Portinari e a pintura histórica para a sede de O Cruzeiro

Rafael Alves Pinto Junior e João Almeida Soares

Como citar: PINTO JUNIOR, Rafael Alves; SOARES, João Almeida. Portinari e a pintura histórica para a sede de O Cruzeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVIII, 2023. https://doi.org/10.52913/19e20.xviii.03

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Portinari e a sede da revista O Cruzeiro: modernidade, nação e história

1. A partir da segunda metade da década de 1940, o grupo empresarial encabeçado pela revista O Cruzeiro atingiria o apogeu (DE LUCA, 1999). A publicação, criada em 1928, alcançava todo o território nacional e se consolidou, sobretudo a partir de 1945, como o principal órgão da cadeia dos Diários Associados. A revista foi, sem sombra de dúvida, um dos mais importantes veículos de comunicação impressos do Brasil no século XX. Esta importância podia ser aferida pela expansão de suas tiragens: saiu inicialmente com 50 mil exemplares, passou a alcançar 550 mil em meados na década de 1950, e alcançou 700 mil exemplares na edição histórica sobre o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 (MIRA, 2001, p. 23). indubitavelmente este crescimento vertiginoso estava lastreado, além da competência dos profissionais envolvidos em sua redação, no parque gráfico que produzia, editava e imprimia a revista. O resultado disso era a impressão de parâmetros que caracterizariam o mercado editorial no Brasil daí em diante: apuro técnico, logística eficiente, marketing, publicidade e a preocupação de se estabelecer e manter uma identidade visual.

2. Diante do crescimento da revista a empresa decidiu construir uma nova sede com as mais modernas instalações de sua época. Projetado por Oscar Niemeyer em 1949, o edifício “pragmático” devia ser o receptáculo materializado desta ambição que norteava a revista e que a colocaria em novos patamares no mercado. O projeto apareceu com destaque na imprensa especializada [Figura 1]. Em 1951, por exemplo, o periódico destinado aos profissionais Arquitetura e Engenharia divulgou o projeto que pretendia, plasticamente, representar o “espírito arquitetônico” da época: quem procurasse na longa lista de projetos produzidos pelo arquiteto encontraria esse “outro” Niemeyer em conjunturas mais usuais na forma de um falso cubo genérico tornado específico na negociação entre forma e função. O edifício deveria ser a materialização da modernidade nacional. 

3. De acordo com Tiago de Almeida (2022), o desejo de representar o espírito arquitetônico modernista da época precisou lidar com a necessidade de atender a um complexo programa industrial. Além do desejo de estabelecer bases para uma nova fase para a empresa, a revista ambicionava ser uma das expressões da identidade nacional e, neste sentido. o edifício da nova sede devia somar esta exigência ao seu já complexo programa de necessidades. Para dar conta dessa exigência programática, Niemeyer lançou o artifício de incluir um grande painel como recurso decorativo no espaço arquitetônico. A escolha do artista recaiu sobre Candido Portinari, encarregado de conceber uma obra de arte destinada a reforçar a mensagem simbólica da empreitada: a afirmação da nacionalidade.

4. A questão da nacionalidade sempre esteve presente nas páginas de O Cruzeiro e ganhou reforço com a atuação de personalidades como Gustavo Barroso. Escrita por Barroso, entre 1948 e 1960, a seção “Segredos e revelações da História do Brasil” foi uma das que fizeram um considerável sucesso. De acordo com Aline Magalhães e Claudia B. Roquette-Pinto Bojunga (2014):

5. Gustavo Barroso afinava-se com o projeto editorial da revista ao apresentar uma história pátria que carregava nas tintas da exaltação nacional e procurava constantemente inserir o Brasil no rol das nações civilizadas. Mas se O Cruzeiro recorria às paisagens naturais brasileiras e ao exótico, investindo também na ideia de um futuro que já se tornava presente, Barroso buscava trazer à tona um passado civilizado para o Brasil. Suas curiosidades históricas não deveriam apenas atrair a atenção do público, mas cultivar o orgulho patriótico com base no estabelecimento de um vínculo entre o Brasil e os referenciais do mundo civilizado, ou seja, a Europa.

6. O Cruzeiro procuraria um artista que fosse capaz de contribuir para estes objetivos de afirmações nacionalistas. Neste ambiente de resgate histórico, dificilmente a escolha teria recaído sobre outro nome dentre os artistas nacionais da época que não Portinari. A escolha era óbvia. Por um lado, o artista já havia participado ativamente da decoração do edifício do Ministério da Educação e Saúde, construído entre 1936-1945 e inaugurado em 1947. Havia também participado na decoração do conjunto arquitetônico da Pampulha (composto pela Casa do Baile, Cassino, Iate clube e a Igreja de São Francisco), construído no início da década de 1940 e inaugurado em maio de 1943. A partir da obra da Pampulha, a parceria entre Niemeyer e Portinari havia se consolidado, se fazendo presente em obras como A Primeira Missa no Brasil (1948) [Figura 2], para decorar a sede o Banco Boavista, projetado por Niemeyer em 1946, e Tiradentes (1948) [Figura 3], para decorar o saguão do Colégio Cataguases (MG), projetado por Niemeyer em 1945. Por outro lado, Portinari já era um artista célebre e que acrescentaria prestígio ao edifício. Em 1949, já havia produzido considerável acervo e se afirmado como o “pintor do Brasil” (BALBI, 2003). Para a construção de um edifício de uma empresa do porte de O Cruzeiro, se conjugavam um arquiteto importante e um artista renomado e reconhecidamente nacionalista. 

