Uma obra, várias perspectivas: alguns estudos sobre a Passagem de Humaitá, de Victor Meirelles
Álvaro
Saluan da Cunha *
CUNHA, Álvaro Saluan da. Uma obra, várias
perspectivas: alguns estudos sobre a Passagem de Humaitá, de Victor
Meirelles. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV,
n. 2, jul.-dez. 2020. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/asc_humaita.htm
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1. Engana-se
completamente quem acredita que os estudos sobre obras de arte se debruçam
exclusivamente em sua iconografia, sendo esse apenas um dos pontos a serem por
ela analisados. A História da Arte vai além. Um exemplo clássico é o dado por
Michael Baxandall em seu livro O Olhar Renascente (1991), onde o autor
mostra justamente a pluralidade dos estudos das obras de arte, percorrendo
relações sociais, econômicas e culturais. Ou seja, uma obra pode dizer muito
mais sobre seu tempo do que se poderia a princípio imaginar. Essa tarefa está
diretamente ligada a forma com a qual o pesquisador buscará se envolver, seja a
partir das críticas tecidas sobre a produção; os documentos oficiais que
definiram os termos do contrato de criação, que podem (ou não) trazer
informações sobre questões materiais e financeiras; os termos necessários para
se cunhar a narrativa; etc. A análise de uma pintura pode ser feita por
diversas perspectivas, cabendo ao investigador angariar fontes e utilizar
metodologias e a própria criatividade, buscando assim mostrar diversos aspectos
até então desconhecidos ou pouco percebidos.
2. Neste artigo, procuramos
analisar algumas pesquisas que tratam direta ou indiretamente da Passagem de
Humaitá [Figura 1],
pintura à óleo finalizada por Victor Meirelles
em
1872. A partir dessa breve revisão bibliográfica, serão comparadas as
diferentes formas de análise presentes nas produções de alguns pesquisadores.
Este trabalho não tem como objetivo, entretanto, esgotar as análises sobre as
diversas pesquisas relacionadas à tela de Meirelles.
3. A tela foi exposta pela primeira vez na 22ª Exposição Geral
da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), onde chegaria posteriormente à
inauguração, juntando-se à Batalha de Campo Grande [Figura 2], de Pedro Américo, e ao
Combate Naval do Riachuelo, também de Meirelles - da qual mostramos, na Figura 3,um estudo
datado de 1868-1872. Segundo Eduardo Gomes Silva (2018), é possível atribuir o
sucesso da exposição das obras em atrair cerca de 60 mil visitantes ao momento
histórico vivido (posterior à Guerra do Paraguai), aos temas narrados e às suas
proporções. As obras dariam o tom do sucesso de ambos os pintores acima
citados, que ascendiam no cenário artístico nacional - embora Meirelles
estivesse em uma situação muito mais confortável, já sendo professor da AIBA, e
tido grande êxito com a Primeira Missa no Brasil, executada entre 1858 a
1860 e exposta no Salon de Paris, em 1861.
4. Contemporaneamente, o êxito do projeto artístico do Império
e o sucesso das obras e da carreira de ambos os artistas são atestados e podem
ser observados em diversos museus no país, enfatizando-se os da cidade do Rio
de Janeiro. Especificamente, a obra aqui analisada encontra-se exposta no Museu
Histórico Nacional, localizado na capital carioca.
5. O Despertador, periódico da cidade
natal de Meirelles, Desterro do Sul (atual Florianópolis), assim anunciava a
chegada de um transporte de guerra em 20 de junho de 1868:
6.
