A arte moderna e as apropriações da arte da América nativa

José D’Assunção Barros [1]

BARROS, José D’Assunção. A arte moderna e as apropriações da arte da América nativa. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/nativismo_jca.htm>.

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Desde o início da Modernidade Artística, os artistas ocidentais têm atentado para a importância de outras alteridades artísticas como fontes para a renovação de sua própria arte. Pode-se dizer que a postura do artista ocidental com relação ao “outro” artístico muda radicalmente com os artistas modernos, quando os comparamos, por exemplo, com os artistas românticos. Para estes, a alteridade constituiu grande interesse - mas nota-se que era sobretudo um interesse temático, encarando as alteridades não-ocidentais como exóticas. Os artistas românticos haviam de fato se apropriado significativamente das artes e imagens de outros povos, mas explorando-as do ponto de vista do exotismo, da curiosidade, da mera coleção de diferenças, da sensibilização romântica diante de uma diferença que lhes era apresentada, e que eles queriam representar através de sua arte. Contudo, foram os modernos que utilizaram a Alteridade como uma verdadeira revolução. Eles se valeram das demais alteridades artísticas para transformar radicalmente a sua própria arte, apropriando-se delas como fontes inspiradoras para adotar novas visões de mundo e para aprender efetivamente novas técnicas, novas maneiras de representar (ou mesmo para ultrapassar o impulso de representação). Os “outros” artísticos, para os modernos, constituíram efetivamente uma base para a constituição de sua nova arte, não sendo mais encarados como meros objetos a serem contemplados.

Ao lado das alteridades artísticas africanas e orientais - amplamente constitutivas de novas fontes de concepções técnicas para os artistas modernos do ocidente - a arte americana, da América nativa, bem entendido, também aparece como uma fonte extremamente significativa para a renovação da arte de origem europeia. Este será o objeto de reflexão e estudo do presente artigo, e, neste particular podem ser mencionadas de saída manifestações as mais distintas - que vão desde as “máscaras cerimoniais” dos esquimós até os calendários circulares dos maias e dos astecas, passando pela arte integradora dos indígenas brasileiros [Figura 1, Figura 2 e Figura 3].

A Alteridade da América é questão bastante complexa, pois na verdade existem duas Américas que se imbricaram em proporções e combinações diversas em cada país do continente americano. Existe a América Nativa - ou as Américas nativas, com realidades culturais que vão dos índios brasileiros às civilizações pré-colombianas dos Andes e da América Central - e existe a América ocidentalizada, produto da colonização europeia e das transformações e adaptações dos padrões europeus para a sua realidade, desde o período colonial até o período posterior onde ela já se apresenta com repúblicas independentes.

Esta última América, com a Europa, já constitui o que habitualmente se denomina “Civilização Ocidental”. Mas na verdade ela inclui todas as influências autóctones que a constituem - sem contar o caso de países como o Brasil e os Estados Unidos, que foram enriquecidos com o influxo dos povos africanos durante o período escravocrata. Para além disto, não raro as correntes da arte europeia adquirem aqui uma feição toda própria, mesclando continuidade e ruptura, tal como podemos observar para o caso da arte extremamente singular do Barroco Colonial no Brasil.

A América, com suas múltiplas reelaborações da Europa e com o seu riquíssimo caldo interno de culturas autóctones, mostra-se aqui como o próprio território da Alteridade Cultural - e se coloca simultaneamente como Extensão e Alteridade em relação à Europa, oferecendo um espaço ainda mais rico de diálogos culturais aos seus próprios artistas. Estes, por fim, não raras vezes contribuíram para a reformulação da arte ocidental contemporânea, e em alguns momentos a Arte ocidentalizada produzida na América mostra-se mesmo pioneira. Um exemplo marcante é certamente o campo escultórico brasileiro, extraordinariamente original desde Aleijadinho e assinalando em momentos posteriores lances de igual pioneirismo, tal como na obra dos artistas neoconcretos dos anos 1960 - que na esteira de Lygia Clark e Hélio Oiticica foram inovadores na elaboração de objetos que expandem o campo escultórico e de instalações que transcendem os gêneros tradicionais da Arte Ocidental.

Antes de prosseguirmos, será útil refletir sobre um ponto que facilitará o entendimento das situações que, no momento atual, poderiam favorecer ou não um novo ciclo de transformações da Arte Ocidental a partir do contato com as alteridades nativas da América.

Pode-se dizer que poucos momentos na História da Arte passaram a oferecer tantos meios e instrumentos para a divulgação recíproca de alteridades como as últimas décadas do século XX. No entanto, e um pouco paradoxalmente, a partir deste mesmo momento o futuro da relação entre Arte e Alteridade tornou-se até certo ponto imprevisível. Neste novo momento da História Cultural que ainda estamos vivenciando parecem estar se abrindo muitas expectativas sobre os futuros desenvolvimentos da Arte que se desenvolve no Ocidente, e que - a partir de fenômenos como a globalização e a expansão acelerada dos meios de comunicação - tem-se incorporado rapidamente a uma arte planetária (às vezes com o risco de exterminar manifestações locais e culturais extremamente importantes). A Arte Ocidental - em particular a que vai se massificando aceleradamente com os meios e recursos da Indústria Cultural - tornar-se-á a arte do Planeta, em prejuízo à riquíssima rede de alteridades locais que se estende de norte a sul e de leste a oeste? Esta indagação é preocupante, porque ela se força a refletir sobre a possibilidade de um empobrecimento cultural que resultaria do cerceamento crescente de expressões artísticas que se acham acantonadas nos interstícios culturais dos vários países do planeta, por vezes sob a forma de manifestações folclóricas singulares.

Os destinos da arte pós-moderna parecem ter convergido para uma incógnita. Assim, é bastante difícil dizer, neste contexto em dinâmica transformação, quem serão os grandes artistas do final do século XX e do início do século XXI que passarão à História, ou se esta ainda conhecerá movimentos como o Impressionismo. o Fauvismo, o Cubismo, o Concretismo, o Neoconcretismo e tantos outros que vimos aflorarem deste os primórdios da modernidade artística. Há autores que argumentam que a história dos grandes movimentos artísticos, com programas mais ou menos coerentes e que conseguiram impulsionar a história da arte numa ou noutra direção, estaria terminada. Há mesmo aqueles que sustentam que teria chegado a era do Fim da Arte, tal como a conhecemos, em alguns casos se utilizando da imagem particularmente drástica da “Morte da Arte”[2].