7. A edificação da sede da revista estava imersa em um ambiente de reconstrução das economias dos países envolvidos, direta ou indiretamente, na Segunda Guerra Mundial. O Brasil, após um período de crises políticas, parecia apontar rumo a uma relativa estabilidade. Juscelino Kubitschek tomaria posse regularmente eleito com a proposta de acelerar o processo de industrialização. Seu programa de governo visava, dentre outras coisas, completar a integração física do território nacional, mediante a mudança da capital para o centro do país e a construção da rede rodoviária integrando as diversas partes regionais (GOMES, 2007, p. 279). O período de turbulência desencadeado pela situação que culminou com a morte de Getúlio Vargas ia ficando no passado. Ainda que o legado político de Vargas sobrevivesse até pelo menos 1964, a segunda metade da década de 1950 parecia ser, no mínimo e aparentemente, menos convulsionada à medida em que a sombra da Guerra ia ficando para trás (GOMES, op. cit., p. 309).

8. Orçada em Cr$600.000,00, a produção de Portinari para a revista O Cruzeiro está inscrita na questão desencadeada pelo entendimento da modernidade como um projeto de construção identitária e cultural tutelado pelo Estado. Nestes limites a identidade deveria estar assentada nas raízes da nação – onde quer que elas pudessem ser identificadas -, na qual a construção de uma imagética nacional deveria desempenhar um papel essencial (CARVALHO, 2006). Formação do Brasil, memória histórica e identidade nacional são temas recorrentes e estreitamente interligados no histórico do pensamento social brasileiro, notadamente a partir da segunda metade do século XIX até – e de uma maneira mais intensa – o final da Era Vargas. É nesta equação enormemente complexa, dentro das especialidades da cultura brasileira, que a produção artística pode ser entendida como uma variável que não pode ser desconsiderada. 

9. Diversos artistas, principalmente financiados em algum momento pelo Estado, colaboraram para a construção de uma identidade e memória nacionais. Este processo já se encontra amplamente estudado. Aqui nos posicionamos ao lado de pesquisadores como Michael Baxandall (1991, p. 11), que observaram que uma obra de arte é sempre testemunho de uma relação social, e Ulpiano T. Bezerra de Meneses (2003), ao recompor o circuito social da obra de arte, ao mesmo tempo que tentamos compreender seu processo de produção, as interlocuções intelectuais, referências e políticas associadas à sua criação. De um lado, o artista, do outro lado, alguém que encomenda ou financia a realização da obra de arte. Não raro, este “mercado consumidor” termina por influenciar a produção do artista ao fazer exigências compositivas ou temáticas específicas: tamanhos, personagens, cores, posições ou materiais formam um gradiente que pode ir da sugestão indireta à altamente dirigida, mas nunca neutra. O programa das obras de arte para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, por exemplo, estava submetido a parâmetros muito rigorosos de tema, tamanho e localização (SEGRE, 2003). Isso não é nenhuma novidade na história da arte. Ao contrário: inscritas nos espaços arquitetônicos nas mais diversas épocas e lugares, as obras de arte sempre desempenharam papéis altamente dirigidos (GOMBRICH, 1999). 

10. Os artistas geralmente estão conscientes – ou partimos do ponto em que estejam – de que o público “consumidor” daquela obra possui elementos que permitem que ela seja de alguma maneira “legível.” Ainda que seja para contestar, chocar ou se opor ao público, o objeto artístico se oferece à percepção. No caso da pintura histórica, mesmo reconhecendo que a questão da “legibilidade” é no mínimo controversa, a capacidade da obra ser de alguma maneira legível parece ser indissociável da gênese do próprio tema. Alguma coisa há de ser identificável como referência temática, cabendo ao artista encontrar os mecanismos que julgar adequados em seu processo compositivo. Não faltam episódios na história da arte em que os artistas não atingiram – deliberadamente ou não – as aspirações das encomendas que receberam. A obra A Conspiração de Claudius Civilis (1661-62) [Figura 4], pintado por Rembrandt van Rijn e encomendada para decorar a galeria da nova Prefeitura de Amsterdã, por exemplo, foi devolvida ao artista (SLIVE, 1995). Apesar de as razões não terem sido documentadas pelos contratantes (SCHWARTZ, 2014), a devolução pode ter origem na percepção de que a abordagem do tema feita pelo artista não havia sido suficientemente heroica. A composição do personagem principal também não equivalia a uma imagem republicana que os contratantes desejavam em algum momento exprimir. 

