Debret: um olhar estrangeiro

Janaína Laport Beta (*)

BETA, Janaína Laport. Debret: um olhar estrangeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/jbd_jlb.htm>.

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O presente estudo foca aspecto específico da obra do artista francês Jean-Baptiste Debret: a condição do olhar estrangeiro - aqui entendido por potencialidade do olhar sobre o que é absolutamente inaugural ao artista - no caso especifico, o Brasil - em suas paisagens exóticas que se estabelecem sem relação de equivalência a nenhuma outra em seu arquivo imagético, bem como o meio social díspar daquele deixado em França.

A Chegada

Aporta, no Rio de Janeiro do século XIX, um grupo de artistas franceses tendo por líder Joaquim Lebreton, então recentemente destituído do Institut de France. Com ele o paisagista Nicolas Antoine Taunay; o escultor Auguste Taunay; o arquiteto Grandjean de Montigny; o gravador Charles Pradier e o artista polivalente - pintor, desenhista, gravador, professor, decorador, cenógrafo - Jean-Baptiste Debret. Grupo norteado por um mesmo objetivo: fundar a primeira Academia de Artes, instituindo o ensino das belas artes nesta terra chamada Brasil. A Missão Artística Francesa - especialmente Debret, Montigny e Taunay - tem por principal papel a criação de um sistema de produção artística e a profissionalização dos artistas durante o século XIX. Posteriormente, Gonzaga Duque veria, na abertura da Academia, em 1826, o prenúncio de uma fase de florescimento[1].

Debret deixa França por duas dolorosas motivações: Waterloo e a perda de seu filho. Chega ao Brasil trazendo por bagagem o talento lapidado na Academia de Belas Artes de Paris, e o neoclassicismo aprendido na escola de David - de quem foi primo e discípulo. Pouco após sua chegada se depara com contexto inesperado: sua formação neoclássica é antagônica à realidade brasileira que se desenha em corte caricata, religiosidade fervorosa e anacrônica, que atrela o país aos idos da contra-reforma, bem como numa situação escravista que se estende por demasia e coloca o Brasil na retaguarda do mundo ocidental.

Não há espaço para o neoclassicismo em sua grandiosidade cívica neste mundo tupiniquim que o artista entrevê. Quase podemos imaginar o viajor francês derramando seu olhar estrangeiro sobre o porto, no afã de decodificar a irrealidade caótica que presencia - a qual sabia ter de enfrentar na qualidade de pintor de história. A viagem do artista se revelaria posteriormente, em algumas de suas aquarelas, como as viagens de Gulliver - especialmente nas que retrata famílias brancas de figuras gigantescas a alimentarem negrinhos liliputianos [Figura 1] [2].

O impacto desta visualidade tão desconexa de seu acervo imagético, viria desenvolver, potencializado por seu olhar estrangeiro, uma certa qualidade de esquizo, que o possibilitaria ser a um mesmo tempo pintor da corte e desenhista de trivialidades cotidianas, que compõem - senão o maior - um dos mais importantes registros pictóricos que retratam a formação de nossa sociedade.

Pintor versus Desenhista

Logo na chegada Debret percebe a inaplicabilidade de seus ideais neoclássicos, visto - como já dito - a monarquia instaurada e a escravidão. Instala-se o conflito entre sua formação e a realidade brasileira. Não obstante, como pintor deixa-se levar pela atmosfera favorável, pelo fausto da corte, enaltecendo-a nos acontecimentos registrados pictoricamente, nos personagens retratados. Atento a descrição detalhada dos cerimoniais, o artista vai conferindo à obra um caráter cívico, que nos diz de sua preocupação com a necessidade da criação de um imaginário político [Figura 2]. Felizmente para a arte, não se limitou a representar somente a corte, mas também o cotidiano, a rua, seus personagens. Como desenhista revelou-se muito mais inspirado, vendo a vida, ainda que a corriqueira, de um modo leve, distante do pedantismo monárquico dos ambientes oficiais.