Transporte de guerra. Procedente do Rio de
Janeiro chegou ontem o Vassimon. Conduz cerca de 300 praças para o exército e a
esquadra no Paraguai. Nesse navio segue o Sr. Victor Meirelles de Lima,
habilíssimo cultor das Belas Artes incumbido pelo governo imperial de formar
dois quadros representando em um a gloriosa batalha naval do Riachuelo e noutro
a não menos gloriosa passagem de Humaitá. A escolha foi acertada, tanto pelas
incontestáveis habilitações deste nosso distinto patrício, já reconhecidas na
prática, como porque o governo vai se convencendo que deve aproveitar o gênio
raro deste insigne artista. Bom é que o país vá manifestando à essas nações
estrangeiras que presumem ser proprietárias das ciências e artes, que entre nós
há nacionais que rivalizam com os seus homens de mais vulto.[1]
7. André
Toral aborda a produção de Meirelles de uma forma geral, analisando
especificamente o que foi produzido durante a Guerra da Tríplice Aliança,
trazendo importantes informações sobre o contexto de pré-criação das obras.
Seguindo o trecho noticiado acima, Toral explica que nesse período o pintor
esboçou uma série de desenhos conhecidos como Estudos Paraguayos. Esses
esboços foram elaborados em Humaitá e Pilar, no sudeste do Paraguai, onde o
pintor esteve a bordo do navio-chefe Brasil entre agosto e setembro de
1868, sendo convidado pela Marinha, sua encomendante (TORAL, 2001, p. 127). O
pintor contava com um ateliê improvisado elaborado dentro da embarcação, o que
o auxiliava a esboçar diferentes versões para os episódios.
8. Combate
Naval do Riachuelo e Passagem de Humaitá foram
confeccionadas em um salão no Convento de Santo Antônio, adaptado como ateliê
(ROSA, MELLO JR., PEIXOTO, 1982, p. 70-71), que foi alugado e custeado pelo
Barão de Cotegipe. Naquele momento, encontrar um lugar adequado para a
elaboração de grandes pinturas era uma tarefa complicada. Para se ter uma
noção, Passagem de Humaitá mede 2,68 por 4,35 metros; já Combate Naval
do Riachuelo, bem maior, conta com as proporções de 4,60 por 8,2 metros.
9. A partir da análise de estudos
diversos como os elaborados por Maraliz Christo, André Toral, Eduardo Gomes
Silva a dissertação As litografias da coleção “Quadros historicos da guerra
do Paraguay” na década de 1870: projeto editorial e imagens (2019),
trabalho de minha autoria, t, torna-se possível se aprofundar em questões mais
específicas que perpassam os estudos sobre Passagem de Humaitá em maior
ou menor grau, a variar pelos objetivos buscados por cada um dos pesquisadores.
De toda maneira, torna-se comum o ato de todos se mencionarem ou citarem outros
pesquisadores que estudaram a carreira de Victor Meirelles e que,
consequentemente, passaram por essa emblemática obra, mas sem se debruçar sobre
ela.
10. Por
conta disso, especificamente no caso da Passagem de Humaitá, os
investigadores parecem caminhar quase que nos mesmos trilhos. Obviamente, isso
não é um problema. Aliás, vale ressaltar que embora muitas fontes primárias e
secundárias sejam comuns aos trabalhos, o que mais os marca são as distintas
perspectivas de abordagem, que buscam dar desde um panorama geral até uma
análise sobre questões mais especificas, levantadas de acordo com os anseios
dos investigadores. O trabalho de referência feito por Maraliz Christo (2015,
2019) é um exemplo, sendo citado em praticamente todos os estudos mais recentes
sobre a obra.
Breve
contextualização, análise e crítica da obra
11. Em um capítulo de
minha dissertação (2019), abordo uma gravura de tradução baseada na Passagem
de Humaitá, que é acompanhada de uma curta descrição do que ocorreu no
episódio. O pano de fundo é a praticamente instransponível fortaleza de
Humaitá, que servira de abrigo para parte considerável do comando de guerra
paraguaio, mantendo até mesmo Solano López em suas dependências antes de sua
tomada. A temível fortificação conseguiu conter por dois anos os constantes
avanços aliados, sendo uma localização estratégica de extrema importância para
a defesa dos territórios paraguaios, enfatizando-se todo controle defensivo da
navegação no Rio Paraguai. Todavia, a engenhosa Marinha brasileira teve êxito
na passagem ao vencer as difíceis defesas do forte, no dia 19 de fevereiro de
1868,[2] data celebrada até a
contemporaneidade pela Marinha.
