Considerações sobre a relação entre João Zeferino Da Costa e a tradição italiana: As Virtudes Marianas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro *

Reginaldo da Rocha Leite

LEITE, Reginaldo da Rocha. Considerações sobre a relação entre João Zeferino Da Costa e a tradição italiana: As Virtudes Marianas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.04

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Diante do problema e dos indícios motivadores da pesquisa

1.     Ao nos depararmos com as telas marianas da igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro, uma dúvida salta à mente: por que João Zeferino da Costa (1840-1915) ao ser contratado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, em 1879, elabora e executa suas obras em Roma?  A pergunta pode parecer ingênua. No entanto, acreditamos que tal atitude do artista está ligada aos princípios de sua formação acadêmica.

2.     Este artigo pretende tecer breves considerações sobre a relação de Zeferino da Costa com a Tradição Italiana, dos séculos XVI e XVII, para entender o discurso visual das obras de cunho mariano pintadas para a igreja da Candelária. Acreditamos que a experiência do pensionato do aluno de Pintura Histórica em Roma, seja o pontapé inicial e que, mais tarde, com a encomenda das obras da igreja da Candelária, a relevância da contribuição artística italiana se torne mais evidente. Tal contribuição se dá na assimilação do Ut Pictura Poesis e de códigos compositivos dos grandes mestres das Escolas Artísticas de Florença, Roma e Veneza - Michelangelo (1475-1564), Rafael (1483-1520) e Ticiano (1488-1576).

3.     A motivação para esta pesquisa advém, primordialmente, de nosso interesse pelo estudo da formação do artista brasileiro durante o século XIX e pelo diálogo com a pintura de temática religiosa acadêmica, duramente criticada ao longo de décadas ou apenas citada em esparsos parágrafos como coadjuvante no âmbito da Pintura Histórica. Trata-se de constatação que toma vulto a partir da crítica de arte oitocentista e da historiografia da arte brasileira referente ao mesmo período.

4.     Em trabalhos escritos no final do século XX e no início do atual, o reconhecimento da proeminência da pintura produzida durante o século XIX é observado. Com esse resgate, outros apontamentos são formulados seguindo caminhos distintos das críticas positivista e evolucionista articuladas no final do Oitocentos. Contudo, a pintura de temática religiosa, apesar de relevante no âmbito da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e bastante produzida durante o século XIX, mantém-se à margem das pesquisas executadas durante a atual revisão historiográfica. Essa verificação nos levou a mergulhar no assunto em diferentes níveis acadêmicos - Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado - proporcionando assim, maior segurança em relação ao tema e à construção de um arcabouço teórico/visual.

5.     Outro ponto que nos conduz ao tema da pesquisa é a carência de estudos sobre a produção mariana de João Zeferino da Costa. Luciano Migliaccio cita a aproximação das telas da Candelária com obras de pintores do barroco romano.   

6.                                   Vemos como Zeferino havia estudado a composição das grandes obras do barroco romano, Domenichino e Lanfranco, e a pintura mural da Roma do século XIX: os ciclos de San Paolo fuori le Mura e as pinturas do Vaticano.  Nas cenas, de uma religiosidade coral, o esmero na documentação dos trajes une-se a um conhecimento invulgar dos recursos da perspectiva. (MIGLIACCIO, 2002, p.148) 

7.     Em seu escrito, Migliaccio refere-se aos seis painéis pintados por Zeferino e localizados no soffitto da nave.  As telas contam o processo da construção da antiga igreja e, também, da atual como ex-voto.  O pesquisador não estuda as pinturas da iconografia mariana do templo, concentrando seu olhar na relação das telas da nave - de contexto não religioso - com a Tradição Italiana, ao elencar os mestres da pintura romana como referenciais.

8.     Verificamos, ainda, que há publicações que se detém no olhar patrimonial sobre nossos casos de estudo. Arnaldo Machado (2017) e José Victorino de Souza (1998) descrevem a história da igreja de Nossa Senhora da Candelária, apresentam a arquitetura do edifício - valorizando o interior neoclássico em detrimento à fachada pombalina - e citam a relevância dos trabalhos de Zeferino da Costa. Porém, não equacionam o embate com as obras.

