O Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes e processo de modernização do centro da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX

Helena Cunha de Uzeda [1]

UZEDA, Helena Cunha de. O Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes e processo de modernização do centro da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/ad_huzeda.htm>.

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Não é certamente a lógica da história, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado (ARGAN, 1993: 75)

                     1.            A celebração dos 200 anos da transmigração da Família Real para a cidade do Rio de Janeiro joga à luz dos refletores os resquícios do antigo cenário que serviu como palco para a inusitada inversão política e social, que transformou colônia em reino e reino em território secundário, administrado à distância. O centro do Rio de Janeiro abriga um patrimônio arquitetônico magnífico que testemunhou todo o processo de desenvolvimento urbano decorrente da instalação na cidade da corte portuguesa. A Praça XV de Novembro continua exibindo um conjunto memorável composto pelo Museu Histórico Nacional (antiga Casa do Trem que armazenava material bélico); o Centro Cultural do Paço (antiga Casa da Moeda, Paço dos Vice-Reis, Paço Real e Paço Imperial); o Centro Cândido Mendes (antes Convento da Ordem Carmelita); Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo (antiga Sé); contígua a essa, a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo; a casa da família Telles de Menezes de Pinto Alpoim e o Chafariz da Pirâmide de Mestre Valentim. Com os portos abertos por interesses políticos e econômicos portugueses o Rio de Janeiro passou a experimentar um intercâmbio direto e regular com a Europa, fato que cooperou para a formatação do etos da cidade, cuja índole inclui uma abertura a novas relações e um grande apetite por modernidades. A cidade acostumou-se a receber com entusiasmo artistas e arquitetos estrangeiros - tanto os que por sua própria conta decidiam migrar em busca de oportunidades quanto os que vinham em missões oficiais, contratados pela Corte Portuguesa. Esse foi o caso da Missão Artística Francesa, cuja vinda ao Brasil - resultado de uma conveniência histórica que disponibilizou excelentes artistas ligados à Corte deposta de Napoleão - teve como mérito maior a criação da primeira instituição dedicada ao ensino das artes no país.

                     2.            O ensino artístico, estruturado dentro de academias de arte, seguia um modelo pedagógico de matriz francesa, reunindo cursos de pintura, escultura, gravura - de moedas e pedras preciosas - e arquitetura: todos eles comungando uma base comum de fundo humanista e outra dedicada ao desenvolvimento de competências específicas a cada uma daquelas artes. A criação de uma academia carioca tinha um objetivo imediato: melhorar o acanhado aspecto estético da colônia que hospedava a Corte portuguesa, garantindo uma imagem compatível com seu novo status. Imbuído desse compromisso, o arquiteto francês Grandjean de Montigny[2] debruçou-se sobre sua prancheta criando planos de urbanização e projetos para prédios públicos, que habitariam uma idealizada cidade neoclássica, nunca concluída, para a Capital da Corte. O grande legado de Montigny foi, sem dúvida, sua participação direta na formação de toda uma geração de arquitetos brasileiros, que saíram de seu ateliê para erguer grandes projetos na capital e em cidades vizinhas - todos os que foram preservados constituem-se hoje em valioso acervo de nosso patrimônio cultural.

                     3.            A Academia Imperial de Belas Artes assistiu o comprometimento ideológico e econômico que mantinha com o Império transformar-se de bônus em ônus pesado demais para ser carregado em tempos republicanos. Já antes da destituição do Império, o curso que formava arquitetos na ENBA começara a sofrer uma redução em seu número de alunos, talvez como resultado da forte concorrência exercida pelo curso de arquitetura civil que passou a ser oferecido pela Escola Politécnica do Largo de São Francisco. Não podemos esquecer que esta prestigiosa instituição da Corte, tradicional na formação de engenheiros militares, viria a fornecer alguns dos principais líderes ao golpe republicano, o que lhe conferiu maior admiração e poder.

                     4.            Não é difícil imaginar que momentos conturbados como os que implicam em troca radical de regime político e administrativo afetem drasticamente o desenvolvimento de instituições diretamente dependentes dos beneplácitos governamentais. Não podemos esquecer que mesmo com todo o apoio do Conde da Barca e o patrocínio de D. João VI, a ideia de criação de uma Academia em 1816 precisou de dez anos para se concretizar - necessitando aguardar que as convulsões resultantes da implantação do reino no Brasil fossem absorvidas. A transformação da Academia Imperial em Escola republicana em 1890 colocou a estrutura acadêmica diante de transtornos conjunturais de semelhantes proporções. Atreladas às transformações pedagógicas, remoinhavam-se outras questões cruciais, como o próprio caráter da profissão de arquiteto, cujas atribuições estavam sendo atropeladas pela capacitação técnica dos engenheiros e pelas novas demandas arquitetônicas. À dificuldade de implementação de uma nova abordagem administrativa somou-se o processo de transformação no conceito de “modernidade” que se operava na época. Naquele momento, novos usos dos materiais, programas arquitetônicos mais ambiciosos e uma busca por estéticas menos tradicionais colocavam em questão o que representava ser realmente “moderno”. Seria possível uma instituição “tradicionalista” como a Academia de Belas Artes formar arquitetos prontos para lidar com toda aquela ansiedade por renovação? Muitos acreditavam que não.

                     5.            Em 1884, o arquiteto alemão Luiz Schreiner encaminhou ao Instituto Politécnico Brasileiro o pedido de extinção do ensino de arquitetura da Academia carioca. Seis anos depois, durante a reforma republicana, seria o próprio diretor da instituição, Moreira Maia, que aconselharia a exclusão do ensino de arquitetura dos cursos acadêmicos: “Parece-me, pois, de bom e acertado alvitre deixar para mais tarde a criação do curso, por ora de todo dispensável” (NOTAÇÃO, 1890). O fechamento do curso de arquitetura só não se concretizou pela intervenção dos professores Rodolfo Bernardelli e Rodolfo Amoedo, que elaboraram uma reforma que mantinha o curso, garantindo assim uma sobrevida do ensino que formava arquitetos dentro do âmbito da Escola.

                     6.            A permanência do ensino de arquitetura como parte integrante das belas artes constituiu-se numa vitória parcial, que iria necessitar para sua consolidação que fosse contratado um professor para a cátedra principal do curso - Desenho de Arquitetura, Trabalhos Práticos e Projetos - sem titular desde 1888, quando se afastou por aposentadoria o professor Francisco Bethencourt da Silva, discípulo de Grandjean de Montigny. Sem titular e praticamente sem alunos, as aulas de arquitetura contavam com dois professores suplentes - ironicamente, dois engenheiros: André Pinto Rebouças, professor da Escola Politécnica e Adolfo Del Vecchio.[3] A dificuldade de preenchimento daquela cátedra nos leva a imaginar que, naquele momento, o cargo de professor de arquitetura da ENBA não era motivo de grande cobiça. Del Vecchio, autor do projeto para o Posto de Alfândega na baía de Guanabara - a charmosa Ilha Fiscal que flutua na Baía de Guanabara -, gozava de prestígio junto ao Imperador Pedro II, o que lhe garantiu a indicação para diretor de obras do ministério da Fazenda. O projeto neogótico do engenheiro Del Vecchio para o posto da Alfândega - premiado com medalha de ouro na Exposição Geral da ENBA de 1890 - era respeitoso à simetria e à centralidade, as mesmas características canônicas vinculadas às composições acadêmicas beaux-arts. Naquele período, não havia diferenças visíveis entre os projetos realizados por arquitetos e engenheiros, sendo comum que estes seguissem o modelo compositivo beaux-arts, com projetos que respeitavam a simetria, o equilíbrio e seguiam as tipologias e o padrão ornamental.

Onde estavam metidos todos esses arquitetos?

                     7.            Quando Rodrigues Alves sucedeu Campos Sales na presidência em 1902, o cenário econômico do país começava a apresentar sinais de melhoras, depois do período turbulento que acompanhara a derrocada do Império. Isto permitiu ao novo governo republicano lançar-se a novos empreendimentos, entre eles: as campanhas de saneamento e de erradicação de doenças endêmicas, como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, levadas a cabo pelo sanitarista Osvaldo Cruz. Eram iniciativas que visavam acabar com mazelas antigas, que haviam se vinculado ao império e ao atraso, adequando a cidade aos tempos modernos. Entretanto, nada teria maior destaque no início do século XX que as reformas urbanísticas feitas no degradado centro da cidade do Rio de Janeiro. Exibida como uma quinta-essência de modernidade nos trópicos, a construção de uma ampla avenida, ladeada por construções de inspiração francesa, serviu como marco não apenas da gestão Pereira Passos, mas da própria história cultural da cidade. A estrutura colonial que emaranhava de forma orgânica a antiga arquitetura de matriz portuguesa no centro da Capital Federal não parecia capaz de incorporar os grandiosos ideais republicanos. Para a República, aquela reurbanização assumia o caráter urgente e simbólico de afirmação do domínio político e social do poder burguês sobre um espaço tão importante.

                     8.            A força da profunda dependência cultural do Brasil em relação à França atenuou possíveis constrangimentos aos republicanos, que aceitaram o mesmo modelo usado na reforma urbana implementada pelo prefeito Haussmann[4] em Paris, ainda que esta estivesse imbuída do simbolismo imperial de Napoleão III. A demolição das moradias populares do antigo núcleo parisiense escondia uma cruel intenção: afastar daquele nobre cenário a miséria explícita que se deixara aglomerar na cidade. O poeta francês Charles Baudelaire em Os Olhos dos Pobres, criticando o desprezo da reurbanização haussmanniana pela população desassistida de Paris, narrava o vazio do olhar de admiração e impotência dos desalojados diante do espetáculo da nova cidade. O jornal Correio da Manhã, de 15 de novembro de 1905, publicou um artigo sobre a nova Avenida Central, cujo título “Luxo e Miséria” embutia a mesma crítica social baudelaireana, que nos dá bem o tom excludente da urbanização carioca.

                     9.            Parte de um plano ambicioso, que envolvia a criação de um novo porto, na atual Praça Mauá, e de novas artérias para o tráfego - o que alterava o vetor de crescimento urbano para a zona sul da cidade -, a construção da Avenida Central (1903-1906) [Figura 1] foi facilitada pelo poder de coerção que possuíam os governos do período. Desapropriações, arrasamentos de morros, demolições de prédios e remoções de comunidades ocorriam em meio a muitas aclamações e a algumas objeções que não chegaram a ameaçar o projeto. Essas reestruturações urbanísticas e arquitetônicas, patrocinadas pelo capital internacional e pelo poder político, tinham como beneficiários alguns grupos desejosos por legitimar seu valor dentro do cenário republicano. David Harvey (2003) lembrou que a reurbanização de Paris aliou a criação daquele novo espaço urbano ao capital financeiro e à especulação, gerando um modelo que seria reeditado em muitas outras cidades a partir de então. No caso do Rio de Janeiro, ficou evidente que a urbanização servira a determinados grupos, que se realocaram sobre o antigo tecido colonial, deslocando os estratos menos privilegiados da sociedade. Perfilou-se ao longo da Avenida o cortejo das forças republicanas, reunindo antigos e novos poderes. Entre os primeiros, as entidades vinculadas à Igreja, tradicionais proprietárias de terras: a Mitra-Episcopal, a Ordem Beneditina e as abastadas Irmandades Terceiras. O arquiteto Morales de los Rios que, à época, ocupava cátedras na Escola Nacional de Belas Artes, foi autor de cinco projetos para instituições religiosas que seriam construídos na Avenida. Lá, também, estavam as Forças Armadas, através de suas associações corporativas militares, como o Club Militar e o Club Naval. Além de exuberantes pontos comerciais, perfilavam-se no bulevar carioca novas forças emergentes, representadas por instituições financeiras e pela imprensa, que se fez representar por nada menos que quatro sedes de jornais: O País, Jornal do Comércio, O Século e Jornal do Brasil. Ali se reuniria, ainda, uma burguesia ainda presa aos atavios e títulos de nobreza, ao lado de “burgueses novos” que começavam a empresariar atividades fundamentais dentro do processo de modernização. Entre estas, se destacavam empresas de energia elétrica, que passariam a distribuir iluminação pública, residencial e a controlar o sistema de transporte eletrificado, ferroviário e urbano. A Companhia Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande - controlada pelo americano Percival Farquhar, um dos futuros diretores da The Rio de Janeiro Tramway Light and Power Co. - marcava presença na Avenida, recebendo concessão pública para dar início ao fornecimento de energia elétrica para a cidade a partir de 1905.

                  10.            O concurso que iria escolher os projetos arquitetônicos a serem construídos na Avenida Central, agitou os ânimos dos arquitetos da ENBA. Os trabalhos concorrentes foram apresentados ao júri num dos salões da Escola, ainda no antigo prédio da Travessa das Belas Artes, mostrando que a Escola se mantinha como um espaço legitimador das artes plásticas. O grande número de profissionais que se inscreveram no concurso e a qualidade apresentada pelos trabalhos surpreendeu até mesmo mentes críticas, como a do poeta Olavo Bilac. Diante de mais de oitenta projetos arquitetônicos, elaborados com apuro e competência, Bilac declarou que todos os presentes nas salas de exposição deveriam estar fazendo a mesma pergunta que ele próprio se fazia: “Onde estavam metidos, que faziam, em que se ocupavam todos esses arquitetos que aparecem agora, com tanto talento, com tanta imaginação, com tanto preparo, com tanta capacidade?”[5]

                  11.            O período problemático que havia se seguido à instauração da República não permitira grandes empreendimentos, o que contribuiu para obscurecer os profissionais de arquitetura que se lançavam ao mercado. A abertura da Avenida Central resultou, assim, num momento de rara oportunidade para a atuação dos arquitetos. Alguns deles eram ligados a ENBA e iriam entrar em cena em grande estilo.

                  12.            Com quase dois quilômetros de comprimento e 33 de largura, a avenida parecia ser mais do que suficiente para alguns poucos carros à tração animal e a meia dúzia de automóveis importados que circulavam pela cidade. Entretanto, a largura que na época parecia exorbitante foi contestada por Morales de los Rios, que defendia o dobro da extensão, certamente influenciado pela grandiosidade da Avenida Nove de Julho de Buenos Aires, que Morales visitara pouco antes de se instalar no Brasil. A moderna Avenida Central - pavimentada com asfalto e iluminada com energia a gás e elétrica - foi inaugurada com 30 prédios já concluídos e mais de oitenta em processo de construção. O bulevar carioca com sua arquitetura exuberante conferiu “ares europeus” à cidade e extasiou a burguesia novidadeira, mas, muito mais que isso, serviu como laboratório e vitrine privilegiada para arquitetos, engenheiros e construtores - responsáveis diretos por aquele espetáculo e que travavam nos bastidores uma disputa velada pelo domínio no campo da construção civil.

                  13.            Os partidários das ideias racionalistas lançariam, nas décadas seguintes, suas críticas à ênfase que foi dada às fachadas ornamentadas, de cunho notadamente eclético e acadêmico, em detrimento da funcionalidade racional. Ainda que a escolha dos melhores projetos a serem erguidos na Avenida tenha ficado conhecida como “Concurso de Fachadas”, não devemos imaginar que tais riscos fossem desprovidos de planta e demais detalhes técnicos. A crítica pareceu desconsiderar o fato de que o sistema de composição arquitetônica, desenvolvido pelo ensino das academias de arte, estruturava-se, invariavelmente, sobre a tríade: planta, seção e elevação, sendo apenas esta última relativa à fachada. Não se levou em conta, tampouco, que entre os profissionais premiados naquele concorrido concurso encontravam-se engenheiros com formação extremamente técnica que, mesmo não tendo saído das fileiras artísticas da academia, apresentaram projetos que se enquadravam, rigorosamente, dentro do mesmo espírito acadêmico e decorativo comum à época. Paulo Santos, no texto que introduz a obra de Marc Ferrez, “O Álbum da Avenida Central” (FERREZ, 1983), reafirma a existência das plantas dos projetos daquele concurso, justificando a ausência delas na compilação dos riscos das fachadas: “A inclusão dessas plantas, no entanto, deve-se reconhecer, teria dado ao Álbum um caráter demasiadamente técnico” (SANTOS, 1983: 27). A fachada dos bulevares representava a verdadeira opera a ser encenada nas cidades modernas. A planta do projeto, cortes, cálculos e orçamentos constituíam-se em assunto de bastidores, ficando geralmente distantes do alcance dos refletores. Não haviam sido as fachadas ornamentadas da Place Vendôme de Paris que seduziram Le Corbusier, que as considerou um “patrimônio universal”? De forma análoga, a construção da Avenida Central no centro urbano do Rio de Janeiro também encantara Le Corbusier, a despeito de toda aquela exibição explícita de ecletismo historicista, tão criticado pelo movimento racionalista.

                  14.            O cenário ambicioso montado no centro do Rio de Janeiro dava mais visibilidade à confusa superposição de atribuições entre arquitetos, engenheiros e construtores, que vinham imbricando-se havia séculos. A organização do júri para escolha dos melhores projetos para a Avenida - seis engenheiros, três médicos e o escultor Bernardelli - reafirmava o desequilíbrio de forças na virada republicana, que privilegiava claramente os profissionais da área de medicina e de engenharia. Engenheiros e médicos eram considerados, naquele momento, como os mais aptos ao manejo de questões ligadas à urbanização, como abastecimento de água, escoamento de esgoto, demolições, abertura de ruas, pavimentação, e à promoção da saúde pública, como o saneamento da cidade e o combate às epidemias.

                  15.            Os arquitetos pareciam haver sido deixados à margem. Além da prerrogativa de julgar os projetos a serem erguidos na Avenida Central, os engenheiros detinham todo controle sobre a execução das obras, como demonstra a tripartição realizada pela Comissão Construtora da Avenida: encargos financeiros, construção e administração de pessoal, cada uma dessas comissões entregue a um engenheiro. A escassez de representantes do campo da arquitetura à frente da organização de uma obra como aquela não chega a causar estranhamento se considerarmos o poder que os engenheiros militares haviam conquistado dentro da administração republicana. Entretanto, a presença expressiva de arquitetos ligados ao Curso de Arquitetura da ENBA entre os mais de 80 vencedores do concurso - que contou com profissionais franceses, ingleses e italianos - mostrava uma imagem mais justa à relevância que o ensino de arquitetura acadêmico representou para o empreendimento. Mais de um quarto do total de projetos haviam saído das pranchetas de professores e ex-alunos da ENBA [Figura 2]: Morales de los Rios [Figura 3a e Figura 3b], Heitor de Cordoville, Ludovico Berna [Figura 4], Heitor de Mello [Figura 5], Gastão Bahiana e Bethencourt da Silva. Esta participação expressiva trouxe prestígio inesperado aos arquitetos ligados ao ensino acadêmico, o que iria influenciar a decisão do governo de conceder à Escola um espaço na Avenida.

                  16.            Em 1905, ano em que as obras viárias foram concluídas, ainda não havia determinação oficial de destinar o projeto que ocupa o número 199 da Avenida Rio Branco à Escola Nacional de Belas Artes. O professor Alfredo Galvão transcreveu as queixas feitas à época sobre o que foi considerado como uma falta de consideração do Ministro da Justiça, que não atendera os pedidos para que fosse construído um novo prédio para a Escola.

                  17.                                                  Quase todos os estabelecimentos de ensino dependentes do ministério a vosso cargo tiveram reformas necessárias, aumento de edifício e até aquisição de terrenos para a construção na Avenida Central, só a ENBA [...] infelizmente, não viu realizado o desejo que há tantos anos nutre de vê-la instalada convenientemente (GALVÃO, 1905: páginas não numeradas).

Quadro 1 - Alunos regularmente matriculados na ENBA (na coluna ao centro, o total de alunos matriculados e, na coluna à direita, apenas os matriculados em arquitetura).

Recuperação da frequência do curso de arquitetura a partir de 1906 (a Avenida Central é inaugurada em novembro de 1905).

                  18.            Todas as tentativas feitas junto ao governo por Rodolfo Bernardelli para que fosse conseguido um local maior para os cursos acadêmicos - que continuavam mal alojados no acanhado prédio construído por Montigny na década de 1820 - haviam sido infrutíferas. Finalmente, a ENBA acabou recebendo um majestoso prédio na Avenida Central, que ocupava todo um quarteirão. O edifício era um dos 17 projetos de autoria do arquiteto e professor Morales de los Rios, o que parecia sinalizar horizontes mais felizes para o ensino acadêmico. A localização da nova sede na parte mais nobre da Avenida, ladeado por outras construções grandiosas, como o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional, garantiu um prestígio maior à instituição e, consequentemente, à gestão do diretor Rodolfo Bernardelli.

                  19.            Composto por quatro alas em torno de um pátio central, o projeto eclético[6] de Morales garantiu maior conforto para as atividades acadêmicas e extra-acadêmicas, entre estas, as Exposições Gerais, que premiavam os melhores trabalhos de artistas nacionais e estrangeiros, funcionando como vitrine legitimadora das artes plásticas na capital da República.

                  20.            A construção da Avenida Central e a destacada participação dos arquitetos acadêmicos no empreendimento contribuíram diretamente para o reconhecimento da eficiência do Curso de Arquitetura da ENBA. A visão de um ensino de arquitetura acadêmico retrógrado e tradicionalista seria cristalizado por meio das críticas modernistas e acabaria gerando um paradoxo. Em 1978, o arquiteto Abelardo de Souza escreveu o texto A ENBA, antes e depois de 1930, no qual colocava essa aparente contradição.

                  21.                                                  Pensar que com aquele ensino, com aqueles professores completamente desatualizados da realidade, completamente ignorantes do que já se fazia no resto do mundo, se formaram arquitetos, citando apenas alguns, como Lúcio Costa, Afonso Eduardo Reidy, Marcelo Roberto, Atílio Correa Lima. (XAVIER, 2003, p. 67)

                  22.            Duas décadas antes de Abelardo de Souza, numa visão mais apurada, Lúcio Costa já havia compreendido a importância da criação da Academia de Belas Artes no Brasil e do curso de arquitetura nos moldes acadêmicos. Em seu texto de 1951, Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre, Lúcio Costa afirmava: “Integrava-se assim, oficialmente, a arquitetura de nosso país no espírito moderno da época [...]” (XAVIER, 2003: 78). A seguir, ele enumerava de forma honrosa os antigos professores de arquitetura da ENBA e algumas de suas obras, sem permitir que o esgotamento dos modelos ecléticos - e que a mágoa de haver sido destituído da direção da Escola em 1931 - o fizesse perder a dimensão do papel definidor que o ensino artístico acadêmico da Escola havia representado na trajetória da arquitetura brasileira.

                  23.            O que se verificou nessa busca pela renovação foi uma dramática alteração conceitual do que representava exatamente ser “moderno”. Era um período confuso de transição entre uma modernidade baudelairiana, ainda romântica e histórica, para uma outra - pós-cubista, abstrata e anistórica - que desqualificava os historicismos e seus amálgamas ecléticos. Aquelas formas híbridas e aparentemente anacrônicas haviam estabelecido um forte vínculo com o ensino de arquitetura acadêmico que, entre a abertura da Avenida Central e a Exposição Comemorativa do Centenário da Independência em 1922, havia se caracterizado por muitas produções dentro desse espírito.

                  24.            A percepção de uma instituição fechada ao novo e aprisionada às doutrinas da École de Paris, em que pese a enorme dependência cultural francesa desde os tempos da chegada da Missão Artística - e que iria se reafirmar com a escolha do modelo corbusieriano - , não encontra sustentação nos registros mais importantes da instituição: as Atas da Congregação dos Docentes da Escola. A grafia rebuscada desses livros administrativos revelam posições surpreendentes, como a do diretor Araújo Porto Alegre que defendia, já em 1855, o combate aos hábitos e as tradições do passado para que se pudesse acompanhar os novos caminhos propostos, destacando, como exemplo, as inovações construtivas do projeto de autoria do inglês Joseph Paxton para o Crystal Palace - a própria antítese da arquitetura acadêmica, não fosse por sua simetria e centralidade.

                  25.            A inauguração da elegante Avenida Central com suas sofisticadas construções contribuiu para dar visibilidade à eficácia do curso de arquitetura da ENBA. As demandas trazidas pela urbanização da Capital e a conjuntura favorável à construção civil a partir daquele momento - incluindo as duas exposições internacionais, a de 1908 e a de 1922, que ocorreram no Rio de Janeiro - seriam decisivas para o reconhecimento dos arquitetos como “artistas” criadores e do curso de arquitetura da ENBA como celeiro de bons profissionais de arquitetura. Dessa forma, o ensino de arquitetura, em meio à baixa estima que o atingira e a seus docentes, diante da perda de prestígio frente à engenharia e do completo esvaziamento de suas aulas, teve na construção da Avenida Central uma virada espetacular, a partir da qual conseguiu consolidar seu papel como formador de arquitetos capazes e atualizados. Não poderia passar despercebido o fato de que no concurso para a escolha dos projetos a serem erguidos na nova Avenida - que contou com arquitetos e engenheiros estrangeiros de grande prestígio na cidade - um terço dos trabalhos havia saído das pranchetas de professores e alunos da ENBA. Aquelas construções que impressionaram os críticos da época por sua grandiosidade e acabamento serviram como atestado da proficiência técnica e da qualidade artística dos arquitetos acadêmicos.

                  26.            Infelizmente, os testemunhos materiais de toda essa rica história foram sendo apagados silenciosamente. O pioneiro prédio neoclássico projetado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, que deu início ao ensino das artes e da arquitetura no Brasil, foi demolido em 1938 e hoje abriga um estacionamento. A demolição, sem justa causa, contou com o beneplácito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuja ideologia privilegiava a arquitetura neocolonial de matriz portuguesa, eleita como resposta nacional ao ecletismo importado. As construções da antiga Avenida Central passaram a ser consideradas também como “antiqualhas afrancesadas”. A partir da década de 1950, os prédios da histórica Avenida foram sendo gradativamente demolidos e substituídos por edifícios modernos, cuja escala colossal afronta a singeleza das antigas construções e quebra a harmonia daquele conjunto eclético.

                  27.            Há mais de 70 anos, assistimos a uma narração eloquente, construída a partir da ótica do movimento moderno, que nos conta a história de como os modernistas revolucionaram o ensino da ENBA e a própria trajetória da arquitetura brasileira. Essa oratória persuasiva convertia os arquitetos racionalistas nos grandes vencedores do “embate heroico” que confrontava a estética funcionalista aos estrangeirismos “requentados” da arquitetura acadêmica.

                  28.            O Curso de Arquitetura da ENBA mostrou possuir sua lógica própria. As demandas tecnológicas, os novos materiais e as novas percepções estéticas, acostumaram-se a conviver com a antiga estrutura pedagógica que, mesmo sendo repetidamente acusada de anacrônica, seria mantida em seus fundamentos básicos, continuando a servir à tarefa de formar arquitetos. A grade curricular do Curso de Arquitetura em 1968 - último em que o curso respeitaria o sistema seriado, antes que a Reforma Universitária o adaptasse ao regime de créditos - mostra grandes similitudes em conteúdo e em distribuição de disciplinas com as cinco séries organizadas pela reforma de 1931, que, por sua vez, não difere muito da organização pretendida pela reforma de 1924.

                  29.            Os vestígios que demonstram a eficácia pedagógica e a saúde institucional da ENBA foram providencialmente ocultados sob o discurso modernista. As célebres palestras proferidas por Le Corbusier em 1929, abrindo as discussões sobre o racionalismo abstrato, são normalmente citadas sem que se dê muito crédito ao fato de haverem se realizado numa das salas da “retrógrada” ENBA e de terem sido organizadas pelo “desatualizado” professor Morales de los Rios Filho, regente da cátedra de História e Teoria da Arquitetura da Escola. O paradoxo que tanto intrigara o arquiteto Abelardo de Souza - que se indagava sobre como um ensino tão “obsoleto” e professores “completamente desatualizados e ignorantes” puderam formar arquitetos tão inventivos e capazes, como os da brilhante safra modernista - só surpreende aos que não conhecem a fundo as ideias que circulavam pelos corredores da ENBA. E aos que não conseguem relativizar a produção eclética de alguns de seus professores e alunos, que foram brilhantes e modernos, dentro do sentido de seu tempo.

Referências bibliográficas

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BAUDELAIRE, C. De Le Spleen de Paris (Les Petits Poèmes en prose), 1869.

BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista KOSMOS, Rio de Janeiro, v. 1, nº 4, [páginas não numeradas] abril de 1904.

COSTA, L. Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre [1951]. In: XAVIER, A. (org.). Depoimento de uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

FERREZ, M. O Álbum da Avenida Central: 8 de março de 1903 - 15 de novembro de 1906. Rio de Janeiro: F. Bevilacqua & Cia. / Ex Libris, 1983. (um documento fotográfico da construção da Avenida Rio Branco).

GALVÃO, A. Relatórios da Escola Nacional de Belas Artes, 1905 (Documentos de Pesquisa do professor Alfredo Galvão: páginas não numeradas - Museu D. João VI, EBA-EFRJ).

HARVEY, D. Paris, Capital of Modernity. New York and London: Routledge, 2003.

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SANTOS, P. Introdução. In: FERREZ, M. O Álbum da Avenida Central: 8 de março de 1903.

SOUZA, A. A ENBA, antes e depois de 1930. In: XAVIER, A. (org.). Depoimento de uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

UZEDA. H. C. Ensino Acadêmico e Modernidade: o Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes / 1890-1930. 2006, 472 f.  Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes /UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

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XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.


[1] Doutora em artes visuais pela UFRJ; professora adjunta do Departamento de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.

[2] Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850) nasceu em Paris e seu trabalho como arquiteto da Missão Artística Francesa (1816) teve grande relevância no desenvolvimento da arquitetura brasileira. Morreu no Rio de Janeiro e consta que seus restos repousam no Convento de Santo Antônio no Largo da Carioca.

[3] O engenheiro Adolfo José Del Vecchio (1848-1927) foi professor honorário da Academia de Belas Artes/ ENBA, ocupando a cadeira de Física Experimental e Meteorologia da Academia Naval até 1913.

[4] O Barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) foi prefeito de Paris entre 1853 e 1870, tendo sido responsável pelas grandes reformas urbanas da cidade, ao tempo de Napoleão III.

[5] BILAC, O. Crônica de Olavo Bilac. Revista KOSMOS, vol. 1, nº 4, abril de 1904, p. 7.

[6] O prédio reunia uma fachada principal inspirada na ala de Lefuel e Visconti do Museu do Louvre, fachadas laterais inspiradas no Renascimento Italiano e uma posterior com maior liberdade compositiva.