Álvaro Saluan da Cunha
Como citar: CUNHA, Álvaro Saluan da. A recepção e os usos públicos das imagens da guerra contra o Paraguai. 19&20, Rio de Janeiro, v. XX, 2025. DOI: 10.52913/19e20.xx.08. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/imagens-da-guerra/
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Introdução
1. A guerra contra o Paraguai (1864–1870), além de mobilizar as estruturas diplomáticas, militares e econômicas do Império brasileiro, também produziu um vasto repertório iconográfico destinado a representar, interpretar e, sobretudo, consolidar um sentido compartilhado para o conflito. Se, durante os anos da guerra, as imagens circularam nos jornais ilustrados e em litografias avulsas, com o intuito de informar, persuadir ou criticar, no período imediatamente posterior ao cessar-fogo, essas mesmas imagens passaram a cumprir outra função: a de organizar a memória da guerra, fixar um discurso visual sobre o heroísmo nacional e instituir um modo de ver o conflito compatível com os valores do Estado imperial (Cunha, 2019; Cunha, 2023).
2. Desta forma, este artigo tem por objetivo examinar os usos públicos e a recepção das imagens da guerra contra o Paraguai, porém nas décadas que se seguiram ao conflito, com ênfase entre as décadas de 1870 e 1890. Trata-se de compreender como imagens originalmente criadas em meio ao calor dos acontecimentos – como as reunidas na coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay [ ver link ] – foram apropriadas pelo Estado, incorporadas a políticas de instrução, exibidas em espaços públicos e ressignificadas em distintos contextos sociais e institucionais. Assim, ao invés de restringir-se à análise formal das representações, a proposta aqui é a de investigar sua circulação, seus enquadramentos simbólicos e seus efeitos sociais, articulando cultura visual, história política e memória coletiva.
3. As fontes analisadas, que incluem os fascículos da coleção litográfica citada anteriormente, relatórios ministeriais, periódicos de ampla circulação, catálogos de exposições e livros escolares, apontam para uma estratégia deliberada de utilização das imagens como instrumentos de uma pedagogia cívica por parte do Império (Cunha, 2019; Cunha, 2023). Ao serem distribuídas como prêmios escolares, adquiridas por ministérios, inseridas em acervos públicos e utilizadas em eventos comemorativos, as representações visuais da guerra foram investidas de um papel central na construção de uma memória nacional heroica e moralizante. Esse processo foi acompanhado por um silenciamento sistemático da violência do conflito, da destruição material, da dor coletiva e da presença de sujeitos subalternizados nos campos de batalha, tais como os negros e indígenas.
4. Aqui, merecem também ser citados os paraguaios, muitas vezes retratados como seres selvagens e bestiais, algo que é comumente mencionado nas partes textuais da coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay, em uma dicotomia que define o Brasil como uma nação civilizadora, ao passo em que Francisco Solano López e seus comandados representam um contexto de barbárie total (Cunha, 2019).
5. Nesse contexto, a imagem operou como uma ferramenta de instrução, consagração e na definição do “eu” e do “outro.” Assim, ela não apenas mostrava a guerra, mas ensinava a vê-la sob determinados códigos: a ordem dos exércitos, a glória do comando, a rendição do inimigo, a grandeza do Império e a inferioridade estética e até mesmo técnica dos inimigos (Mitchell, 2005; Didi-Huberman, 2010). Os espaços públicos, escolas, bibliotecas, repartições e exposições, tornaram-se vitrines dessa visualidade, locais de reforço simbólico de uma narrativa oficial. Ao mesmo tempo, a imprensa, os círculos republicanos e setores da crítica urbana produziram contrapontos e reinterpretações, revelando que a recepção das imagens não foi homogênea, nem isenta de conflitos (Toral, 2001).
