Iconografia de Viagem à luz da História da Arte

Valéria Alves Esteves Lima *

LIMA, Valéria Alves Esteves. Iconografia de Viagem à luz da História da Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_vl_viajantes.htm>

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Sabemos que o olhar dos viajantes que percorreram o Novo Mundo estava marcado pelo sentido do exótico e do singular e que a produção iconográfica entre os séculos XVI e XIX dividiu-se entre o relato fantasioso, o registro científico e a representação do que identificamos como hábitos e costumes, além dos inúmeros registros da paisagem brasileira. Grosso modo, a produção iconográfica associada às experiências de viagem pode ser dividida em dois conjuntos: um deles reuniria imagens cujo destino seria o de ilustrar, exemplificar e acompanhar textos também originados da experiência do deslocamento; o outro, por sua vez, agruparia as imagens que manteriam sua autonomia em relação a registros não visuais. O que definiria a destinação de cada um dos trabalhos seria, justamente, a intenção de quem os produzia ou demandava, conforme a finalidade que se desejava imprimir às representações elaboradas por desenhistas, artistas amadores e profissionais, bem como por indivíduos sem formação artística. No longo trajeto de sua fortuna crítica, esse grande conjunto a que se denomina iconografia de viagem, viu construir-se ao redor de si, de uma maneira indiscriminada e generalista, o atributo do registro documental. Reconhecer seu papel documental, capaz de traduzir, aos olhos de quem não esteve diante da realidade “reapresentada”, o essencial do que ali se havia instituído em termos naturais e humanos, remete para um aspecto da arte desde os seus primórdios e que diz respeito à sua capacidade mimética. Remete, de resto, à capacidade atribuída a toda imagem, de ser a “presença de uma ausência” (BELTING, 2004: 13). É justamente desta capacidade e das possibilidades que dela derivam que a iconografia de viajantes retira seu poder de instituir-se enquanto discurso que autoriza a História.[1] Não apenas para os contemporâneos das imagens, mas para grande parte dos que as utilizariam em suas reflexões e trabalhos, tais exemplares parecem ter sido prioritariamente utilizados para confirmar teses e opiniões, bem como construir conhecimento a partir da similaridade proposta entre realidade observada e representada. Na perspectiva deste trabalho, tal poder não nasce da reprodução precisa e exaustiva dos motivos que “representariam” uma realidade ausente, mas da eficácia do processo de construção das imagens, levado a cabo pelos chamados “artistas-viajantes”.

Já tem sido por demais discutida a condição da produção imagética nos países de tradição colonial, onde se identificam práticas e usos da imagem diretamente associados à história de dominação destes territórios.[2] Assim, a fim de mapear os territórios e estabelecer estratégias de exploração e controle, as metrópoles passaram a realizar ou a permitir viagens em que os registros visuais foram adquirindo cada vez maior importância, sobretudo a partir de meados do século XVIII, diante da urgência de fixar, transportar e utilizar os saberes recolhidos. A partir do século XIX, com o avanço da impressão litográfica e a mudanças operadas no campo da produção visual, relacionadas tanto à imagem, quanto aos meios (suportes e veículos) e à sua recepção, a iconografia produzida pelos viajantes que, sempre em maior número, deixavam a Europa e alcançavam diferentes partes do planeta, assume um papel fundamental para a expansão do conhecimento e para a consolidação de políticas voltadas ao “desenvolvimento” dos territórios visitados. No caso do Brasil, mais especificamente, sabemos das profundas alterações vividas pela colônia, após a transferência da Corte portuguesa, em 1808.[3] A curiosidade despertada pelas informações que anteriormente chegavam à Europa a respeito das terras brasileiras, ainda mais instigada pelo longo período de fechamento do território à entrada e permanência de estrangeiros, tornou o cenário muito favorável e convidativo, após as medidas tomadas pela Corte em sua nova sede. Não é estranho, portanto, que se tenha verificado, já desde as primeiras décadas do século, uma extensiva produção de imagens que configuram um dos maiores conjuntos iconográficos produzidos por viajantes. O que chama a atenção, não obstante, é que estas imagens tenham sido, em geral, classificadas como um conjunto à parte da produção artística brasileira, como se pouco ou nada tivessem a nos dizer a respeito da evolução da sensibilidade artística no país. Seja porque muitos de seus autores não tivessem, efetivamente, uma formação artística, seja porque estas imagens fossem produzidas fora do ambiente propriamente artístico ou acadêmico[4], seja porque demonstrassem pouca qualidade estética (segundo critérios questionáveis, muitas vezes), nota-se certo desconforto ou certa inadaptação quando se pensa em considerar esta iconografia como parte efetiva da história da arte brasileira.