Não se argumenta neste caso que no futuro não haveria mais obras de arte. Segundo autores como Arthur Danto (1997), estas continuariam sendo produzidas, mas não mais seria possível compreendê-las dentro de uma história coerente - uma história de movimentos com programas definidos, de manifestos unificando grandes setores de artistas. Talvez, com um novo tipo de história da arte diferente daquela que até as últimas décadas do século pôde ser conhecida no Ocidente, já não mais haja grandes gênios como Monet, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Matisse ou Picasso - mesmo porque a divulgação da imagem de genialidade depende de certa luz que lhe empresta o Mercado e toda uma rede institucional da Arte que é configurada pelo sistema de Museus, de Editoras de livros de Arte, de colecionadores e críticos que ajudam a definir os rumos da Arte, em todos estes casos incidindo complexos fenômenos de mídia que até então se valeram da Arte como um produto que movimenta enormes quantias. Este sistema, de acordo com alguns autores, não será preservado eternamente, e a sua supressão ou redefinição poderá contribuir para redefinir também a natureza da Arte no Ocidente.

Os rumos da história da Arte são, portanto, imprevisíveis, face a um contexto pós-moderno cada vez mais complexo. De qualquer modo, é possível supor que a alteridade continuará beneficiando a renovação da História da Arte Ocidental de forma bastante significativa, e poderemos até mesmo arriscar algumas especulações acerca de onde virá esta alteridade com maior força e penetração nas próximas décadas.

Se a Arte Oriental e a Arte Africana foram as grandes vedetes do século XX, gerando modas diversificadas em sucessivas gerações de artistas ocidentais, a ‘Arte Nativa’ da América não parece ter sido até então explorada na mesma proporção das duas alteridades anteriores, e pode vir a se constituir desta maneira em uma fonte extremamente relevante para os artistas ocidentais nas próximas décadas. Existem dois caminhos bastante interessantes nesta direção. No primeiro deles, as novas gerações de artistas ocidentais podem se inspirar na Arte dos povos nativos das Américas, e em um segundo caminho os artistas oriundos diretamente destas sociedades - ou de grupos delas remanescentes - podem ser conclamados a produzirem uma Arte para ser assimilada pelo Ocidente.

Antes de examinarmos estes dois caminhos de assimilação da Alteridade Nativa, é preciso considerar mais uma vez que o tecido de Alteridades que se estende sobre a América é extremamente rico e complexo, e não apenas porque a América tornou-se encruzilhada de culturas e civilizações a partir da chegada dos europeus no século XVI (em alguns casos trazendo ainda para a América, sob a forma social da Escravidão, parte da humanidade africana). Na verdade, a América - à altura da chegada dos portugueses e espanhóis, e posteriormente dos ingleses e franceses - já possuía uma rede interna de alteridades bastante complexa.

De saída, a América comportava à altura da chegada dos invasores europeus dois grandes padrões de alteridades. De um lado, havia os povos ágrafos - como a diversificada trama de nações indígenas que habitavam o Brasil e como as sociedades dos chamados “peles vermelhas” que habitavam a América do Norte. De outro lado, a América também conhecia civilizações urbanizadas e bem organizadas em termos de divisão de trabalho, e que concomitantemente possuíam meios de comunicação através de sistemas pictográficos e ideográficos. Esse era o caso das grandes civilizações meso-americanas e sul-americanas, dentre as quais poderíamos indicar os Astecas, os Incas, ou os Maias.

Também é notório que estas civilizações que muitas vezes são chamadas de “pré-colombianas” - não sem trazer esta designação um forte componente eurocêntrico - foram francamente dizimadas, restando apenas uma multidão de indivíduos remanescentes, a partir daí privados de suas cidades e instituições, e em outros casos algumas comunidades que passaram a ser exploradas e marginalizadas nos séculos posteriores ao que se passou a chamar de “Conquista da América” pelos tradicionais livros de História escritos no Ocidente. Hoje, os descendentes destas grandes civilizações pré-colombianas - que se misturam à população de países como o México, o Chile ou o Peru - são como que depositários de uma cultura de resistência, mas é óbvio que estas culturas já se interpenetraram muito com padrões ocidentais e que já não podemos nos referir a estas resistências culturais como as próprias culturas Astecas e Incas dos tempos pré-colombianos.

Os testemunhos destas antigas civilizações - em forma de artefatos, estruturas arquitetônicas, pinturas em pele e papel, e também textos registrando poemas e relatos que circulavam no âmbito oral - também foram em muitos casos destruídos, embora possamos contar com os resgates arqueológicos. Desafortunadamente, para citar como um exemplo bastante relevante o caso das civilizações meso-americanas, a partir de 1520 começou a ocorrer uma demolição sistemática de templos em regiões como o Vale do México e Tlaxcala; e a partir da mesma época também começaram a ser confiscadas todas as “pinturas” meso-americanas que pareceram suspeitas, de um ponto de vista ligado ao âmbito religioso, aos franciscanos e outras ordens religiosas europeias que se envolveram nos processos de evangelização forçada destas populações. Quantos objetos da cultura material e visual destas grandes civilizações não se perderam neste implacável processo!

Mas atenhamo-nos à questão da Alteridade. Conforme dizíamos, a América “pré-colombiana” (expressão um tanto questionável porque traz a reboque o ponto de vista do conquistador europeu) já trazia à altura do século XVI a sua complexa rede de alteridades. Se prosseguirmos com o exemplo da Meso-América, iremos perceber no México que precede à chegada dos espanhóis a convivência de troncos culturais bem diferenciados, destacando-se os povos náuas (populações que falavam o náuatle, como a dos astecas), os zapotecas, os mixtecas, os tarascos. Havia também as ressonâncias culturais de civilizações já extintas, como a dos toltecas e a dos olmecas. Existia desta maneira um caldo cultural muito rico de alteridades sincrônicas e diacrônicas em regiões como esta.

Algumas destas culturas possuíam grande riqueza de gêneros que podemos aproximar aos da arte ocidental ou oriental, tanto no que se refere ao âmbito da expressão oral - com diversificados gêneros enquadráveis nas modalidades associáveis ao “Canto” e ao “Relato” - como no âmbito pictográfico ou da expressão visual. Neste último caso, o objeto que reputamos “artístico” e o meio de comunicação e registro de memória se interpenetram. Para nos atermos ao exemplo de culturas náuas como a dos astecas, o âmbito da expressão visual intermesclava pelo menos três tipos de procedimentos ou linguagens: um tipo de representação de cunho fonético menos importante, um padrão de representação “pictográfica” (representação estilizada de objetos e ações - como pássaros, plantas, cenas religiosas, guerras, descrições mitológicas) e um padrão de representação “ideogramático”, que através de certos ideogramas evocava qualidades e conceitos que poderiam ser associados ao objeto figurado. Serge Gruzinski (2003), que estudou o imaginário meso-americano e seus meios de expressão através dos “glifos” pictográficos, cita como exemplos de ‘ideogramas’ o olho que representa a visão, as pegadas que representam a viagem, a dança que representa um deslocamento no espaço, os escudos e flechas que designam a guerra. Estes padrões - representação direta de uma cena específica e representação traduzida em símbolos ideogramáticos - alternam-se nas “pinturas” náuatles. Tal como ressalta o autor, o “pictograma” denota, o “ideograma” conota[3].