12. Entender
minimamente o contexto histórico do momento retratado, mesmo sendo uma
narrativa pictórica produzida sem ter necessariamente um compromisso com a
verdade - algo comum na pintura histórica -, auxilia na compreensão de quais
aspectos o artista se utilizou para dar certo ar de verossimilhança em sua
produção. No caso da Passagem de Humaitá, segundo Gonzaga
Duque, o momento pintado não foi escolhido pelo pintor, mas algo
previamente acordado no contrato: “A esquadra brasileira transpôs Humaitá alta
noite, e foi precisamente essa passagem que o governo encomendou ao artista”
(ESTRADA, 1995, p. 174). A encomenda foi feita pelo então Ministro da Marinha,
Afonso Celso de Assis Figueiredo, em 1868 (MELLO JR., 1982, p. 81). De toda
maneira, mesmo que o momento tenha sido acordado antes, a escolha de como
fazê-lo ficou a cargo do artista. Gonzaga Duque a analisa da seguinte
maneira:
13. A ‘Passagem de Humaitá’ não conseguiu mais do
que provar um grande conhecimento de perspectiva.
14. Os longes são pintados com saber imenso. Mas,
afinal, que impressão deixa no observador este quadro cheio de manchas negras e
clarões vermelhos? Vê-se unicamente um horizonte avermelhado, bojos de navios
debuxados entre nevoeiros densos de fumo, e um céu enorme, sujo de nuvens,
iluminado pela palidez do crescente e pelas chamas da fornalha que arde ao
longe. Sem a menor dúvida, esse conjunto é pintado admiravelmente, mas
falta-lhe uma figura que o anime. A vista apenas percebe num e noutro lado
trevas e clarões, massas negras e massas vermelhas. Não obstante, fora
injustiça dizer mal dessa obra, ela é o assunto. (ESTRADA, 1995, p. 174).
15. Ao
analisar a fala do crítico, Christo (2019) mostra sua exatidão ao narrar a
complexa obra, onde não existem figuras humanas e os navios são quase
imperceptíveis em meio as massas negras e vermelhas. Todavia, o elogio à
concepção de Meirelles não foi unânime, sendo esta duramente criticada pelos
periódicos da época. Aqui, vale ressaltar uma das perspectivas de se trabalhar
uma obra: a sua recepção. Isso diz bastante sobre como os personagens da época
a encaravam, de acordo com a cultura visual vigente naquele momento. Sobre a
crítica negativa, escreveu no Jornal do Commercio do dia 28 de junho de
1872, um crítico de pseudônimo “Frascati Mangini”:
16. O quadro 167, pintado pelo Sr. Victor
Meirelles de Lima Passagem de Humaitá é uma grande téla, que nada significa
daquilo que se lê no catálogo. Onde está esse fogo de bala tão sustentado e
rápido que em breve toldou terra, céo e agua com fumo e fogo? Onde estão essas
baterias assentadas sobre as barrancas que fazião chover incessantemente
milhares de projectis? Ficaria tudo na tinta? Neste caso respondemos: Não,
ficou na palheta.
17.
O desempenho e a concepção deste quadro é manifestamente medíocre e vulgar, e se por meio
da pintura póde ser transmittida á posteridade a história dos acontecimentos
de um povo, o quadro do Sr. Meirelles não lhe revelará cousa alguma.[3]
18. A
insatisfação do misterioso crítico traz consigo o fato de que não há gosto
unânime e, mais do que isso, que a crítica mais uma vez reforça a pluralidade
de opiniões e percepções sobre as artes naquele momento, em que a produção
sobre o conflito era cada vez maior, ao passo em que a própria guerra não era
unânime entre os populares, que por muitas vezes teciam duras críticas ao
Imperador. Todavia, nem por isso a produção deixou de seguir, sendo um
importante plano do Império para a criação de uma narrativa vitoriosa da guerra
que também almejava construir uma identidade nacional, tal como é possível de
se perceber nas pinturas napoleônicas. Existem ainda muitas outras críticas,
sendo esta uma das chaves de compreensão interessantes de se utilizar
metodologicamente para se complementar o olhar do pesquisador - que, antes de
tudo, também é um espectador.