6. Partimos, portanto, da hipótese de que a imagem da guerra, no pós-conflito, foi mobilizada como um recurso estratégico de poder: por meio dela, o Estado buscou cristalizar uma versão gloriosa e disciplinada do passado recente, ao passo que diferentes grupos sociais negociaram, contestaram ou ressignificaram esse mesmo legado visual. Essa mesma tática também foi utilizada pelas Forças Armadas no período da Ditadura Civil-Militar brasileira, ocorrida entre 1964 a 1985, que buscou reviver a campanha militar brasileira, demonstrando seus êxitos em armas.
7. Neste artigo, baseado nos resultados encontrados na dissertação As litografias da coleção “Quadros históricos da Guerra do Paraguay” na década de 1870: projeto editorial e imagens (Cunha, 2019), a metodologia adotada combina a análise de cultura visual, a crítica historiográfica e o estudo das práticas de leitura e de exposição pública, propondo um olhar atento aos modos como o visível foi produzido, veiculado e disputado na construção da memória nacional oitocentista.
8. Ao final, espera-se demonstrar que a guerra contra o Paraguai, embora encerrada nos campos de batalha, prosseguiu no plano da cultura visual, através de imagens que circularam em coleções, premiações escolares, vitrines públicas, presentes para legações estrangeiras e cerimônias cívicas, formando gerações para uma memória do conflito em que a dor se converteu em silêncio e a vitória em imagem disciplinada. O que se propõe, aqui, é ver a imagem não como fim do conflito, mas como sua permanência.
A imagem após o conflito: institucionalização e circulação
9. Encerradas as hostilidades no campo de batalha, a guerra contra o Paraguai adentrou uma nova fase: a da disputa por sua memória. Nesse novo terreno, não mais armado de baionetas, mas de palavras, imagens e símbolos, o Estado imperial mobilizou suas estruturas administrativas, educacionais e culturais para produzir uma narrativa do conflito que exaltasse a vitória, glorificasse a autoridade monárquica e transformasse o trauma em epopeia. Neste contexto, as imagens criadas durante a guerra, em especial aquelas reunidas na coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay, foram rearticuladas como dispositivos de consagração, instrução e ordenação da lembrança.
10. Desde sua origem, essa coleção apresentava um projeto editorial alinhado ao esforço de monumentalização do conflito. Como demonstrado na dissertação citada, seus fascículos combinavam litografias de qualidade técnica refinada, baseadas em pinturas de artistas consagrados como Victor Meirelles, Pedro Américo e Eduardo De Martino, a textos explicativos de caráter heroico, quase hagiográfico, assinados por personagens como Augusto Zaluar e César Muzzio (Cunha, 2019). No entanto, foi no período pós-guerra que essas imagens realmente deixaram de ser apenas representações e passaram a funcionar como instrumentos de política de memória.
11. Documentos oficiais analisados ao longo da pesquisa, como os Relatórios do Ministério do Império, os Balanços da Receita e Despesa do Império, demonstram que os fascículos da coleção foram adquiridos com recursos públicos e distribuídos sistematicamente a diversas instituições civis e militares (Cunha, 2019). Em 1874, por exemplo, esse relatório mostra que o Ministério da Guerra comprou exemplares destinados à Escola Militar e ao Arsenal de Guerra da Corte. No ano seguinte, o mesmo relatório indica a aquisição de uma remessa de conjuntos encadernados à Biblioteca Pública do Rio de Janeiro, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a colégios da província de Minas Gerais.
12. A estratégia de distribuição revela uma clara intenção de territorializar a memória visual da guerra: as imagens não deveriam permanecer apenas nos espaços do governo central, mas circular pelas províncias, alcançando professores, alunos, bibliotecários, militares, e até mesmo diplomatas (Halbwachs, 2006; Cunha e Oliveira, 2019). A guerra transformava-se, assim, em imagem pedagógica e propagandística, que deveria ser vista, compreendida e, sobretudo, reverenciada por seus espectadores. Para os diplomatas e países que a recebiam, era o símbolo do espírito da civilização que surgia no Novo Mundo.