Indicadores da relação entre João Zeferino da Costa e a Tradição Italiana em sua formação acadêmica

9.     João Zeferino da Costa, aluno do curso de Pintura Histórica da AIBA, busca aperfeiçoamento em Roma após ser premiado, em 1868, com o Prêmio de Viagem à Europa e desembarca em solo estrangeiro no ano seguinte.[1]  Em Roma, matricula-se na Academia de São Lucas e tem como orientador o pintor Cesare Marianni (1826-1901), bastante significativo durante o período de estudos do brasileiro na Itália ao cobrar dele, não só maior dedicação ao desenho, mas o apego aos clássicos. 

10.                                 3ª Secção. Legação do Brazil nos Estados Pontifícios, Roma, 12 de outubro de 1869.

11.                                 Ilmo. Exmo. Snr.

12.                                 Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. a carta inclusa, que me dirigiu o Snr. Marianni, professor da Academia de S. Lucas e mestre do Snr. João Zeferino da Costa, pensionista do Estado, em que faz ver que conquanto seja o referido Costa dotado de talento e mostrando grande fervor pela sua arte, se faz, todavia, preciso que ele ainda se aplique por alguns mezes, isto é, até abril do anno próximo futuro ao desenho, aos modelos vivos e aos clássicos para aperfeiçoar seus estudos a fim de poder, então, fazer os trabalhos que tem de enviar ao Brazil. Com efeito, aquelle Pensionista, segundo o Art.5º das Instruções, é obrigado a remeter à Academia, no primeiro anno que termina em abril vindouro, os seguintes estudos, a saber: 8 academias, 1 cópia de painel que lhe for designado pela mesma Academia e 1 cabeça de expressão.

13.                                 Reconhecendo ele ser-lhe indispensável aperfeiçoar-se nesses estudos, declarou-me que não teria dúvida de fazer no segundo anno os trabalhos também do primeiro, em cumprimento das suas instruções.   Não achando-me autorizado a anuir as observações do mencionado professor, respondi-lhe que ia transmiti-las a V. Exa. e solicitar as suas ordens a respeito.

14.                                 Deus Guarde a V. Exa.

15.                                 Ao Exmo. Snr. Conselheiro Paulino José Soares de Souza

16.                                 José Bernardo de Figueiredo. (Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ, grifo nosso)

17.   É fato que Roma configura-se como principal alvo na especialização dos pensionistas da antiga Academia, devido a importância do seu acervo artístico e acesso aos mestres das Escolas Artísticas Italianas. Nas palavras de Félix Èmile-Taunay (1795-1881), proferida em uma Sessão Pública da Academia em 1842,

18.                                 [...] seja-nos suficiente mencionar Leonardo da Vinci, Peruggino, Giorgione, precursores das escolas de pintura Florentina, Romana e Veneziana, como dellas forão fundadores verdadeiros os Michel Angelo Buonarroti, Raphael Sanzi e Tiziano Vecelli. Todos trez influirão umas sobre as outras. A escola romana pedio emprestada muita força do desenho à florentina e alguma sciencia do colorido a Veneziana: nem esta deixou de se aperfeiçoar à vista das produções rivais: entretanto, as trez conservam um caráter bem distinto, análogo ao das individualidades que presidião aos seus destinos. Quem representasse fielmente as feições moraes de Michel Angelo, de Raphael, de Tiziano, daria a conhecer as qualidades notáveis das suas escolas: o primeiro, triste, solitário, de gênio altivo, austero e independente, apaixonado pelo grande; o segundo, tenro, dócil, amável, apaixonado pelo belo; o terceiro, alegre, social, brilhante, apaixonado pela harmonia exterior e relativa. Temos a indicação dos trez merecimentos especiais, força de desenho e de claro escuro na escola florentina, pureza das formas e de tons na escola romana, brilho suavidade e bela fusão de cores na escola veneziana. (Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ, grifo nosso).

