Notas artísticas: artes no cotidiano de uma Belém de outrora [1]

Gabriel Borges Souza [2]

SOUZA, Gabriel Borges. Notas artísticas: artes no cotidiano de uma Belém de outrora. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVII, n. 1-2, jan.-dez. 2022. https://doi.org/10.52913/19e20.xvii12.04

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1.      O presente ensaio acadêmico traz à tona uma discussão que compõe o primeiro capítulo de minha dissertação de mestrado que está em andamento,[3] e que tem como tema central o papel da crítica de arte no circuito de exposições de Belas Artes de Belém, na virada do século XIX para o XX. A crítica de arte como gênero literário emergiu nas linhas de secções voltadas à arte nos jornais diários, em Belém e Brasil afora.[4] Desta forma, faz-se necessária a investigação dos jornais como fontes primárias[5] para compreender algumas questões: a) o que se falava sobre arte nos jornais diários da capital paraense nesse período? b) com que frequência se falava sobre arte em geral? c) quem falava? É no intuito de responder tais questionamentos que me propus a investigar a coluna “Notas Artísticas,” do jornal Folha do Norte.

2.      Em grande escala microfilmado e reservado na seção de obras raras da Biblioteca Pública Arthur Vianna, na Fundação Cultural do Pará, e até mesmo digitalizado e disponível online no site da Hemeroteca Nacional,[6] o trato com o jornal para a construção da narrativa que segue foi realizado, a priori, por amostragem. Analisei inteiramente o primeiro ano de publicação do jornal - 1896 -, no intuito de conhecer sua estrutura e a organização de suas colunas. Após folhear as páginas do impresso e me emergir no cotidiano dessa Belém de outrora através de notícias, crônicas e classificados publicados no jornal, me ative a analisá-lo entre os anos de 1897 a 1903, no intuito de investigar se a virada do século trouxe grandes mudanças para a forma com que o jornal era redigido.

3.      Parto do pressuposto de que escrever História Social da Amazônia é apresentar uma narrativa que contemple a complexidade dos contextos, espaços e agentes que nela estão inseridos. Desta forma, tratarei de apresentar a secção “Notas Artísticas” - que posteriormente vem a se chamar “Notas de Arte” - como uma seção moderna em seu contexto de publicação, argumentando que Belém, na virada século XIX para o século XX, não estava alheia às discussões nacionais e mundiais sobre as artes, muito pelo contrário: tinha em seu cotidiano, ainda que para uma gama seleta da sociedade, o hábito de debater e se informar acerca das manifestações artísticas que ocorriam na cidade, assim como mundo afora.[7]

4.      No intuito de romper com as velhas amarras historiográficas que em tempos idos se esforçaram em construir uma imagem romantizada da Belém do entre séculos (XIX-XX) como a “Paris N’América” ou “Petit Paris,” me dediquei a analisar com uma criticidade mais apurada as notícias, críticas e informes contidas na seção “Notas Artísticas” ou “Notas de Arte”. Desta forma, tento ousadamente argumentar que, envolvidos por uma quimera da Belle Époque,[8] alguns redatores realizavam uma espécie de mimetismo a redigir seus textos, voltando demasiadamente seu olhar para a Europa, muito possivelmente expressando suas aspirações pessoais acerca da cidade e de seus movimentos artísticos.

5.      Para sustentar as proposições explicitadas nesta introdução, procurei ser habitual na maneira de realizar meu ofício de historiador. A metodologia utilizada na construção da narrativa das linhas que seguem basicamente se trata da análise crítica das fontes primárias, cruzando-as com uma bibliografia pré-selecionada que me auxiliou na construção de minhas argumentações. Foram visitadas obras que tratam sobre a virada do século XIX para o XX em Belém, obras sobre a imprensa e os jornais impressos no mesmo período em Belém e em outros Estados brasileiros, além de textos que elucidam sobre as discussões que ocorriam acerca das artes no contexto. Em destaque estão alguns conceitos extraídos de uma literatura contemporânea que abarcam as discussões pautadas dentro dos Estudos Culturais, principalmente realizadas por Stuart Hall (2003), além do conceito de mimetismo, encontrado na obra do autor pós-colonial indiano Homi Bhabha (1998).