Para a nossa discussão sobre Arte Ocidental e Alteridade, importa observar - a partir da percepção destas possibilidades “pictogramáticas” e “ideogramáticas” - que a cultura visual dos meso-americanos comportava tanto a possibilidade da descrição visual da cena como a da simbolização. A expressão visual através de ideogramas, por outro lado, corresponde a um padrão de mesmo tipo em relação ao que é recorrente em certas civilizações orientais. Assim como os ideogramas chineses começaram a ser reapropriados pela Arte Ocidental a partir dos anos 1960, nada impedirá que, de maneira análoga, as várias contribuições visuais das sociedades pré-colombianas (já históricas) também venham a servir de inspiração ou modelo para artistas ocidentais no futuro. Pouco foi feito nesta direção, e neste sentido a América ainda está para ser descoberta. Fontes meso-americanas e incaicas - através de códices, calendários, “pinturas”, ou ruínas das grandes cidades pré-colombianas que foram dizimadas pelos conquistadores espanhóis - estão talvez à espera de artistas que vejam nelas um campo tão rico de materiais renovadores como os fauvistas e cubistas o viram nas artes africanas.

Avançaremos, a seguir, na análise do segundo tipo de alteridades que já estavam abrigadas na América à época da Conquista. Para além das já mencionadas civilizações pré-colombianas, uma grande quantidade de culturas ágrafas habitava as três Américas àquela época. Muitas destas sociedades sobreviveram, embora a duras penas, e hoje elas podem ensinar aos artistas ocidentais novos padrões de representação e sensibilidade de maneira análoga ao que ocorrera com a Arte Negra no decurso do século XX.

De fato, o que foi dito a respeito das leituras ocidentais da Arte Negra - pelo menos em boa parte - poderia se adaptar a uma análise da assimilação ocidental da arte dos povos indígenas brasileiros. As artes indígenas do Brasil têm despertado a sensibilidade de homem ocidental desde o século XVI - a princípio com o mesmo sentimento de curiosidade e de fascínio pelo exótico que vimos para o caso das artes africanas. Pode-se dizer que o interesse pela arte indígena brasileira através do viés do exotismo remonta aos relatos do viajante francês Jean de Lery no próprio século em que os colonizadores portugueses instalaram-se no Brasil, e atinge seu auge no século romântico, com as expedições europeias de pintores viajantes que - como Debret ou Rugendas - retrataram visualmente os índios brasileiros, mas também com os estudiosos e eruditos que se empenharam em anotar exemplos de sua música tal como fizeram Spix e Martius[4]. Apenas posteriormente as artes indígenas passariam a ser compreendidas a partir da sua virtualidade formal e, a partir dos anos 1960, do seu aspecto interacional.

Na verdade, as artes indígenas podem oferecer muitas lições para o artista moderno. Com relação à invenção formal e aos meios e materiais empregados, as artes indígenas apresentam novas singularidades que se concretizam por exemplo nas diversas maneiras de manipular pigmentos, plumas, fibras vegetais, argila, madeira, pedra e outros materiais. Ampliam-se as possibilidades de suporte, e - para além das cuias, cestos, cabaças, redes, remos, flechas, bancos, máscaras, esculturas, mantos, cocares - os próprios objetos naturais, uma árvore ou uma montanha, ou mesmo o corpo humano, podem se apresentar como objetos para uma ação análoga à artística, que os decora, perfura, esculpe, já se notando que estes últimos aspectos começam a inspirar artistas ocidentais diversos[5].

O caminho dos artistas visuais brasileiros que se deixam renovar pelo contato com a arte ou as vivências indígenas tem, contudo, uma história relativamente recente. Se remontarmos ao início do século XX, encontraremos pintores já modernos que representaram temáticas indígenas, mas dificilmente encontraremos artistas plásticos que já desde aquela época tenham se deixado influenciar pela arte indígena com vistas a uma renovação efetiva dos seus próprios meios (e não apenas de seus temas).

Tarsila do Amaral, por exemplo, é uma referência importante em algumas de suas obras - mas mais particularmente no que se refere ao resgate visual da mitologia indígena. Associada ao movimento brasileiro modernista - e particularmente às ideias da Antropofagia Cultural de Oswald Andrade - a pintora paulista soube retratar cenas diversas da multiplicidade cultural brasileira e se tornou célebre o seu emblemático quadro Abaporu, que significaria em tupi-guarani “o homem que come” [Figura 4]. Este quadro tornar-se-ia um símbolo da Antropofagia Cultural proposta por Oswald de Andrade, a da América que deglute da Europa os produtos culturais que a interessam e os reelabora de acordo com a sua própria realidade, e que além disto também deglute culturalmente as suas alteridades internas: a cultura indígena, as influências afro-brasileiras, as expressões culturais regionais, o folclore.

Entre os artistas modernistas dos anos 1920, a imagem do “Índio” era utilizada com bastante frequência para simbolizar o “Brasileiro”. Contudo, a metáfora era muito mais empregada como uma referência à Cultura Nacional - frente ao universo cultural exclusivamente europeu - do que como uma referência à arte nativa propriamente dita. Na verdade, poucos artistas plásticos do período, e mesmo das décadas seguintes, foram além de uma apropriação temática da imagem de nativo. Muito raramente se permitiram que a arte nativa contribuísse para renovar efetivamente os meios da arte ocidentalizada que faziam, tal como havia ocorrido com os fauvistas e cubistas com a Arte Africana. Em pintores como Tarsila do Amaral, o índio entra muito mais como um símbolo, como o índice de uma postura cultural. Em Urutu [Figura 5], por exemplo, tem-se o símbolo da assustadora cobra que é capaz de deglutir, e que no quadro de Tarsila sustenta um gigantesco ovo que simboliza a renovação cultural modernista:

Se as artes visuais brasileiras da primeira metade do século pouco avançam em termos de uma exploração meramente temática ou simbólica do universo indígena, já a Literatura oferece mais exemplos de tentativas concretas de aproximações em relação à sensibilidade indígena, sendo o romance Macunaíma de Mário de Andrade a referência mais importante para o mesmo período em que Tarsila do Amaral estava pintando o seu Abaporu. Mas de modo geral pode-se dizer que a grande preocupação dos modernistas dos anos 1920 era a de estabelecer uma arte simultaneamente moderna e nacional, fundada na afirmação da brasilidade como um todo.

Os dois grandes ideólogos do modernismo brasileiro desta época foram os escritores Oswald de Andrade e Mário de Andrade, e é a partir do pensamento destes dois Andrades que o movimento iniciado com a semana de Arte Moderna em 1922 teve uma definição cada vez mais clara do tipo de interação entre ‘modernismo’ e ‘nacionalismo’ que estava sendo proposto. Por um lado rejeitava-se o antigo nacionalismo, romântico e conservador (isto é, não compromissado com a busca de novas formas de expressão e com uma permanente pesquisa estética). Por outro lado rechaçava-se veementemente o colonialismo cultural, erigido às custas de “pastiches da arte europeia” (para utilizar uma expressão de Mário de Andrade). Fosse o pastiche dos modelos europeus românticos e conservadores ou fosse o mero pastiche das novidades modernas trazidas da Europa, tudo isto era rejeitado em favor do verdadeiro tipo de modernismo que interessava: um modernismo apropriado à consolidação de uma expressão genuinamente brasileira.