19.   As palavras do então diretor da AIBA explicitam um arcabouço da produção artística italiana por três mestres, que ulteriormente têm suas bases criativas assimiladas e externadas por outras regiões ou Escolas.  A expressão de Michelangelo, o desenho harmonioso de Rafael e a sábia mistura das cores por Ticiano são, ainda, considerados por Taunay, reflexos do temperamento de cada artista, caracterizando dessa forma, o princípio básico para a classificação das Escolas Florentina, Romana e Veneziana, os elementos não só plásticos como afetivos.  A Escola Florentina assumiria a altivez de Michelangelo; a Romana teria como alicerce a docilidade e a primazia do belo de Rafael; já a Veneziana seria identificada pelo vigor cromático de Ticiano.

20.   Os procedimentos metodológicos, como o aprimoramento do desenho e o exímio uso das cores efetuados pelos artistas citados, constituem a fundamentação visual para o ensino da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro.  Segundo Taunay, a aprendizagem fundamentada na observação, estudo e cópia das obras dos grandes mestres, conduziria o aluno à familiaridade com as Escolas Artísticas Italianas, intensificaria o gosto pelas belas formas e ajudaria na resolução de problemas compositivos.  Aos olhos do professor francês, a imitação dos europeus seria a única ferramenta condutora dos brasileiros a um lugar no mundo civilizado:  

21.                                 Temos pois estes três povos, o grego, o italiano e o francês entre os quais nasce, se desenvolve e se conserva o bom gosto artístico. Senhores, estudando profundamente as feições salientes das suas nacionalidades e conferindo-as com o caracter brasileiro, ninguém se recusara a admitir, por uma analogia consentâneo com os fatos já adquiridos, que este povo tem toda a aptidão para a manifestação imitativa, que por ellas, ele deve se sobresair e fazer se notável no mundo civilizado. (Sessão Pública da AIBA, 19 de dezembro de 1844. Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ). 

22.   Assim como Taunay, Manuel de Araújo Porto-alegre (1806-1879), outro diretor da Academia Imperial, também propaga o aprendizado acadêmico a partir das Escolas Artísticas Europeias.  É flagrante a dileção do diretor em relação aos coloristas - pintores que constituem a Escola Veneziana -, como é verificado em seu discurso proferido em 6 de dezembro de 1855:  

23.                                 Lá estão esses Alpes, com seus prismas de neve, toucados de nevoeiros, sublimes, variados, pittorescos, d’onde ouvireis gritar: Itália! Itália! E lá bem longe, nas raízes da montanha, azulada com um ceo aberto, fulgurante, como Vênus ao surgir das ondas, toda cheia de luz, de melodia, e de encantos, a bella e fecunda Itália, aquela que nutrio em seu seio fecundíssimo tantos enfenhos, que abrirão os séculos brilhantes da renascença, e do explendo das artes. - Que torrente de emoções, de delícias inefáveis, se vos offerece d’estes bancos da Academia?! - Veneza, a antiga rainha do Adriático, sentada sobre as agoas no seu throno de mármore, trabalhado por Sansovino e outros engenhos admiráveis. O seu leão alado, depois de haver quebrado a espada, voou para o reino da esperança; o seu bucentauro naufragou, e o anel do Doge foi arrebatado pela águia do Danúbio; porém ainda lhe restão os seus palácios, as suas torres, os seus templos, e essas páginas de luz do Tiziano, Tintoretto, Paolo Veronez, e toda essa família de brilhantes coloristas.”. Ata da 3a Sessão Pública da Academia Imperial das Belas Artes, em 6 de dezembro de 1855. Presidência do Exmo. Snr. Conselheiro Luiz Pedreira do Coutto Ferraz, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. –(Sessão Pública da AIBA, 06 de dezembro de 1855. Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

24.   É sob esse cenário, de profunda admiração pela Tradição Italiana, que o aluno de Pintura Histórica João Zeferino da Costa obtém sua formação artística e desenvolve suas carreiras como docente e artista acadêmico.  Entretanto, em seu caso, o contato com a Tradição Italiana não se limita ao período de aluno pensionista em Roma. Já como artista e professor da Academia Imperial, esse contato mostra-se primordial, pois o pintor equaciona suas pesquisas, visual e literária, em Roma após receber a encomenda das telas marianas da igreja da Candelária.