Para Gonzaga Duque, o discípulo de David configurava o artista mais instruído já vindo ao Brasil. Entretanto, em análise de suas obras, nos diz de uma “rudeza antipática de linhas, e um certo maneirismo na maneira de colorir.[3] Em suas leituras, percebemos a predileção do olhar crítico pelos esboços, livres do maneirismo da cor e do vagar acadêmico que retira o frescor da arte. No esboço imaginação e criação - carrega consigo a força do primeiro momento, da manifestação da vontade artística.

No retratar o cotidiano, a percepção da necessidade de uma nova linguagem faz do artista o primeiro pintor estrangeiro a se dar conta de como seria postiço, enganoso, simplesmente aplicar um sistema formal pronto, pré-estabelecido como o neoclassicismo, surgido em outro contexto histórico, sendo a nossa realidade no mínimo diversa.

Se Jean Baptiste Debret enquanto pintor não conseguiu transpor os limites estreitos estabelecidos pelos rigores da corte que se impunha aos artistas, e, por conseguinte, era estímulo a uma arte morna, calcada no academicismo estéril - como desenhista se revela brilhante, mostrando-se observador inteligente a empunhar olhar estrangeiro e arguto. Desvencilhando-se do neoclassicismo acaba por exercer um pré-romantismo: em sua busca pelo exótico, em seu equilíbrio expresso em aquarelas de cores claras que deram forma a desenhos espontâneos, soltos.

O olhar panorâmico

Alfredo Grieco, em seu artigo Atualizando Debret, fala acerca de Jeremy Bentham e seu ambicioso projeto de construção de um novo tipo de prisão, apropriadamente chamada de panopticon - um prédio cilíndrico, onde de uma torre no centro, os guardas podiam observar cada cela e cada prisioneiro - uma prisão governada pelo olho. O autor diz da colônia brasileira como um lugar submetido a um sistema de vigilância por parte de seus proprietários europeus, o que a faria um panopticon tropical, ocupado por escravos, índios e colonos.

Debret, para deixar o Brasil - ainda segundo Alfredo Grieco - teria precisado de licença do governo, o que leva a pensar na possibilidade de vivência do artista, aqui no Rio de Janeiro, de algo semelhante a estar do outro lado do olhar-panopticon. Debret via (e desenhava, pintava, aquarelava, projetava, etc) através de um olhar que emanava do centro, do poder, e que já formava um discurso visual, mas que era simultaneamente panorâmico, na medida em que também era sensível ao pictórico.[4]

Arrisco esta leitura em outro contexto, onde podemos ver em Debret, um estrangeiro diante de paisagem panorâmica - o olhar estrangeiro que recorta, elege perceptivamente. Comparo a experiência visual com o Brasil na chegada do artista, análoga àquela de quando chegamos pela primeira vez - ou ainda em todas às posteriores - a uma feira livre, onde somos bombardeados por uma profusão de informações visuais, sonoras, táteis, olfativas - que exige a adoção de uma percepção seletiva que nos absolva de sermos esmagados em avalanche sensória. O olhar estrangeiro de Debret é tal como um olhar fotográfico: elege e eterniza em obras - seu legado à posteridade - cenas da vida cotidiana carioca, a serem posteriormente publicadas em livro de viagem. Em suas pequenas dimensões, as aquarelas não revelam grandiloqüência e assim, com eficácia, falam das ruas, com sua informalidade que foge a pompas e circunstâncias.

Importante considerar o impacto que o contato com visualidade extremamente nova - povoada por vegetais estranhos e homens exóticos causou na poética do artista. Sua arte, ao retratar o meio, também foi por ele influenciada.

O estrangeiro

Pensar como estrangeiro aquele que vêm de fora, que se surpreende e é surpreendido ao deparar-se com um mundo estranho ao seu. Debret vê no Brasil um povo ainda na infância, contudo de exuberância atordoante. Esse olhar estrangeiro, por vezes assemelha-se ao olhar da criança - o olhar-imaginação, que estabelece conflito entre o que vê e o que acha que vê. Debret vê o Brasil como imensas manchas de cor, seu olhar é pictórico; não obstante, em sua narrativa, por vezes o imaginário precede o diagnóstico – o real é construído. Especialmente no que se refere à figura silvícola: os índios xavantes que retrata são parrudos, grandiosos e belos [o imaginário em ação], não se vinculam ao real imediato.