O Modernismo tinha de lidar, portanto, com uma eventual tensão entre os pólos nacionalista e modernista, e foi por isto que Oswald de Andrade elaborou a grande metáfora da Antropofagia Cultural[6]. Na prática antropofágica que era realizada pelos nativos brasileiros à época do “Descobrimento” do Brasil, os índios devoravam presas humanas motivados pela crença de que assim poderiam incorporar os atributos positivos das vítimas sacrificiais, ao mesmo tempo em que excretariam o que não tinha valor ou serventia[7]. A partir desta metáfora e desta concepção, Oswald de Andrade expressa a ideia de um ‘nacionalismo aberto’, que não fecha os olhos ao que vem de fora; ao contrário, o antropófago cultural pratica um ato de degustação que aceita todas as influências, e que as reelabora de maneira singular e nova, integrando os seus aspectos aproveitáveis a um corpo cultural que já traz as suas singularidades; ao mesmo tempo, são desprezados os aspectos inadequados da cultura deglutida. Desta maneira, a prática cultural nacionalista-antropofágica assimila tanto elementos internos (autóctones) como elementos externos, e os reelabora em um produto novo, adequado ao povo ou ao público que irá consumi-lo.

Muito importante na concepção nacionalista de Oswald de Andrade é a ideia de que é preciso ir em busca da verdadeira brasilidade, para reelaborá-la criativamente. Por isto o autor do Manifesto Antropófago deprecia “os índios que figuram nas óperas de Alencar cheios de bons sentimentos portugueses” (vale dizer, os índios que, na sua ópera O Guarani, Carlos Gomes tinha posto a bailar ao som de música italianizada). Daí que, já parodiando antropofagicamente o Hamlet de Shakespeare, Oswald lançasse uma provocativa indagação: “Tupi or nor tupi? ... that is the question”.

Este ponto nos remete ao outro grande ideólogo do movimento modernista - o escritor e estudioso paulista Mário de Andrade. Na verdade, o modernismo brasileiro da década de 1920 apresentou-se simultaneamente como antropofágico e endofágico. Isto é, se a obra modernista deveria estar aberta aos elementos externos com vistas a degluti-los para depois os reelaborar (sua faceta antropofágica), ela também deveria estar aberta à preocupação de captar os elementos autóctones constitutivos da identidade nacional (sua faceta endofágica).

O romance Macunaíma, obra-prima de Mário de Andrade, é de certo modo isto: o Brasil sendo engolido por ele mesmo. Para realizar este projeto, o personagem central do livro - Macunaíma - é apresentado como um “herói sem caráter”[8]. Grande síntese do povo brasileiro, ele é um índio amazonense que nasceu preto e virou branco, e que entra em choque com a tradição e a cultura europeia materializada na cidade de São Paulo. O livro mesmo é uma grande bricolagem onde Mário de Andrade registra, recria e superpõe diversos materiais folclóricos - tudo isto através de uma narrativa que é ela mesma bricolada, já que mescla a língua culta e a coloquial, o nacional e o regional, o oral e o escrito, o rural e o urbano, o norte e o sul[9]. Macunaíma é neste sentido um romance polifônico (um romance onde cantam muitas vozes).

Mário de Andrade escreveu Macunaíma, o herói sem caráter valendo-se de extrema inventividade e liberdade de criação no tratamento de materiais folclóricos coletados por ele mesmo, mas depois transfigurados, recriados, deslocados no tempo e no espaço, superpondo registros culturais diversos e pondo-os a dialogar. Se nos for permitida esta comparação, ele agiu - diante do material folclórico a ser apropriado pelo artista criador - de forma análoga à que foi empregada na mesma época pelo compositor Heitor Villa-Lobos ao elaborar os seus Choros e algumas outras composições do seu período nacionalista modernista, a começar pelo surpreendente Noneto[10]. Como não comparar esta última obra, que traz como subtítulo “impressões rápidas de todo o Brasil”, a uma daquelas rápidas e estranhas fugas de Macunaíma que ocorrem no livro de mesmo nome, onde o herói acaba percorrendo praticamente o Brasil inteiro de um a única carreira?

A Música é, aliás, a única modalidade de Arte onde a cultura indígena pôde realmente ser assimilada como fator de transformação para os artistas ocidentais desde princípios do século XX, e não meramente como material temático. Com isto, queremos dizer que o universo indígena não foi somente assimilado como uma narrativa mítica que se torna roteiro para um poema sinfônico, ou então como uma historieta repleta de índios que se torna libreto para uma ópera (tal como no século anterior havia ocorrido em algumas das óperas de Carlos Gomes). Muito além disto, foi precisamente sob a égide de Villa-Lobos que uma série de compositores brasileiros nacionalistas passaram a incorporar como meios e materiais as próprias escalas e melodias indígenas, ou os seus ritmos e timbres, não raramente incorporando alguns de seus instrumentos na paleta sinfônica.

O indianismo musical direcionado para uma recuperação efetiva da ambiência musical nativa encontrou em Villa-Lobos  um dos seus maiores criadores. Além do belíssimo poema-sinfônico Uirapuru, que explora mais a temática indígena do que propriamente a sua contribuição sonora, a exploração sistemática de conteúdo musical extraído das tribos indígenas brasileiras aparece explicitamente em inúmeras obras de Villa-Lobos. Entre elas, podemos citar a suíte Descobrimento do Brasil (música para um filme com o mesmo nome), ou ainda o poema-sinfônico Mandu-Çarará, para não mencionarmos os Três Poemas Indígenas para canto e orquestra que trabalham mais especificamente sobre melodias indígenas recolhidas no princípio do século pela Missão Rondon (“Canindé Ioune”, “Teiru”, “Iara”). Da mesma forma, seria possível citar as Canções Indígenas para canto e piano, e as Canções Típicas Brasileiras.

Mas a obra-prima da assimilação da música indígena - e na verdade da assimilação de uma série de outros materiais folclóricos trabalhados dentro de um espírito francamente modernista - é certamente a série dos Choros, composta por Villa-Lobos na mesma década em que Oswald de Andrade estava desenvolvendo a sua teoria da Antropofagia Cultural e em que Mário de Andrade escrevia Macunaíma. As obras da série que exploram mais amplamente os materiais indígenas são o Choros n° 3 e o Choros n° 10, e é neles que nos concentraremos.