25.   Em 29 de setembro de 1878, o procurador da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, Francisco da Silva Castro, sugere à Mesa Administrativa o nome de Zeferino da Costa para criação e execução das pinturas da cúpula interna do zimbório.  Em 16 de novembro, uma comissão nomeada para estudar a questão apresenta o seu parecer: solicita que seja aberta aos artistas uma seleção pública para apresentação de projetos de telas para a igreja como um todo, e não de forma fragmentada.  Assim, são recebidas seis propostas orçamentárias de pintores atuantes no Rio de Janeiro, sendo escolhida a de João Zeferino da Costa, pela quantia de 60:000$. A Mesa Administrativa aprova o parecer da comissão e autoriza o contrato de pintura da cúpula, capela-mor e coro, confeccionando a escritura em 10 de maio de 1879.

Breves considerações sobre o Ut Pictura Poesis e o “sintoma”

26.   Por ser um edifício cristão de culto mariano, a igreja de Nossa Senhora da Candelária apresenta sua semântica didática cunhada aos moldes antigos. Durante a vigência do Gótico, é comum encontrarmos em naves de catedrais marianas alegorias que representam personificações dos Vícios e das Virtudes.  De perfil didático no auxílio da doutrina cristã, retábulos, vitrais, relevos e esculturas agem como interlocutores entre sacerdote e fiéis.  Tais imagens têm em seu alicerce a teoria horaciana Ut Pictura Poesis - “na pintura como na poesia” -, pensamento originado na Roma Antiga pelo poeta romano Horácio (65 a.C.-8 a.C.).

27.   A expressão Ut Pictura Poesis é extraída de um tratado de estética de Horácio e discutida por teóricos e historiadores da arte ao longo dos séculos, assim como assimilada e interpretada por artistas em suas obras de cunho narrativo. O significado da expressão possui grau comparativo entre as duas linguagens artísticas - poesia e pintura.  Da Antiguidade ao Renascimento, a relação entre pintura e poesia é vista não só sob a ótica comparativa, mas qualitativa. No entanto, na Escola Veneziana o tema ganha outro tratamento, sob o viés da analogia, ou seja, pelos pontos nos quais as duas linguagens artísticas se assemelham.  Essa abordagem se difunde pela Itália, ao conquistar espaço vultoso com o Barroco. É nesse âmbito que situamos a postura de Zeferino da Costa, por se apropriar do caráter estabelecido na retórica visual de Ticiano, que chama a atenção para o discurso de suas alegorias poéticas.[2]

28.   É preciso lembrar que, durante os séculos, filósofos e poetas esmeram-se na técnica do discurso, oral ou escrito, por meio da retórica. Entendendo tal conceito como a arte de bem falar ou escrever, com o propósito de convencer ou persuadir, a retórica também é um recurso largamente utilizado na pintura. Lembrando que a arte pictórica da tradição ocidental prima pela narrativa dos grandes temas, os artistas precisam recorrer a uma linguagem que contribua para o entendimento da cena pelo observador.  Esse auxílio empregado, de forma visualmente narrativa, é a retórica visual, amplamente estudada por Giulio Carlo Argan.  Na visão do historiador da arte italiano, a pintura não só ascende socialmente com a ênfase dada à retórica, como também absorve os elementos gramaticais da poesia, capazes de sublimar sentimentalmente a relação pintura-observador, por meio da qual, resgata-se o Ut Pictura Poesis.

29.   Após essa digressão, é relevante iluminar dois pontos: entendemos que as telas de cunho mariano da Candelária se aproximam da retórica visual - de caráter didático – estabelecida ainda no medievo, como também, da postura de Ticiano ao valorizar não só o cromatismo, mas a ideia de poesia pintada.   

30.   É necessário esclarecer que a entidade contratante, a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária, fragmenta a oficialização da encomenda em dois contratos distintos.  O primeiro documento, datado de 10 de maio de 1879, estabelece que o artista deverá produzir quatorze telas sob temática mariana; sendo oito pinturas para a cúpula do transepto, quatro para a capela-mor e, finalmente, duas para o coro.  O segundo documento, assinado pelas partes em 01 de junho de 1889, estipula que o pintor entregará seis painéis para a nave que narrem, por meio de representação, a história da construção da igreja.  Zeferino da Costa é encarregado, ainda no segundo contrato, do projeto de concepção dos vitrais para que os mesmos sejam confeccionados na Alemanha. O projeto dos vitrais é assinado por Zoão Zeferino da Costa em 1897 e eles são fabricados pelo Real Estabelecimento de Vidraçarias Artísticas, de F. X. Zettler na Baviera, Alemanha.

