A representação da simbologia do poder na obra Dom Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, de Pedro Américo [1]

Jéssica Costa Prazeres [2] e Mariana Costa [3]

PRAZERES, Jéssica Costa; COSTA, Mariana. A representação da simbologia do poder na obra Dom Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, de Pedro Américo. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/pa_dompedro.htm>.

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Governar é fazer crer - Maquiavel

A pintura do Romantismo brasileiro, em termos ideológicos, girou principalmente em torno do movimento nacionalista, orquestrado habilmente pelo imperador Dom Pedro II, ciente dos problemas oriundos da falta de unidade cultural num país tão vasto e interessado em apresentar uma imagem de um Brasil civilizado e progressista diante do mundo. Foi no Segundo Reinado que a Academia Imperial de Belas Artes entrou em sua fase mais estável e produtiva, e, estando suficientemente preparados os meios para tal, o Romantismo brasileiro encontrou condições de florescer na pintura, produzindo os seus principais nomes.

Pedro Américo, juntamente com Vitor Meireles e outros artistas brasileiros, foi um dos pintores que estudou na Academia Imperial, instituição que, por muito tempo, adotou os padrões deixados pelos artistas estrangeiros provenientes da Missão Artística e que servia ao governo imperial. É considerado um dos pintores com o maior número de obras de grande relevância na construção de uma memória da história nacional. Suas obras envolvidas nesse projeto buscavam a elaboração de um imaginário simbólico capaz de aglutinar as forças nacionalistas em ação naquele momento, tentando promover uma equiparação do Império brasileiro com os Estados mais “civilizados” da Europa, assim como não deixar ao olhar do estrangeiro a tarefa de escrever a nossa história.

Neste artigo, pretende-se analisar a obra Dom Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, título original, ou Dom Pedro II por ocasião da Fala do trono [Figura 1], como é também conhecido o quadro de Pedro Américo, observando os mecanismos pictóricos utilizados pelo artista, assim como suas intenções, durante a composição de uma pintura que garante uma representação firme, confiante e indiscutível ao Imperador. Seguindo a proposta de Jorge Coli (2005), não temos por objetivo definir a obra, nem a pretensão de findar todas as possibilidades de análise, mas sim, através de determinada perspectiva, levantar questionamentos que possam ser úteis, se não ao menos instigantes, ao pesquisador.

A pintura, que possui dimensões consideráveis e foi concebida em 1872, representa Dom Pedro II na abertura da Assembleia Geral, cerimônia que reunia anualmente o Senado e a Câmara dos Deputados do Império. O monarca está representado de corpo inteiro, na única ocasião em que era vista portando a coroa imperial, o cetro e o traje majestático, cujos detalhes podem ser percebidos pelo processo descritivo realizador pelo pintor. Atrás do Imperador, há a inclusão do trono[4] e do cenário ao fundo, assim como são representados importantes personagens do contexto político do Império. Na tribuna, estão a imperatriz, D. Tereza Cristina, a princesa D. Isabel e Dom Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o conde d’Eu e, ao fundo, Joaquim Marques Lisboa, o Marquês de Tamandaré. Abaixo se encontram o visconde da Abaeté, Antonio Paulino Limpo de Abreu, que era presidente do Senado e que presidia a sessão representada; o marquês Luiz Alves de Lima e Silva, senador e conselheiro extraordinário, que posteriormente ganha o título de Duque de Caxias; o visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos que era também senador, conselheiro ordinário e presidente do Gabinete e ministro da Fazenda; e João Alfredo Correia de Oliveira, ministro da Pasta do Império. Ao fundo, da esquerda para a direita, Zacarias de Góis e Vasconcelos, deputado pela Bahia; Francisco Otaviano de Almeida Rosa; e Jerônimo José Teixeira Júnior, presidente da Câmara dos Deputados.

Importante destacarmos a posição privilegiada do Conde d’Eu e do Marquês de Tamandaré, que foram representados juntamente com a imperatriz e a princesa não por acaso: o primeiro, um nobre francês que atuou de modo considerado decisivo na Guerra do Paraguai, tornou-se príncipe imperial consorte do Brasil por ter se casado com a princesa D. Isabel em 1864, e o segundo tem papel relevante junto à monarquia por ser o veador da Imperatriz, título dado ao oficial-mor camarista da Rainha.

O cetro, insígnia da realeza, espécie de bastão de comando que diversas culturas adotaram ao longo dos séculos, como sinal de autoridade, e a Coroa, do mesmo modo, uma alegoria do poder e da conquista, constituem os símbolos de poder do imperador, assim como seu traje majestático.

É interessante acrescentar que “exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potencia ‘real’, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio”, como diz Bronislaw Baczko em Imaginação Social (1985), tendo em vista que o autor é um defensor da importância do desenvolvimento de um imaginário social para a legitimação do poder político.