19. De
fato, a obra causa certa estranheza, sobretudo se comparada ao Combate Naval
do Riachuelo, também de Victor Meirelles [Figura 3].
Christo (2019, p. 15) expõe essa comparação, ressaltando que essa última obra,
diferentemente da Passagem de Humaitá, mostra que “todos os elementos
narrativos de uma batalha naval estão visíveis, [...] distinguem-se facilmente
navios e destroços, vencedores e vencidos, heróis e anônimos.” De fato, ao se
analisar o cânone da pintura histórica, o episódio do Riachuelo define muito
melhor o que se espera do gênero, colocando personagens como o almirante
Barroso na frente da fragata Amazonas, e diversos outros soldados.
Aliás, toda a composição guia o olhar do espectador para o almirante e a
fragata, figuras centrais do êxito brasileiro. Já no episódio de Humaitá, tudo
o que conseguimos ver é o caos da guerra em meio a fogo e fumaça que se
acentuam sob escuridão da noite, ressaltada por um vão aberto para que a lua
apareça. Pouco se vê das localidades e absolutamente nenhum personagem se
destaca. Nesse caso, devemos convir que um momento tão tenso não tem a beleza
orquestrada pela pintura histórica.
20. Em
minha dissertação, comparo a caótica cena de Meirelles com a composição Fisherman
at sea, de William Turner [Figura 4],
que contém uma densa neblina que também dificulta a visualização dos navios e
personagens presentes na obra, sendo uma complexa composição (COELHO, 2007, p.
2-84). Embora as obras não narrem episódios semelhantes, é perceptível, na
definição da fatura, como Meirelles se aproxima, mesmo que brevemente, da ideia
de Turner, sobretudo na escolha predominante de cores escuras, limitando as
gradações. Outro aspecto próximo é a presença da lua em ambas as telas que, no
caso tratado por Meirelles, encontra-se meio encoberta pela fumaça, mas ainda
visível. Já na obra de Turner, a lua tem um importante papel, iluminando o
primeiro plano e o fundo, trazendo à luz os navios. Na escuridão da composição
de Victor Meirelles, os traços só são definidos graças ao extenso incêndio ao
fundo, que evidencia as silhuetas da costa e das embarcações.
21. Outra observação pertinente a
se fazer na elaboração da Passagem de Humaitá e seus esboços diz
respeito às diferenças entre as composições. Em um dos estudos [Figura 5],
percebe-se uma composição muito mais serena, com resquícios da batalha já
encerrada, como a pequena porção de fogo na direita e os destroços na margem
deixam claros. O céu encontra-se nebuloso e, ao mesmo tempo, evidencia a lua
que se esconde, com uma bela escolha de iluminação elaborada pelo pintor. Ao se
comparar com a versão final, nota-se também que não há fumaça excessiva e, mais
do que isso, se percebe, pela calmaria do rio, um silêncio na imagem. O pequeno estudo mostra uma calmaria após o conflito,
em uma cena de céu nublado em que, de alguma forma, a luz da lua consegue
ultrapassar as nuvens e iluminar toda a sua extensão. Ao fundo, percebemos uma
fragata solitária. Na parte central, logo à direita, percebe-se um foco de
incêndio, mas nada que se compare ao inferno reproduzido na Passagem de
Humaitá. Já o primeiro plano, traz uma perspectiva da cena que parece ser
feita da beirada do rio, que se encontra cheia de pedaços de pau e pedras,
provavelmente resquícios das batalhas trazidos pelas correntezas.
22. Maraliz
Christo (2019), citada por Cunha (2019), analisa também uma obra erroneamente
tratada como um estudo para Humaitá [Figura 6].