31.   No documento de 1879, o qual nos interessa aqui, todas as obras encomendadas são de temática mariana. No entanto, há uma diferenciação quanto a especificidade da iconografia a ser abordada.  Para a cúpula do transepto seriam pintadas oito telas com foco nas Virtudes da Virgem Maria, ponto nodal deste trabalho.  As demais, coro e capela-mor, encenariam episódios da vida de Maria.  

32.   As oito telas do transepto em marouflage - técnica francesa difundida durante o século XIX, que consiste em pintar em óleo sobre tela e aplicar a obra sobre a superfície do pé direito, plafond ou parede - são: três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade); quatro Virtudes Cardeais (Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança); e ainda, a oitava pintura, a imagem de Maria [Figura 1]. 

33.   Segundo Pastoureau e Duchet-Suchaux (1988), as Virtudes Teologais são referentes à relação com Deus e as Virtudes Cardeais norteiam a conduta na vida. Essa definição vai ao encontro do propósito ou função da encomenda, já que a contratante especifica em documento quais Virtudes serão pintadas. Contudo, a qual função ou propósito nos referimos? Simplesmente, ao que Giulio Carlo Argan classifica como retórica visual – o discurso da imagem.  No entanto, para entender tal discurso é necessário executar a leitura visual, não do visível, mas do que está além do identificável numa interpretação iconográfica. Falamos aqui do “sintoma,” o indício visual desprezado por identificações de personagens e seus atributos, conceito trazido por Georges Didi-Huberman.[3]

34.   Didi-Huberman explicita o caráter binário do método de análise iconográfica proposto por Erwin Panofsky, alicerçado pela dualidade excludente. Segundo o francês, ao “ler” uma imagem, Panofsky se atém ao significado dos atributos para identificar as personagens da composição.  Essa postura “sintética” - do “isto é” ou “isto não é” - é vista como limitadora por Didi-Huberman.

35.   Entretanto, Panofsky sinaliza em suas análises, a verificação de elementos constantes que configuram ou determinam as possibilidades de concepção da imagem, interferindo diretamente em sua interpretação iconográfica. Com isso, ao examinar a presença dos “tipos” ideais à representação consolidados pela Tradição, semelhanças e apropriações de bases criativas são destacadas. Esse é um ponto conflitante na crítica de Didi-Huberman, pois a visão analítica de Panofsky não busca somente classificar personagens, mas traçar as tipologias do documento visual. Nesse caso, os dois historiadores são convergentes, pois Didi-Huberman parte da ideia que estudar os antigos faz-se necessário em qualquer período histórico, porque a imagem é “sobrevivente.” Segundo ele, os objetos visuais transcendem ao seu tempo e carregam consigo a fotografia da sua época.  Assim como o historiador da arte alemão observa os “tipos,” o estudioso francês dialoga com os “sintomas” e “fantasmas”.

36.   Estar diante da imagem é um exercício desbravador e desafiante. Segundo Didi-Huberman, o historiador da arte é envolvido pelo “não saber” sobre o objeto artístico.  Um possível “decifra-me ou te devoro.”  É esse estado inquietante, provocante e perseguidor, que conduz o profissional a produzir um “certo saber” e o seduz a trabalhar numa nova investigação.  Esse encontro entre documento visual e historiador da arte faz emergir os “sintomas” - e estes desencadeiam as sinapses, para que o profissional da imagem vá além da identificação de personagens e atributos, e alcance a atmosfera da retórica visual. 

37.   No ambiente acadêmico do Rio de Janeiro, o ensino da arte e a produção visual oitocentista apresentam o mesmo eixo condutor: a assimilação e apropriação dos antigos, seja pelas teorias elaboradas e/ou das tipologias visuais configuradas. A Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, detentora do controle oficial da formação e produção artísticas durante o século XIX, prima por metodologias rígidas alicerçadas na observação e cópia das obras antigas: moldagens das esculturas da Antiguidade pertencentes aos museus europeus, modelos planos de referência como gravuras e desenhos, e estudo das pinturas dos mestres europeus. Com isso, verificamos o alinhamento entre o pensamento de Didi-Huberman e o escopo artístico do século XIX no tocante ao estudo dos antigos, porque em ambos a imagem mostra-se sobrevivente e ultrapassa os limites do seu tempo histórico. 

38.   Nessa mesma linha de raciocínio, Gerd Bornheim (1980) entende que a imitação dos antigos é altamente relevante, pois são inimitáveis. Aos olhos de Bornheim, a imitação visa não uma reprodução ingênua das obras, mas um processo que leva o artista acadêmico a entender o pensamento e a postura dos antigos.

39.   Vistas no contexto da definição de gênero, as pinturas da cúpula do transepto não são, ao contrário de citações historiográficas, simplesmente personificações de conceitos abstratos. As Virtudes de Maria são alegorias. Pois uma obra alegórica se caracteriza por apresentar a personificação acompanhada de personagem verídico e/ou idealizado. Já para ser considerada uma personificação, o conceito materializado deve vir não só como protagonista da obra, mas ser o único elemento dotado de forma humana na composição.  

40.   As oito telas em marouflage possuem as mesmas dimensões. Zeferino da Costa, para adequar as telas ao formato sinuoso da cúpula, recorta cada composição de maneira diferenciada em suas partes.  Cada obra possui as seguintes larguras: três metros de base, dois metros no centro e um metro na extremidade superior.  Assim, o conjunto iconográfico assume a forma da cúpula sob perspectiva, facilitando que seu ápice encontre a claraboia de acesso ao zimbório. 

41.   Podemos entender, então, que cada tela em separado tem um perfil de extrema verticalidade, por conta dos nove metros de comprimento, mas a ideia do artista é que as oito obras sejam vistas em conjunto circular. Tal efeito é fundamental para capturar o olhar do fiel/observador, pois o programa compositivo assume a forma de mandala, dividida em oito ‘gomos’ equivalentes que guiam a absorção da retórica visual por parte do espectador, facilitando assim, o entendimento do conteúdo semântico - a mensagem, o caráter poético da imagem, porque pintura é análoga à poesia. Afinal, não podemos esquecer que tais pinturas têm dupla função e/ou discurso, o da arte e o da Igreja, pois são concebidas para espaço de culto mariano e encontram-se lá até hoje.

42.   Ao nos depararmos com as obras, dois pontos se destacam: o tratamento dado à escala da figura humana e o uso da cor como recurso facilitador da retórica visual. Este segundo ponto manifesta-se como um dos principais “sintomas” da pesquisa.  

43.   Zeferino da Costa se apropria de um método corriqueiro entre pintores europeus de cúpula e plafond de igrejas em linguagens renascentista, barroca e rococó, assim como, nas pinturas de forro do período colonial brasileiro, a perspectiva ilusionista. Não só diversos ângulos de visão do observador são estudados, como as dimensões dos elementos inseridos na composição.  É preciso levar em consideração a distância matemática entre o olhar do fiel e a obra. Para resolver esse desafio, Zeferino da Costa aposta na ampliação da escala das figuras em cerca de duas vezes e meia o tamanho natural e na distorção da elaboração dos corpos, efeitos criadores de uma aparente clareza ou uma ilusória noção de realidade para as cenas. Tal postura nos remete ao processo de construção da figura humana proposto por Michelangelo.

44.   Mas o “sintoma” que nos provoca, desde o início da pesquisa, é o fato de Zeferino da Costa privilegiar a cor delegando ao desenho e aos atributos iconográficos das personagens papel secundário. O “sintoma” aqui não é trazido pela representação, mas mora no simples tecido que envolve cada personagem, como um manto, e que é o ponto nodal de cada composição. 

45.   O pintor agrupa as telas em pares ditados pelo cromatismo: Virtudes vermelhas (Fortaleza e Justiça), Virtudes Amarelas (Prudência e Temperança) e Virtudes Verdes (Caridade e Esperança). No entanto, a sétima Virtude (Fé) não é esquecida, ao contrário, ganha status de protagonista ao fazer par com Maria.

