A pedagogia artística de Lebreton *

Alberto Cipiniuk **

CIPINIUK, Alberto. A pedagogia artística de Lebreton. 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 1, mai. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/lebreton.htm>.

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A contribuição de Joachim Lebreton para o ensino artístico brasileiro só pode ser entendida tendo como pano de fundo as circunstâncias históricas do final do século XVIII. Por óbvia que pareça esta afirmação, gostaríamos de colocar em relevo nosso entendimento deste período, posto que não estamos procedendo segundo um antigo cacoete de uma certa metodologia histórica ao consideramos os maus fados de mais um “fin de siècle”, tal qual o que estamos vivendo hoje, ou aquele que ocorreu pouco antes do ano mil. Do ponto de vista da história da humanidade, segundo Eric Hobsbawm,[1] depois da invenção da agricultura e da construção das primeiras cidades, este foi o período mais importante da história dos homens. Este é o momento em que a morte e a fome periódicas só acontecerão se houver um princípio doutrinário ou uma ideologia dirigida para tal, pois por trás de uma produção rápida, constante e ilimitada de mercadorias e serviços, existe uma ciência e uma tecnologia de controle, isto é, técnicas disponíveis capazes de produzirem aquilo que os economistas chamam de crescimento auto-sustentável.

Quando ocorreu a revolução burguesa na França em 1789, ficou marcado o fim de um modo de produção e organização social calcado na agricultura, o ancien régime, e entraram em crise todas as instituições sociais que legitimavam a cultura até então. Com exceção dos laços entre o ouro e o papel-moeda, todos os laços sociais se desintegravam. A anomia social passou a empurrar nas geladas águas do rio Sena meritosos e medíocres, mas todos vítimas das dúvidas e incertezas nas crenças e valores que vigiam ate então.

Para os artistas, foi um momento particularmente difícil, pois o antigo sistema de patrocínio desmoronara e, no sistema antigo, embora o artista estivesse muito mais exposto ao seu encomendador, aos seus desígnios e vontades, trabalhava para alguém identificável. Alguém que havia tido a iniciativa de encomendar a obra, que escolhera o artista, que tinha alguma ideia do resultado do trabalho e acompanhava o artista até o final da obra, dando sugestões e cobrando prazos. Viver de arte a partir do final do século XVIII significava atender um público novo, desconfiado da autocelebração e talvez da autopromoção públicas da aristocracia carola e arrogante. Os artistas precisavam produzir aquilo que supunham bom e então saíam em busca de um eventual comprador para determinarem se os seus trabalhos indicariam o prazer da posse, devoção ou consciência cívica, posto que eram tempos revolucionários. Muito do trabalho artístico de então, os retratos, para citarmos um exemplo no caso da pintura, refletiam profundos aspectos psicológicos do retratado, quando o artista era amigo pessoal do modelo; caso contrário, esse trabalho seria impossível. Madame Zélie Aynon, Madame Devauçay, Madame Moitessier, assim como Luis-François Bertin, foram membros da alta sociedade francesa, que pouco antes de se mudar para Roma, o pintor Ingres frequentava amiúde. Mas a maioria dos artistas não frequentava, nem conhecia o seu público.

Se no antigo sistema de patrocínio, os encomendadores exerciam o que nos parece hoje um ultrajante grau de interferência nos seus trabalhos, definindo como as figuras na tela deveriam ser retratadas e até definindo as cores a serem utilizadas,[2] em períodos posteriores o artista teve que enfrentar uma situação nova, uma liberdade profissional que lhes estava sendo proporcionada pelo declínio do antigo sistema de patrocínio direto. Todavia essa liberdade implicava em uma vida sujeita às oscilações de mercado e às incertezas econômicas. Na medida que os artistas começaram a depender dos caprichos do mercado para ganharem suas vidas, os patronos foram sendo substituídos pelos críticos e pelos marchands, ou por aqueles que eram uma coisa e outra, o que ocorria na maioria das vezes. Sucedeu que essas pessoas, outrora apenas mediadoras entre os artistas e o seu público, passaram a ter um papel muito importante em suas vidas, posto que passaram a garantir a sobrevivência de uma categoria profissional marginalizada ou institucionalmente deslocada pelo novo modo de produção.

