear geométrico, geometria plana, no espaço e geometria descritiva, desenho linear a mão livre, desenho arquitetônico, divididos em generalidades da arquitetura, ordens arquitetônicas e desenho de edificações, desenho profissional (com desenho aplicado à profissão que se destina o aluno: marcenaria, serralheria, etc.), modelação para materiais plásticos, técnicas e utensílios para modelação, desenho e pintura nas artes decorativas com teoria das cores, pintura decorativa, materiais, utensílios e técnicas especiais, História das Artes e Estética como estudo da obra de arte, História geral das Belas Artes, História da Arte norte-americana, arte colonial e arte moderna no Brasil (NAGAMINI, 1999, p.188)

Para o cumprimento desse extenso programa, a instituição precisou contratar mais professores. Desses novos docentes, um dos mais destacados é o italiano Domiziano Rossi, que trabalho com Azevedo na decoração do Teatro Municipal de São Paulo. Rossi teria grande importância no escritório Ramos de Azevedo chegando, inclusive, ao cargo de sócio da firma (SILVEIRA, 1983, p.33). Sua inserção dentro do Liceu, todavia, não parece ter ocorrido primordialmente por méritos empresariais ou comerciais: Rossi entrou na escola como professor de desenho geométrico e ornato (idem, ibidem). Outros professores incorporados no período também traziam bagagem acadêmica: Felizberto Ranzini e Pedro Alexandrino foram contratados como professores de figura e paisagem. Também Almeida Junior passou pelo Liceu no período (Nagamini, 1999, p.181).

Talvez não exista depoimento mais relevante do que o do próprio Ramos de Azevedo. Em defesa de seu programa, orientado pelo desenho, afirmou o arquiteto no ano de sua posse:

A importância atribuída a este curso gráfico corresponde exatamente à orientação primordial destinada a alunos operários, para os quais o aprendizado do desenho equivale ao conhecido das primeiras letras (apud idem, p.23).

Se é verdade que tal frase poderia subsidiar uma argumentação pró-moderna, ao mesmo tempo ela não estaria em desacordo com as doutrinas ou programas acadêmicos. Curiosamente, certos depoimentos de ex-alunos, professores ou pessoas ligadas à instituição naqueles tempos apontam para uma relativização semelhante. Encontramos um desses depoimentos no trabalho de Paulo César da Silveira. Trata-se do testemunho de Samuel Ribeiro, aluno do Liceu nos anos 1920[5]:

O Liceu não conseguiu um entrosamento maior com a indústria. Apartado dessa realidade, os seus produtos adquiriram mais tarde alto preço, dada a inegável qualidade da mão-de-obra, mas sem significação como produto de uma mentalidade moderna (apud idem, p.49, destaque meu).

Já Luiz Gonzaga Ferreira, interventor da Escola Técnica Federal de São Paulo nos anos 1960 e membro da diretoria do nascente SENAI nos anos 1940 classificava o Liceu da década de 1930 como “uma fábrica de má qualidade” (apud D’ANGELO, 2000, anexo, p.15) [6]. Não estaria tal depoimento apontando num sentido semelhante? Como explicar essa “falta de entrosamento” com a nascente indústria? Parece-nos, por esta e pelos demais argumentos aqui apresentados, que a plena definição da atuação de Ramos de Azevedo, bem como a do Liceu de Artes e Ofícios nos primeiros anos da década segue inconclusiva.

Conclusões

Embora a abordagem mais recorrente, junto à bibliografia, seja a de atrelar o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo a um discurso modernista e/ou proto-industrialista, o presente texto optou por um enfoque distinto. Nosso objetivo foi demonstrar em que sentido o ensino do Liceu, sobretudo em suas primeiras décadas de existência, pode ser visto à luz dos temas ligados ao programa acadêmico do que aos preceitos modernos.

O trabalho partiu da análise de fontes secundárias, cotejando as interpretações da bibliografia com estatutos, regulamentos e outros documentos do século XIX. O resultado desse cotejamento foi senão a rejeição, pelo menos a relativização da leitura modernista ou proto-industrialista. À luz desse material, vimos que o ensino do Liceu de Artes de Ofícios em suas primeiras décadas pode ter estado em muito maior alinhamento com o plano acadêmico do que quer crer a interpretação usual.

Bibliografia

CABRAL, Antônio Hélio. Divani e Norfini - mestres pintores do Liceu de Artes e Ofícios e a modernidade paulistana. São Paulo: Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, Museu Lasar Segall, 1981.

CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. A arquitetura de Ramos de Azevedo. São Paulo: EDUSP, 2000.

D’ANGELO, Márcia. Caminhos para o advento da escola de aprendizes artífices de São Paulo (1910-1930). 2000. 350p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000.

DURAND, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classes dirigentes no Brasil (1855-1985). São Paulo: Perspectiva, 1989.

DUPRÉ, Roberto. 111 Anos de Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. São Paulo: Conselho do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, 1984.

LEBRETON, Joachin. Manuscrito inédito sobre o estabelecimento de dupla Escola de Artes no Rio de Janeiro, em 1816. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/lebreton_manuscrito.htm>. Acesso 1 out. 2010.

MONTEIRO, Ana Maria de Goés. Ramos de Azevedo: presença e atuação profissional - Campinas (1879-1886). 2000. 300p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, 2000.

NAGAMINI, Marilda. Contribuições para a história da construção em São Paulo: o ensino e a pesquisa. 1999. 235p. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.

SEVERO, Ricardo. O Liceu de Artes e Ofícios: histórico, estatutos, regulamentos, programas, diplomas. São Paulo: S.N., 1934.

SILVEIRA, Paulo César da. O Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo: arte e indústria em São Paulo. São Paulo: FAU, 1983.


[1] Mestrando do programa de pós-graduação em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). e-mail: julio.moraes@usp.br

[2] A relação completa dos moldes pode ser vista nos anexos da compilação de Ricardo Severo.

[3] Outros argumentos que reforçam a predominância do desenho no quadro de disciplinas: Dos 738 alunos matriculados no Liceu no ano de 1888, 109 encontravam-se nas cadeiras de desenho ou geometria. Trata-se do maior contingente daquele ano, perdendo apenas para os cursos primários de adultos (243) e menores (235) (NAGAMINI, 1999, p.171). Outro dado interessante vem da compilação de documentos da pesquisa de Márcia D´angelo sobre as Escolas de Aprendizes Artífices. O artigo 15 do Decreto nº7566 de 23/09/1909 (Criando nas capitais as escolas de aprendizes artífices) colocava o desenho, juntamente com os cursos básicos de alfabetização como curso obrigatório, ficando o restante do programa sob responsabilidade dos diretores locais (cf. 2000, anexo II).

[4] Carvalho aponta ainda para uma terceira influência, que seriam as concepções do professor Adolphe Pauli, com as quais Ramos de Azevedo teria travado conhecimento (cf. 2000, p.93-102).

[5] O depoimento faz parte da pesquisa Contribuição ao estudo da Art Nouveau no Brasil de Flávio Motta. Afirma Motta que Ribeiro foi “uma das testemunhas da vida do Liceu”. Nem nesta pesquisa e em nenhuma outra fonte consultada, todavia, conseguimos extrair maiores informações sobre esta figura, exceto sua vinculação como aluno ao Liceu nos anos 1920.

[6] Para um estudo sobre a relação entre os Liceus e o SENAI, ver D’angelo (2000, passim).