13. Além dos registros de compra, os balanços orçamentários do Império também evidenciam o investimento financeiro na produção e difusão da coleção. Entre 1873 e 1880, repetem-se rubricas orçamentárias destinadas à aquisição de “gravuras históricas alusivas à campanha do Paraguai,” geralmente descritas como “materiais de instrução” ou “premiação por mérito escolar” (Cunha, 2023). A linguagem contábil, ao classificar a imagem como bem educacional, corrobora sua inserção em uma política mais ampla de disciplinamento simbólico (Bourdieu, 1989), utilizando-se de instituições públicas para veicular os ideais pedagógicos do conflito.
14. As imagens também figuraram entre os prêmios concedidos a estudantes aplicados, conforme registrado nos jornais da Corte e em relatórios oficiais. Em âmbito nacional, esses fascículos foram adquiridos por ministérios do Império, algo demonstrado pelos Balanços da Receita e Despeza do Império entre 1872 a 1881, sendo enviados para outras províncias, através de ofícios de requerimento, que os utilizariam como prêmios, com o intuito de se difundir a coleção e potencializar o acesso aos episódios da guerra.
15. Ao serem oferecidas como prêmios, as imagens adquiriram um estatuto simbólico: eram não apenas objetos de admiração estética, mas insígnias do bom cidadão, do estudante exemplar, do jovem patriota.
16. Além disso, bibliotecas públicas e escolas normais também foram contempladas com a coleção. Sendo assim, a presença dessas imagens nesses espaços, como o Quartel do Comando do 4º Batalhão de Artilharia em Belém do Pará, reforça sua vocação instrucional. Desse modo, as gravuras passaram a ser exibidas em vitrines durante os períodos de venda ou disponibilizadas para consulta em algumas instituições. Essa circulação institucionalizada inscreveu a guerra em um espaço de reverência e disciplina visual. O público letrado da época, formado por estudantes, professores, bibliotecários e funcionários administrativos, foi educado a ver o conflito sob as lentes da ordem e da glória (Didi-Huberman, 2010).
17. A imagem, cuidadosamente composta, enquadrava a experiência da guerra em molduras estéticas e ideológicas que excluíam detalhes cruciais como o sangue, o trauma e a desordem, algo comumente visto nas pinturas históricas. A rendição de Uruguaiana, por exemplo, é retratada como cena de equilíbrio, cortesia e honra entre exércitos civilizados [ ver Imagem ]; a Passagem de Humaitá, como um feito técnico-militar mais do que uma operação arriscada e violenta [ ver Imagem ]. O gesto estético apagava a brutalidade do conflito, e a cena heroica ocultava a destruição.
18. Esse movimento de institucionalização por parte do Estado confirma que a imagem da guerra não era apenas uma espécie de memória consolidada, mas um verdadeiro território de disputa, ainda que totalmente desbalanceada. Ao mesmo tempo em que a coleção litográfica era acolhida nas repartições públicas e celebrada nos salões de exposição, também era colecionada por algumas pessoas que viam no período após o conflito um país diferente. Para alguns, o Brasil tornava-se civilizado. No entanto, para outros, a questão abolicionista se tornava urgente, as dívidas do conflito tornaram-se um grande problema e, além disso, a emergência da república fazia ressoar a ideia de rompimento com a monarquia vigente, sobretudo com o fortalecimento da Marinha e do Exército após o conflito, consolidados através dos esforços de personagens como Duque de Caxias e o Marquês de Tamandaré.
19, A trajetória da coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay no pós-guerra, portanto, revela o poder performativo da imagem como artefato de memória. Sua circulação sistemática, sua apropriação por instituições educacionais e sua presença em rituais de consagração cívica a transformaram em referência visual dominante sobre o conflito. E é precisamente por isso que sua análise demanda mais do que apreciação formal: exige uma leitura crítica de seus usos, de suas recepções, de seus silenciamentos e de suas permanências.
