O Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret

Valéria Piccoli

PICCOLI, Valéria. O Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_debret_vp.htm>.

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Esta comunicação tem como origem a dissertação de mestrado A pátria de mi­nhas saudades. O Brasil na Viagem Pitoresca e Histórica de Debret, apresentada à FAU-USP em 2001 que teve como objeto de estudo o livro Voyage pittoresque et historique au Brésil ou séjour d'un artiste français au Brésil depuis 1816 jusqu'en 1831 inclusivement publicado em Paris entre 1834 e 1839, pelo artista Jean Baptiste Debret (Paris, 1768-1848). O álbum ilustrado foi elaborado a partir da experiência de Debret em 15 anos de residência no Brasil, onde havia chegado em 1816 como professor de pintura histórica da Missão Artística Francesa, contratada pelo príncipe regente d.João para fundar a Escola de Artes, Ciências e Ofícios do Rio de Janeiro. O empenho de Debret na constituição da futura Academia Im­perial de Belas Artes não é o único mérito que lhe garante um lugar de destaque na história da arte brasileira do século XIX. Debret formou a primeira geração de pintores brasileiros com treino acadêmico, iniciou o gênero da pintura histó­rica no Brasil e instituiu a rotina e a prática de ensino em ateliê, mesmo antes da inauguração da Academia. Foi também o idealizador das duas primeiras exposi­ções de arte realizadas no Rio, respectivamente em 1829 e 1830.

Entretanto, sua obra literária parece não ter sido exatamente um su­cesso do ponto de vista editorial, considerado o contexto do mercado francês de meados do Oitocentos. Mesmo assim, tornou-se um dos mais conhecidos álbuns ilustrados de viagem ao Brasil, freqüentemente citado pêlos historiadores como um registro da vida cotidiana no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX. Um século depois de sua publicação, o livro se transformou num clássico sobre o país do período joanino e do primeiro império. Os registros de Debret passaram a povoar de tal forma o imaginário brasileiro, que acabaram servindo tanto à ilustração de livros paradidáticos, quanto à execução de vinhe­tas de abertura de novelas de televisão, ou mesmo ao desenvolvimento de enre­dos de escola de samba, como aconteceu durante a comemoração do IV cente­nário da cidade do Rio de Janeiro, em 1965.

O ponto de partida adotado neste trabalho para análise da obra de De­bret foi repensá-lo em sua inscrição histórica. Dois importantes instrumentos desse processo foram elaborados durante a fase de pesquisa: a revisão historiográfica, destinada à análise da recepção da Viagem no Brasil, e a cronologia, pen­sada para situar a elaboração do livro no contexto geral da obra do autor. A for­tuna crítica buscou contrapor pontos de vista entre os autores brasileiros que se referiram à Viagem, desde a data de sua publicação até a atualidade. Tentou-se dar a esse estudo a maior abrangência possível, inserindo mesmo observações de caráter mais geral, mas que, de alguma forma, fossem elucidativas da maneira como a obra de Debret foi percebida pela crítica brasileira através do tempo.

O reexame da recepção da Viagem pela historiografia brasileira eviden­ciou os entendimentos parciais e as contradições que permeiam certos debates, principalmente no que diz respeito às definições de classicismo e romantismo, estendendo-se, ainda, para o sentido do termo "pitoresco". O adjetivo pitoresco associado ao título de um álbum de viagem certamente indica, em primeiro lugar, tratar-se de um livro ilustrado. Por outro lado, há diversos sentidos que também se associam à expressão "viagem pitoresca" e que podem ser esclarece­dores para uma análise da obra de Debret. Primeiramente, um livro pitoresco deve conter e fornecer ensinamentos e informações úteis para os pintores. Ou seja, não é apenas uma obra "feita por" um artista, mas também "destinada à apreciação e uso" de outros artistas, que podem valer-se dela como referência e modelo para execução de suas próprias obras. As "viagens pitorescas" seriam, portanto, viagens narradas "em imagens", e deveriam combinar um especial in­teresse visual a uma grande variedade de temas tratados.