A técnica da aquarela possibilitava uma execução rápida que eternizava o frescor momentâneo da vida cotidiana. Ainda que algumas delas retratem atividades exaustivas, fatigantes, ou ainda castigos corporais cruéis, uma certa alegria espontânea exala do colorido.

Ao retratar os negros de ganho e os que transitavam nas praças, Debret não foge ao real como quando retrata alguns indígenas - os quais parecem romantizados, idealizados. Isso se dá possivelmente devido a sua relação visual ter sido mais estreita, constante, com os primeiros.

Pensar as obras Sinal de Retirada [Figura 3], que retrata um indígena, e, Negra vendendo caju [Figura 4], que nos mostra uma escrava de ganho, buscando tecer relações nítidas entre o real e o imaginário nas aquarelas de Debret.

No índio, a figura idealizada: o traje se desenha em cores vibrantes, nas penas de aves tropicais; o dorso nu, forte e heróico, remete, em relação extemporânea, o Peri de José de Alencar - ainda que os guaranis retratados pelo pintor fossem bem próximos ao real, minguados, visto habitarem a costa brasileira e serem observados com relativa freqüência. No silvícola idealizado de Sinal de Retirada, a força do exótico imaginado, construído pelo estrangeiro.

Na figura feminina de Negra Vendendo cajus, a alegria das cores e a espontaneidade do desenho quase nos faz esquecer da real condição da mulher retratada: uma escrava. Mas o artista observa de perto, e na obra deixa a chave, o dado real capaz de conduzir, até mesmo o observador incauto, desavisado, habitante de outra terra, à verdade: o olhar melancólico, a tristeza foi vista de perto, está ali presente e não nos deixa esquecer esta chaga - a escravidão.

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Muitos disseram - inclusive Rodrigo Naves em capítulo de seu livro A Forma Difícil dedicado ao pintor - que Debret não foi um grande artista nem aqui nem na França. Alfredo Grieco manifesta sua indignação a respeito de tal injustiça em seu artigo Atualizando Debret, quando questiona a inexistência de um museu que abrigue suas obras. Importante pensarmos Debret, atribuindo-lhe o devido valor artístico. Vê-lo como o estrangeiro que aqui chegado possuiu sensibilidade artística suficiente para perceber a exuberância de nossa terra e desenvolver uma nova vertente em sua poética, capaz de capturar nossa essência com frescor e jovialidade próprios a uma terra que se encontrava ainda na infância de seus dias.

(*) Janaína Laport Beta é Bacharel e Licenciada em História da Arte pelo Instituto de Artes – UERJ e Bacharelanda em Pintura pela Escola de Belas Artes - UFRJ

Referências

BARATA, Mário. Século XIX transição e início do século XX. In: ZANINI, Walter (Org. ). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Salles: Fundação Djalma Guimarães, 1983. v.1.

BITTENCOURT, Gean Maria. A Missão Artística de 1816. Petrópolis: Museu das Armas Ferreira da Cunha, 1967.

CAMPOFIORITO, Quirino. Os artistas da missão francesa. In: História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983.

CIPINIUK, Alberto. A face pintada em pano de linho: moldura simbólica da identidade brasileira. Rio de Janeiro:  Ed. PUC-Rio,  2003.

GONZAGA DUQUE, Luís. A arte brasileira. Rio de Janeiro: H. Lombaertz & Co, 1888.

GRIECO, Alfredo. Atualizando Debret. Disponível em: http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=43&sid=13

NAVES, Rodrigo. A Forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ática, 1996.

TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1983.

João Baptista Debret - disponível em: http://www.itaucultural.org.br


[1] GONZAGA DUQUE, Luís. A arte brasileira. Rio de Janeiro: H. Lombaertz & Co, 1888.

[2] Analogia de Júlio Bandeira no artigo Debret e a Corte no Brasil – Disponível em: http://estadao.com.br/ext/debret/julio.htm

[3] Gonzaga Duque. Op. Cit., pp. 49-50.

[4] GRIECO, Alfredo. Atualizando Debret, p. 80.