6.      Operetas, balés, exposições, concertos, trânsito de artistas... O jornal noticiava, convidava, criticava e dinamizava a apreciação das artes nas gentes que ocupavam uma Belém de outrora. Veremos.

Apresentando o “quotidiano e independente”: o jornal Folha do Norte pelas ruas de Belém

7.      O final do século XIX marcou, dentre tantas permanências e rupturas, a consolidação dos jornais impressos como principal veículo de informações sobre o cotidiano das cidades brasileiras. A modernização promovida pelas máquinas no processo de impressão e as crescentes redações ofereceram uma dinamização na circulação dos jornais pela sociedade em geral. No topo do mapa brasileiro, no Estado do Pará, não foi diferente, visto que na sua capital, Belém, diversos jornais diários e periódicos tomaram notoriedade no período citado, sendo responsáveis por comporem uma gama plural de publicações.[9]

8.      No dia 01 de janeiro de 1896, passou a circular pelas ruas de Belém o jornal diário intitulado Folha do Norte [Figura 1], impresso que continha as características vigentes dos jornais diários que circulavam na capital paraense e nas demais capitais brasileiras no período, e que expunha em suas páginas a representação do cotidiano de uma cidade que se esforçava em se modernizar:

9.                                    Absolutamente imparcial, a FOLHA DO NORTE recebe e publica todos e quaisquer artigos, notícias e informações, comtanto que lançados em termos convenientes. (Nota publicada no subtítulo da primeira página do jornal diariamente até o ano de 1906, quando o bordão muda para “Jornal da manhã, quotidiano e independente”).

10.                                  A Folha do Norte é de um feitio attrahente, todo á moderna, trazendo texto variado e copioso. Entre os seus melhoramentos, avulta um bello serviço telegraphico, que, dentro em pouco, fal-a-á objeto de incessante e imensa procura. O material da Folha do Norte é todo novo, sendo nítida a sua impressão. (Trecho do jornal República, publicado na Folha do Norte, 04 jan. 1896, p.1).

11.    Trazendo seu formato dividido em quatro páginas e seis colunas, medindo 63 x 43 cm, a Folha do Norte tinha à sua frente como proprietários os senhores Éneas Martins e Cypriano Santos, e contava com uma diversa equipe de redatores, podendo ser citados nomes como os dos senhores: Alfredo Sousa, Firmo Braga, Eladio Lima e Heliodoro de Brito.[10] O jornal era impresso em sua própria tipografia - a “Typ. da Folha do Norte” - e seus redatores diziam prezar pela imparcialidade em suas publicações, tendo como exceção uma pauta: o então Intendente Municipal de Belém, Sr. Antônio José de Lemos,[11] que era proprietário do jornal diário A Província do Pará (1883). Nesse sentido, há um consenso historiográfico de que a Folha do Norte travava um embate político através de suas publicações com A Província do Pará.[12] A Folha representava o Partido Republicano Federal (PRF) e dava ecos aos projetos e posicionamentos políticos de Lauro Sodré[13] – estando, portanto, bem longe de ser imparcial -, enquanto A Província servia como principal veículo de propagação dos projetos e feitos do Intendente Antônio Lemos.

12.    Para além das pautas políticas, diversas seções podiam ser encontradas nas quatro grandes páginas que compunham a Folha. As duas últimas páginas eram sempre preenchidas com classificados e anúncios de produtos e serviços, dos mais diversos.[14] Além dos classificados, informações sobre o comércio da época também tomavam conta destas mesmas páginas veiculadas pelo jornal.[15] Nada de muito novo até aqui. Porém, as duas primeiras páginas pareciam trazer impresso em suas seções o discurso da modernidade que muito tentou se empregar para a cidade de Belém nesse período.