Numerosos têm sido os autores que se dedicam a estudar o papel dos mediadores entre os artistas e o seu público,[3] pois justamente nas instâncias de legitimação do trabalho do artista se encontram os meios de caracterizarmos de forma mais abrangente a arte na sociedade industrial. Joachim Lebreton foi marchand e também responsável pela Classe de Belas Artes do Instituto de França. Esta dupla inserção social coloca-o como figura chave no quadro histórico desta época, não apenas como representante da nova ideologia comercial ou como intermediário entre artistas e compradores, mas como agente social efetivo na determinação dos saberes responsáveis pela delimitação do campo de atuação profissional dos artistas. Findo o poder legitimador da Acadèmie em1795, Lebreton é o funcionário público encarregado pela normalização dos estudos necessários para a formação dos artistas na França. Desta forma, o seu entendimento do fenômeno artístico e de como as técnicas e teorias da arte devem ser ministradas aos futuros profissionais são importantíssimos, ainda porque Lebreton foi o postulante dos princípios de funcionamento da maior instituição de reprodução do saber artístico no Brasil.

Neste pequeno trabalho não enfatizaremos a sua atuação como marchand, a não ser pelo fato de ter sido um. Eventualidade que o inclui à mentalidade comercial desta época e o situa de acordo com o pragmatismo burguês, que certamente marcara sua proposta pedagógica. Mas lembraríamos aos pesquisadores que além de ser o diretor da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios, ele trouxe uma coleção de pinturas para o Brasil para vendê-la ao Regente D. João. Esta coleção serviu aos primeiros alunos da escola e veio a ser a base da pinacoteca do Museu Nacional de Belas Artes.

Na Divisão de Documentação Diplomática do Arquivo Histórico do Itamarati, no Rio de Janeiro, existem duas cartas de Lebreton endereçadas ao Conde da Barca.[4] Essas cartas foram analisadas por Mário Barata,[5] mas infelizmente são escassamente citadas. Na verdade, não temos nenhuma garantia de que o Conde da Barca tenha lido essas cartas, mesmo porque sua proposta não chegou a ser implantada. Todavia, o modelo de organização pretendido por Lebreton em grande parte foi retomado por J.-B. Debret e por Araújo Porto Alegre, mesmo que nunca tenha sido implantado em sua integralidade.

Lebreton é burguês e como burguês é pragmático. O seu pragmatismo coloca-o junto com outros pensadores do fenômeno artístico de sua época. Não foi conservador mas tinha uma visão bastante próxima da antiga visão da arte. Defendia a pintura histórica, posto que era clássica,[6] e era contrário a permanência de pobres em uma escola de arte.[7] Desta forma, propõe uma dupla escola que atendesse tanto à formação profissional de operários especializados, quanto de artistas. A formação de operários era para os oriundos da pobreza e a formação artística para a classe média.

A ideia de operários especializados trabalhando sob a batuta de um artista com vistas ao desenvolvimento da nação remonta à Acadèmie, quando Colbert criou a manufatura de Gobelins tendo Lebrun como artista responsável. Segundo Pevsner,[8] o salto de qualidade da emancipação da arte na Idade Moderna foi a agregação do ensino dos ofícios associado aos processos criativos da arte. No início do século XIX, uma escola deste tipo era o que de mais moderno havia em matéria de ensino de arte.[9]

Posto que a nova classe social se pretendia tão exclusivista como a dos monarcas absolutos, coerentemente, foi mantida a distinção social entre artistas e artesãos. Havia a necessidade social de uma categoria profissional que cantasse loas à sua ascensão e legitimasse a sua existência, sem confundi-la a extrações sociais mais baixas. Desta forma, a distinção social que já vinha do passado foi mantida e o fosso existente entre o trabalho manual do artesão e o trabalho espiritual do artista foi aprofundado.

Se atentássemos somente ao fato de Lebreton manter o fosso existente entre o artista e o artesão, poderíamos situá-lo com precisão dentro da tradição do antigo regime. Poderíamos também referendar essa afirmativa apontando para o fato deste intelectual defender resolutamete a pintura histórica e/ou o classicismo. Mas gostaríamos de chamar a atenção dos pesquisadores para certas nuanças e particularidades das análises que viemos fazendo deste período, particularmente em relação ao estilo neoclássico e ao romantismo, que precisam ser revisadas. O classicismo que Lebreton se refere não é o classicismo do Renascimento, mas o neoclassicismo de Wincklemann.

A história social da arte já demonstrou que o estilo clássico se distingue do romantismo apenas pelo uso de determinadas formas, mas segundo os processos mentais consolidados em diferentes períodos históricos. O classicismo de Lebreton diz respeito a um processo racional de ensino, onde o estudante precisa ser submetido a um aprendizado sistemático, desde os princípios elementares até os mais complicados temas da pintura histórica. Lebreton supõe que se deixarmos o estudante de arte abandonado ao seu próprio instinto ou sentimento, ele jamais será um grande artista, pois a imaginação e o sentimento devem ser controlados pela concepção da história. O respeito das regras gerais da pintura histórica não supõe a defesa da hierarquia pictórica do “grand goût”, mas pragmatismo e reconhecimento de que a arte cortesã, terminado que estava o primeiro momento da revolução, continuava a se desenvolver longe do gosto popular, pois a burguesia, em particular aquela sob Napoleão, precisava da grande composição heróica, que sempre atendera as camadas superiores da sociedade.

Os estudos sérios deveriam portanto substituir os “prazeres de sociedade” e os artistas deveriam ocupar todos os seus momentos naquelas partes das ciências que muitos rejeitam por sua abstração e secura, tal como a anatomia e a perspectiva. Juntamente com as regras gerais da arte o artista deveria tentar se aproximar dos modelos que são inimitáveis dos grandes mestres, posto que sem o exemplo dos mestres, a natureza continuaria inalcançável. Além das cópias dos mestres, Lebreton supõe que na arte não existem propriamente teorias escritas, desta forma a vida dos artista célebres é uma fonte onde os jovens pretendentes à carreira artística devem se espelhar. Na vida dos artistas, deveriam perceber que a lentidão da aprendizagem, oposta ao entusiasmo de tendência natural, que era prejudicial aos estudos fundamentais, deveria ser observada. Desta forma a variedade da imaginação deveria ceder à parte escolástica de sua arte. Esta daria mais “severidade” e “legibilidade” à narrativa dramática de sua obra.


* Professor Uerj/Puc-Rio. Pós-Doc. Center of Advanced Study in the Visual Arts (CASVA), National Gallery of Art - Washington, D.C.

** Trabalho originalmente publicado em 180 anos de Escola de Belas Artes. Anais do seminário EBA 180. Rio de Janeiro, UFRJ, 1998, pp.47-52.

[1] HOBSBAWM, Eric J.  A Era das Revoluções 1769-1843. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra,  1977. p.45.

[2] BAXANDALL, Michael.  O olhar renascente. Pintura e experiência social na Itália da Renascença. Trad. Maria Cecília Preto R. Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

[3] Citaríamos, como exemplo, Pierre Bourdïeu e em particular um trabalho seu traduzido para o português, A Economia das Trocas Simbólicas, publicado em São Paulo na Coleção Estudos pela Editora Perspectiva.

[4] Estas duas cartas datadas respectivamente de l2 de junho e 9 de julho de 1816 recebem como número de inventário L-314-3-5, Documentos terceiros - Ensino (1816-1900).

[5] BARATA, Mário. Manuscrito Inédito de Lebreton  Sôbre o Estabelecimento da Dupla Escola de Artes no Rio de Janeiro, em 181”. Rio de Janeiro: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Ministério da Educação e Cultura, 1959, p.283-307. Uma versão desse manuscrito se encontra disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/lebreton_manuscrito.htm>.

[6] Carta de Lebreton ao Conde da Barca, p. 3. Supõe ser um erro abandonar a escola au patronage dépourvu de lumières, ni aux preténtions personalles des artistes la possibilité d’intervenir ou d'affaiblir l’ordre de l’einsegnement  par l’invasion de quleque  Professeur médiocre ou non classique.

[7] Idem, p. l2.

[8] PEVSNER, Nikolaus. Academies of art, past and present. Cambridge: Cambridge University Press, 1940. p.243.

[9] Idem, p.245.