11. Discutir questões relacionadas à hermenêutica das obras de arte, no nosso caso, está além dos limites deste recorte. Limitar-nos-emos a ter como ponto de partida o entendimento da obra de Portinari como uma obra programática e, portanto, submetida a um alto grau de controle para um fim específico. Não esquecemos que, ainda que uma obra de arte não estabeleça necessariamente uma relação unívoca entre signo e significado, em uma encomenda como esta parece plausível esperar que o artista atenda, ainda que minimamente, as especificações da encomenda. Esse raciocínio pode, ainda que de maneira ampla, ser aplicado ao mercado consumidor de arte de maneira geral, e ser facilmente verificável para encomendas de pintura histórica, como as feitas no Brasil a partir do século XIX.

 Portinari e a pintura histórica: narração, estética e função do artista

12. Por materializar em uma imagem os momentos “valorosos” da nação ou os feitos “heroicos” de seus personagens, a pintura histórica foi constantemente um espaço privilegiado para a afirmação de narrativas oficiais. Neste sentido, a própria concepção de arte brasileira erudita estaria atrelada à produção desencadeada pela atuação da Academia Imperial de Belas Artes, onde a pintura histórica ocupou desde a origem um lugar de destaque. 

13. A pintura de história no Brasil – que era um dos gêneros mais prestigiados e valorizados – teve alguns de seus pontos altos nas produções de Victor Meirelles (1832-1905) e Pedro Américo com produções célebres como Primeira Missa no Brasil (1860), Batalha dos Guararapes (1879), a tela conhecida como Grito do Ipiranga (1888) e A Batalha de Avaí (1877) que marcaram a produção imperial. O século XIX havia chegado ao fim, mas a pintura histórica que aparentemente havia perdido espaço para outros gêneros artísticos, ao contrário, continuou a ser produzida no século XX. Demandas de diversas instituições alimentavam a produção de obras como Fundação de São Paulo (1909), Fundação de São Vicente (1900), Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500 (1900), Estácio de Sá em São Vicente, dentre outras. Artistas como Antônio Parreiras (1860-1937), Oscar Pereira da Silva (1867-1939), Benedito Calixto (1853- 1927) e Aurélio de Figueiredo (1856- 1916), por exemplo, continuavam compondo cenas explorando a potência retórica e a grandiloquência visual que a temática histórica proporcionava (CHILLÓN & CONDURU, 2020, p. 56-57). 

14. O advento do modernismo artístico no Brasil esteve, desde a origem, preocupado com a questão da nacionalidade. A realidade nacional que já havia inspirado artistas estrangeiros, nativos e viajantes ganharia novas tintas. No período entre 1917 e 1922, em São Paulo, por exemplo, a preocupação capital dos artistas brasileiros seria a afirmação de um certo tipo de arte moderna. A partir de 1922, uma vez alcançado este objetivo, esta preocupação seria marcada pelo cunho do nacionalismo. A busca pela caracterização de uma identidade nacional parece ser o elemento comum à vanguarda brasileira. 

15. Isto naturalmente se traduzia no plano formal à subordinação da obra de arte ao assunto e colocava conceitualmente os modernistas em planos opostos. Ao menos desde Édouard Manet, os artistas modernos europeus evitavam a primazia do tema e a sujeição a um assunto. Do lado de cá do Atlântico, antes de se projetar a imagem de um Brasil, fazia-se necessário conceituar uma brasilidade que correspondesse aos objetivos dos modernistas. Neste sentido, falar de um conceito de brasilidade expresso na arte corresponde a abordar uma temática constante no cenário cultural nacional, e que diz respeito aos problemas de uma conceituação de uma cultura brasileira. A prática dos artistas modernistas se revestiu de propriedades capazes de esclarecer práticas sociais e ideológicas inauguradoras de uma forma de ordenar, ou ao menos de propor, uma unidade cultural. 

16. Em relação a estas práticas ideológicas podemos compreender, sobretudo a partir dos trabalhos de pesquisadores como Edward Said (1990) e Homi Bhabha (1998), o quanto as narrativas da nação – incluindo as artes visuais – se esforçaram para construir imagens cujo objetivo era a formação de uma identidade marcada pelos mitos de origem. Neste processo, a tradição entra em ação como uma das estratégias unificadoras entre o passado historicizado e selecionado, em um presente ressignificado, que tende necessariamente a uma hegemonia – ainda que pese o fato de que uma cultura nacional nunca está unificada, e nem constitui uma unidade em relação consigo mesmo. Como já observado por Bhabha (2010, p. 15) com acuidade, o recurso da narrativa na nação enfatiza a iniciativa do poder político e da autoridade cultural, no que Derrida descreveu como “o excesso do irredutível do simbólico sobre o semântico.” A partir disto, é possível observar que, ainda que a narrativa produza uma “significação incompleta,” a pintura histórica se esforça no caminho inverso a constatar as fronteiras e limites dos espaços culturais intermediários. A imagem da nação aparece neste tipo de construção imagética como um meio de narração ambivalente, racionalizando as tendências “normalizadoras” que existem no interior da cultura e afirmando-se na legitimação da obra de arte. 