Esses símbolos de poder, a própria pose do imperador, semelhante aos grandes reis europeus, e seu olhar a frente, vislumbrando o futuro, revelam-nos a importância da majestade e do reino. A arquitetura clássica é representada pela grande coluna dórica, à maneira dos retratos tradicionais de realeza. Contudo, impondo sobre o trópico a pompa e o cerimonial europeu da monarquia, D. Pedro II igualmente se deixou marcar, e em grande medida, pelas tradições locais, com a inclusão de uma murça feita de penas de papo de tucano como parte da indumentária do imperador, espécie de cocar indígena adaptado aos ombros da realeza que sintetiza essa imagem híbrida da monarquia tropical.

Também evidencia-se na tela, composta predominantemente de tons de vermelho e amarelo, uma interessante harmonização e simbolismo no uso das cores. Segundo Israel Pedrosa (2009), “entre os cristãos, o amarelo é açor da eternidade e da fé” e o vermelho “ é cor de Marte, dos guerreiros e conquistadores; era a cor distintiva dos generais romanos e da nobreza patrícia, tornando-se a cor dos imperadores”. Considerando o profundo conhecimento artístico de Pedro Américo e a seleção cromática em obras anteriores, é possível afirmar que tal escolha não foi um mero acaso, assim como o fato de que, na composição, destaca-se, principalmente, a figura central do Imperador, aparentando tamanho proporcionalmente maior do que os outros personagens mesmo com uso de perspectiva matemática.

Ainda propomos algumas aproximações com obras figurativas dos monarcas que o antecederam Dom Pedro II, já que, como afirmou Marc Bloch (BLOCH, 1963 apud PRADO, 2007, p.149) , para o historiador a comparação é rica em potencialidades e pode contribuir para a reflexão sobre novos problemas e questões, tornando mais fácil a crítica das relações entre fenômenos e mais precisa a formulação de algumas conclusões.

Dessa forma, é possível inferir que no quadro Retrato de D. João VI, de Jean-Baptiste Debret [Figura 2] e na gravura sobre metal a partir de obra de Henrique José da Silva, Retrato do Imperador em trajes majestáticos [Figura 3], nota-se a utilização de um modelo iconográfico consolidado, pelo semelhante uso de símbolos de poder e composição cenográfica. Ainda pode-se observar a maneira como os artistas se portavam na criação das representações gráficas dos grandes líderes, trabalhado igualmente no sentido da criação de uma imagem que convencesse e que demonstrasse uma rica afinidade com o momento político representado.

Contudo, outra pintura histórica que merece igual atenção para estabelecermos um possível paralelo é obra Dom Pedro II, de Vitor Meireles [Figura 4]. Nessa representação, o imperador encontra-se sozinho, envolvido por símbolos que apontam tanto para o poder do pensamento e da cultura, representado pelos livros e obras de arte que o cercam, quanto para o poder das armas, uma vez que o retratado veste a farda de almirante. A atenção da figura central é desviada pelos diversos elementos iconográficos inseridos no ambiente, que citam a presença da civilizada cultura ocidental no Brasil, diferentemente do quadro de Pedro Américo, em que Dom Pedro II concentra praticamente todo o foco de atenção dentro da composição e incorpora elementos culturais locais no próprio traje.

É importante ressaltar também que, quando se trata de estilo, o que de mais tipicamente romântico a pintura brasileira apresentou foi sua inclinação nacionalista, didática e progressiva, e um constante idealismo, evidenciado na escolha dos temas e nas formas de sua expressão, com o predomínio da linha sobre a mancha, condizente com a caracterização de uma sensibilidade nova, diversa da neoclássica, mais adequada para o retrato de particularismos.

Outro ponto interessante é a relação entre a intenção do pintor e o contexto de produção da obra. Pedro Américo lecionou na Academia Imperial de Belas Artes, patrocinada pelo governo imperial. D. Pedro II patrocinou os estudos de Américo e de outros pintores por meio da concessão de prêmios, medalhas, bolsas de estudo no exterior e, em contrapartida, estes pintores realizavam retratos sob encomenda, enaltecendo o imperador. Algumas dessas obras eram reproduzidas por alunos da Academia e expostas nas repartições públicas das províncias e do Rio de Janeiro.

No caso da obra a que nos propomos analisar, a encomenda foi feita pelo conde de Abaeté, que também encomendou a memória do evento do Juramento da Princesa Isabel (1875), dessa vez à Vitor Meireles. Ambas as obras estão localizadas atualmente no Museu Imperial de Petrópolis, residência de verão de D. Pedro II, - a de Meireles na Sala Princesa Isabel, e a de Américo na Sala do Senado.

Faz-se necessário lançarmos mão de um breve panorama sobre o contexto em que a obra foi concebida, que aliás é contemporâneo ao momento retratado, para compreendermos a complexidade do período e, dessa forma, entender a o porquê da tentativa de afirmação da imagem do Imperador como foi realizada.

Artisticamente, buscava-se através da pintura histórica elaborar uma memória nacional. A Guerra do Paraguai marcou o início de uma representação da história contemporânea, ainda persistindo, todavia, as representações relacionadas à constituição do povo brasileiro - é neste período que o índio é tomado como símbolo nacional. Entretanto, no Segundo Reinado o que prevaleceu na pintura histórica foi a representação que buscava a afirmação de uma unidade nacional, em detrimento das crises e revoltas internas.

O governo de D. Pedro II foi o mais extenso de toda a história do Brasil independente, durando quase 50 anos, período no qual o país passou por profundas transformações, com a consolidação do café como principal riqueza nacional e um primeiro surto industrial. Em contrapartida ao progresso econômico, o Segundo Reinado também foi marcado por conflitos, sendo o principal deles a Guerra do Paraguai, evento que aumentou o enfraquecimento que o Império já vinha sofrendo no século XIX, com as fortes resistências, fossem populares ou elitistas, em resposta às medidas centralizadoras ou ao escravismo que vinha sendo gradualmente abolido.

Além da crise econômica e política em consequência dos conflitos de 1865 a 1870, houve a questão do recrutamento, que gerou perdas humanas e profunda insatisfação popular; o descontentamento dos pecuaristas gaúchos, que têm seus negócios prejudicados pela guerra civil; e a insatisfação do Exército brasileiro, que não foi atendido em suas reivindicações por melhores salários e condições mais adequadas para exercer o ofício das armas, passando a criticar abertamente a monarquia.

As ideias republicanas, que começam a pairar sobre o governo monárquico neste contexto, encontram assim ambiente fértil para instalarem-se, o que acaba por agravar o enfraquecimento do Imperador e do regime.

Podemos concluir, portanto, que historicamente, as tentativas de fortalecer a imagem de D. Pedro II não obtiveram sucesso: com o fim da escravidão, em 1888, a monarquia perdeu sua sustentação, que eram os grandes proprietários rurais e o sistema de trabalho escravo. Muitos proprietários rurais, sobretudo os cafeicultores paulistas, classe média e operariado desejavam maior participação política, mobilizando-se em favor da República, que acreditavam poder proporcionar a desejada autonomia. A crise de setores da Igreja e do Exército com o governo imperial, e a ausência do Imperador em relação às crises e às decisões do governo, muitas vezes ironizada pelo chargista italiano Angelo Agostini nos anos de 1880, dão coro ao enfraquecimento da monarquia e ao fortalecimento do movimento republicano.

Apesar de podermos afirmar que politicamente essas ferramentas de exaltação do Imperador não atingiram o objetivo desejado, fato confirmado pela instituição da República brasileira em 1889, cabe nos questionarmos sobre a permanência no imaginário social da figura imperial, tal como foi representada por Pedro Américo em Fala do Trono.

A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, em As Barbas do Imperador (1998), trata, principalmente, da importância da análise dos símbolos nas imagens reproduzidas pela historiografia brasileira. Segundo ela, eles não apenas refletem, mas criam sentidos; são produtos, mas são produção também, pois constroem valores e sentimentos - “para além da eficácia política, os símbolos refeitos na literatura, nas imagens, são discursos absolutamente poderosos”.

Em 1996, a empresa de telecomunicações do sistema Telebrás lançou oitenta e um cartões telefônicos com imagens de sete museus do Rio de Janeiro e de São Paulo. Entre as reproduções de imagens do Museu Imperial de Petrópolis, está a da obra Dom Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, de Pedro Américo [Figura 5]. A circulação dessa imagem e de outras ligadas a monarquia, também presentes na série citada, posto que atingem o âmbito popular, nos induz a pensar na força do “imaginário social” nos dias de hoje.

Se partilharmos também da concepção de Schwarcz sobre “orfandade da realeza que o brasileiro possui”, talvez seja possível afirmarmos que, ao menos imageticamente, o objetivo de criar uma imagem forte e positiva do Imperador foi alcançado - e isso não é pouca coisa, se nos tornarmos atentos sobre o poder que as imagens têm em nossa sociedade contemporânea.

Referências bibliográficas

BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.

CHRISTO, Maraliz de C. V. A pintura de história no Brasil no século XIX: panorama introdutório. Dossiê Los relatos icônicos de la nación, Revista Arbor, do Consejo Superior de Investigaciones Cientificas da Espanha, 2009. Disponível em: <http://arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/view/386>

COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX?. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.

DREGUER, Ricardo; TOLEDO, Eliete. Brasil: consolidação do Império. História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2006.

_____. Brasil: crise do Império. História: conceitos e procedimentos. São Paulo: Atual, 2006.

PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2009.

PRADO, Maria Ligia Coelho. Política e nação na pintura histórica de Pedro Américo e Juan Manuel Blanes. In: CHRISTO, Maraliz de C. V. (org). Dossiê: pintura de história. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: MHN, 2007.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca dos trópicos. São Paulo: Companhia das letras, 1998.


[1] Artigo de pesquisa produzido como atividade de conclusão da disciplina Tópicos de História da Arte e da Cultura I, da Universidade Federal de Juiz de Fora, lecionada pela Prof. Dra. Maraliz de Castro Vieira Christo.

[2] Estudante de graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

[3] Estudante de graduação em Artes e Design pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

[4] O trono representado é o da sala do Senado, cuja localização atual é a sala do senado no Museu Imperial de Petrópolis. Originalmente era encontrado no antigo palácio do Conde dos Arcos (atual faculdade de direito da UFRJ), no campo de Santana, centro do Rio de Janeiro.