Como já sugerido, um provável motivo para que a história da arte tenha negado à iconografia dos viajantes um olhar mais atento parece residir na dificuldade em reconhecer seu estatuto artístico. A discussão sobre o caráter artístico ou não de determinadas imagens vincula-se a questões muito polêmicas e complexas que derivam, essencialmente, de uma única e constante preocupação: o contínuo esforço para definir o que seja Arte e, no contexto artístico brasileiro, o que seja uma arte nacional.[5] No caso específico das imagens produzidas por viajantes, vale retomar as reflexões de Jacques Aumont, que destaca a dificuldade de encontrar o artístico nas imagens que “veiculam uma referência direta, de tipo documentário, ao mundo visual” (AUMONT, 1993:260). Os elementos formais e estéticos subordinam-se à ótica documental, sob a qual se têm estudado e valorizado a produção iconográfica dos “artistas-viajantes”, transformando-as em referências fundamentais para a investigação dos mais variados aspectos da história brasileira: tipos, costumes, paisagens, eventos políticos, práticas culturais e religiosas, formação urbana, entre outros.

O que se busca, nesse trabalho, é escapar um pouco desse cenário e colaborar para um debate que apenas se inicia[6], buscando rever o papel desta iconografia a partir de seus exemplares particulares e pensando-a na perspectiva da história da arte. Como indica Marta Penhos, as ferramentas da história da arte permitem ao estudioso das imagens produzidas por viajantes “estudiar los mecanismos formales, compositivos e iconográficos, los préstamos y apropiaciones de soluciones eficaces, la elaboración de modelos.” (PENHOS, 2005: 20) Em particular, as análises que aqui estão desenvolvidas, refletem uma preocupação com a capacidade destas imagens no sentido de despertarem emoções e percepções a partir das escolhas estéticas e formais de seus autores. Enquanto conjunto ou individualmente, essas imagens produzem sentidos para um território que passou por profundas alterações ao longo de todo o século XIX, momento em que, assim como vários países europeus e seus vizinhos americanos, o Brasil busca definir sua identidade nacional, num complexo movimento que viria complementar o processo de delimitação de suas fronteiras territoriais e de redefinição de sua condição política. Os sentidos acima referidos não derivam, portanto, apenas do tema tratado ou das motivações para sua elaboração. Vários desses artistas estavam envolvidos em projetos muito mais complexos do que a simples exploração naturalista, daí ser inevitável encontrar nessas imagens intenções que ultrapassam claramente a preocupação documental. A investigação que ora se apresenta, ainda que de forma bastante embrionária, entende que o sentido das imagens, nomeadamente aquelas produzidas em experiências de contato de estrangeiros em contextos que não lhe eram familiares, está intimamente associado ao efeito produzido pelas diferentes escolhas estéticas que orientaram a sua elaboração. Preocupo-me com os mecanismos através dos quais um desenho, uma aquarela, uma litografia ou uma pintura a óleo podem ter sugerido ao espectador uma determinada compreensão a respeito do universo que lhe era oferecido visualmente. Obviamente, esse poder não reside apenas na imagem, se a considerarmos simplesmente como o tema ou o motivo representado. Em seu Bild-Anthropologie: Entwürfe für eine Bildwissenschaft[7], Hans Belting aponta claramente para a intrínseca relação entre imagem (de natureza mental), meio (imagem visível – a fabricação) e corpo (que observa e dá sentido à imagem – a recepção), justificando, assim, a perspectiva antropológica adotada em sua análise. O argumento é simples: ce sont les hommes qui ont fabriqué et qui continuent encore de fabriquer des images (BELTING, 2004: 8). Belting afirma que as imagens só existem porque existem meios que as veiculam e corpos/olhares que as admiram. O que condiciona sua existência é, portanto, externo a ela. Para ele, se temos dificuldade em compreender tal argumento é porque nos distanciamos das imagens, ou melhor, isolamos as imagens como entidades simbólicas, afastadas das condições históricas e materiais de sua existência. Estas reflexões parecem adequadas para pensar a iconografia dos chamados “artistas-viajantes”, uma vez que seus trabalhos materializam imagens mentais (impregnadas de sentidos simbólicos), associadas com elementos da realidade local, gerando interpretações/sentidos (também imagens, se assim as quisermos nomear) relacionadas ao contexto e à história local. Considerando que os meios da materialização (papel, tela, água, lápis, tinta a óleo, matriz litográfica, etc.) impõem às imagens mentais condicionantes que são intrínsecos à sua (dos meios) natureza, e que o espectador vai, por sua vez, reelaborar a imagem no campo próprio dos elementos que definem sua condição de observador, podemos concluir que as obras produzidas pelos “artistas-viajantes” devem, necessariamente, receber o olhar antropológico proposto por Belting. É um determinado observador, com uma precisa bagagem e repertório, com expectativas particulares, quem vai admirar e dar sentido à imagem produzida, orientado pelas características específicas do meio que a veicula. Obviamente, a orquestrar todo esse movimento, está novamente o homem (o artista), com suas intenções mais ou menos declaradas, em maior ou menor grau eficazes, no sentido de conduzir a leitura do observador ou dirigir sua percepção. Nas palavras de Wollheim, “as maneiras de pintar coincidem com os tipos de intenção” (WOLLHEIM, 2002: 18) e são estas escolhas que nos permitem chegar mais perto da compreensão do(s) sentido(s) das imagens.