A pedagogia visual do Império: imagens como prêmios, modelos e símbolos
20. A incorporação das imagens da guerra contra o Paraguai ao cotidiano das instituições escolares brasileiras, entre as décadas de 1870 e 1880, foi uma das formas mais eficazes de consolidação de uma memória oficial do conflito. A coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay, articulada originalmente como um projeto editorial voltado à monumentalização da guerra e também como um produto voltado para um emergente mercado da época, rapidamente passou a cumprir função pedagógica, sendo apropriada por escolas públicas e outras instituições do Estado. Sua circulação em ambientes de ensino provavelmente não se limitou à contemplação artística. Hipoteticamente, a solicitação dessa coleção pela Biblioteca Pública de Ouro Preto, o Liceu Paraense e a Escola Normal do Pará (Cunha, 2019, p. 45), nos leva a crer que o material foi utilizado também como instrumento de formação cívica, moral e política da juventude da época.
21. As fontes documentais analisadas confirmam que, por meio dos Ministérios do Império e da Guerra, o Estado brasileiro promoveu a distribuição da coleção às escolas normais, bibliotecas escolares, academias militares e instituições de ensino secundário em diferentes províncias. Nessas instituições, as imagens eram utilizadas como prêmios escolares, dispostas em murais ou em repartições, além de provavelmente terem sido inseridas como conteúdo auxiliar em aulas de História do Brasil. Ao serem entregues a alunos premiados, essas gravuras assumiam o papel de insígnias do bom comportamento, do patriotismo e da lealdade ao Estado monárquico.
22. Portanto, esse uso das imagens como premiação evidencia sua função simbólica. Não se tratava apenas de reconhecer o mérito estudantil, mas de oferecer um modelo visual de brasilidade disciplinada e de bravura moral. A estética das litografias, marcada pela composição simétrica, pela glorificação dos generais e pela ausência de ruínas ou cadáveres, reforçava o caráter exemplar da guerra para aquele momento, vista como o triunfo da civilização na América do Sul. Além das cerimônias de premiação, a coleção provavelmente integrou algumas das práticas pedagógicas cotidianas, sendo dispostas ao público.
23. Nesses contextos, a guerra contra o Paraguai era então apresentada aos espectadores não como episódio traumático, mas como rito de passagem para a maturidade política do Império, uma interpretação que naturalizava a violência e exaltava o sacrifício como fundamento da unidade nacional.
24. Esse processo se insere em uma lógica de “pedagogia visual,” nos termos de Roger Chartier (1990), que compreende os usos da imagem como forma de instrução dos corpos e das sensibilidades. A guerra ensinada nas imagens era uma guerra purificada, branda, gloriosa ao povo brasileiro: sem sangue, sem desordem, sem contradições, focando nos soldados como heróis da pátria. Ainda assim, o que se oferecia aos olhos era um conflito convertido em epopeia, povoado por soldados impassíveis, oficiais nobres e inimigos derrotados com dignidade. O olhar treinado nesse contexto era um olhar moralizado, acostumado à glória e ignorante à ruína causada pelo conflito em todas as nações envolvidas.
25. A gravura, como destacou Giulio Carlo Argan (2004), possui o poder de traduzir a linguagem pictórica original para contextos de reprodução ampliada. No caso da coleção analisada, essa “tradução” foi também uma “transmissão” de valores: as imagens perderam sua singularidade como obras de arte, mas ganharam eficácia como veículos de doutrinação simbólica. O fato de circularem amplamente em papel, serem distribuídas gratuitamente e estarem associadas a rituais escolares contribuiu para que se tornassem referências visuais internalizadas por gerações de estudantes.
26. Não se pode ignorar, entretanto, os efeitos excludentes dessa pedagogia. Como mostra Didi-Huberman (2010), toda imagem opera também por ocultamento. E, nessas gravuras, não havia corpos negros, não havia mulheres, e praticamente não havia dor. A guerra ensinada pelas imagens era uma guerra branca, masculina, disciplinada e resolutiva. Ao excluir os sujeitos racializados e subalternizados, que compuseram parte das forças brasileiras, ocultas também pela historiografia da época, a imagem reforçava os limites da cidadania imperial, definindo quem deveria ser visto e quem deveria ser esquecido. Além disso, definia também como os brasileiros deveriam ver seus inimigos, retratados seminus, com traços grossos e bestializados, subvertendo a lógica romântica da literatura da época, que tratava o indígena local como bondoso, ao passo que os paraguaios eram retratados como os “maus selvagens.”