17. O projeto modernista em que Portinari se inseria na busca, dentre outras coisas, da origem da nação como um signo de modernidade da própria sociedade, ainda que a temporalidade cultural da nação inscreva uma realidade social muito mais transitória (BHABHA, 2010). Isso que coloca a posição do artista como “intérprete” com lugar privilegiado deste processo. A esse respeito, Portinari tinha uma posição definida, que foi explicitada publicamente em 1947, em sua participação na conferência organizada pela Comissão Nacional de Belas Artes proferida em Montevidéu. Para ele:

18. Um artista debate-se durante toda sua vida com seus problemas artísticos e não é justo que se lhe peça mais, posto que o tema serve para desviá-lo de seu caminho. Bem sei que esse problema é o problema fundamental para um artista, mas quando se pinta, sempre se representa algo alheio à questão plástica. Todos os pintores sabem que não é o tema que conta; por isso mesmo, não é pedir muito ao pintor que incorpore ao seu quadro esse pormenor ao qual dedica tão pouca importância por ser algo extra-plástico. E isso para o bem dos que lutam e sofrem na vida em todos os seus matizes.

19. […] Todo artista, que meditar sobre os acontecimentos que perturbam o mundo, chegará à conclusão de que, fazendo seu quadro mais “legível”, sua arte, em vez de perder, ganhará e muito porque receberá o estímulo do povo (PORTINARI apud FABRIS, 1996, p. 118). 

20. O artista desempenharia assim um papel de intérprete, tanto para as situações de seu presente temporal, quanto de seu passado histórico. Para este objetivo, a pintura mural desempenharia uma função dupla: propedêutica e missionária. Propedêutica por tutelar as narrativas artísticas a observadores que teriam acesso a arte pública, que contava com maior alcance que as obras colocadas em espaços menos acessíveis. E missionária ao participar do projeto cultural que ambicionava construir uma imagem equivalente a uma nação, ainda que imaginada. Como arte pública, esta posição carregava uma contradição intrínseca e irresolvível: as obras, via de regra, encontravam-se inscritas em espaços de acesso restrito e, portanto, distante do alcance do público amplo que o artista tanto desejava alcançar. 

21. Portinari estava filiado à concepção modernista que ambicionava a criação de uma identidade nacional e que se relacionaria à adoção do mural como recurso estético. Cumpre observar que a expressão “identidade nacional,” aqui adotada, refere-se ao sentido conferido pelos modernistas, ou seja, a valorização e o destaque das coisas da terra, ausente de ufanismos. O recurso mural objetivava a afirmação de uma arte pública, como meio de comunicação do seu discurso. Importa observar que o recurso mural portinariano difere notadamente do muralismo mexicano, por exemplo, ao não se afirmar como recurso pedagógico ou político, e fechar-se no horizonte exclusivo de sua plástica: estão ausentes os elementos explicitamente propagandísticos e os elementos oriundos da arte popular tão frequentes na produção de artistas, como Diego Rivera e José Clemente Orozco. 

22. Colocando-se neste cenário nacionalista, entre uma liberdade artística e a circunstância de um posicionamento ideológico, a obra de Portinari cairia como uma luva ao projeto intelectual de Mário de Andrade que ambicionava a criação de uma identidade nacional coletiva. O papel de Mário de Andrade como figura à frente desse projeto da Era Vargas ultrapassa os limites deste trabalho; apesar disto, cumpre observar que o escritor encontraria em Portinari uma correspondência a seu projeto formal, ao conjugar tradição e nação, a possibilidade de uma expressão nacional e a materialização de valores internacionais, e a possibilidade da fuga da individualidade, ao mesmo tempo que permitia a afirmação da coletividade. O pintor via em Mário a expressão de algumas de suas ideias referentes ao papel da arte na sociedade e da função social do artista, categorias que a vanguarda havia colocado em patamares irreconciliáveis e que o escritor declaradamente ambicionava unificar.

23. Como observou Annateresa Fabris, a posição que Portinari toma em relação à pintura histórica pode ser caracterizada pelo fato do artista não se ater aos relatos canônicos; antes, assume uma interpretação própria, marcada por determinações puramente plásticas e formais. De acordo com ela:

24. Embora tenha buscado elementos referenciais em testemunhos históricos como a correspondência de Anchieta e Nóbrega e, provavelmente, no Antonil de Cultura e Opulência do Brasil, Portinari constrói o conjunto como um sistema ficcional, rompendo, de um lado, com a sucessão cronológica dos episódios representados, e lançando mão, de outro, de uma concepção cenográfica, visível na adoção das unidades teatrais (lugar, tempo e ação) e na preferência por uma iluminação artificial, que lhe permite sublinhar o efeito dramático por ele procurado. (FABRIS, 1996, p. 122).

25. Exemplos desta posição podem ser identificados nas têmperas executadas em 1941 para a Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso em Washington: Descobrimento [Figura 5], Catequese dos Índios [Figura 6], Descoberta do Ouro [Figura 7] e Desbravamento da Mata [Figura 8]. Surge aí um protótipo que será adotado posteriormente em obras já referidas, como A Primeira Missa no Brasil e Tiradentes– onde podemos identificar as características compositivas apontadas por Fabris. O artista evita polêmicas alusivas à dominação civilizatória e parte para uma abordagem temática em torno do cotidiano. Com isto, ao optar pela narrativa como um sistema de significação cultural com a representação da vida social, e não como uma imagem da organização social, ele põe em relevo a instabilidade deste conhecimento. A respeito destes trabalhos Fabris também observou que:

26. Longe de qualquer visão celebrativa e épica, Portinari confere uma dimensão cotidiana ao ciclo de Washington, eliminando todo símbolo relativo à conquista (marco, cruz, bandeira) e detendo-se tão somente na focalização dos instrumentos do trabalho e dos signos materiais que constituíram a nova cultura. É em Catequese dos Índios que tal visão se aglutina, quando o artista justapõe elementos culturais e materiais europeus e ameríndios aos primeiros: podem ser referidos a vaca malhada, a cerca, a capela, a escada, o rolo de corda e o baú; aos segundos, o pilão, a cabaça, as pirogas e a cesta com frutas da terra. (FABRIS, 1996, p. 122-123).

27. As próximas pinturas históricas já não mostram esta preocupação com o cotidiano como o artista havia feito nas obras em Washington feitas em 1941. A Primeira Missa no Brasil [Figura 2] é uma obra bem mais complexa, se compararmos com as anteriores. Enquanto a versão de Victor Meireles para o tema se esforçou para se ater à narrativa histórica oficial – incluindo a natureza e os nativos – Portinari nega a narrativa documental. Cria assim uma outra narrativa: teatralizada, a cena acontece sem os nativos, onde somente grupos de portugueses se fazem presentes na celebração. Podemos identificar na composição o agrupamento de figuras em blocos dispostos em perspectiva, em um círculo em torno do altar. A divisão do espaço em planos evidencia como o artista entendia o espaço modernista: ao invés de estruturar o espaço pictórico, os planos parecem ser empregados como recurso de ocupação dos vazios entre as figuras. Decorre daí sua visualidade disposta num esquema como um quebra-cabeças, em formas ou prismáticas ou chapadas, em áreas de cores com arestas. Assim dispostas, as figuras neste espaço parecem estar boiando ou flutuando num ambiente onde pode-se observar a presença discreta, mas organizadora, da perspectiva. Para Carlos Zilio, essa organização da superfície em planos revela uma nítida “incompreensão” do espaço moderno: 

28. Ao invés de possuírem uma função de construção do espaço, os planos em Portinari, são utilizados como recurso de preenchimento de vazios. Exatamente ao inverso do procedimento de Picasso, onde a estilização da figura humana já era compreendida numa relação com a construção do espaço, isto é, fazia-se a partir da visão global do espaço que organizava toda a superfície. O que transparece é que, enquanto em Picasso o que estava por trás da sua fase clássica era o Cubismo, na pintura de Portinari era o academismo. […] Situada dentro dessas contradições, a obra de Portinari demonstra o conflito do artista em superar raízes acadêmicas e conquistar uma imagem moderna. Nessa adaptação de um sistema para o outro, Portinari acaba por situar sua pintura numa posição intermediária, que será a expressão modernista mais aceita na época. (ZILIO, 1997, p. 97-99).

29. Pintada em 1952 para decorar a sede do Banco da Bahia, A Chegada de Dom João VI à Bahia [Figura 9] é outra obra deste período com temática histórica. Nela, o artista recriou a seu modo o acontecimento de 22 de janeiro de 1808: após quase dois meses no mar, os navios que traziam ao Brasil a família real portuguesa e sua comitiva chegaram a Salvador. Em grandes festividades, o governador da Bahia João de Saldanha Guedes Brito recebeu a corte que se instalava no Brasil. A composição, apesar de grande, não é complexa: os personagens principais formam o plano do quadro frontal, a partir do qual se estende o cortejo perspectivado. Como se sabe Portinari praticamente nunca abandonou a perspectiva, pintor acadêmico que era, e aqui, a perspectiva é ela própria o sustentáculo de toda a composição. 

30. Em Tiradentes [Figura 3], o artista se defrontou com o desafio de uma obra de grandes dimensões. Para dar conta do tema, Portinari dispôs uma sequência de cenas, compondo uma narrativa temporal linear com seis cenas da esquerda para a direita: Tiradentes com prisioneiras, grupo de inconfidentes, a leitura da sentença, execução, esquartejamento, exposição das partes do corpo e a liberdade. 