Antes de mais nada, é preciso compreender que os Choros propostos por Villa-Lobos - deslocados e recriados para o âmbito da música erudita e para novas possibilidades instrumentais - correspondem na verdade a um gênero novo. É fato que eles partem, como inspiração originária, do Chorinho - modalidade da música popular que surge nos meios urbanos do Rio de Janeiro em fins do século XIX. Mas o deslocamento que Villa-Lobos impõe a este gênero, transferindo-o para a Música de Concerto, torna-se intensamente transfigurador nas mãos deste compositor que vivia na década de 1920 o seu momento mais modernista. Quem for aos Choros de Villa-Lobos em busca daquele chorinho típico que se tornou patrimônio da música popular brasileira irá se surpreender encontrando uma música extremamente moderna e que elabora materiais folclóricos diversos - também os extraídos do folclore urbano e do ambiente dos chorões do início do século, é verdade, mas não só estes. Dentre os materiais que fornecerão a matéria prima a partir da qual Villa-Lobos cria os seus Choros encontraremos também materiais ameríndios, rurais, regionais de diversas partes do Brasil. Chorinho mesmo, sem tirar nem pôr nada do que fariam os chorões com quem Villa-Lobos conviveu no início do século, é só o Choros n° 1, escrito para violão solo, que ele compõe em homenagem a Ernesto Nazareth.

Esta peça é ao mesmo tempo uma homenagem e um ponto de partida, pois a ideia que organiza a série dos Choros é a de ir gradualmente desenvolvendo a complexidade. Deste modo, Villa-Lobos passa do chorinho ao violão para os choros de câmara, e daí para os choros sinfônicos, notando-se ainda que ele vai experimentando cada vez mais a prática de colocar em diálogo fontes folclóricas de origens diversas (procedimento que aqui chamaremos de ‘tratamento dialógico do folclore’) e também a possibilidade de transfigurar estas fontes folclóricas. Deixa bem claro que Villa-Lobos tinha consciência de que estava criando um novo gênero o fato de que ele mesmo, em algumas oportunidades, teria procurado esclarecer os propósitos da série: Choros representam uma nova forma de composição musical, no qual são sintetizadas as diferentes modalidades da música brasileira indígena e popular, tendo por elementos principais o ritmo e qualquer melodia típica de caráter popular que aparece vez por outra, acidentalmente, sempre transformada segundo a personalidade do autor. Os processos harmônicos são, igualmente, uma estilização completa do original”[11].

Os Choros (os de Villa-Lobos) são apresentados então como “uma nova forma de composição musical”. De partida, existe uma relação de continuidade e de ruptura em relação ao choro tradicional: o nome da série, o fato de que ela se inicia com um autêntico chorinho, a dedicatória da primeira peça a Ernesto Nazareth, a escolha do violão neste momento inicial - tudo isto estabelece uma referência de continuidade, uma espécie de reconhecimento, digamos assim. Mas a afirmação de que se trata de uma nova forma de composição musical introduz também um elemento explícito de ruptura, ao mesmo tempo em que convida outros músicos eruditos a explorarem um dia o novo gênero que o autor está criando.

Os Choros, sempre referidos no plural, também são apresentados como um gênero-síntese: o gênero endofágico por excelência, que trabalha com materiais diversos extraídos do folclore e da música popular e que se abre para uma radical recriação, já que sempre “transformados segundo a personalidade do autor”. Villa-Lobos ainda faz questão de referenciar explicitamente, nesta definição, que os elementos a serem sintetizados e transfigurados não pertencem apenas à música popular urbana do Rio de Janeiro, mas também a materiais indígenas. O próprio Choros n° 3, que este texto prefacia, incorpora como um dos seus materiais de trabalho a melodia indígena Nozani-ná, e outras mais aparecerão, sobretudo no Choros n° 10.

Posteriormente iria surgir outra definição na qual Villa-Lobos parece complementar a acima transcrita, segundo a qual se afirma que a maneira de compor os Choros está “baseada nas manifestações sonoras dos hábitos e costumes dos nativos brasileiros, assim como nas impressões psicológicas que trazem certos tipos populares extremamente marcantes e originais”[12].

A palavra “nativos”, neste caso, mostra-se como uma abertura não apenas para os nativos indígenas, mas para o status de nativos que todos os brasileiros detém na sua múltipla diversidade. E - o que é particularmente importante - Villa-Lobos acrescenta com esta definição a possibilidade de os Choros se abrirem também para uma experiência descritiva e subjetiva, a partir da qual o compositor poderia investir na captação de impressões psicológicas do país e na retratação de tipos populares. Com isto, Villa-Lobos abre extensamente um leque de possibilidades para que o novo gênero funcione como um lugar privilegiado para a pesquisa (objetiva e subjetiva) e para o exercício de uma extrema liberdade de criação musical. Os Choros serão a partir daqui a dimensão para onde confluem Nacionalismo e Modernismo, tal como naquele momento Villa-Lobos os concebia.

Na grande bricolagem proposta por Villa-Lobos, o chorinho tem a sua voz. Mas também a têm as batucadas afro-brasileiras e os cantos tristes dos escravos, os ponteios e cirandas, as marchinhas e coretos de banda, os sambas e as baterias das escolas de samba, os cantos sertanejos do interior e as serestas suburbanas. Também marcam a sua presença os temas indígenas, sejam os recolhidos pelos viajantes europeus do período colonial ou pelas missões indigenistas já em período republicano[13]. Com relação aos Choros de Villa-Lobos, pode-se dizer que nada do que era folclórico lhe foi estranho.

Mas estes mesmos Choros também deglutem a música europeia. Realizam aquele projeto antropofágico com que sonhavam Oswald de Andrade e o Mário de Andrade de Macunaíma. A Europa musical é absorvida a partir da sua diversidade de configurações modais, tonais e politonais, das suas experiências de polirritmia, quando não irrompe de repente uma melodia pós-romântica que remete a períodos anteriores. Quanto ao plano rítmico aparecem as superposições de distintos ritmos internos (procedimento que na música moderna é denominado polirritmia, e que lida por exemplo com a possibilidade de contrapor uma voz que realiza uma divisão binária de notas e outra que concretiza uma divisão ternária). Apoios rítmicos deslocados por sinais de acentuação também dialogam ou contrastam em diversas passagens com o ritmo métrico do compasso. Enfim, o que há de mais moderno na música europeia é reelaborado por Villa-Lobos de um novo modo.

A assimilação da Europa e do Brasil, em um único gesto, encontra portanto o seu ponto máximo nesta série simultaneamente antropofágica e endofágica. Da mesma maneira, as composições da série dos Choros são pontuadas por vislumbres das impressões psicológicas brasileiras, conforme foi projetado em uma das definições do próprio compositor para o novo gênero que estava criando. Os cantos dos pássaros, as florestas, as paisagens sertanejas, as impressões da vida mundana com os seus malandros e capadócios, está tudo ali à espera de ser escutado. Daí que os Choros não pesquisam apenas sons, mas também imagens e estados psicológicos. Este é o seu projeto.