Tomemos como exemplo duas obras do artista austríaco Thomas Ender: “Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro” (pena e sépia sobre papel; 27,2 x 43,3 cm; 1817-18) e “Rio de Janeiro com portos e cercanias” (ol/t; 126,5 x 189 cm; c. 1836-37), Figura 1 e Figura 2, respectivamente. O primeiro desenho serviu de esboço para a segunda obra, uma tela em óleo feita em seu ateliê em Viena, como vários outros trabalhos elaborados pelo artista, a partir dos desenhos e aquarelas realizados durante sua curta estada no Brasil, entre julho de 1817 e junho de 1818.

Ender estudou na Academia de Belas Artes de Viena e recebeu um importante prêmio de paisagismo que lhe valeu a recomendação para viajar ao Brasil na comitiva da Arquiduquesa Leopoldina, como pintor oficial. Foi, sobretudo, aquarelista e desenhista, talentos que muito facilitaram o exercício de suas funções no Brasil. Seus trabalhos demonstram um gosto pelas paisagens vazias, por amplas tomadas do espaço urbano e recortes pitorescos da paisagem natural. Em geral, seus cenários indicam uma percepção linear do espaço e dos motivos selecionados, destacando o contorno dos objetos e assegurando uma nitidez que permite facilmente atribuir a estas imagens a função documental de grande parte da iconografia produzida pelos artistas que, como ele, integravam uma missão de reconhecimento e registro da “realidade” brasileira. Esta ênfase na linha estimula a apreensão do real concreto, como se pudéssemos tocá-lo. No entanto, o traço delicado de Ender, sugere uma leitura mais profunda de seus trabalhos. Permite-nos, por exemplo, perceber uma poética dos espaços vazios, vazios sobretudo da presença humana, do isolamento dos homens quando inseridos no espaço urbano construído e do isolamento dos homens entre si. Não parece haver narrativa em suas imagens, mas uma composição que orquestra motivos submetidos, justamente, a essa poética dos espaços vazios. É assim que esta “Vista da Glória e da cidade do Rio de Janeiro” deixa de ser apenas um registro objetivo da realidade observada e estabelece possibilidades para uma percepção sensível da paisagem e do espaço carioca. A precisa definição da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, tomada lateralmente, acima da colina que lhe dá o perfeito destaque barroco, funciona como uma passagem entre a rica natureza, ainda que desordenada, do primeiro plano, e a paisagem construída ao fundo, onde se podem identificar os grandes elementos da civilização que já se fazia presente no território que adquiria um indissolúvel laço com a Corte austríaca. O grande aqueduto, torres de igrejas e edifícios importantes da cidade destacam-se no contorno da baía e no alto de suas colinas. A uniformidade cromática reúne, num mesmo conjunto, a paisagem natural do primeiro plano e a igreja, concedendo ao observador o privilégio de um duplo ponto de visão: situando-se no espaço livre do primeiro plano, admira a igreja, um ponto particular da paisagem, como se estivesse no interior de uma veduta; posicionando-se na beira do adro da igreja, tem diante de si um amplo panorama da cidade e seu