31. A obra, complexa e monumental, teve uma dupla acolhida: celebrada pela imprensa como uma grande obra-prima dramática/histórica, recebeu pesadas críticas de estudiosos e críticos de arte da época. José Lins do Rego, por exemplo, escrevendo no jornal O Globo, destacou o caráter titânico do artista em abordar uma composição tão complexa. Para ele, a narrativa visual se estruturava na “veracidade de sua imaginação, mais do que com a veracidade da história” (REGO, 1949, p. 5): prevalece a realidade que o próprio artista cria no espaço pictórico. As figuras são elementos compositivos e plásticos, antes de serem representações equivalentes a personagens na história. Já Mário Pedrosa não concordava com esta análise. Para ele, a obra era “inadequada”: a proporção extremamente linear terminava por produzir uma sucessão extremamente carregada de imagens que se somavam para dar conta do fluxo narrativo que vai da esquerda à direita. Os grupos de figuras e as zonas de luz se articulam de maneira ambígua, e é verificável uma ausência de continuidade entre as cenas. Com isto, o resultado, para ele, é que a narrativa não é capaz de se “auto-explicar” (PEDROSA, 1964, p.143-149), e o observador perde as referências, incapaz de compreender a totalidade do conjunto caleidoscópico. 

32. Independente de críticas favoráveis ou não, o artista reafirma em relação a pintura histórica – ao menos na trajetória que identificamos das obras em Washington até Tiradentes – sua posição inconteste ao código figurativo, tal como havia explicitado na Conferência em Montevidéu. Permanece no objetivo de estruturar a narrativa histórica baseada em seus valores pictóricos antes de qualquer referência direta à história. São valores sem os quais a obra certamente tomaria outros caminhos formais.

O painel Brasil e as Cenas Brasileiras: história e nacionalidade

33. Considerando a data do início da construção da sede de O Cruzeiro, a contribuição de Portinari para a decoração demorou a se concretizar. Devido a atrasos no cronograma de execução, a disponibilidade do local para o artista também atrasou. Em janeiro de 1954, a obra ainda se encontrava na terceira laje, conforme podemos identificar na correspondência de Niemeyer a Portinari. Em carta, o arquiteto acusava o atraso e o desencontro de informações, informando que o artista estava autorizado a fazer os estudos necessários para o painel, avisava que o diretor Leão Gondim de Oliveira propunha como tema históricos os personagens Frei Caneca ou Felipe Camarão, que ele já havia sido informado das dimensões da parede que seria suporte para o painel, e, ainda, que haveria outros painéis ainda a serem definidos. 

34. O artista já estava trabalhando na encomenda ao menos desde 1951. Em meio a retratos, encomendas diversas – como o conjunto de painéis para a Cia. Equitativa de Seguros (Garimpeiros, Colheita de Café e Desbravadores de Florestas) – e a participação na 1ª Bienal de São Paulo, Portinari encontrou tempo para realizar alguns estudos. Na realidade, desde o início da década de 1940, ele esteve mergulhado no tema, como mostra, por exemplo., a correspondência com o diretor do Diário de Notícias e de O Estado da Bahia Odorico Tavares. Certamente, o pintor estava interessado no tema histórico da Invasão Holandesa ou na figura do padre Anchieta. Tanto que Odorico, que era colecionador de arte, perguntou a respeito: “como vamos com as Guerras Holandesas e o Anchieta?” Ofereceu livros sobre o assunto e recomendou que o pintor consultasse José Antônio Gonsalves de Melo para que o ajudasse com dados a embasar a composição. Em outra correspondência datada de janeiro de 1951, Odorico escreveu ao artista dizendo que aguardava com interesse o início dos trabalhos dos murais e avisava que outro trabalho seria solicitado para a sede da Rádio Tamandaré em Recife, também propriedade do grupo de Chateaubriand.

35. Como tivemos oportunidade de observar, o artista, em relação à pintura histórica, parte de uma abordagem do cotidiano, e passa a cenas específicas. Contudo, para o painel da sede de O Cruzeiro, Portinari escolheu uma abordagem mais ampla. O próprio título – Brasil – já sugere algo abrangente, porém conceitualmente sintético. Aqui cabe uma indagação: que imagem poderia corresponder a esta pretensão? Isso em si já é um problema complexo. Neste sentido, a sugestão de temas em 1954 evidencia que o do para o painel ainda não havia sido definido, e as propostas se limitavam a estudos no ateliê do artista. Se Portinari se debruçava sobre um painel chamado Brasil, as sugestões não pareciam tematicamente capazes da abordagem: uma fornecia o tema do herói combatente, e outra do herói mártir. Joaquim da Silva Rabelo, conhecido como Frei Caneca, fornecia o tema do herói mártir: foi um religioso e ativista político que esteve envolvido na Revolução Pernambucana em 1817 e na Confederação do Equador em 1824. Acusado de sedição e rebelião contra o Império, foi fuzilado em 1825. 36. Por sua vez, Antônio Felipe Camarão (1600-1648), militar e líder dos nativos em Pernambuco, fornecia o tema do herói combatente. Reconhecido herói a serviço da Coroa Portuguesa, havia sido um destacado personagem na reconquista de Olinda e Recife, além do combate na Batalha de Guararapes que provocou sua morte em 1648. Eram ambos personagens ricos e importantes para a história, que forneciam abundante material a ser explorado por artistas interessados em pintura histórica. O problema é que ambos estavam restritos ao Nordeste e não pareciam tematicamente suficientes para traduzirem uma nacionalidade que se pretendia construir. Seriam, ambos, episódios circunscritos a personalidades individuais. E isto, o pintor já havia feito na composição do painel Tiradentes. 