Tudo isto, enfim, é transfigurado por uma sensibilidade musical extremamente pessoal e única que é a de Villa-Lobos. Tal como observou o próprio compositor em determinada oportunidade, ele escrevia música “obedecendo a um imperioso mandato interior”[14]. Não foram raras no período modernistas as oportunidades em que afirmou simultaneamente a sua independência em relação à Europa musical e ao folclore brasileiro academicamente sistematizado, e a sua própria obra na década de 1920 é eloquente neste ponto. Em determinada oportunidade, Villa-Lobos teria afirmado: “o folclore sou eu”. Nesta frase - em que talvez parodia “o estado sou eu” proferido por Luís XIV do alto da sua monarquia absoluta - Villa-Lobos deixa entrever que o seu modo de tratamento do folclore musical é outro que não o dos compositores acadêmicos: seus métodos são o do ‘folclore imaginário’, o do tratamento dialógico do folclore, o da transfiguração do folclore[15]. Ele consegue, como ninguém, realizar o projeto de produzir uma música que é simultaneamente planetária, ocidental, nacional e pessoal - uma música que se impõe à universalidade e que no entanto é singular e única.

Os Choros que nos interessam para um exame da assimilação da música indígena como fatores de transformação e renovação dos meios empregados na Música de Concerto são os Choros n° 3 e o Choros n° 10, e é neles que concentraremos nossa atenção. O Choros n° 3 (1925) abre-se com uma melodia indígena que ainda retornará muitas vezes na obra de Villa-Lobos:

Esta melodia recolhida dos índios parecis no início do século XX foi muito explorada pelos compositores brasileiros nacionalistas, e não apenas por Villa-Lobos. Lorenzo Fernández, por exemplo, a utiliza em seu balé Imbapara. Quanto a Heitor Villa-Lobos, faz desta melodia a enfática abertura deste Choros n° 3 que leva o subtítulo bastante sugestivo de “Pica-pau”, e que avança audaciosamente na pesquisa de novos timbres e sonoridades. Em termos de instrumentação, abrem-se três alternativas, pois de acordo com a partitura a composição destina-se a um coro masculino e a um septeto de sopros (clarinete, saxofone, fagote, três trompas, trombone) mas também, opcionalmente, a cada um destes dois conjuntos isolados. Mas a verdade é que a execução exclusivamente instrumental perderia muito, pois Villa-Lobos logrou obter neste Choros alguns afeitos onomatopeicos muito interessantes com as vozes do coro. De fato, os instrumentos aparecem frequentemente nesta composição como enriquecedores dos efeitos vocais ou como aclimatadores do trabalho vocal. Retirar as vozes humanas seria certamente empobrecer as possibilidades sonoras desta obra.

Do ponto de vista estrutural, pode-se dizer que a forma deste Choros n° 3 compreende três seções bem definidas. A seção inicial abre-se com a enunciação do já mencionado tema indígena Nozani-ná - que no início do século havia sido coletado por Roquete Pinto entre os índios parecis - e mais adiante aparece um segundo tema também oriundo da música dos parecis, o Noal-anauê (tema que será retomado posteriormente na 3a suíte do Descobrimento do Brasil). Estes temas recebem, nesta primeira seção da música, um tratamento polifônico: circulam pelas várias vozes do coro masculino estabelecendo um diálogo que, neste caso, articula dois temas indígenas diferentes em um mesmo momento musical.

Podemos qualificar este procedimento como mais uma das experiências de ‘tratamento dialógico do folclore’ que foram tão caras a Villa-Lobos, embora aqui ainda se trate de dois temas oriundos de uma mesma realidade ou ambiente folclórico (alguns dos choros subsequentes registram mesmo a mistura de temas oriundos de realidades distintas, tal como ocorrerá no Choros n° 10 com o entrelaçamento de um tema extraído do folclore indígena e de um tema do populário urbano).

A seção central é aquela onde Villa-Lobos empreende a já mencionada experimentação onomatopeica que enriquece extraordinariamente este choros. Joga com a sonoridade das sílabas emitidas pelas vozes corais, e também experimenta um curioso efeito vocal de glissando nas vozes corais superiores que sugere um silvo de vento. O uso de glissandos, não apenas aqui como em outros pontos da peça, é também uma alusão ao modo de cantar dos nativos brasileiros.

Villa-Lobos introduz também nesta parte da música o ritmo que imita um pica-pau, e é esta a origem do subtítulo atribuído ao Choros n° 3[16]. Aqui Villa-Lobos sintoniza-se com o objetivo de produzir nos Choros também um registro das impressões de ambientes brasileiros diversificados: no caso, o ritmo do pássaro brasileiro é de certo modo um caminho para a evocação do ambiente das florestas. Por outro lado, é bom lembrar que este mesmo ritmo é a base de uma dança nordestina que também leva este nome, e isto autorizaria a falar novamente no ‘folclore dialógico’. Nesta mesma seção do Choros n° 3, e também na última, o Nozani-ná ainda volta diversas vezes transfigurado, em um desenvolvimento contínuo. Com uma citação final à palavra Brasil (produzida pela fusão entre “pica-pau” e “pau-brasil”, que dá “pica-pau-brasil”), encerra-se este choro que, do ponto de vista temático, é predominantemente inspirado no folclore ameríndio[17].

Se o Choros n° 3 realiza um brilhante trabalho de ‘tratamento dialógico do folclore’, é no Choros n° 10 (1926) que este procedimento surgirá de maneiras ainda mais inventivas e surpreendentes.

O Choros n° 10 - considerado a obra-prima da série - inicia-se com um acorde fortíssimo que parece querer anunciar o trabalho apoteótico que será escutado a seguir. Em poucos compassos iniciais já se anuncia o excepcional espírito de síntese e sincretismo que virá: sob uma nota aguda sustentada pela trompa, uma flauta (e depois um clarinete) imita o canto do pássaro ‘azulão da mata’ e compartilha o mesmo espaço sonoro com a evocação de uma grande viola popular que aparece através das cordas em pizzicati (com o apoio da harpa). Eis aqui, mais uma vez, o recurso de unir vários instrumentos (os violinos, as violas, os violoncelos e a harpa) para formar um grande instrumento virtual. Quanto à melodia do azulão, abaixo reproduzida, é apenas um signo da Natureza abundante e diversificada do país - esta que neste choros representará um contraponto ao mundo humano igualmente diversificado:

Como se disse, estes compassos iniciais constituem apenas uma sinalização enfática do que virá. O espírito sincrético dos choros será levado ao extremo nesta composição que representa de fato o apogeu da série: ela desenvolve até às últimas consequências o programa de síntese musical ambicionado por Villa-Lobos na sua década modernista. Ali veremos a superposição dialógica de cantos indígenas, do populário rural e urbano, e também de uma série de cantos de pássaros brasileiros que Villa-Lobos anotava e procurava traduzir na linguagem dos instrumentos acústicos. Enfim, todos os ambientes sociais e culturais, e a própria natureza cantante entrelaçam-se neste magnífico choros.