entorno, numa relação marcada pela distância. O mesmo partido, portanto, de grande parte de suas obras brasileiras: Ender parece não se identificar com estas paisagens e suas gentes, mantendo-se distante e reservado. Não se trata do olhar à distância adotado por vários outros artistas em nome de uma fidelidade ou abrangência documental, mas de um distanciamento de ordem sentimental. “O olhar do vedutista é um olhar próximo, em busca de particularidades, visão que especifica seu objeto, variando a intimidade desfrutada em função do grau de aproximação do observador com o objeto, de seu interesse na singularidade do observado.” (SALGUEIRO, 1998: 86) A falta de intimidade que parece transparecer das aquarelas e desenhos de Ender, pelo distanciamento em que mantém o observador, certamente traduz a reservada aproximação que este possuía com seu objeto, para usar os termos da autora acima citada. Não obstante, seu talento artístico e uma poética altamente sensível à captação do valor intrínseco das paisagens, fossem elas naturais ou urbanas, abrem caminho para a apreensão de sentidos outros em suas imagens.

Anos mais tarde, quando já estava de volta em Viena, Ender elaborou a segunda imagem aqui apresentada: uma tela a óleo, cuja composição apresenta o “Rio de Janeiro, com portos e cercanias”. Vemos, neste trabalho, Ender realizar uma prática típica dos “artistas-viajantes”: dar significação às paisagens reais, introduzindo nelas elementos que aproximassem o público de suas obras, através da criação de uma narrativa que dava à imagem um sentido que ultrapassava o da simples documentação dos tipos e paisagens locais. A imagem em questão, no entanto, foi executada anos depois de sua volta à Áustria, dentro de contextos pessoais e profissionais muito distintos. Ainda assim, constitui um exemplar da vastíssima iconografia do viajante Ender. Faz-se necessário, parece-nos, buscar uma chave interpretativa que evite conceitos como os de “artista-viajante”, ou mesmo, de “iconografia de viajantes”, pois é evidente que, em 1836-37, momento da realização da tela, Ender já deixara há muito sua experiência de viajante e esta imagem adquire sentidos próprios, deslocados daquela experiência.

Tomando o desenho em sépia como um modelo para esta tela, Ender aumenta a importância do primeiro plano, preenchendo o espaço com figuras e plantas, construindo um equilíbrio diferente para a composição e estabelecendo uma narrativa que não estava presente na primeira imagem. Seguindo uma importante convenção da pintura de paisagem, Ender demarca os limites laterais de sua composição com duas altas árvores, preenchendo o espaço abaixo delas com outros exemplares vegetais, recantos construídos e personagens – homens e animais. A tela divide-se em quatro partes iguais, passando a linha vertical, de baixo para cima, pelos escravos sentados, pelo pé do outeiro onde está a igreja e, no alto, pelo pássaro que revoa no céu azul. A linha horizontal parte da pequena construção entre as árvores à esquerda, encontra a igreja no alto da colina, atravessa a baía para recortar as altas árvores do canto direito.

A igreja, vista do mesmo ângulo, está mais distante, e alguns recantos da paisagem no primeiro plano dão à imagem um tom decididamente pitoresco. Parece que, aí, a intenção foi mesmo criar uma narrativa que faz o cotidiano normal dos escravos (que conversam, deslocam-se, descansam, em poses que dialogam com a tradição clássica) ser interrompido pela chegada de um jovem a cavalo, que surge subindo pela colina e provavelmente já anunciado pelo cão que vem à sua frente. O instante escolhido, porém, não nos permite dizer da surpresa ou incômodo dos escravos, pois parecem não ter ainda percebido a presença do cavaleiro. De toda forma, tendo sido a parte urbana e construída deixada para o terceiro plano, onde mal se podem identificar os traços da presença humana civilizada, ao contrário do que vemos no desenho, o artista parece privilegiar a tranqüila convivência dos escravos nesta paisagem pitoresca, que acolhe igualmente o visitante que chega a cavalo. Essa prática era recorrente entre os pintores de paisagem, que utilizavam o primeiro plano como um palco para suas intenções narrativas.

Após o exemplo particular de algumas imagens de Thomas Ender, abordarei, a seguir, uma questão que afeta diretamente a forma como as imagens dos artistas atuantes no Brasil dentro do contexto aqui privilegiado criam significados para a realidade que inspira seus trabalhos. Trata-se da discussão sobre o linear e o pictórico, entendidos como modos de ver que definem formas de representar e estimulam condições particulares de percepção das imagens. Em texto clássico sobre este tema, “O linear e o pictórico” (WÖLFFLIN, 1984), o autor atribui à representação linear a capacidade de traduzir as coisas como elas são, enquanto que a representação pictórica traduz o que parecem ser. Segundo ele, da visão linear à visão pictórica, estaríamos aptos a perceber o mundo de uma forma respectivamente tátil e visual. Ao perceber como operam tais mecanismos na produção e recepção da iconografia de viajantes é possível indicar novos caminhos para a compreensão dessas imagens. Determinados pontos e vistas de localidades brasileiras, principalmente da cidade do Rio de Janeiro, foram repetidas vezes tomados como fontes de inspiração para os artistas que estiveram no Brasil a partir do início do século XIX. A Cascata da Tijuca, o Largo do Palácio, a Igreja de Nossa Senhora da Glória, o Largo do Rocio, entre outros, foram objetos de olhares que, informados pela experiência prévia que os marcou, acolheram as impressões causadas pela experimentação do local e do cenário brasileiro. A fim de operar metodologicamente com essa questão, foram selecionados exemplares da produção de artistas-viajantes que denunciam essas recorrências temáticas, manifestando igualmente sua diversidade poética.[8]

Tal diversidade faz-se perceber tanto entre exemplares da paisagem natural – como nos exemplos selecionados, cujo tema era a Cascata da Tijuca [Figura 3, Figura 4, Figura 5 e Figura 6] - quanto nas imagens que privilegiam a paisagem construída, aqui exemplificadas pelas versões do Largo do Palácio [Figura 7, Figura 8 e Figura 9]. Considerando que a arte linear resulta de uma visão condicionada plasticamente[9], que tende a apresentar a realidade com mais objetividade, vendo e interpretando o mundo por linhas que definem plenamente a nitidez de cada elemento da composição, é quase uma conseqüência imediata pensar na relação entre essa forma de ver e as imagens elaboradas na perspectiva do registro científico e/ou por artistas cujo estilo individual é marcado pelo olhar que tende a enxergar a realidade como um todo construído a partir da união de várias partes que, ainda que constitutivas de uma unidade, mantém sua independência em relação ao conjunto da representação. Estas características da arte linear estão presentes, por exemplo, no modo de ver do tenente inglês Henry Chamberlain, cuja estada no Brasil deu origem à publicação de Vistas e Costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, na cidade de Londres, em 1822. Suas cenas estimulam o sentido tátil, preservando a autonomia de cada um dos elementos da imagem e indicando um maior sentido descritivo. Tal é a impressão provocada por esta “Cascata da Tijuca” (água-tinta colorida; 1822), uma das imagens que executou durante sua permanência no Brasil [Figura 3]. Como seus outros desenhos, esta imagem recupera uma visão concisa, esquemática e pouco provocativa da cascata.

Em seu estudo, Wölfflin afirma que o modo de ver linear constrói uma realidade abstrata, onde predominam elementos que sugerem a universalidade de conceitos como linha e superfície uniforme. Tal universalidade estava, como sabemos, entre os pressupostos da arte de Jean-Baptiste Debret, herdeiro do neoclassicismo davidiano e aplicador de seus princípios no contexto brasileiro.[10] O registro rápido e sintético que caracteriza muitas de suas aquarelas no Brasil traduz um modo de ver linear, através do qual muitas vezes buscou inventariar temas da realidade observada. O traço fino recorta os elementos da paisagem na Figura 4, “Cascata Grande da Tijuca” (c. 1816-1820; aquarela; 8,8 x 16,8 cm), permitindo uma visão perfeita da cachoeira e seu entorno mais imediato. Em outros momentos, a mesma catarata tornou-se objeto de um olhar pictórico, por parte do mesmo artista, como na imagem aqui reproduzida [Figura 5]. A clara definição da paisagem dá lugar às massas de cor e contrastes entre claro e escuro, estimulando uma experiência mais subjetiva e particular da natureza.

O modo de ver pictórico estimula o visual e a apreensão do real nasce, então, da percepção da imagem como uma massa de reduzida nitidez. As partes da composição deixam de ser independentes e a ênfase é atribuída a um motivo principal, em torno do qual se estabelece uma unidade absoluta, sem a autonomia das partes. Ainda dentro do quadro das conclusões do teórico suíço, o modo de ver pictórico indica um maior sentido decorativo da imagem e exclui, com recursos plásticos, a analogia direta das imagens com o real. Isso não significa que a referência não seja mais a realidade observada pelo artista, mas o resultado de seu trabalho não se subordina ao olhar que tudo classifica e define no interior de contornos muito marcados. Da experiência com o real, o artista que enxerga o mundo dentro da categoria do pictórico demonstra interesse pela superfície do objeto, estimulando o desejo de saber que tipo de sensação os corpos (volumes) transmitem. É dessa forma que podemos, por exemplo, compreender o que caracteriza a versão de M. A. Porto-Alegre[11] para a “Grande Cascata da Tijuca” (1833; ol/t; 65 x 81,2 cm), na Figura 6, bem como o registro do “Paço da Cidade”, de Karl von Theremin [Figura 7]. Nesta litografia de 1818, o edifício recebe uma luz quase dramática, contrastando com o dinamismo das nuvens e o forte tom azulado das águas da baía. Os volumes assim representados são capazes de despertar, no receptor, uma experiência mais sensível daquela paisagem. Nas imagens seguintes, o edifício e o largo do Paço recebem uma leitura mais descritiva. Mais uma vez, podemos dizer que as gravuras de Chamberlain [Figura 8] e Debret [Figura 9] traduzem uma poética que valoriza o desenho, a linha definidora dos motivos da composição, criando uma sensação tátil, como diria Wölfflin. A clareza e objetividade destes registros são resultados das intenções de seus autores, impossíveis de serem desenvolvidas no âmbito desse trabalho, ainda que seja importante ressaltar que estas intenções adquirem materialidade a partir do exercício de seus talentos, portanto, de suas opções estéticas e formais. Há, nestas imagens, a força de uma narrativa produzida pelas preocupações dos artistas; contudo, sua expressão não apela para o sentimento, mas para a razão, que deve dar sentido às leituras que colaborem com as expectativas daqueles que, como Debret, estavam empenhados no avanço da civilização no Brasil.

Naturalmente devem ser feitas distinções, na produção de um mesmo artista, entre sua produção em aquarela ou a óleo, por exemplo. Da mesma forma, podemos perceber a adoção de categorias distintas ao comparar os desenhos de campo dos naturalistas e as gravuras que deles se originam. As variáveis são muitas e os itinerários a seguir a partir da proposta aqui esboçada parecem ser numerosos. Como conclusão a esse pequeno texto, com questões absolutamente preliminares a respeito do tema, vale retomar o historiador da arte austríaco, E. H. Gombrich, e relembrar que não existe um olho inocente (apud Wöllheim: 2002, 16). Voltando ao universo dos artistas-viajantes que experimentaram a realidade brasileira no século XIX, esse olhar esteve certamente dividido entre o peso incontestável do pensamento e dos avanços científicos da época e o desejo íntimo de fazer uma arte pitoresca, onde o mundo a ser representado não era o mundo ‘como tal’, mas sim ‘como deveria ser’. A experiência da viagem altera a relação entre observador e observado, levando-nos a questionar qual o significado, para o artista estrangeiro, daquilo que ele via e experimentava. Da resposta a essa questão nasce a possibilidade de entender as opções adotadas pelos artistas em suas composições, pois, como afirma Ana Maria Belluzzo, “na relação cotidiana entre o homem e a paisagem, as significações são pressupostos inerentes à ação” (BELLUZO: 1994/v. III, 11).

Referências Bibliográficas

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BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. 3 vols, São Paulo/Salvador: Metalivros/Fundação Emilio Odebrecht, 1994.

BELTING, Hans. Pour une Anthropologie des Images. Paris: Éditions Gallimard, 2004.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular. História e Imagem. Bauru/SP: EDUSC, 2004.

COLI, Jorge. O que é Arte. 10ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

HAAR, Michel. A obra de arte. Ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

HASKELL, Francis. History and its Images. New Haven: Yale UP, 1993.

LIMA, Valéria. J.-B. Debret, historiador e pintor: a Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-1839).Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

MIGLIACCIO, Luciano. “O Século XIX”, in: Arte do Século XIX. Catálogo da Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2000.

PENHOS, Marta. Ver, conocer, dominar. Imágenes de Sudamérica a fines del siglo XVIII. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005.

SALGUEIRO, Valéria. Paisagens de Sonho e Verdade: RJ, BA e cidade do México nos álbuns ilustrados de oito artistas viajantes. Rio de Janeiro: Fraiha, 1998.

WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da História da Arte. O problema da evolução dos estilos na arte mais recente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 1984.

WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.


* Mestre em História da Arte e da Cultura e Doutora em História Social da Cultura pela UNICAMP. Professora do Curso de História da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP.

[1] Para o debate sobre imagem e história, ver os trabalhos fundamentais de BURKE, 2004 e HASKELL, 1993.

[2] Ver, por exemplo, PENHOS, 2005 e GRUZINSKI, 2006.

[3] Importante análise do desenvolvimento das artes no Brasil, ao longo de todo o século XIX, encontra-se em MIGLIACCIO, 2000.

[4] Desde 1816, com a chegada dos artistas franceses e, mais especificamente, após a criação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1826, configurou-se na corte um espaço qualificado para o exercício das belas artes.

[5] Para essa discussão, COLI, 1989, WOLLHEIM,2002 e HAAR, 2000.

[6] Importantes reflexões a este respeito têm sido apresentadas, em eventos acadêmicos, pela Profª Drª Claudia Valladão de Mattos (IA-UNICAMP).

[7] Publicado em 2001, pela Wilhelm Fink Verlag, de Munique, foi traduzido para o francês em 2004.

[8] Para respeitar as dimensões deste texto, as imagens selecionadas serão comentadas enquanto conjunto, não sendo possível desenvolver análises particulares de cada uma delas.

[9] A referência para as caracterizações de linear e pictórico nesse texto é a obra já citada de WÖLFFLIN, 1984.

[10] Sobre Debret, ver LIMA, 2007.

[11] Ainda que se trate de um artista brasileiro, não identificado como “artista-viajante”, sua formação e atuação está intimamente associada ao contexto de produção destes artistas no Brasil e permite a reflexão a respeito da execução e recepção da arte no período.