A contraposição de pontos de vista permitiu ainda perceber como, em épocas diversas, a historiografia brasileira tem se referido a Debret alternadamente como "repórter fotográfico" — enfatizando a "veracidade" e "fidelidade" de seus registros —, e como "caricaturista", que, estrangeiro que era, desfigurou certas situações observadas pela incapacidade de perceber-lhes a verdadeira na­tureza. Em geral, as incongruências são apontadas no texto do livro, enquanto a "veracidade" é buscada na imagem. Diferentes autores ressaltam julgamentos parciais e arbitrariedades encontradas no correr do texto do álbum (escrito, afi­nal, de memória e à distância), mas reforçam a fidelidade com que o cotidiano brasileiro está registrado nas ilustrações. Curiosamente, atribui-se o mesmo va­lor documental às aquarelas preparatórias e às gravuras, embora, em grande par­te dos casos, as imagens não sejam coincidentes. O que se aponta com frequên­cia é um desnível qualitativo entre elas. As aquarelas são consideradas superio­res — porque mais "espontâneas" — às gravuras, tratadas como imagens "domes­ticadas" por certos cânones artísticos em voga. Vieira[1] chega mesmo a cogitar a interferência do gravador na transferência do desenho para a pedra litográfica como sendo a causa principal dessa diferença.

Há uma questão em particular que tem ocupado os historiadores que abordam a obra de Debret nos últimos 10 anos: a "mutação unanimemente constatada", como aponta Carelli[2], que seu trabalho teria sofrido durante a permanência do artista no país. Claro está que a tal questão diz respeito à conexão (ou falta de) entre a obra brasileira de Debret e o neoclassicismo davidiano. Em todas as biografias do artista, quatro pontos são reforçados com frequência: parentesco com Jacques Louis David (1748-1825); o fato de sua formação artística ter se dado no ateliê desse pintor; a viagem à Itália, quando Debret teria acompanhado o nascimento de uma obra prima, o Juramento dos Horácios; assim como a adesão dos dois artistas ao processo revolucionário na França. Diante disso, Carelli aponta para uma "conversão" do trabalho de Debret diante das contradições inerentes à realidade brasileira, às quais o artista não teria passado imune, argumento desenvolvido também por Naves[3]. Ao que tudo indica, vinculação da obra de Debret exclusivamente ao neoclassicismo e a David tem impedido a percepção de uma possível identificação do artista com outras tradições. Este tipo de abordagem não parece ser suficiente para trazer à tona singularidades que permeiam a produção brasileira de Debret.

Para tecer algumas hipóteses sobre possíveis afinidades entre a obra Debret e outras tradições, é preciso, primeiro, retornar ao livro e entendê-lo e sua estrutura discursiva. Os propósitos do autor estão claramente expressos no início do segundo volume: "Eu me propus a seguir, nesta obra, um plano ditado pela lógica: o de acompanhar a ‘marcha progressiva da civilização no Brasil’ "[4]. A marcha progressiva se inicia, portanto, com a história do índio selvagem. O primeiro volume da Viagem está rigorosamente estruturado para conduzir o leitor, tanto em termos de texto, quanto sucessão de imagens, à apreciação de uma escala evolutiva, que vai do indígena mais selvagem ao mais civilizado, segundo a avaliação do autor. Por mais civilizado, Debret entende aquele indígena que está mais incorporado à sociedade brasileira, ou o que ocupa um lugar nela, supondo, portanto, o abandono de seus próprios hábitos e de suas raízes culturais em favor de sua inserção num sistema social modelado a partir da civilização européia. A essa possibilidade de fusão é que Debret alude quando fala que todas as idéias concebidas pelo espírito humano estão em germe no índio selvagem. O autor defende a mistura entre brancos e índios como probabilidade de melhorar a raça indígena e torná-la um sustentáculo da prosperidade do Brasil.

O segundo volume da Viagem apresenta um caráter mais complexo, sobretudo porque, aqui, Debret desloca sua atenção para um universo de fato observado: a cidade e seus arredores. Se no primeiro volume, seu discurso se organizava de modo progressivo, quase à razão de um passo por ilustração, esse se­gundo está estruturado a partir das relações sociais infinitamente mais intrinca­das que se fazem visíveis no espaço urbano. No texto introdutório, quando re­produz a classificação da população por seu grau de civilização, o autor já torna explícita a estratificação sobre a qual se funda a sociedade brasileira, a partir das raças que a compõem. É, portanto, à reconstituição da teia de relações que in­terliga as camadas sociais que ele se dedica nesse segundo volume da Viagem. E o faz investigando as atividades produtivas que indicam a função e o lugar de cada um na geração de riquezas para o país. E oportuno frisar que Debret vê também os colonos europeus como personagens dessa história, evocados na imagem da colônia de suíços de Nova Friburgo.