13.    A primeira página da Folha não contava com seções exclusivas, variando a cada edição o que era noticiado. Comumente, o jornal abria suas edições com discussões sobre alguma pauta informativa que seria de interesse mútuo de seus leitores e assinantes.[16] As demais colunas eram preenchidas com seções que apareciam na primeira página com certa frequência como a “Tim-Tim-Por-Tim-Tim,” de contos; a “Jornalzinho da Moda,” de crônicas; a “Revistas e Jornais,” que tinha por intuito debater publicações de outros jornais impressos, entre outras. Imprimindo em suas páginas crônicas, contos e outros gêneros literários, assim como publicações informativas, a Folha, em sua primeira página, mostrava-se preocupada em atender à demanda de agentes que buscavam se conectar com os debates e tendências que estavam em voga naquele contexto. É importante frisar que o uso de ilustrações e imagens era quase nulo no jornal. Portanto, cabe conjecturarmos que o público consumidor da Folha se tratava, majoritariamente, de pessoas letradas, o que não reduz o alcance do periódico apenas a este público.

14.    Já na segunda página, o jornal trazia impressas algumas seções fixas em suas colunas. Na primeira coluna a seção “Nossos telegrammas - notícias do país” era publicada diariamente, sendo algo que a redação do impresso tratava como um trunfo.[17] Outra seção publicada diariamente na segunda página da Folha era a “Echos e Notícias:” Tratava-se de uma coluna quase sempre muito extensa, que pautava informações sobre o cotidiano da sociedade da capital paraense, funcionando como uma espécie de colunismo social do período. Quase que semanalmente, a redação também reservava um espaço na segunda página para a publicação da seção “Notas Sportivas,” que abordava temas como o ciclismo e o Jockey Club, práticas esportivas de alguns agentes residentes de Belém. Em meio a esse emaranhado de letras, na terceira edição da Folha, compondo a segunda página do impresso, foi publicada pela primeira vez a seção “Notas Artísticas,” que se consolidaria como uma das principais do jornal.[18]

Artes no cotidiano de uma Belém de outrora

15.    Sabe-se que, no período em discussão, ocorria na cidade de Belém a expansão e a consolidação de circuitos artísticos diversos. A inauguração do Theatro da Paz (1878) aparentemente marcou o início do hábito na sociedade belenense de reservar um tempo para apreciação das artes. Fortemente influenciados pelo ideal de modernidade que era empregado na mentalidade do contexto, diversos agentes estavam presentes na sala de espetáculos do teatro para apreciarem balés, operetas e concertos.[19] Expandindo a programação, um circuito de exposições de Belas Artes também se consolidou na capital paraense, em espaços privados e públicos. Apreciação, consumo, exposições de artistas nacionais e internacionais, tornaram-se características desse período, principalmente quando as exposições de arte passaram a ocorrer no foyer do Theatro da Paz no ano de 1906.[20]

16.    A seção “Notas Artísticas” passou a ser publicada na Folha no intuito de convidar e informar o público acerca dos eventos voltados às artes que ocorriam na cidade de Belém, além de ser um espaço utilizado pelos redatores para tecer críticas e elogios às apresentações e exposições que ocorriam na cidade. Seu formato variava a cada publicação, assim como a extensão dos textos apresentados. Por vezes, a seção era composta por apenas um texto tratando sobre uma única apresentação. Porém, comumente eram publicados vários textos de pequena extensão, tratando dos mais diversos assuntos envolvendo as artes:

17.                                  NOTAS ARTÍSTICAS

18.                                  No Rio de Janeiro, o pintor Antônio Parreiras está trabalhando em um estudo tamanho natural da figura principal de grande quadro representando (ilegível) episódio do Evangelho das Selvas, de Fagundes Varella. O heroe do quadro é um jovem misionario, que morre assassinado pelos índios, quando se preparava para dizer a missa meio das selvas.  

19.                                  O quadro (ilegível), do pintor Paolo Miehetti [sic], La Figlia de Joria [sic] que tanto barulho fez na recente exposição de Veneza, foi vendido por 30:000 libras, mais de 30:000 ao cambio actual. (Folha do Norte, 05 jan. 1896)

20.    Nos seus anos iniciais, as pautas trazidas pela seção tratavam majoritariamente dos espetáculos ocorridos no Theatro da Paz, informando os leitores do jornal sobre as apresentações que ocorreriam no dia da publicação. Era muito comum também que os redatores publicassem extensas matérias comentando as apresentações, muito possivelmente no intuito de alavancar o público e de influenciar os leitores a frequentarem o espaço:

21.                                  Hoje só deixará de ir ao theatro quem absolutamente andar sem gosto, sem sorte ou sem vintém. E' verdade que, festa sob os auspícios da imprensa como é a de hoje, os lugares já andavam ante-hontem por empenho. E como deixar de ser assim, desde que ao destino do producto da recita se junta a beleza da opereta que te vae representar, Rafaello e la fornavina, e o esmero com que os principaes artistas dão relevo á partitura e ás pilhérias sadias do libreto? (Folha do Norte, 02 mai. 1897, grifos meus)

22.    Além disso, notícias diversas sobre artes nacionais e internacionais eram veiculadas na seção, enfatizando questões como a compra e venda de obras de arte, ereção de monumentos, concursos de arte, entre outros. Por exemplo: “Foi inaugurado em Paris, na praça do Odéon, o monumento de Emilio Augier. Presidiu a cerimônia da inauguração M. Gerome, eleito substituto do illustre Gounod, que a devia presidir.”[21] Logo, longe de estar desconectada dos debates que estavam ocorrendo nos grandes eixos sobre arte, a cidade de Belém vivenciava sua própria experiência cotidiana com a apreciação das artes. Embora não queira adentrar em um debate extenso, é importante frisar que havia no período um projeto político vigente que, sob forte influência dos ideais republicanos de progresso, civilização e modernidade, enxergava o estudo e a apreciação das artes, ou Belas Artes (para utilizar um termo muito reproduzido no período) como uma maneira de educar a população sobre o assunto.[22]

23.    Ao analisar a seção jornalística “Notas Artísticas” e correlacioná-la com os circuitos artísticos que ocorriam em Belém, tenho como intuito argumentar que a capital paraense, a partir do último quartel do século XIX, tornou-se uma das capitais mais ativas, em solo nacional, voltada para a apreciação, estudo e discussão das artes. Refletindo acerca deste movimento cultural que emergia na cidade, me aproprio do conceito desenvolvido pelo autor jamaicano Stuart Hall (2003), cunhado como “rupturas significativas.” Para o autor, tais rupturas são o momento “em que velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas.[23]

24.    Operetas, balés, exposições, concertos, trânsito de artistas... O jornal noticiava, convidava, criticava e auxiliava na consolidação de um circuito extenso de apreciação das artes pelas gentes de uma Belém de outrora. Desta forma, saltam as lentes do pesquisador histórias que podem ser narradas através de uma literatura contemporânea ligada aos Estudos Culturais como viés de análise. Neste sentido, torna-se viável sinalizar que a cidade - e até mesmo a Amazônia - não esteve alheia aos processos e modos de vida, apreciação e discussão sobre arte experimentados por outras cidades brasileiras e ocidentais no mesmo contexto. O ideal, porém, é sempre atentar-se as singularidades:

25.                                  É nesse contexto que a “teoria da cultura” é definida como “o estudo das relações entre elementos em um modo de vida global”. A cultura não é uma prática; nem apenas a soma descritiva dos costumes e “culturas populares” das sociedades, como ela tende a se tornar em certos tipos de antropologia. Está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas. [...] O propósito da análise é entender como as inter-relações de todas essas práticas e padrões são vividos e experimentados como um todo, em um dado período: essa é sua “estrutura da experiência” [structure of feeling]. (HALL, 2003, p. 131)

