A Representação da Loucura em O Alienista: Machado de Assis e Portinari

Tatiana Fecchio C. Gonçalves *

GONÇALVES, Tatiana Fecchio C.. A Representação da Loucura em O Alienista: Machado de Assis e Portinari. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_alienista.htm>.

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A edição de O Alienista analisada no presente artigo é referente à impressão realizada pela Imprensa Nacional em 1948. Foi dela realizada uma tiragem de 100 exemplares, em grande formato, com 70 folhas numeradas e mais algumas folhas soltas dentro de capa. Segundo consta na edição, esta foi iniciada em 1945 e acabada em 12 de julho de 1948.

Esta edição do O Alienista de Machado de Assis, feita por iniciativa  e sob a direção de Raymundo de Castro Maia para fins de beneficência, foi ilustrada por Candido Portinari, com quatro águas-fortes tiradas pelo artista, em colaboração com seu irmão Loy Portinari e trinta e seis desenhos a nankin. O texto e os desenhos foram produzidos e, "off set", na Imprensa nacional , do Rio de janeiro, sendo diretor o Prof. Francisco de Paula Aquilles; chefe da Divisão de Produção, Raul de Oliveira Rodrigues; assessor da Produção, Rubem Pimentel da Motta; chefe de Composição, Tarquinio Antonio Rodrigues; chefe da Gravura, Oswaldo de Assis; chefe de Impressão Lithographica, Oscar Loureiro; técnico em "off set", Silvio Signhorelli.[1] 

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839 no Rio de Janeiro. Tem infância humilde, e sendo amante da leitura, vai se constituindo junto à imprensa como tipógrafo, revisor e colaborador. Se aproxima de Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar e Gonçalves Dias. Em 1860, a convite de Quintino Bocaiúva, passa a fazer parte da redação do jornal Diário do Rio de Janeiro. Em 1867 torna-se diretor do Diário Oficial. Entre março e dezembro de 1880 publica na forma de folhetim Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em 1881 o compendio é publicado na forma de livro e juntamente com O Mulato, de Aluísio de Azevedo é considerado marco do realismo na literatura brasileira. No ano seguinte se dedica à elaboração de Papéis Avulsos, encabeçado pela novela O Alienista. Segundo Bernardi, Machado de Assis soube “...retratar a sociedade burguesa do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. A obra de Machado de Assis caracteriza-se pelos traços básicos, que são: o pessimismo, o psicologismo e a ironia (humor negro. [...] Divide-se também em duas partes: a fase romântica, até 1881, e a fase realista, a partir de 1881”[2]. O Alienista faz parte desta segunda fase.

Candido Portinari nasceu em Brodowski, interior de São Paulo em 1903, filho de imigrantes italianos. Tem infância simples e cursa apenas o primário. Em 1918 vai a capital do Estado onde ingressa no Liceu de Artes e Ofícios, estuda na Escola Nacional de Belas Artes. Em 1922 tem um retrato premiado no Salão de Belas Artes. Em 1928 ganha o Premio de Viagem ao Exterior e nesta viajem à Europa, percorre Itália, Inglaterra e Espanha, para então ficar em Paris até 1930 quando se aproxima do modernismo. Retornando ao Brasil vai ao Rio de Janeiro onde participa da comissão que remodelaria o Salão Nacional de Belas Artes, que a partir de então começa a expor também os modernos. Seu quadro Café é de 1932. A ilustração de O Alienista é publicada em 1948.

Tanto Machado de Assis, quanto Candido Portinari já estão em suas maturidades expressivas quando se dedicam, cada um em seu meio, ao Alienista. O alienismo, no Brasil será diferente entre 1881 e 1945.

Se no primeiro momento está mais próximo das propostas higienistas e que resultará na criação do Hospício de Aliendados Pedro II, em 1852, referentes aos “...limites de um século que se assumiu cientificista e nos arredores de modificações substanciais da vida brasileira: estão no ar os ideais republicanos e o positivismo é um caldo no qual todos estão imersos”[3]; há em 1948 uma série de atuações, encabeçadas por Nise da Silveira, Osório César e Mario Pedrosa, que fazem flexibilizar, em concomitância aos questionamentos do Modernismo frente às certezas cartesianas, uma crítica em relação à situação e caracterização de loucura.

O texto de Machado de Assis antecipa, desta forma, em quase 40 anos, as discussões que aconteceriam em relação aos estados de loucura no Brasil. A ilustração de Portinari, por outro lado, agrega ao texto Machadiano elementos que se revelariam na psiquiatria brasileira a partir da década de 40 do século XX, bem como incorpora e ela referencias de questões de exclusão e discriminação presentes após a segunda grade guerra.