Já ao longo do terceiro volume da Viagem, religiosidade e história polí­tica se misturam. Do ponto de vista narrativo, esse volume é um livro sobre as cerimônias e as comemorações, os personagens, seus trajes e insígnias, os pro­tocolos, as normas de conduta, as regras de etiqueta, e também sobre a ausência de tudo isso em certos extratos da população. Trata do caráter solene de um poder monárquico que encena seus cortejos de forma a reafirmar seus símbolos de poder; contempla as práticas religiosas que se valem da fórmula teatral do desfile e da encenação, onde sobressaem o exagerado e o grotesco. Debret per­cebe a proximidade entre Estado e Igreja no Brasil. Percebe também que as for­mas de diversão pública estão quase exclusivamente ligadas às festas religiosas ou às cerimônias oficiais promovidas pelo Estado. Enquanto, nessas últimas, a população se situa apenas como espectadora, os rituais religiosos oferecem a possibilidade de participação aos populares.

De modo geral, a parte mais comentada e apreciada do álbum de De­bret é a que se refere ao mundo do trabalho, concentrada no segundo volume da Viagem. A representação do trabalho em Debret vale alguns comentários. Como lembra Mainz[5], as culturas católicas viram o trabalho como uma neces­sidade negativa, associada à condenação de ganhar o pão com o próprio suor após a expulsão do Éden. O século XVIII o converterá no elemento estruturador e disciplinador da sociedade, seja atribuindo-lhe um valor moral e po­sitivo (Rousseau), seja encarando-o como fonte de riqueza (Fisiocracia), ou atividade socialmente útil que contribui para o progresso da humanidade (Diderot). Passa-se a julgar o homem em termos de sua capacidade particular de transformar a natureza através do trabalho e, por ele, desencadear um processo portador de benefícios efetivos para o ambiente social. Esse poder transforma­dor do trabalho, entretanto, dependia do desenvolvimento de métodos racionais e científicos que orientassem a ação humana no desempenho de suas atividades produtivas.

A Encyclopédie de Diderot e D'Alembert (1751-1772) organizou o co­nhecimento sobre a aplicação das artes e ofícios no incremento dessas atividades. Seus volumes de ilustrações constituem um marco na história das imagens do mundo do trabalho e podem servir a iluminar certas questões figurativas que surgem no livro de Debret. A Encyclopédie realiza uma apresentação didática de processos produtivos, em que tem especial importância a descrição dos uten­sílios. Esses são a própria tecnologia aplicada ao incremento da produtividade e sua sofisticação técnica, assim como a maneira de empregá-los, é o que permitia distinguir um comportamento civilizado de um comportamento inculto.

Nas ilustrações da Encyclopédie, a parte superior da gravura consiste na reunião, numa mesma composição, das diversas etapas de um processo produ­tivo [Figura 1]. A essa vinheta, é acrescentada uma parte inferior onde são dese­nhados em detalhe os instrumentos empregados naquele processo. Em se tratando de uma oficina, as diferentes partes do processo convivem no mesmo es­paço figurativo, mesmo que sejam etapas que não aconteçam de modo simul­tâneo. Visualmente, a oficina se converte num espaço harmonioso regido pela ordem e pela racionalidade. A Encyclopédie não se propõe a um compromisso com a realidade observada, somente a transmitir um saber prático, verbal e figurativamente.

Essa estrutura que divide a ilustração em duas partes, propondo a vi­nheta e o detalhe, também está presente nas ilustrações de Debret. Não neces­sariamente centrada na descrição de um processo produtivo e parece ser so­mente um empréstimo da configuração. A convivência das várias etapas de pro­dução numa mesma prancha, contudo, é uma constante na Viagem. Ao contra­rio da Encyclopédie, Debret tem o compromisso de narrar como testemunha. Es­sa é a condição do viajante.

As gravuras de costumes francesas podem também ser úteis à análise da obra brasileira de Debret. Em Les "Cris de Paris" ou Le peuple travesti, Vincent Milliot[6] aborda a importância da difusão de séries de gravuras voltadas para o tema dos "petits métiers" urbanos de Paris entre os séculos XVI e XVIII. Chamados "cris de ville" pelo grito característico que anunciava o serviço ou a mer­cadoria oferecida pelo personagem, essas estampas registravam as atividades dos mais humildes representantes da população urbana, em geral trabalhadores sazonais que chegavam a Paris, vindos de regiões menos prósperas da França, para tentar a sobrevivência quando não havia trabalho no campo. As estampas eram comercializadas em pequenos conjuntos (suites), posteriormente agrupa­dos em uma série, cuja quantidade de imagens variava entre 20 e l00. De maneira geral, cada gravura representava um personagem isolado cujo ramo de atividade era facilmente identificável pelos acessórios e pela vestimenta. Esses atributos constituíam acessórios-tipo, convenções visuais legitimadas pela repe­tição, e, em sua simplicidade, atestavam a não especialização do trabalhador. Muitos desses "métiers" (guardadas as devidas especificidades regionais) são os mesmos que Debret desenhou no Brasil: o carregador de água, o vendedor de carvão, o leiteiro, a vendedora de flores, de cestos, de castanhas ou crepes, entre outros. Originários de uma tradição que remonta à Idade Média, os "cris de ville" tornaram-se extremamente populares durante o século XVIII, e foram gravados por artistas como Chardin, Boucher e Carie Vernet.

Milliot procede a uma análise da circulação social das estampas dos "cris", assim como dos códigos que ordenam a representação do "petit peuple" parisiense. Percebe uma transposição de posturas herdadas da dança e disposi­ções corporais ligadas a normas clássicas de representação que "domesticam" a aparência de rudeza e de indignidade desses trabalhadores urbanos (daí o "peu­ple travesti" do título do livro). Nas gravuras que constituem esses tipos sociais no século XVIII francês, a impressão dominante é de retidão e estabilidade, de um corpo elegante porque contido pelas regras da civilidade [Figura 2]. O autor se refere à importância que adquire o gesto, a postura, a vestimenta e a fisiognomia nos "cris", no sentido de designar o lugar do personagem na hierarquia social, bem como seu nível de assimilação das normas de conduta vigentes entre a "gents de bien". Apesar do travestimento identificado por Milliot, todas as séries de gravuras de "Cris de Paris" publicadas no Setecentos trazem no fron­tispício a indicação: "dessiné d'après nature". Segundo Milliot, os eruditos e folcloristas do século XIX recorreram a elas como registros fiéis de práticas sociais de uma velha Paris, ainda não transformada pelas intervenções urbanas do se­gundo império.

Entretanto, ainda que a obra brasileira de Debret se mostre tributária das gravuras de gênero do século XVIII francês, é preciso considerar certas particularidades que a distinguem daquela prática. No espetáculo da cidade, o artista identifica e recria o tipo do trabalhador urbano, por vezes isoladamente, como fazem os "cris". Mas não sempre. A sociabilidade que faz conviver esses tipos na cidade interessa a Debret, assim como o incidente e o anedótico que os envolve, tratados freqüentemente com humor. Starobinski[7] lembra que, como espécie de compensação necessária, a época neoclássica foi a "idade de ouro da caricatura", e o próprio David se fará caricaturista. A citação serve apenas para  situar uma convivência entre "forma ideal" e "deformação", o princípio trans­gressor da caricatura. Não digo que Debret seja caricaturista, mas o humor que empresta a certas figuras lhes "desarranja" a forma, no intuito de acentuar cer­tos conteúdos morais.

O interesse de Debret pelo registro dos tipos certamente não foi des­pertado pelo desfile "exótico" com que o artista se deparou ao chegar ao Rio de Janeiro. A prática já tinha se manifestado em viagem anterior à Itália, como atesta a existência de Costumes italiens dessinés à R.ome en 1807 par Debret, grave par Louis Marte Petit em 1809[8]. Trata-se de uma coletânea de 31 gravuras em metal aquareladas com imagens de trajes típicos de diversas regiões da Itália. As gra­vuras são de autoria de Louis Marie Petit (1784-?), aluno de David como De­bret, e não são acompanhadas de texto. Os títulos, tanto do livro quanto das gravuras, são manuscritos, o que leva a pensar que se trate apenas de um projeto de publicação que não foi levado a cabo.

Da mesma forma, a partir do caderno de desenhos de campo intitulado Costumes du Brésil, datado de 1820, descoberto por esta autora em arquivo fran­cês, é certo que o artista se dedicou a registrar os tipos urbanos do Rio de Janei­ro ao mesmo tempo em que desempenhava as tarefas de pintor da corte de D.João. Debret era, afinal, um pintor de história e a pintura histórica pressupunha o engajamento do artista em sérias pesquisas sobre o assunto abordado em sua obra. O conhecimento histórico e a erudição foram componentes enfatizados pelo método de trabalho proposto por Charles Le Brun ainda na fundação da Academia Francesa. Parece claro que Debret tenha se proposto a compreender a sociedade brasileira em todos os seus estratos.

O álbum de viagem pitoresca de Debret se inscreve numa tradição de organização do conhecimento sobre o mundo derivado da Ilustração. Essa or­denação, porque não dizer, enciclopédica, obedece à luz da razão (o "plano ló­gico" de Debret), e se baseia na articulação de narrativa escrita e linguagem visual. A credibilidade da informação contida no texto garante o dado pragmá­tico e o conteúdo didático que se busca no testemunho do viajante, aquele que adquiriu conhecimento pela experiência. No caso do álbum pitoresco de autoria de um artista, diferentemente do álbum científico, o conjunto de ilustrações, ainda que observadas no mundo real, comporta certos "arranjos" que preten­dem tornar mais prazeroso o que é dado a ver. É fundamental, contudo, que essa intervenção operada pelo artista não prive a ilustração do efeito de reali­dade, sem o que ela perderia a condição que lhe confere validade histórica. Nes­sa escolha do que incluir (e do que excluir) no álbum, e de como fazê-lo, é que se revelam as preferências pessoais do autor.

Para Hobsbawm[9], o principal tema que nasce da Revolução Francesa é a natureza da sociedade, e a direção para a qual ela estava se encaminhando ou deveria se encaminhar. Nesse sentido, não parece descabido que Debret escolha um discurso histórico de caráter progressivo como eixo narrativo de seu livro de viagem. Mais do que contar a história pela pintura, a Viagem pitoresca e histórica ao Brasil combina palavra e representação visual para gerar uma narrativa histó­rica que dê conta da exemplaridade da história brasileira.

A natureza da experiência histórica brasileira no período em que De­bret permaneceu no país foi, sem dúvida, singular. O Rio de Janeiro recebeu uma família real e uma corte, teve seus portos abertos após 300 anos de isolamento, e seu estatuto político significativamente alterado, passando de capital de colônia a sede de reino. Em 1822, enquanto os antigos reinos da América espanhola se fragmentavam por ações revolucionárias, no Rio encenou-se a fundação da nova nação brasileira na cerimônia da sagração e coroação de um imperador constitucional. O momento dessa transição parece interessar a De­bret, que assiste a uma revolução liberal bem sucedida levada a cabo através da repressão de revoltas locais e ancorada num sistema escravista. Interessa, de resto, à Europa "restaurada", que assiste, à distância, ao surgimento de um im­pério católico nos trópicos, capaz de rivalizar com a república protestante do norte.

A Viagem pitoresca e histórica proposta por Debret não se preocupa so­mente em narrar os fatos que compõem a história de uma nova nação. O pintor-filósofo investiga a trama social que constitui o "corpo" desse país, que emerge de seu jugo colonial como uma promessa de grande futuro. Percebe as contradições e fragilidades que lhe são inerentes. Indica sua posição na escala que mede os graus de desenvolvimento, aponta os caminhos a trilhar na esca­lada da civilização.


[1] VIEIRA, João Guimarães. "Taunay, Debret e Grandjean de Montigny". in: Aspectos da arte brasileira. Rio de Janeiro, Funarte, 1981, p. 19-30.

[2] CARELLI, Mário. Culturas cruzadas. Campinas, Papirus, 1994, p.79.

[3] NAVES, Rodrigo. "Debret, o neoclassicismo e a escravidão", in: A forma difícil. São Paulo, Ática, 1997.

[4] DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, l989, v.2, p.13.

[5] MAINZ, Valérie. L`image du travail et la Révolution française. Vizille, Musée de Ia Révolution Française, 1999.

[6] MILLIOT, Vincent. Les  Cris de Paris ou le peuple travesti. Les  répresentations des petits métiers parisiens (XVIe  — XVIIIe siècles). Paris, Publications de la Sorbonne, 1995. 

[7] STAROBINSKI, Jean. 1789. Os emblemas da razão. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p.157.

[8] Ver a reprodução da série no site da Gallica: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b6500267r

[9] HOBSBAWM, E.J. A Era das Revoluções. Lisboa, Editorial Presença, 1977, p.255.