26.    No mesmo movimento de observar as singularidades, durante a breve pesquisa iniciada utilizando a Folha do Norte como fonte, uma inquietação ocorreu: observando os três anos de pesquisa realizados para tessitura do presente ensaio acadêmico (1896, 1897 e 1903), pude observar a tendência na pena dos redatores da seção “Notas Artísticas”[24] em noticiar e redigir textos sobre as artes europeias.[25] Sabe-se que, no contexto de publicação do jornal Folha do Norte, o centro da cidade de Belém começava a passar pelo remodelamento urbano que uma parte da historiografia tende a denominar como Belle Époque Amazônica, tendo tal processo se intensificado a partir de 1897, quando Antônio Lemos assume a intendência municipal.[26] A mentalidade do período contribuía para que o representante político de Belém tomasse como exemplo Paris e outras cidades europeias que se modernizavam. Desta forma, criou-se um imaginário entre a elite da borracha de que calçadas, bonde elétrico, arquitetura art nouveau, entre outras novidades, fariam de Belém uma pequena “Paris nos Trópicos.” Acontece que o cenário não se fazia tão favorável para tal:

27.                                  Essa incessante busca dos correligionários em compreender a revelação de um espírito acabadamente aristocrático passava necessariamente pela desvalorização da época e ambiente dessa reencarnação. Belém, todos sabiam, poderia ser, no máximo, uma cópia de suas pretensas congêneres européias, e a belle-époque paraense estava muito distante de uma leve sombra da renascença italiana do século XVI ou da ilustração francesa do século XVIII [...] Para muitos historiadores de hoje toda história não passou de uma quimera amazônica, imersa na legenda e no fausto da goma elástica. (FIGUEIREDO, 2010)[27] 

28.    Indo além, refletir sobre o cotidiano dos demais agentes que vivenciavam as experiências nessa cidade em transformação e que ocupavam suas margens, distantes do centro de arquitetura “à parisiense,” dos senhores engravatados e das senhoras com seus vestidos cheios de anáguas, cabe pensarmos nas zonas de contato culturais[28] que existiam no período, no diálogo entre uma “Petit Paris e uma Belém brejeira:

29.                                  [...] nesses pequenos episódios, como aplaudir danças eminentemente plebeias e de negros, dormir em rede, usar práticas de pajelança, de tomar cachaça em plena manhã por um aluno da Escola Normal - e restando a dúvida se o inspetor estava mais indignado pelo ato de tomar a cachaça, ou de o aluno a ter jogado nos colegas, ou ainda de o aluno o ter enfrentado - a resistência de novos hábitos seja da cultura erudita ou mesmo de higiene por parte das elites, demonstra uma maneira bastante diferente do padrão europeu, no qual a elite se representava, além de ser amplamente compartilhado como práticas culturais compartilhadas. Assim, a cultura da dita Belle Époque é transpassada por várias matrizes culturais, inclusive a afro-indígena. (TAVARES, 2012)[29]

30.    A redação da seção “Notas Artísticas” da Folha, portanto, aparentava estar imbuída da mentalidade propagada por elite recém-formada, escrevendo sobre e noticiando demasiadamente as artes europeias, silenciando as manifestações artísticas que ocorriam fora dos espaços pomposos da cidade como o Theatro da Paz. Estes senhores letrados da capital paraense que escreviam para a Folha pareciam estar ligados diretamente aos tipos de publicações e gêneros literários que estavam em voga no Velho Mundo naquele contexto. Consumidores de literatos como Gustave Flaubert (1821-1880), Théophile Gautier (1811-1872) e Charles Baudelaire (1821-1867), eles se mostravam interessados em enriquecer o cenário intelectual da capital, mimetizando os principais debates acerca da literatura, do teatro, da dança e das artes visuais. Nesse sentido, refletir sobre o conceito de mímica encontrado na obra do autor indiano Homi K. Bhabha (1998) torna-se possível para compreendermos por uma nova óptica a influência do discurso e da mentalidade ocidental nos textos redigidos e publicados na seção “Notas Artísticas”:

31.                                  A mímica emerge como uma das estratégias mais ardilosas e eficazes do poder e do saber coloniais. [...] A mímica colonial é o desejo de um outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não exatamente [...] O desejo de emergir como "autêntico" através da mímica – através de um processo de escrita e repetição - é a ironia extrema da representação parcial. (BHABHA, p. 130)[30]

32.    As “Notas Artísticas” do jornal Folha do Norte estavam presentes no cotidiano dos leitores belenenses, aqueles que estavam envoltos da experiência citadina que a última década do século XIX proporcionava. Ligados a uma elite formada através do enriquecimento rápido propiciado pela exportação do látex, o público leitor da Folha contava com uma seção que apresentava, pautava, noticiava, criticava e elogiava as diversas manifestações e os circuitos artísticos que ocorriam em Belém, em outros Estados brasileiros e na Europa. Incluído com outras diversas novidades trazidas para Belém, o jornal diário Folha do Norte aparentava estar disposto a contribuir, ao publicar seus textos diariamente, com a construção de uma nova imagem para a cidade e para sua população: moderna, artística, culta. Em partes, alguns agentes vivenciaram tudo isso, outros nem tanto. A capital paraense contrastava uma dualidade, e isso está impresso nas páginas dos jornais da época. Era a cidade das artes, do bonde elétrico, mas também, das estivas e das canoas. Não se pode perder isso de vista.

Considerações Finais

33.    O presente ensaio teve por intuito explicitar aos leitores as “Notas Artísticas,” seção que compunha as páginas do jornal impresso de circulação diária, intitulado Folha do Norte, que passou a circular em Belém, capital do Estado do Pará. No contexto histórico retratado, onde os jornais tinham acabado de se consolidar como os principais veículos informativos em larga escala, a Folha correu às ruas de Belém como uma novidade para seus leitores, que majoritariamente faziam parte de uma elite letrada e estavam influenciados pelo projeto de modernidade vivenciado pela capital no período que alguns historiadores retratam como Belle Époque Amazônica.

34.    O cotidiano da cidade amazônica mudou ao se consolidarem circuitos artísticos em seus espaços públicos, com ênfase nas apresentações de espetáculos e as exposições de Belas Artes ocorridas no Theatro da Paz e em seu foyer, respectivamente. A seção “Notas Artísticas” desempenhava um papel central: o de impulsionadora cotidiana da apreciação das artes, através do jornal. Em uma Belém que procurava se modernizar e atender as demandas da política civilizatória do Intendente Antônio Lemos, as publicações contidas na seção “Notas Artísticas” contribuíam para que seus leitores se informassem sobre as manifestações artísticas que ocorriam na cidade, no Brasil e na Europa. Desta forma, argumentei que Belém não estava alheia às discussões sobre arte que ocorriam no período. Pelo contrário: era uma das cidades brasileiras em que mais se apreciava, discutia e vivenciava (como as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo) um cotidiano artístico, em plena Amazônia, como ficou nítido após a análise da Folha do Norte.

35.    Durante o caminho da pesquisa, pude observar que, influenciados pela cultura europeia, os redatores da seção “Notas Artísticas” praticavam uma espécie de mimetismo ao redigir seus textos, preocupando-se em informar e trazer para o debate as artes europeias em demasia nas suas publicações diárias. Entendo a prática como uma estratégia para nutrir a mentalidade dos leitores com a ideia de que Belém não estava distante de Paris ou das demais cidades que eram vistas como referências de modernidade, à época. A problemática surge quando observamos que muitas singularidades ficaram de fora quando analisamos criticamente as fontes. Creio que Belém, como uma cidade multiétnica, abarcava muito mais manifestações artísticas, para além das que o jornal noticiava e discutia. Pode-se observar, então, que a seção “Notas Artísticas” contribuía com o projeto político civilizatório que perpassava pela remodelação urbana, a questão da higiene e todas as outras práticas que marcaram a mentalidade da elite belenense no período que ficou conhecido, para muitos, como Belle Époque.

36.    Na cidade que contrastava fachadas art nouveau com palafitas em suas margens, os membros da elite esforçavam-se em viver a quimera da modernidade, noticiando e pautando os espetáculos de Belas Artes no jornal diário. A contrapelo, pretos e mestiços animavam os arrabaldes que posteriormente se tornariam os subúrbios do Jurunas, do Guamá e da Condor, com seus batuques e suas rodas de carimbó, que eram vistos como crime pelo código de conduta da época. Cidade dual, no final do século XIX, Belém tornou-se um polo das artes socialmente aceitas, noticiadas, com ares europeizantes. Pelas frestas, coexistiam as demais artes e culturas de uma população que não estava nas páginas do jornal, mas que produzia arte à sua maneira.

Referências

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BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Editora UFMG. Belo Horizonte, 1998. 

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HALL, Stuart. Estudos Culturais: dois paradigmas. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidade Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. 

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Fontes

Folha do Norte, 03 jan. 1896.

Folha do Norte, 04 jan. 1896.

Folha do Norte, 05 jan. 1896.

Folha do Norte, 25 jan. 1896.

Folha do Norte, 04 abr. 1896.

Folha do Norte, 03 ago. 1896.

Folha do Norte, 02 mai. 1897.

Folha do Norte, 03 mai. 1897.

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[1] Ensaio acadêmico apresentado para a conclusão da disciplina de Linha de Pesquisa II, componente do quadro de disciplinas ofertadas pelo curso de Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, ministrada pelo Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco.

[2] Discente do curso de Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST) da Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: gabrielsouza091@yahoo.com.br

[3] “Entre o Mundo das Letras e o Mundo das Artes: o papel da crítica de arte no circuito de exposições de Belas Artes de Belém (1896-1912)” é o título provisório da dissertação.

[4] GRANGEIA, Fabiana Guerra. A Crítica de Arte em Oscar  Guanabarino: Artes Plásticas no Século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/criticas_guanabarino.htm

[5] Para a dissertação, selecionei dois impressos diários que circulavam em Belém e que tiveram certa expressividade no período retratado por serem opositores políticos um do outro: A Província do Pará e a Folha do Norte. No presente ensaio, trabalho apenas com a Folha do Norte, que compõe o primeiro subcapítulo de minha dissertação em andamento.

[6] URL: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/folha-norte/101575

[7] Como exemplo, cito uma matéria publicada em 04 abr. 1896 na secção “Notas Artísticas” da Folha. A matéria trazia informações sobre um “leilão de objectos d’arte pertencentes a Alexandre Dumas, que realisou-se na galeria Jorge Petit, em Paris.” Eram comuns matérias deste cunho.

[8] Aqui, referencio o historiador Aldrin Figueiredo, de quem tomei emprestada a alcunha “quimera” para referir-me ao contexto.

[9] FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Páginas Antigas: Uma Introdução à Leitura Dos Jornais Paraenses, 1822-1922. Revista Margens Interdisciplinar, v. 3, 2005.

[10] Folha do Norte, 25 jan. 1896, p.1. Alfredo Sousa é um sujeito de suma importância para minha dissertação que está em andamento. Tratarei de biografá-lo no segundo capítulo. Colecionador, crítico da arte e redator gerente da Folha, muito possivelmente era ele quem assinava a coluna “Notas Artísticas”. Seu pseudônimo era “Alf.”

[11] O jornal trazia em sua proposta editorial o seguinte objetivo: “Lutar pelo desenvolvimento político-social da região, combatendo a política de Antônio Lemos.” Ver: SEIXAS, Netília Silva dos Anjos. A trajetória da imprensa no Pará. Projeto de pesquisa CNPq, Edital MCT/CNPq N º 14/2012 - Universal - Faixa A. Belém: UFPA, 2012.

[12] SOUZA, Gabriel Borges. Das Linhas de Ferro as Linhas Impressas: A Construção da Estrada de Ferro Belém Bragança Segundo a Província do Pará e a Folha do Norte (1883-1908). Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção do grau de licenciado em História pela Universidade da Amazônia. Belém, 2019; FERNANDES, Phillippe Sendas de Paula; SEIXAS, Netília Silva dos Anjos. Comunicação e História: A Imprensa de Belém no Alvorecer do Século XX. Universidade Federal do Pará. Subprojeto do “Jornais Paraoaras”, que possui a mesma proposta, mas com foco no percurso da mídia impressa de Belém no século XIX, foi aprovado no Edital MCT/CNPq/ MEC/CAPES N.º 02/2010; SEIXAS, Netília Silva dos Anjos; SILVA, Camille Nascimento da. A Amazônia é notícia: os sentidos do jornal Folha do Norte sobre a região, de 1896 a 1920. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Manaus, AM – 4 a 7/9/2013.

[13] Lauro Sodré (1858-1944) foi o primeiro governador do Estado do Pará. Teve extensa carreira política no Estado. Militar, compunha o Partido Republicano Federal (PRF).

[14] Anúncio de remédios, mão de obra especializada, leilões, compra e venda de objetos, preenchiam as colunas das páginas quase que majoritariamente. Alguns continham pequenas ilustrações.

[15] As secções “Avisos Marítimos” e ”Boletim do Commércio” eram publicadas diariamente com informações sobre a navegação nos rios amazônicos e com informações sobre exportação e importação de produtos para a região e para o país, respectivamente.

[16] No dia 05 jan. 1896, o jornal abriu sua edição com uma extensão matéria sobre “Os novos impostos federaes a cobrar, segundo a lei orçamentário em vigor.

[17] “O serviço telegraphico da FOLHA DO NORTE é de tal modo organisado que, ao mesmo tempo que na Capital Federal, aqui se estampam os mais notáveis factos da política do paiz” (Folha do Norte, 05 jan. 1896).

[18] Folha do Norte, 03 jan. 1896.

[19] SOUZA, Rosiane Silvera de. Teatro da Paz: Histórias Invisíveis em Belém do Grão-Pará. Anais do Museu Paulista, v. 18. n. 2. p. 93-121, jul.- dez. 2010.

[20] ALVES, Moema Bacelar. Do Lyceu ao Foyer: Exposições de arte e gosto no Pará da virada do século XIX para o século XX. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.

[21] Folha do Norte, 04 jan. 1896.

[22] SARGES, Maria de Nazaré. Memória Iconográfica e Mecenato durante a época áurea da borracha na Amazônia: O projeto artístico-civilizador de Antônio Lemos. In: Anais do XX Simpósio Nacional de História – ANPUH. Florianópolis, julho 1999.

[23] HALL, Stuart. Estudos Culturais: dois paradigmas. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidade Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

[24] A partir de 1903, a coluna já aparece com o título “Notas de Arte.” Retomarei a pesquisa para desvendar quando o título foi alterado, exatamente.

[25] Para não me alongar, cito como exemplo as matérias publicadas em: 04 jan. 1896; 05 jan. 1896; 03 ago. 1896; 04 abr. 1897; e 03 mai. 1897. Reitero que eram publicadas quase diariamente matérias sobre artes europeias.

[26] SARGES, Maria de Nazaré. Memórias do “Velho” Intendente: Antônio Lemos (1869-1973). Belém: Paka Tatu, 2004.

[27] FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Quimera Amazônica: Arte, Mecenato e Colecionismo em Belém do Pará (1890-910). Clio Revista de Pesquisa História, v.28. n. 1, 2010. 

[28] PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império: Relatos de Viagem e Transculturação. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999.

[29] JUNIOR, Raimundo William Tavares. A Escola Normal e a Cidade de Belém do Pará em Tempos de Modernização (1890-1920). Tese defendida no programa de pós-graduação em História da Pontifícia Católica - PUC. São Paulo: 2012.

[30] BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Editora UFMG. Belo Horizonte, 1998.