27. Essa pedagogia visual do Império, construída sobre a estetização da guerra, não desapareceu com a Proclamação da República. Ao contrário, muitos dos manuais escolares da Primeira República continuaram a reproduzir as mesmas imagens e a mesma narrativa disciplinada do conflito, um hábito visual comum aos eventos canônicos da história brasileira, que resistiram até os idos dos anos 2000. Assim, a permanência dessas representações, seja em livros didáticos, selos comemorativos ou painéis cívicos, revela que o “modo de ver” instituído nas escolas do século XIX consolidou uma memória visual duradoura da guerra contra o Paraguai, da qual o país ainda hoje não se desvencilhou totalmente.
A recepção crítica
28. Se por um lado a coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay e outras imagens associadas ao conflito foram institucionalizadas pelo Estado como ferramentas de instrução, disciplina e consagração, por outro, é preciso reconhecer que essas representações não circularam em um vácuo. Ao contrário, as imagens da guerra foram objeto de apropriações múltiplas, interpretações divergentes e, sobretudo, críticas explícitas por parte de setores da imprensa, da sociedade civil e, mais adiante, dos ideais republicanos. A recepção visual do conflito, portanto, mesmo durante os seus eventos, não foi passiva ou uniforme. Ela foi marcada por disputas, ironias e reconfigurações que revelam a imagem como campo de embate político e simbólico.
29. As pesquisas apontaram alguns vestígios importantes dessas leituras dissonantes. Em jornais como o Diário do Comércio e a Revista Illustrada, entre 1883 e 1889, encontram-se artigos e caricaturas que ironizam os gastos públicos com “álbuns de glória tardia” (Cunha, 2023), criticam a ausência de apoio estatal aos veteranos e denunciam a tentativa de maquiar, com imagens heroicas, o que foi, para muitos, uma guerra desnecessária e brutal. O próprio Angelo Agostini, que provavelmente esteve ligado a produção dessas gravuras da coleção, foi um crítico ferrenho da Monarquia e dos esforços de guerra, ainda que torcesse de maneira favorável ao seu desfecho.
30. Essas intervenções gráficas, feitas sobretudo durante o período da guerra, são reveladoras porque não apenas comentam, mas também desmontam a lógica da representação oficial. Ao inverter esses códigos da imagem heroica, substituindo a postura altiva dos soldados por expressões de cansaço, o alinhamento do exército por confusão e a dignidade do inimigo rendido por zombarias ou críticas mais contundentes aos problemas da guerra, Agostini e alguns de seus contemporâneos questionavam a autoridade não só da imagem estatal, mas também da Monarquia, além da validade simbólica da memória que ela pretendia instituir, sobretudo pela perspectiva adotada em alguns momentos por Henrique Fleiuss, na Semana Illustrada. A caricatura, nesse sentido, funcionava como contra imagem: seu traço, sua legenda insolente e sua circulação, ainda que restrita a um público bastante específico e limitado, minavam parte dessa reverência exigida pelas litografias oficiais no período pós-guerra.
31. Além da sátira, a crítica também se expressou nos discursos de alguns editores que denunciavam os efeitos da guerra para além do campo de batalha. Henrique Fleiuss, muitas vezes lido como apoiador do Império, assim como Angelo Agostini, mencionavam em seus textos problemas como os gastos excessivos com a campanha e, posteriormente, com suas comemorações, ao passo que os veteranos feridos durante a guerra e os negros libertos seguiam sem qualquer auxílio ou perspectiva por parte dos esforços imperiais (Cunha, 2019 e 2023). A retórica da glória era, assim, contraposta a uma realidade social do pós-guerra que se seguiu abafada nestas imagens que, em suas belezas litográficas, eram vistas como ornamentos que dissimulavam um projeto de Estado centrado em um discurso que visava uma possível unidade nacional.
32. Essas vozes críticas, ainda que minoritárias frente ao aparato de consagração visual montado pelo Império, são fundamentais para a compreensão do processo de recepção. Elas demonstram que a imagem não é apenas aquilo que o Estado deseja que ela seja, embora seja possível considerar que os esforços monárquicos tenham alcançado êxito em sua campanha visual. Porém, ao circular em diferentes núcleos, a imagem se abre à interpretação, à apropriação, à resistência. Ela pode ser reverenciada, mas também pode ser contestada, deslocada ou satirizada. A memória visual da guerra contra o Paraguai foi, portanto, tanto instituída quanto disputada, seja do ponto de vista mercadológico, ou também das questões ideológicas que se seguiram posteriormente na história brasileira.
33. Ao final da década de 1880, com a crescente adesão da opinião pública à causa republicana, a guerra passou a ocupar posição cada vez mais ambígua entre a população. Por um lado, ainda era mencionada e celebrada de maneira oficial, sobretudo pelos militares; por outro, era resignificada como herança de um regime decadente, cuja imagem se confundia com o simulacro, sendo esta uma perspectiva mais voltada aos republicanos. Assim, ao herdar esse repertório visual, a República brasileira teve de negociar seus significados.
34. Conclui-se que as imagens da guerra, longe de serem consensuais, foram atravessadas por olhares distintos, nem sempre convergentes, sendo elaboradas por diversos personagens que, por sua vez, tinham uma ampla forma de conceber o conflito, seja nas pinturas, gravuras, ou até mesmo nos textos redigidos. Assim, a crítica, a paródia e a reinterpretação fazem parte de sua história. E essa dimensão conflituosa da recepção é essencial para compreender não apenas o que as imagens mostraram, mas o que fizeram, e o que permitiram que outros fizessem com elas.
Permanência e sedimentação: legado iconográfico no imaginário republicano
35. A queda do Império, em novembro de 1889, não significou, como por vezes se supõe, uma ruptura imediata com o repertório simbólico acumulado durante a monarquia. Ao contrário, boa parte da iconografia construída no período imperial foi absorvida pela República nascente, adaptada às novas exigências políticas e ressignificada segundo os valores do novo governo, iniciado através dos militares. Entre essas heranças visuais, as imagens da guerra contra o Paraguai ocuparam lugar central. Produzidas para exaltar o heroísmo imperial, elas foram prontamente reapropriadas para narrar uma história de bravura nacional, agora desvinculada da figura do imperador, porém ainda calcada na ideia de um Brasil forte, vitorioso e civilizado, mas graças ao Exército e a Marinha.
36. Essa permanência revela a eficácia simbólica das imagens. Criadas para celebrar o Império, elas sobreviveram à derrocada deste porque haviam se consolidado como repertório pedagógico e emocional que tinha como protagonistas os militares. Tinham, como propõe Didi-Huberman (2010), densidade de memória: tornaram-se formas visuais do sentimento patriótico. A vitória sobre o inimigo externo continuava sendo um marco necessário para a formação do cidadão republicano, e a imagem dessa vitória já estava disponível, estruturada e legitimada pelas décadas anteriores, sendo endossada pela presidência e envolvimento político de personagens das Forças Armadas.
37. Esse reaproveitamento, contudo, não foi isento de apagamentos. A ressignificação republicana exigiu o esvaziamento de elementos visuais monárquicos. O imperador desaparece da cena ou é minimizado. As bandeiras imperiais são substituídas por símbolos genéricos de patriotismo. No entanto, as estruturas visuais, os enquadramentos e os códigos compositivos permanecem quase inalterados. A imagem imperial da guerra foi, assim, transfigurada: perdeu seu rosto político original, mas preservou sua função de representar a guerra como momento de redenção e sacrifício nacional, além de um marco na história militar do país.