A pintura em questão, foi exposta na exposição Victor Meirelles - um artista
do império, em 2004,[4] sendo
então equivocadamente identificada como outro estudo para o episódio. Essa tela
é tomada por corpos paraguaios seminus em cima de pequenos barcos, olhando
atônitos para a embarcação brasileira centralizada na imagem. Encontram-se
também os soldados brasileiros, em número reduzido e sem feições definidas,
atirando contra os inimigos praticamente indefesos, com poucas armas em punho,
lutando para conter a ofensiva brasileira, mas sem nenhum êxito. Os soldados
brasileiros têm no episódio o seu heroísmo acentuado pelo pequeno contingente
retratado e, mais do que isso, pela posição central em meio as barquetas que se
multiplicam pela composição, tornando o feito ainda mais monumental.
23. Os
corpos paraguaios, retratados desta forma para enfatizar a “ausência de
civilidade” daquele povo, parecem se somar à paisagem, enquanto os uniformes
escuros dos brasileiros se ressaltam na clareza do fundo. Outra escolha feita
por Victor Meirelles nessa composição é a do anonimato dos personagens
presentes, citando apenas o capitão-tenente Maurity que, assim como os outros,
é apenas um vulto. Mais do que isso, a obra evidencia a dor da guerra, sendo
possível perceber que, mesmo com o triunfo brasileiro, parece não haver o que
comemorar, sendo todos os retratados vítimas das crueldades do conflito. Os
corpos amontoados no primeiro plano explicitam isso, talvez se aproximando do
que foi esboçado por Meirelles em seus Estudos Paraguayos. A composição
também nos faz refletir sobre o que virá depois, quando certamente muitos
outros ainda cairão com o prosseguimento da peleja.
24. Christo
(2015, p. 356) esclarece que o referido episódio é especificamente “um evento
entre as várias ações da passagem de Humaitá,” não sendo este um esboço da
passagem tal como a conhecemos. Ela ressalta a estranheza causada pela total
diferença entre as composições. Não obstante, mostra que, no mesmo período,
haviam sido encomendadas três obras e cita um relatório de Thomas Gomes dos
Santos, diretor da AIBA,[5] que
informa sobre a encomenda de uma representação d’A abordagem dos paraguaios
ao monitor Alagoas comandado pelo Capitão-Tenente Maurity em 19 de
fevereiro de 1868. Christo encontra no periódico A Vida Fluminense
uma notícia em que o vereador Bithencourt da Silva propunha em uma sessão da
Câmara um pedido para a execução de representações dos episódios de Humaitá e o
episódio do monitor Alagoas.[6]
As
gravuras d’A Passagem de Humaitá
25. Em um
movimento comum do período, as gravuras também ampliaram e trataram de forma
distinta a produção de Victor Meirelles. Fruto da crescente reprodutibilidade
técnica estabelecida no cotidiano brasileiro a partir da segunda metade do
século XIX, essa mudança na cultura visual foi abordada em minha dissertação de
mestrado, em que tratava de uma coleção de litogravuras e textos intitulada Quadros
historicos da guerra do Paraguay, feita a partir de 1870. Essa coleção
contava com nove litogravuras, sendo a Passagem de Humaitá uma delas.
Todavia, tal como é de se esperar das gravuras de tradução - que transpõem
pinturas coloridas para litogravuras em tons claros e escuros -, existem
diferenças, embora a ideia geral seja preservada.
26. A
primeira gravura [Figura
7], presente no Museu Histórico Nacional, encontra-se em tons de claro
e escuro, não tendo a técnica observada na segunda [Figura 8], conhecida
por chine-collé. Essa permite ao gravador imprimir uma coloração
distinta em uma superfície mais delicada, como papel ou linho japonês, dando
essa coloração avermelhada presente ao fundo, distinguindo a primeira imagem da
segunda.
27. A
descrição encontrada abaixo da gravura - outro diferencial da técnica - torna
possível compreender o sentido de alguns aspectos iconográficos como o foguete
ao fundo, sendo um “signal atirado pelo encouraçado por ter transposto o
fosso,” além de ressaltar a presença da Igreja de Humaitá, também ao fundo; das
embarcações Lima Barros Barroso, Silvado, Colombo, Cabral,
Bahia, Brazil, Tamandaré e o monitor Pará, além do Alagoas
descendo sobre a Ponta das Pedras; bem como a Bateria de Londres e do marquês
de Herval.