A caracterização do Louco no texto de Machado de Assis

É possível rastrear ao longo do texto referencias culturais em relação à concepção da loucura na época do império. Quando o narrador descreve sobre a forma com a qual a cidade de Itaguaí lidava com seus loucos, comenta que a

...verança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua.[4]

O que de início já aponta para o uso de uma classificação médica da época na qual eram diferenciados os loucos furiosos, agressivos, dos loucos mansos, ou inofensivos. O primeiro grupo passível de encarceramento nas casas e os segundos moradores das ruas. O hábito de encarceramento é de fato referido como conduta da época, sendo que a Academia Imperial de Medicina

...deplorando que estes fossem com freqüência recolhidos à Cadeia Pública ou às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia. Em ambos locais, os loucos encarcerados em cubículos estreitos, em condições insalubres e muitas vezes amarrados, compunham cenas dantescas, na vívida descrição de um dos defensores da criação de um manicômio na Corte (De-Simoni, 1839, p. 251). E, se os loucos pobres que escapavam da reclusão viviam como podiam pelas ruas do Rio, as famílias ricas escondiam cuidadosamente os seus.[5]

Há também referida já neste início de texto a questão religiosa, apontada aqui ao pecado da cidade na forma de conduzir seus loucos. As deficiências e os pecados, em relação à loucura e que fez que por muito tempo pessoas com estas característica tenham sido literalmente escondidas dentro das casas se refere à vergonha de ter sido gerado naquele núcleo familiar uma anomalia que representava ela mesma a punição, ao expurgo dos pecados; representando o deficiente praticamente a materialização da culpa pelos pecados, e portanto, uma vergonha a ser suportada e escondida, o que também justifica o uso dos termos trancado e a alcova. Esta maneira de lidar é caracterizada num outro momento do texto e referida como “...tão ruim costume”[6] e no sentido de hábito antigo, já naturalizado, como “...hábitos absurdos, ou ainda maus”[7].

Há basicamente três grupos que correspondem, na narrativa de O Alienista, aos loucos. O primeiro deles constituído pelo critério de anormalidade, de parâmetros científicos médicos, por Bacamarte assim que chega em Itaguaí. O segundo, constituído por oposição direta a estes mesmos critérios iniciais, quando o medico percebe que a regra deveria estar invertida e que deveria tomar o normal por anormalidade e a normalidade como fator de desequilíbrio. Ou seja, há entre o primeiro e o segundo estados, aferidos como loucura, uma referência em relação a qual é estabelecido critério ou anti-critério, de normalidade e portanto de loucura. Mas há também a própria ciência como loucura, esta personificada no próprio alienista. Com isto em mente recolho abaixo as adjetivações dedicadas a estes três grupos no decorrer do texto, bem como os termos segundo as quais os loucos foram nomeados.

Nomenclaturas. No decorrer da obra, o louco é referido por vários nomes: doidos (“...votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres”[8]), hóspedes (“...numerosos cubículos para os hóspedes”[9]), lunáticos (“- Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...”[10]), mentecapto, insano.

Cada uma destas palavras acessa registros diversos. Lunático refere à uma caracterização tradicional dos louco como aquele que se perde em seus pensamentos, que olha sem tempo a lua, que corresponderá, na iconografia, ao louco que porta uma luneta, como pode ser visto em um dos loucos da gravura Bethlem de 1735, dentro do conjunto de obras A Rake´s Progress de William Hogarth. O mentecapto é aquele que teve a mente cortada, degolado, que não pensa mais. Se doido vulgariza e torna informal a referência, hóspede transforma o asilo em hotel. Insano é o que não é são, o que não tem sanidade.

O louco como anornalidade. Ao descrever a loucura a um dos personagens o alienista refere: a “...loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”[11]. Neste sentido “...a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros...”[12], dentre estes “...Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc.,...”[13]. Bacamarte explicita: ´” Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia; insânia e só insânia”[14]. Os loucos recolhidos desta forma eram classificados “...em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas”[15].

Ao referir sobre os loucos que afluíram à Casa Verde, eram “... furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família de desesperados do espírito”[16]. Há a descrição de alguns tipos, abaixo apresentados.

Um deles era “...um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e duas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano”[17], ao que o alienista acredita haver razão científica e o vigário acredita ser confusão das línguas da Torre de Babel, por falta de exercício da razão.