Para realizar tal propósito, e avançar ainda mais no crescendo de incremento instrumental que acompanha o aumento da numeração dentro da série, o compositor destina a este choros uma orquestra sinfônica e um coro misto. Vários dos recursos que foram utilizados em outros choros também reaparecem partilhando este novo espaço sonoro. Apenas para dar exemplos, destacamos o tratamento instrumental do coro a partir de efeitos onomatopeicos, tal como já havia sido experimentado no Choros n° 3, ou a combinação de vários instrumentos para simular um grande instrumento virtual (como a evocação de um grande violão ou um grande cavaquinho a partir das cordas em pizzicati, como ocorre no Choros n° 8). Em atenção à ocorrência de uma retomada sintética não apenas de elementos estéticos anteriores, mas também de soluções técnicas empregadas antes, também se sugere que este choros constitui espécie de síntese de todos os outros[18].

Quanto à forma (estrutura da obra), o Choros n° 10 possui duas grandes partes encadeadas: (1) uma grande Introdução Orquestral (que por sua vez pode ser subdividida em uma seção de andamento mais animado e caráter mais primitivista e uma outra seção de andamento mais lento e clima mais impressionista); e (2) uma grande Segunda Parte, que é assinalada pela entrada do coro e que vai progressivamente caminhando para a apoteose final[19].

A Introdução Orquestral é produzida pelo confronto de duas grandes ideias musicais: (1) de um lado, a simulação de ‘ambientes de pássaros’ através de instrumentos de sopro e efeitos especiais, e (2) de outro lado, a emergência de um enfático tema indígena que conduz a organização desta primeira parte. Estes dois fios condutores que se interpenetram - a passarada e o indígena - admitem ainda o concurso de inúmeros outros temas e referências musicais, de modo que esta primeira parte anuncia-se mesmo como um grande modelo de tratamento dialógico do folclore[20].

O tema indígena desta seção é uma transfiguração da canção de ninar Mokocecê-maká, dos índios parecis (no caso, uma transfiguração que é elaborada a partir de uma diminuição de valores). Com relação à ideia de reproduzir ou evocar cantos de pássaros brasileiros a partir dos instrumentos acústicos, isto ocorre em diversas oportunidades (frequentemente encimando os motivos parecis). Da entrada solitária de uma flauta que imita o azulão da mata no início do Choros, chega-se mais adiante a um verdadeiro ambiente de passarada que é produzido pelo flautim, pelo oboé, pelo clarinete (muitas vezes explorando recursos técnicos como o frulatto, um trêmulo que pode ser obtido com a língua em alguns instrumentos de sopro).

Além dos temas indígenas e pássaros, a Introdução Orquestral do Choros n° 10 é urdida com inúmeros outros temas que Villa-Lobos cria originalmente ou elabora como “folclore imaginário”. Apenas como um rápido registro panorâmico, pode-se identificar a ocorrência da marcha-rancho, da polca, da embolada, sem falar na simulação do ambiente chorão através do cavaquinho ou do violão virtuais que são construídos com a sonoridade das cordas em pizzicati. A última parte do Choros n° 10, por fim, contará com a assimilação do “Rasga Coração” - uma schottisch instrumental de Anacleto de Medeiros que nas mãos de Catulo da Paixão Cearense virou canção seresteira e depois se transformou com Villa-Lobos em choro coral-sinfônico.

Para além do “Rasga Coração”, que só aparecerá no final da obra, a parte coral-sinfônica do Choros n° 10 continuará contando com os temas parecis. Mas estes temas serão trabalhados de novas maneiras: destaca-se sobretudo a exploração instrumental do Coro Misto a partir de um trabalho onomatopeico, onde as várias vozes do coro são conclamadas a entoar os temas indígenas pronunciando combinações de consoantes e vocais específicas, cuidadosamente calculadas para produzir efeitos rítmico-timbrísticos inovadores. Com esta exploração timbrística dos vocábulos enunciados pelo coro, onde o que importa é exclusivamente a sonoridade e não o sentido, Villa-Lobos antecipa o experimentalismo dos músicos concretistas das gerações posteriores. No caso, é a superposição contrapontística destes vários resultados onomatopeicos, articulada como um grande stretto que cresce em expectativa e interesse, que vai preparar a entrada do tema “Rasga Coração” através dos sopranos, e mais adiante dos barítonos e baixos.

Daí até o final entra-se no crescendo apoteótico, obtido não apenas com um crescendo dinâmico e instrumental, como também pelo concurso de novas realidades sonoras: ao mesmo tempo em que se desenvolve a parte vocal, um solo de trompete marca a lembrança das cadências e improvisações choronas com o acompanhamento de acordes que, em contratempo, simulam mais uma vez a atmosfera de violões e cavaquinhos do populário urbano. A esta altura, as onomatopeias das vozes corais que não estão envolvidas com a melodia do “Rasga Coração” já abandonaram as sonoridades multidiversificadas para confluírem para a simulação de um som de corda percutida: um sonoro “tum” que se une aos demais instrumentos acompanhantes. Daí em diante a música evolui em progressão contínua em direção ao agudo, e depois ocorrem as repetições que são de praxe na prática chorona mas com algumas modificações. Depois de tudo, a coda final de 10 compassos é pura apoteose que vai se concluir com o acorde final da orquestra.

O Choros n° 10 é sem dúvida a obra prima do dialogismo em música, da exploração de alteridades contraponteadas com alteridades. É o Brasil que devora o Brasil e que assimila a Europa de uma maneira ao mesmo tempo nacional e pessoal. Nesta composição apoteótica, a alteridade nativa conquista um lugar destacado junto às outras alteridades internas que compõem o riquíssimo caldo cultural brasileiro. A Música, tal como se disse, afirma-se aqui como a modalidade de arte que desde princípios do século XX soube dar voz à alteridade nativa, não mais como temática ou símbolo, mas como meios a serem incorporados aos próprios recursos da música moderna.

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A Música brasileira foi extremamente precoce nas possibilidades de assimilar a alteridade nativa nos seus próprios meios e materiais. Também vimos que, no resto do Ocidente, as alteridades orientais e africanas vinham sendo assimiladas com especial inventividade por artistas ligados à Imagem. É talvez por ter sido uma alteridade ainda pouco explorada pela Arte Moderna - em comparação às outras - que a América Nativa desponta como uma fonte promissora para artistas modernos interessados em renovar radicalmente os seus meios.

No Brasil, por exemplo, existem populações nativas que só muito recentemente entraram em contato com o ‘Brasil Ocidentalizado’. Os Yanomamis, por exemplo, são povos indígenas da região amazônica que até algumas décadas atrás eram completamente desconhecidos pela chamada “civilização ocidental”. Estes povos podem contribuir significativamente com novos materiais para uma alteridade artística a enriquecer a Arte Ocidental, forçando-a a repensar os seus lugares comuns, os seus padrões de sensibilidade ou os seus recursos mais habituais de estruturação da obra de arte.