38. Em termos de cultura visual, o que se observa é uma sedimentação de olhares. A guerra contra o Paraguai passou a ser vista e ensinada a partir das molduras visuais do Império, adaptadas à lógica republicana e, posteriormente, subvertida por autores como Julio José Chiavenatto, no livro Genocídio Americano: a guerra do Paraguai, redigido durante a Ditadura Civil-Militar. Sua ideia na época foi a de criar um livro para atacar o evento-base das Forças Armadas. Isso é algo que foi e ainda é reproduzido por parte da esquerda brasileira, que acaba assimilando o conflito a um imperialismo britânico quando, na verdade, é justamente o Brasil o país imperialista em questão.
39. Assim, como em um palimpsesto, a nova camada de discurso cívico não apagou inteiramente a anterior, mas sobre ela se escreveu, reaproveitando seus contornos e reforçando sua autoridade. O “modo de ver” a guerra, instituído nas décadas de 1870 e 1880, prolongou-se por todo o século XX, marcando gerações de estudantes, leitores e cidadãos com imagens cuidadosamente compostas para instruir, emocionar e disciplinar. No entanto, graças ao cruzamento da historiografia vigente, fontes primárias e o conhecimento de quem estava por trás destas produções, torna-se mais fácil e até mesmo plausível, entender os discursos por trás das produções visuais sobre o conflito, indo além das gravuras, coleções e periódicos ilustrados.
40. Essa permanência nos obriga a pensar não apenas na produção iconográfica, mas em sua vida longa, em seus desdobramentos, em sua capacidade de se adaptar a regimes distintos e as diferentes maneiras de se observar um determinado tema. Assim, é possível de se afirmar que a guerra contra o Paraguai se tornou um dos raros consensos iconográficos da história brasileira: monarquistas e republicanos, conservadores e progressistas, todos, em algum momento, mobilizaram essas imagens para afirmar um projeto de nação ou a tentativa de criação de um projeto de nação por meio não só das imagens, mas dos acontecimentos que nelas estão sendo narrados de maneira totalmente fictícia e presas ao seu zeitgeist, mesmo em suas inúmeras reapropriações.
41. E é justamente essa longa duração do visível que torna tão urgente sua crítica, que vem sendo cada vez mais elaborada no campo da História da Arte e das visualidades. Assim, é essencial compreender as imagens não apenas como suporte a textos; elas são uma linguagem independente, viva, polissêmica e totalmente mutável, sobretudo se levarmos em consideração seu contexto de criação, em um Brasil em que os números mostrados nos censos feitos entre 1872 a 1890 apontam que cerca de 82,5% (Ferraro, 2012) da população não sabia ler.
Considerações finais
42. As imagens da guerra contra o Paraguai, longe de constituírem um mero repertório iconográfico do passado, revelam-se, à luz de sua recepção e circulação pública, como instrumentos ativos na edificação de uma tentativa de memória nacional disciplinada, seletiva e duradoura. Entre as décadas de 1870 e 1890, essas representações, especialmente aquelas organizadas na coleção Quadros históricos da guerra do Paraguay, deixaram de ser apenas artefatos artísticos ou registros do conflito para se tornarem operadores simbólicos centrais na construção da sensibilidade histórica do Império e, mais tarde, da República. Além disso, vale mencionar que as gravuras veiculadas nos periódicos da época, com o intuito de informar e, indiretamente, também dar face aos eventos, também podem ser consideradas, ainda que de maneira distinta, uma forma de consolidar parte desta visualidade.
43. O que se demonstrou e reforçou ao longo deste artigo é que a imagem, nesse contexto, não é um complemento da narrativa: ela é a própria narrativa. Ao adentrar escolas, bibliotecas, exposições e repartições públicas, a cultura visual da guerra passou a regular modos de ver, de sentir e de compreender o passado e suas múltiplas perspectivas e realidades. Assim, foram investidas de autoridade estética e pedagógica, projetadas como modelos de bravura, civismo e ordem. Ao mesmo tempo, ocultaram a violência, em alguns casos apagaram sujeitos subalternos e eliminaram os traços do trauma, sobretudo nas gravuras, não por omissão involuntária, mas por um gesto político de construção da memória visual controlada (Didi-Huberman, 2010; Halbwachs, 2006).
44. A análise da inserção dessas imagens na cultura brasileira e em suas instituições oitocentista demonstra como a visualidade foi mobilizada pelo Estado como forma de pedagogia moral. A guerra ensinada pelas imagens não era apenas uma sequência de batalhas vencidas, mas um roteiro de conduta: como se observar diante do inimigo, como obedecer à autoridade, como cultuar o sacrifício em nome da pátria, algo que fica ainda mais nítido quando os discursos ufanistas da época homenageiam os Voluntários da Pátria, despidos de qualquer crítica (Cunha, 2023). O aluno que recebia uma gravura como prêmio era convidado a observar e a repetir, de certa maneira, o heroísmo das cenas representadas. A imagem era prêmio, mas também modelo e espelho, fruto patriótico de um conflito tido pela monarquia como a vitória da civilização contra a barbárie, em um movimento quase que eurocêntrico de tentar se colocar ante ao mundo ao simular os feitos napoleônicos e de outras nações do Velho Mundo.
45. Mas, como se viu, a recepção não foi unívoca. A imprensa satírica durante a guerra, os discursos republicanos e parte da crítica jornalística da época ofereceram contrapontos importantes à exaltação acrítica do conflito. Ao subverter as cenas heroicas, rir e criticar as poses coreografadas e denunciar os custos sociais da campanha, essas vozes demonstraram que a imagem, mesmo quando autorizada pelo Estado, não estava blindada contra o dissenso. Portanto, o campo visual é, obviamente, assim como a semântica, um amplo campo de disputa. E foi justamente nesse embate que a memória da guerra se constituiu como arena pública.
46. A permanência das imagens no imaginário popular reitera a força de sua moldura original. Ainda que o conteúdo político tenha se alterado esteticamente ou apenas em questões de perspectiva, os códigos visuais permaneceram: o herói centralizado, o inimigo derrotado, a vitória ordenada, o corpo branco como símbolo do nacional e a divisão do que é ser brasileiro e o que é ser paraguaio, visto como o embate civilização versus barbárie, selvageria, desordem. A República herdou a estética do Império, reconfigurando sua função, mas preservando parte de sua estrutura, colocando ênfase nas Forças Armadas.
47. Esse reaproveitamento, mais do que sinal de continuidade, revela a força das imagens em moldar o que se lembra – mas também o que se esquece – de uma guerra que atravessou gerações.
48. Diante disso, a proposta de se pensar a cultura visual como componente essencial da historiografia da guerra se reafirma com vigor. Não é mais possível falar da guerra contra o Paraguai sem considerar o modo como ela foi vista, ensinada, premiada, exposta e ritualizada. O olhar é parte da história. E os arquivos da memória visual não são ilustrações de um tempo, mas documentos da disputa pelos sentidos desse tempo.
49. Este artigo, ao reunir algumas das práticas de circulação, usos e estratégias pedagógicas, buscou evidenciar como as imagens não apenas representaram a guerra, mas construíram uma maneira de compreendê-la, uma visualidade que perdurou além das batalhas e que sobrevive ainda hoje em livros, museus e imaginários coletivos, mas que também vem sendo totalmente destrinchada através de inúmeras pesquisas. Assim, reexaminar essas imagens é, portanto, mais do que um exercício historiográfico: é um gesto político. Um esforço para desnaturalizar aquilo que se tornou familiar. E para perguntar, diante da moldura ainda intacta: que guerra é essa que seguimos vendo e quem continua ausente do quadro? Afinal, o não-dito, ou melhor, não mostrado, também nos diz muito.
Referências
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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
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CUNHA, Álvaro Saluan da. As litografias da coleção “Quadros históricos da Guerra do Paraguay” na década de 1870: projeto editorial e imagens. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019.
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