28. Tanto nas reproduções litográfica quanto na pintura, é
possível perceber que há fogo e fumaça que saem dos navios e dos pontos de
incêndio. E, em meio a essa fumaça negra, se evidencia parcialmente encoberta,
mas brilhante, a lua minguante. No lado direito da composição, há uma pequena
paisagem na encosta, sendo essa muito provavelmente baseada em um estudo de
Meirelles [Figura
9], que enfatiza, junto com parte do fundo, o fato desse episódio se
passar em um rio. Próximo a essa encosta e na região central do quadro, é
possível perceber certos destroços, reforçando, juntamente com a explosão ao
lado de um dos navios, que ali estava se encerrando o conflito (COELHO, 2007,
p. 2-84). Menos enfatizado nas litogravuras - mesmo na segunda, mais
avermelhada -, é a presença de um clarão vermelho ardendo ao fundo (dividindo o
horizonte da obra entre o céu esfumaçado e as escuras águas do rio e as sombras
das embarcações) e a da própria fumaça, que quase esconde o luar e as outras
embarcações.
29. Outro
ponto importante que se faz extremamente necessário notar é que, em ambas as
litogravuras, o gravador Antônio
de Souza Lobo optou por clarear a cena, que, mesmo em preto e branco, acaba
evidenciando o que se escondia por trás da escuridão da fumaça observada na narrativa
originalmente por Victor Meirelles. O céu, ao contrário do que se vê na
pintura, tem um tom um pouco mais claro, excluindo a densa escuridão presente
na pintura original, algo que traz uma maior suavidade e visibilidade ao caos.
Graças a isso, é possível analisar melhor o desenho das embarcações e o próprio
fundo da imagem, sobretudo na segunda gravura.
30. Na
obra, Victor Meirelles delineia os traços de forma sutil, enfatizando-se o
desenho e usando poucas cores, focando exatamente no cinza, preto e marrom,
integrando o céu com a vegetação. Sintetizando, a obra traz uma melancolia
advinda da batalha e da destruição por ela causada, captando, neste caso, uma
forma mais obscura, ainda que leve, da densidade da guerra (COELHO, 2007, pp.
2-84).
31. Como dito anteriormente, a obra pouco se
importa em retratar os personagens, se preocupando muito mais em imergir o
espectador no cenário caótico de destruição, sem necessariamente explicitar
esses horrores, marcados apenas pelo fundo rubro da composição.
Produções
congêneres
32. Sejam
pinturas ou gravuras, outros artistas também buscaram criar suas narrativas
sobre o importante episódio. Tanto em minha dissertação como no trabalho de
Maraliz Christo, buscou-se aproximar comparativamente essas criações, que
auxiliam ainda mais na compreensão de quais maneiras a passagem foi narrada,
reconhecendo as distinções de cada suporte.
33. A obra
pintada por Eduardo De Martino [Figura 10] retrata
a mesma passagem, onde se pode perceber uma escolha mais clara dos matizes, que
trazem clareza ao navio centralizado e ao forte em chamas, logo ao fundo. Isso
é possível ao se perceber as escolhas tomadas por De Martino na composição, as
quais propiciam um diálogo bem-sucedido entre o primeiro plano e o horizonte. O
céu ainda se encontra esfumaçado e envolto em caos, pelo fogo, o tempo nublado
e os vários focos de fumaça vindos das chaminés e do incêndio. Em sua escolha
de cores, De Martino harmoniza o cinza aos tons avermelhados e os seus reflexos
na água, sendo uma escolha fundamentalmente importante para se evidenciar o
forte e as embarcações, os quais ainda sofrem com alguns ataques, sendo
perceptíveis algumas explosões dentro do rio.