A partir da última década do século XX, muitos artistas modernos - brasileiros, americanos, europeus e mesmo japoneses - interessaram-se por estes povos, reeditando a antiga audácia dos artistas ocidentais do início do século XX que manifestaram uma combinação de ousadia e humildade em um movimento que visava aprender um novo mundo com os povos que eram então chamados de “primitivos”. Estes desenvolvimentos vão da assimilação de indivíduos talentosos pertencentes às populações nativas em artistas a serem incorporados ao quadro geral dos artistas americanos (divulgação de trabalhos produzidos pelos próprios índios) à elaboração de obras de arte pelos artistas de tradição ocidental com base em novos padrões de invenção formal e sensibilidade apreendidos no convívio com as populações nativas[21]. Esta é uma história, de todo modo, cujos desenvolvimentos ainda estão por serem analisados de forma mais aprofundada pelos historiadores e críticos de arte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Bibliografia

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WISNIK, J. M.; SQUEFF, E. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.

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[1] Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), nos Cursos de Mestrado e Graduação em História. Professor-Colaborador do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. Publicou os livros O Campo da História (Petrópolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005), Cidade e História (Petrópolis: Vozes, 2007), A Construção Social da Cor (Petrópolis: Vozes, 2009) e Teoria da História (Petrópolis: Vozes, 2011).

[2] DANTO, Arthur. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History. Princeton: Princeton University Press, 1997.

[3] GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário - sociedades indígenas e ocidentalização do México Espanhol. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.28. [original: 1988].

[4] LÉRY, Jean de. História de uma Viagem feita à Terra do Brasil, Rio de Janeiro: Tipografia Laemerts & CIA, 1889; DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Rio de Janeiro: Editora Círculo do Livro, sd; SPIX, J. B. Von; MARTIUS , C. F. P. Von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Edições Melhoramentos / Imprensa Nacional, 1938, 4 vol.; (4) SPIX, J. B. Von; MARTIUS , C. F. P. Von. Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien, Musikbeilage zu Reise in Brasilien. S. 1. n. d.

[5] sobre a variedade das artes indígenas, ver Lúcia Hussak VAN VELTHEN. Em outros tempos e nos tempos atuais: arte indígena. In: Catálogo Artes Indígenas - Mostra do Redescobrimento, São Paulo: Fundação Bienal de SP, 2000.

[6] O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade foi publicado em 1928, na primeira edição da Revista de Antropofagia. Por outro lado, a antropofagia oswaldiana já vinha sendo elaborada antes, encontrando algumas antecipações no Manifesto Pau Brasil de 1924.

[7] Neste sentido existe uma diferença entre o mero canibalismo e a antropofagia, já que esta última tem objetivos de assimilar aspectos positivos da alma daquele que é devorado, não se tratando simplesmente de se alimentar dele no sentido fisiológico.

[8] Sem caráter” é aqui uma expressão polissêmica. Admite pelo menos dois sentidos: além da ausência de caráter no sentido moral (o que, em todo caso, não quer dizer que o personagem seja um “mau caráter”, mas apenas “sem caráter”), a expressão também traz o sentido de “incaracterístico” ou de “pan-característico” (isto é, de algo que assume várias características, por vezes contraditórias).

[9] Outro romance tipicamente modernista é Memórias Sentimentais de João Miramar de Oswald de Andrade (1924). Aqui também veremos uma superposição de modos de narrar e de registros linguísticos, bem como a técnica da bricolagem que trabalha materiais internos (folclóricos) e externos. Na mesma linha, Oswald de Andrade escreveria mais tarde Serafim Ponte Grande (1933).

[10] O Noneto (1923) - para flauta, oboé, clarineta, sax, fagote, celesta, harpa, percussão e coro - é precisamente uma bricolagem que busca superpor materiais folclóricos de todo o país em um relativamente curto espaço de tempo.

[11] Prefácio da edição do Choros no 3 (Paris: Max Eschig, 1929).

[12] Esta definição foi recriada diversas vezes por Villa-Lobos, como na contracapa da partitura do Choros no 11. Nesta, o autor menciona como materiais - às vezes utilizando outras palavras - o rural e o urbano, os meios chorões e seresteiros das cidades e o regionalismo sertanejo dos ambientes rurais, e, por fim, a “música primitiva, civilizada ou popular”. Além disto, volta a inserir o trecho da primeira definição sobre a liberdade na estilização das melodias trabalhadas.

[13] Os temas indígenas aparecem destacadamente no Choros no 3, no Choros no 7, e no Choros no 10.

[14] Presença de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: MEC / Museu Villa-Lobos, v. 4, p.98.

[15] Por ‘folclore imaginário’ entenderemos a criação original de melodias ou materiais novos mas inteiramente dentro do espírito de uma determinada manifestação folclórica. Por ‘tratamento dialógico do folclore’ entenderemos a superposição, praticamente simultânea (por vezes usando o recurso da polifonia) de materiais folclóricos distintos, havendo mesmo a possibilidade de contrapor materiais de origens distintas, como uma melodia nativa a um choro urbano. Por ‘transfiguração do folclore’ entenderemos o processo de partir de um material folclórico já preexistente, mas a partir daí recriá-lo em novas direções.

[16] O ritmo do pica-pau, pássaro presente nas florestas brasileiras, é um dos motivos de inspiração que frequentemente retornam a Villa-Lobos. também o veremos no movimento final da Bachianas no 3, que também leva este nome.

[17] A fusão entre o pássaro e a árvore que ele bica pode ser tomada como um signo a mais do dialogismo, da junção entre duas ou mais realidades que ocorre neste e nos outros Choros através da mistura de materiais temáticos de procedências várias.

[18] É neste sentido que José Maria NEVES afirma que o Choros no 10 é “a síntese dos choros, a síntese das sínteses” (Villa-Lobos, o Choro e os Choros. São Paulo: Musicália, 1977, p.64).

[19] Em virtude do contraste entre a seção animada e a seção lenta da Introdução Orquestral, há quem faça a leitura de que a obra possui uma estrutura ternária (ABC ou ABA’, se considerarmos neste último caso que existe um retorno mais enfático a alguns materiais temáticos que apareciam na primeira seção orquestral). De qualquer maneira, a verdade é que o modelo deste Choros é rapsódico como os outros, o que significa que os temas vão emergindo em um fluxo contínuo e produzindo sucessivos ambientes que favorecem a possibilidade de múltiplas leituras de sua forma.

[20] Uma leitura primorosa do Choros no 10 como um modelo dialógico-antropofágico é empreendida por José Miguel Wisnik no texto Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo), In: WISNIK, J. M.; SQUEFF; E.. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.165-174).

[21] Esta foi a ideia de uma exposição organizada na França em 2003 por Hervé Chandès - diretor da Fundação Cartier - e pelo antropólogo Bruce Albert, diretor do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento. Visando promover o encontro entre a arte contemporânea e a cosmologia dos xamãs yanomamis, foi organizada a mostra "Yanomami, o Espírito da Floresta". No caso, os curadores convidaram 13 artistas de diferentes nacionalidades para mergulhar no universo indígena e transformar suas observações em linguagem artística. A Exposição foi apresentada no Brasil em 2004 (Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil), e foi publicada em Catálogo.