37. A solução temática para o painel intitulado Brasil procurou aglutinar três episódios da história colonial brasileira: o Descobrimento, o Armistício de Iperoig e o Bandeirantismo. Estes temas, vistos isoladamente, podiam ser entendidos como momentos fundadores que, somados, formavam uma narrativa de conquista territorial que seria o equivalente à formação da nação. Tanto o Descobrimento quanto as Bandeiras já eram temas familiares para Portinari em diversas obras desde o Ministério da Educação. A novidade era a figura de Anchieta. Aparecendo como elo narrativo entre o Descobrimento e os Bandeirantes, ele representava um personagem que parecia capaz de aglutinar em uma só figura o herói, o mártir e o missionário. Além disso, a narrativa histórica servia como episódio fundador do processo civilizacional e o drama humano da população nativa. Fornecia, desta maneira, uma abordagem a uma cultura histórica ampla e, ainda que diluísse a imensa complexidade das relações de contato, abria espaço para que os nativos aparecessem como sujeitos ativos de acordo com suas culturas, como partícipes da dinâmica do processo histórico em ação naquele momento. Nessa perspectiva, é possível perceber que o episódio envolvendo Anchieta aparecia como um lugar temático privilegiado que fazia convergir temas que poderiam produzir uma imagem correspondente ao surgimento da nação que o artista parecia procurar. Para os objetivos ambiciosamente nacionalistas de O Cruzeiro, esta conjugação aparecia como mais que perfeita. A própria imagem de Anchieta já estav presente na arte e na historiografia da primeira metade do século XX como aglutinadora do que havia de humano, histórico e social (VAINFAS, 1986), em uma ação política e pedagógica que contribuía para a construção da imagem de São Paulo. Como estamos objetivando analisar a pintura histórica de Portinari, neste caso não vamos aprofundar a discussão sobre estas questões, que ainda são objeto de agudas controvérsias e que tendem a reduzir o complexo processo colonial no Brasil à dualidade entre o econômico e o ideológico. Interessa-nos a produção artística, e é nela que vamos encontrar os elementos de sua própria estrutura.

38. Municiado com esta estrutura narrativa, o artista poderia começar a trabalhar e, em seu acervo, ao menos sete estudos explicitam este processo. Grupos de cavaleiros bandeirantes em formação [Figura 10, Figura 11 e Figura 12], grupos de nativos observando a chegada das caravelas portuguesas [Figura 13] e a figura de Anchieta [Figura 14] são exemplos das partes isoladas que, somadas, formariam um conjunto narrativo [Figura 15]. Portinari também explorou o grupo de cavaleiros bandeirantes isoladamente, executando estudos em composições mais elaboradas [Figura 16, Figura 17 e Figura 18]. 

39. O estudo somado, feito em grafite sobre papel [Figura 19], serviu de base para que o artista partisse para explorar as possibilidades cromáticas da composição. Dois estudos com o título Anchieta, ambos bastante geometrizados, dão destaque para o oceano com as caravelas de um lado e grupos de figuras humanas do outro. Em um dos estudos [Figura 20], predominam os tons de azul, branco e marrom; no outro [Figura 21], predominam os tons de marrom, ocre e azul. 

40. Um dos estudos intitulado Anchieta apareceu na entrevista que o pintor deu para a revista O Cruzeiro [Figura 22]. Nessa entrevista, publicada em novembro de 1954, Portinari discorre sobre vários temas e aproveitou para explicitar mais uma vez sua posição em relação aos temas nacionais:

41. Penso que o artista deve buscar em seu país e nas tradições e problemas do seu povo, os temas de trabalhos. Se criar dentro deste sentido nacionalista, sua obra poderá ter alcance universal, revelando ao mundo o seu país, através da obra de arte. Mas se afastar do seu país e do seu povo estimar-se-á em um universalismo estéril e inconsequente. (VASCONCELOS, 1954, p. 41).

42. Estes estudos parecem ter conduzido ao estudo intitulado Brasil, em têmpera sobre madeira e de maiores dimensões que os demais [Figura 23]. Neste estudo, bem mais elaborado e definido, a estrutura com os três episódios narrativos somados fica clara. Podemos identificar também que o artista não hesitou em fazer autocitações, certamente em nome de estabelecer relações com sua própria produção pregressa. A disposição do conjunto dos bandeirantes, por exemplo, montados e organizados em formação como um rio sinuoso, repete a disposição que podemos identificar em obras anteriores como Coluna Prestes (1950) [Figura 24]. Outro elemento importante é a figura central de Anchieta: Portinari o colocou em primeiro plano, escrevendo seu “Poema à Virgem” nas praias de Iperoig. O resultado é, no mínimo, fragmentado, uma vez que, se visto em conjunto, Anchieta está colocado de maneira completamente alheia aos acontecimentos que se desdobram à sua volta. As cenas, tanto à direita quanto à esquerda da imagem, encontram-se completamente desconectadas em uma sucessão de planos posteriores a partir da figura introspectiva de Anchieta que se encontra em primeiro plano.  A figura escura e esguia da batina parece ter sido colocada apenas como um elemento de contraste visual contra o fundo iluminado.