34. Já a
composição atribuída ao almirante Trajano Augusto de Carvalho, engenheiro da
Marinha e inventor concidadão de Victor Meirelles, articula uma nova ótica em
torno do evento [Figura
11]. Aqui, a perspectiva coloca o espectador dentro do Rio Paraguai,
mostrando o momento da curva e ultrapassagem dos monitores brasileiros na
frente do forte de Humaitá. Isso se deve ao fato dessa parte do rio
encontrar-se atravessada por correntes que iam de uma margem a outra, algo que
tecnicamente deveria impedir a navegação (CHRISTO, 2019).
35. Aqui,
o autor também optou por tratar a obra noturna de uma forma muito mais clara do
que Meirelles, priorizando o relato e ignorando a escuridão daquela noite. O
que também é perceptível na composição é a simplicidade dos traços, algo
atribuído a formação do almirante, que dominava o desenho, tal como era
estudado na Marinha, mas não de forma artística. A maneira com a qual ele trata
a iluminação da narrativa demonstra isso. O céu encoberto esconde a claridade
da lua, algo comum em todas as representações da passagem. Há também um exagero
facilmente observável: a claridade excessiva colocada para enfatizar as margens
do forte e que se reflete em toda a obra, algo provavelmente feito de forma
proposital para enfatizar o ponto principal da cena, ignorando o realismo.
36. Já no
desenho litografado criado por Angelo
Agostini [Figura
12], a visão aérea do conflito consegue mostrar melhor todos os seis
monitores, bem como a formação em U da passagem pelo forte, demonstrando toda a
dificuldade enfrentada pela esquadra brasileira. Aqui vale ressaltar um aspecto
interessante: os desenhos elaborados para os periódicos tinham o objetivo primordial
de informar, como bem ilustra a arte de Agostini. Seus traços mais simples e
uma perspectiva aérea imaginada servem justamente para mostrar ao espectador a
dificuldade do momento. A gravura mostra parte da movimentação dos navios
brasileiros passando por uma difícil prova sob os disparos da fortificação
paraguaia, que, por sua posição privilegiada, conseguia atrasar as embarcações.
Além disso, os inimigos tinham maiores chances de alvejar e abater a armada
brasileira. Todavia, o que se vê na imagem são alguns projéteis lançados da
margem esquerda, mas sem êxito.
37. Por último, há na Biblioteca Nacional uma fotografia em
papel albuminado do monitor encouraçado Alagoas passando por Humaitá [Figura 13].
Embora a imagem não contenha tanta qualidade, é possível perceber as margens
direita e esquerda do rio, o Alagoas a soltar fumaça e, ao que parece, no
primeiro plano, restos da batalha. Outro aspecto é a fidelidade com que ambas
as imagens aqui tratadas mostram da embarcação, aproximando-se diretamente do
que é visto na fotografia.
38. Porém,
ao longo da pesquisa, nos deparamos com uma pintura de Luis Ascensio Tomasini [Figura 14], de
1868, que parece ser a origem da fotografia. Essa imagem infelizmente carece de
maiores dados, pois o sistema da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação
da Marinha encontra-se fora do ar. Nela, podemos observar os mesmos aspectos da
fotografia, mas com maior clareza: à direita a fortificação de Humaitá e, ao
centro, o Alagoas seguindo o curso do Rio Paraguai.
39. Como
se nota nas litografias de Souza Lobo, a reprodução litográfica pode se
utilizar de artifícios para tornar as imagens mais compreensíveis, dando uma
maior visibilidade ao evento - mas sem descaracterizar a ideia central lançada
pela pintura de Victor Meirelles. No geral, é possível perceber as diferentes
formas dos artistas ilustrarem um evento noturno - tarefa difícil, onde os
focos de iluminação fazem toda a diferença para a composição.
40. Tais
representações são de extrema importância para a narrativa do evento. Nelas,
distinguem-se os modos de execução artística de cada autor. Elas são
individualmente produzidas conforme uma série de fatores: relatos, fotografias,
e também os anseios e peculiaridades de cada artista, que podem enfatizar ou
ignorar certos aspectos, ou simplesmente criar, não sendo necessariamente
verossímeis os traços com os quais o evento é descrito por meio das imagens.