Havia alguns loucos de amor, sendo que “...dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d´alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, a roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo”[18]. Sendo a loucura deste segundo desencadeada por traição da esposa que fugira com o amante, tendo sido ambos mortos pelo próprio que a partir de então os desejava encontrar no fim do mundo.

São descritos também loucos com mania de grandeza, sendo que o

...mais notável era um pobre diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta: - Deus engedrou um ovo, o ovo engedrou a espada, a espada engedrou Davi, Davi engedrou a púrpura, a púrpura engedrou o duque, o duque engedrou o marquês, o marquês engedrou o conde, que sou eu. Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas...[19]

Outros descritos com mania de grandeza eram “...um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda gente...”[20]. Descreve também um caso de “manomania religiosa; [...] um sujeito que chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros”[21]. Outro caso de delírio religioso estava nas atitudes de “...Gracia, que não dizia nada, porque imaginava que, no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus”[22].

Costa, um dos cidadãos que é internado na Casa Verde é referido como mentecapto. A expectativa de uma crise de loucura pode ser percebida na descrição que Assis faz da reação da população quando da informação da internação deste Costa: “...dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis. - ou mansos, e até mesmo engraçados, conforme as versões”[23]; estas seriam portanto atitudes esperadas de um louco.

O arrefecimento desta norma se deu quando passada a rebelião que se desenrola ao longo da narrativa, se intensificam as internações,

...uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado [...]. Ele respeitava os namorados e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo ara a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental[24].

Ao comentar o fato de Bacamarte mandar prender à Casa Verde todos aqueles que usavam um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, comenta o narrador que a “...opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito”[25]. Ao recolher a própria esposa o alienista fundamenta que esta possuía “... mania suntuária, não incurável, mas digna de estudo”[26].

Qualquer um poderia ser fora da norma e a precisão do critério parecia infinitamente ajustável.

O Louco como normalidade. Bacamarte, em certo momento da narrativa, re-define a loucura mediante análise das estatísticas referentes aos confinados, que apontavam ao fato da maior parte dos cidadãos estarem internados, e em função da revisão de suas teorias. Em função desta reconsideração define que “...devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse initerrupto”[27], o que foi endossado pela Câmara.

A partir deste fato houve a soltura dos internos e a internação de alguns dentre os que estavam soltos, entre estes um que mostrou a “...retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade...”[28]; quase prendeu outro no qual “...reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua”[29] e prendeu um outro por possuir “...o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação [...], reconheceu a habilidade e o tino...”[30].

Os alienados assim capturados foram então divididos e alojados dentro de uma nova classificação, fez-se “...uma galeria aos modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc.”[31].

O Louco Alienista. Há no decorrer da narrativa diversas passagem que descrevem como louco o alienista. “A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou o insinuasse a própria mulher do médico”[32], revela a impressão da população frente à conduta do alienista e também a tênue linha de compreender a loucura como atitude que frustra a expectativa, quando se efetiva uma idéia impensável.

Outra passagem revela comportamento imoral do médico. No frontispício da Casa Verde, nome dado então ao Asilo, é gravada idéia do Corão: “Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração que Alá lhes tira o juízo para que não pequem”[33] sendo que para poder gravar esta frase o médico atribui a sentença a Benedito VIII. Deste evento, se por um lado se evidencia a consideração mais frouxa do médico em relação aos loucos, podendo o olhar a estes se pautar não na anormalidade mas na desrazão dos ingênuos; por outro revela uma falcatrua para fazer gravar tal frase, e neste sentido subversiva.

Em relação aos trabalhos do alienista na Casa Verde este são descritos como que beirando a insanidade, “...a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde, nada menos que assombrosa”[34]. Em relação a sua dedicação ao trabalho, esta é também descrita, no mínimo, como não salutar, o médico mal “...dormia e mal comia; e ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão...”[35].

Em meio às discussões que se seguiram ao acréscimo de internações na Casa Verde e que acabaria em rebelião, um dos vereadores comenta que “...se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?´[36].

A caracterização do Louco nas imagens de Portinari

Das ilustrações realizadas por Portinari, algumas descrevem ou apresentam figuras referentes a personagens narrados e caracterizados como loucos [37]. Entre elas o momento no qual Bacamarte explica para o Boticário quais são seus objetivos como cientista em relação aos loucos [Figura 1], o momento no qual é descrita a prisão do Costa, cidadão de Itaguaí cuja população não considera louco [Figura 2], o momento no qual o narrador diz que Bacamarte manda à Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo [Figura 3], o momento no qual Bacamarte vê a esposa defronte ao espelho tentando escolher com qual colar iria a cerimônia [Figura 4], a Casa Verde com loucos internados segundo os novos padrões de loucura [Figura 5]e o alienista quando o texto descreve o momento em que fecha as portas da Casa Verde e se dedica ao próprio tratamento [Figura 6].

Algumas características destas composições apontam a forma de compreensão da loucura. Na Figura 1, por exemplo, a impossibilidade de identificação dos sujeitos como individualizados, mas sua descrição mais próxima à caracterização de tipos, é reflexo da uniformização sob a categoria de louco que a própria classificação impõe; não são indivíduos, mas todos igualmente loucos. Nesta, os rostos semelhantes, os narizes triangulares, os olhos arregalados, mesmo as roupas indiferenciadas apontam para uma uniformidade. Esta mesma proposição pode ser identificada também na Figura 3.

A questão da contenção é um índice importante que acompanha a representação da loucura em uma série de artistas. As prisões aos loucos, os asilos, que tiveram seu início no século XVII, segregam e contém. O separar atrás de uma grade, nesta imagem revela a diferença deste outro trancafiado deste que está fora solto. Embora na narrativas as pessoas internadas e soltas, bem como os critérios de loucura sejam dinâmicos e mutáveis o lugar a internação é bem determinado. É fisicamente separado dos que estão fora, sendo este fora inacessível ao interno... a representação do asilo com grade, evidencia aqui algum nível de periculosidade deste internado, os loucos agressivos, ou a loucura/diferença ela mesma.

A Figura 3 apresenta novamente a uniformização dos internos. O próprio termo uniforme, mesma/única forma, impõe esta homogeneidade como categoria. Na massa de pessoas que caminham à internação, neste momento da narrativa, o que se vê é uma adensada fileira de humanos... como a um campo de concentração. O ambiente para o qual caminham não é nesta imagem descrito com precisão. Aqui o lugar que deve contem a loucura, está ao longe, quase tendendo ao infinito, sendo o percurso, o trajeto igualmente indefinido. As pessoas mais nítidas no primeiro plano são identificadas por linhas conforme se aproximam deste destino, vão aos poucos perdendo de fato suas individualidades para se tornaram uma massa indiferenciada.

O desenho a pena da Figura 4 mostra a loucura de Dona Evarista, denominada como mania suntuária. A esposa diante da própria imagem ao espelho, contemplando alternadamente os dois colares entre os quais deveria selecionar um. Uma mecha de cabelo solto, o vestido flutuante sob o qual não se vê o contato dos pés no chão, como se flutuasse num estado de absorção com a própria imagem, com a aparência suntuosa e valorizada através da beleza das jóias que usaria. Ausência de razão pela dúvida, pela tensão na hesitação de uma escolha. Ao fundo o alienista, a ciência, muito bem apoiado sobre as próprias pernas, com uma mão na cintura e a outra ao queixo, iconografia dos pensadores. Enquadrado pelo vão rigoroso da porta é em oposição ao barroco das formas voluptuosas da esposa junto ao seu espelho.

Na Figura 5, novamente grades, o confinamento, a indiferenciação, a exclusão. O observador-desenhista-narrador está do lado de fora. A superlotação nos cubículos, contrasta com a lisura da parede. O muro, em perspectiva, alinha e enquadra a desordem do que está dentro. Ao fundo a cidade, do outro lado, distante.

A última imagem, que apresenta diretamente um louco, é a que retrata o próprio alienista [Figura 6]. Este de costas, com roupa de época, tem a cabeça abaixada, pesada, e está sozinho ao centro da maior área da composição. A cabeça entre os ombros é imagem recorrente da representação da loucura, principalmente da melancolia, cujo ícone é a obra Melancolia, de Dürer de c.1513. O espaço onde se encontra é neste momento o da própria Casa Verde. Ao fundo, um extenso muro, que inicia e termina de um lado a outro da composição, possui um pequeno portão no qual se vêem os citadinos, agora libertos. Mas inversamente, da mesma forma que o espaço da loucura é nesta imagem descrito como pesaroso e amplo, o espaço da liberdade se aproxima ao da densidade das aglomerações. Embora este aqui o médico trancafiado, parece que os que de fato estão confinados são os citadinos, sendo a imagem do portão muito semelhante às janelas da Figura 5.

Esta inversão do que é norma e do que não é norma, é subvertido aqui na imagem de Portinari, novamente, como apontando para uma ampliação da leitura da situação de confinamento. Quem afinal estaria enfim mais confinado?