43. Desta maneira, fica evidente, ao observarmos a composição do painel Brasil, uma descontinuidade entre as cenas, fenômeno que Jacques Aumont salientou como sendo o “efeito de diferença.” Em suas palavras:

44. Um efeito cognitivo, quase consciente, que consiste na reconstrução, pelo espectador, daquilo que “falta” entre as imagens. Tais ideias de “diferença”, de “falta”, de “reconstrução” só designam, de fato, uma única e mesma coisa: essa atividade mental no mais das vezes postulada, nas abordagens cognitivistas, como o próprio fundamento de toda percepção. (AUMONT, 2004, p. 95).

45. No caso, ainda que as cenas estejam inscritas no espaço geral compositivo pretensamente unitário em que a narrativa histórica está construída, o resultado é fragmentado: a imagem devolve ao observador a missão de relacionar a sequência das partes com o todo. Parece fazer valer a observação de que, neste caso: 

46. Desenvolvida no tempo, a obra não é por isso recebida como um simples desfilar, mas dá lugar a um processo infinito de soma, de comparação, de classificação, em suma, de memória, que, por definição, fixa o tempo – em uma espécie de “espaço”, se se fizer questão. (AUMONT, 2004, p. 141).

47. Em 1953, Portinari elaborou um outro estudo para o painel Brasil, em que seguiu a composição do anterior, feito em 1951. As diferenças aparecem na posição do oceano, mais recuado, e na retirada do grupo de figuras atrás de Anchieta. A sequência de cenas não foi alterada, o que parece demonstrar o encaminhamento de uma solução formal para a encomenda que não foi executada. 

48. O esforço de Portinari para construir uma imagem correspondente ao início da nação parece, como em Tiradentes, contraditório. É certo que em Tiradentes não estavam presentes as pretensões mitológicas fundadoras. O nacionalismo aparecia nos personagens trágicos dos Inconfidentes e Tiradentes. Em Brasil, a compulsão cultural de se construir uma unidade impossível de uma nação como força simbólica resulta em um esforço vão. Apesar disto, os discursos nacionalistas com os quais Portinari comungava e reproduzia se esforçaram persistentemente em tentar se afirmar. Ao projeto modernista brasileiro de encontrar a “origem” da nação, Portinari contribuiu com sua maneira peculiar de pintar a história. 

49. O painel Brasil não foi executado, mas a participação de Portinari para a sede de O Cruzeiro não foi abandonada. Ele foi incumbido de fazer uma série de doze telas, produzidas entre 1954 e 1956. O tema escolhido foi uma sucessão de Cenas Brasileiras: Seringueiros (1954) [Figura 25], Gaúchos (1954) [Figura 26], Vaqueiros do Nordeste (1954) [Figura 27], Jangada do Nordeste (1954) [Figura 28], Garimpo em Minas Gerais (1956) [Figura 29], Baianas (1956) [Figura 30], Samba (1956) [Figura 31], Bumba-meu-Boi (1956) [Figura 32], Frevo (1956) [Figura 33], Anchieta (1956) [Figura 34], Descobrimento (1956) [Figura 35] e Bandeirantes (1956) [Figura 36]. Assim, como é facilmente constatável, a ideia de um tema relacionado à origem da nação, a obra incompleta deu lugar a um conjunto de composições isoladas autônomas, cuja única pretensão de unidade pode ser vista no título da série. Cada uma das Cenas Brasileiras já era um tema familiar e explorados ao longo da carreira do artista até aquela época. 

50. Com as Cenas Brasileiras, podemos também referenciar a abordagem do artista em relação à nacionalidade. Inscrita no cenário artístico nacionalista da década de 1950 – entre uma liberdade artística e uma circunstância de posicionamento ideológico -, a obra de Portinari caiu como uma luva ao projeto intelectual de Mário de Andrade que ambicionava a criação de uma identidade nacional coletiva ao valorizar elementos da cultura popular. São exatamente os temas que aparecem ao lado de temas históricos.  Vista desta maneira, a conceituação de uma identidade cultural não deve ser entendida como um conceito fechado, mas antes como um continuum de resultados transitórios dado basicamente às suas causas múltiplas e mutáveis. Nesta época, o processo de formação da arte brasileira havia deixado a antinomia dos anos 1930 no passado. Isso tem sobretudo a ver com a ação de Mário de Andrade ao entendê-la como um problema aberto, o que certamente acentua a dramaticidade e a incompletude da modernidade na cultura brasileira.

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