46.   Outro ponto que nos chama a atenção é o apego às cores complementares como eixo de relação. O artista liga uma Virtude vermelha “Justiça” a uma verde “Caridade”, entendendo que vermelho e verde são cores complementares. O mesmo ocorre entre “Esperança”, verde, e “Fortaleza”, vermelha.  As duas retas se interceptam e formam uma cruz. As Virtudes amarelas “Prudência” e “Temperança” se cruzam com outra reta, constituída por “Maria” e a “Fé”, fomentando o surgimento de outra cruz. Virtudes amarelas são complementares ao arroxeado do manto da “Fé”, ligado aos azul e vermelho de Maria, que somados alcançam o grau tônico arroxeado.

47.   Contudo, a dúvida gerada pelo “sintoma” nos persegue: por que escolher a “Fé” como a Virtude mais relevante para configurar o eixo com “Maria”?  Talvez a explicação esteja no âmbito da retórica visual. Tratamos de um templo de culto mariano, onde a fé cristã em Maria é o ponto focal. Mas não só isso para o fiel é fundamental tomar as Virtudes como orientações referenciais para a vida.  Daí, alimentar a fé em Maria é importante, mas fundamental é compreender tamanho ardor da fé que Ela nutre pelo Criador. Segundo a doutrina da Igreja, Maria é a Bem-aventurada – não pela maternidade, mas pela fé em Deus: “Bem-aventurada aquela que acreditou” (LUCAS 1:45).  Portanto, Ela é modelo da fé incondicional.  Dessa forma, a narrativa da composição é desenhada tendo como ponto de partida a fé de Maria em Deus e a fé do cristão em Maria.

48.   Tudo nos leva a crer que, além das assimilações do Ut Pictura Poesis e das Escolas Artísticas Italianas, a retórica das telas em questão fundamenta-se como referencial de comportamento no âmbito da doutrina cristã, seguindo a concepção de Virtude aristotélica. Segundo o pensamento de Aristóteles, as Virtudes não devem apenas ser elencadas, mas assimiladas como modelo na construção do homem enquanto cidadão social.  Portanto, traçar as Virtudes de Maria num contexto além do devocional, isto é, no âmbito pedagógico/doutrinário, parece-nos bastante claro. As Virtudes pintadas encarnam o espelho ao fiel católico: observe as telas, espelhe-se nelas e seja um bom cristão, para que na morte da carne possa vislumbrar o Paraíso.

49.   Com isso, compreendemos que as Virtudes pintadas por João Zeferino da Costa não têm o perfil da comoção. Entretanto, assim como a poesia, a pintura deve persuadir, convencer e expressar um discurso narrativo que pode não ser apenas o do seu tempo histórico, mas “sintoma” de uma retórica estruturada por tipologias consolidadas pela Tradição, que fazem da imagem algo sempre sobrevivente.

 Referências 

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VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vida dos santos. Tradução Hilário Franco Júnior. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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* Esta publicação faz parte da pesquisa de Pós-Doutorado intitulada “Ut Pictura Poesis: a relação da Tradição Italiana (dos séculos XVI e XVII) com as Virtudes Marianas de João Zeferino da Costa para a igreja de Nossa Senhora da Candelária no Rio de Janeiro”, supervisionada pela Profa. Dra. Maria Berbara, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E também, uma das frentes de trabalho do grupo de pesquisa “Studiolo: Estudos em História da Arte da Antiguidade à Primeira Época Moderna,” coordenado pela docente e vinculado ao Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.

[1] Zeferino da Costa foi premiado ao pintar uma tela de temática religiosa - Moisés recebendo as tábuas da Lei - em 1868 (Acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ).

[2] “O conceito de analogia entre pintura e poesia tem raízes remotas, precisamente na arte veneziana do século XVI: sabe-se que Ticiano chamava seus quadros com tema mitológico-erótico de 'poesias'.” ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão.. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.34.

[3] Historiador da arte francês, nascido em Saint-Étienne, professor e pesquisador desde 1990 da École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris. Por conta das suas pesquisas, escreveu 53 obras publicadas na França, algumas traduzidas para o português e lançadas no Brasil.