Considerações finais

Há elementos da visualidade nas ilustrações de Candido Portinari, em O Alienista, que se traduzem em imagem parte da narrativa, mas há elementos das imagens que agregam novos conteúdos e significados. Isto acontece, por exemplo, da caracterização do alguns ambientes, em simbologias aderidas a alguns personagens, nas vestimentas, nos gestos.

Na descrição dos espaços, há nas imagens a revelação de uma forma de conceber pelo artista/ilustrador que revela também uma forma de compreender a loucura e os espaços de loucura de uma época.

Tomando por base que a lustração a um texto dialoga com ele, constituindo uma dupla verbal-visual, na qual devem ser considerados o suporte, a enunciação gráfica, a visualidade, o texto visual e o diálogo entre texto e ilustração; é possível perceber que as imagens de Portinari revelam de sua interpretação do texto como agrega formas de compreensão da loucura de seu tempo à narrativa de Machado de Assis. O artista é, assim, autor e participante crítico de seu contexto, “...interessa a Machado o jogo de forças que se defrontam em torno da normatização (toda a tragédia de Bacamarte oscila entre os diversos critérios de normalidade que busca colocar em prática) posta em andamento pela ciência, que se imaginava tão nobre e imparcial”[38].

Mas as vezes a amplitude deste contexto conterá elementos de uma tradição maior que a nacionalidade, referida a uma idéia de exclusão mais ampla. É assim a indiferenciação dos uniformizados, a perda de identidade aos que são presos e aos que seguem aos campos de concentração. É possível notar que esta representação dialoga com elementos de uma tradição de representação da loucura nas artes visuais, atualizando formas e significados, mas que também dialoga com elementos e questões de exclusão presentes em iguais formas de alienamento e segregação.

Referencias Bibliográficas

BERNARDI, Francisco. As bases da literatura brasileira: histórias, autores, textos e testes‎. Editora Age, 1999, 224p

ASSIS, Machado de. O Alienista. Editora Imprensa Nacional, 1948, 70p.

_____. O Alienista, Casa Velha. Editora Martin Claret, Coleção a Obra-Prima de cada Autor, São Paulo, 2008, 162p.

ODA, A. M. G. R; DALGALARRONDO, P. História das primeiras instituições para alienados no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 12, n. 3, p. 983-1010, set.-dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000300018>. Acesso em: 15 jul. 2009.

GOMES, Roberto. O Alienista: Loucura, Poder e Ciência. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 145-160, 1993 (editado em nov. 1994).

* UNICAMP/CAPES/FAPESP


[1] ASSIS, Machado, 1948, folha avulsa.

[2] BERNARDI, Francisco. 1999, p.112.

[3] GOMES, 1994, p.147.

[4] ASSIS, Machado, 2008, p.16-17.

[5] ODA, 2005, p.984.

[6] ASSIS, Machado, 2008, p.17.

[7] ASSIS, Machado, 2008, p.17.

[8] ASSIS, Machado, 2008, p.17.

[9] ASSIS, Machado, 2008, p.18.

[10] ASSIS, Machado, 2008, p.23.

[11] ASSIS, Machado, 2008, p.27.

[12] ASSIS, Machado, 2008, p.27.

[13] ASSIS, Machado, 2008, p.27.

[14] ASSIS, Machado, 2008, p.28-29.

[15] ASSIS, Machado, 2008, p.22.

[16] ASSIS, Machado, 2008, p.19.

[17] ASSIS, Machado, 2008, p.20.

[18] ASSIS, Machado, 2008, p.20.

[19] ASSIS, Machado, 2008, p. 21.

[20] ASSIS, Machado, 2008, p.21.

[21] ASSIS, Machado, 2008, p.21.

[22] ASSIS, Machado, 2008, p.21.

[23] ASSIS, Machado, 2008, p.31.

[24] ASSIS, Machado, 2008, p.58.

[25] ASSIS, Machado, 2008, p.58.

[26] ASSIS, Machado, 2008, p.59.

[27] ASSIS, Machado, 2008, p.61.

[28] ASSIS, Machado, 2008, p.65.

[29] ASSIS, Machado, 2008, p.66.

[30] ASSIS, Machado, 2008, p.67.

[31] ASSIS, Machado, 2008, p.67.

[32] ASSIS, Machado, 2008, p.17.

[33] ASSIS, Machado, 2008, p.18.

[34] ASSIS, Machado, 2008, p.21.

[35] ASSIS, Machado, 2008, p.22.

[36] ASSIS, Machado, 2008, p.42.

[37] Uso de imagens autorizadas por João Portinari em 20 de Dezembro de 2008.

[38] GOMES, 1994,p.147.