Conclusão:
há tantas maneiras de se observar e estudar uma obra
41. Como foi possível perceber ao longo deste artigo, diversos
percursos levaram essas pesquisas a se encontrarem com a Passagem de Humaitá.
O trabalho de Maraliz Christo é, sem sombra de dúvidas, o que mais dialoga
diretamente com a obra, sendo seguida por Eduardo Gomes Silva. Ambos colocam a
pintura no cerne da discussão e partem dela para outras produções e fontes. Já
a dissertação de minha autoria e o trabalho de André Toral chegaram à
composição por meio da produção artística do período - no caso, as gravuras - e
a trajetória de Victor Meirelles, agregando ao estudo aspectos da produção
atrelados ao artista, observando sua trajetória e sua presença in loco
como pontos importantes para a composição.
42. Ambos os autores se utilizaram da crítica do período para
compreender a recepção da obra por seus contemporâneos, algo de extrema
importância na História da Arte. Por meio da visão de críticos conhecidos, como
Gonzaga Duque, ou da dos diversos pseudônimos que surgiam nos periódicos da
época, conseguimos analisar as diferentes interpretações da obra. Mais ainda,
foi possível encontrar informações importantes sobre quem encomendou a obra, os
valores colocados em jogo e até mesmo locais em que ela foi exposta, sendo tais
aspectos em maior ou menor grau discutidos pelas pesquisas citadas.
43. É interessante notar em tais trabalhos uma espécie de rede
de informações perceptível através das diversas citações, algo que mostra um
esforço dos vários pesquisadores em destrinchar, cada um a partir de suas
questões, pontos referentes à obra de Victor Meirelles. Este artigo, mesmo que
não esgote todos os estudos diretamente ou indiretamente produzidos sobre a
obra, buscou trazer essa pluralidade de estilos e perspectivas e tentar
explicá-los mesmo que, por vezes, os autores acabem por se confundir. De fato,
existem inúmeras formas de se observar uma obra, e esse artigo tentou, ainda
que de forma breve, mostrar isso.
Referências
bibliográficas
BAXANDALL,
Michael. O Olhar Renascente: Pintura e Experiência Social da Itália da
Renascença. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
CHRISTO,
Maraliz de Castro Vieira. Uma batalha cromática: Victor Meirelles e a Passagem
de Humaitá. Anais do XI Encontro de História da Arte - UNICAMP. São Paulo,
2015. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2015/Maraliz%20de%20Castro%20Vieira%20Christo.pdf
CHRISTO,
Maraliz de Castro Vieira. Victor Meirelles e a Passagem de Humaitá.
Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, v.
15, n. 29, p. 13-21, 2019.
COELHO,
Mario Cesar. Os Panoramas perdidos de Victor Meirelles: aventuras de um
pintor acadêmico nos caminhos da modernidade. Tese (Doutorado em História) -
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007.
CUNHA,
Álvaro Saluan da. As litografias da coleção "Quadros históricos da
guerra do Paraguay" na década de 1870: projeto editorial e imagens.
Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto
de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, 2019.
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Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São
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SOUZA, Paulino Jose Soares de. Relatório do ano de 1868 apresentado a
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exposições e potência de uma tela ‘sem história’. Anais do XVII Encontro
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Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
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* Doutorando
em História - Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: asaluan@hotmail.com
[1] O Despertador, Nossa Senhora do Desterro,
n. 565, 20 jun. 1868, p. 1. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx
[2] Ver mais em: DORATIOTO,
Francisco. Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
[3] Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28
jun. 1872, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx
[4] A exposição passou pelos
seguintes locais: Museu Oscar Niemeyer, Curitiba; Palácio das Artes, Belo
Horizonte; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
[5] SANTOS, Thomas Gomes
dos. Relatório do diretor da Academia das Belas Artes. In: SOUZA,
Paulino Jose Soares de. Relatório do ano de 1868 apresentado a Assembléia
Geral Legislativa na 1ª sessão da 14ª legislatura. Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1869, p. 3.
[6] A Vida Fluminense, n. 11, 14 mar. 1868,
p. 124. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx