Culturas e hibridismo na imagem de brasileiros: Valores epidérmicos, identidades e hierarquias nas artes da Primeira República

Túlio Henrique Pereira [1]

PEREIRA, Túlio Henrique. Culturas e hibridismo na imagem de brasileiros: Valores epidérmicos, identidades e hierarquias nas artes da Primeira República. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/criticas/thp.htm>.

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A partir da experiência discente no Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e dos resultados de pesquisa apresentados na dissertação Pele e sensibilidades: práticas de memórias e identidades do negro na literatura (1909-1940), foi possível pensar os acontecimentos históricos na temporalidade que vai do Império à Primeira República no Brasil. O recorte desse período possibilitou a seleção de um “corpus” variado e fragmentado, a partir do qual se apresentaram as relações sócio-históricas no território brasileiro, determinadas pelo colonialismo europeu, os trânsitos culturais, a miscibilidade e o hibridismo estabelecido entre povos ameríndios, europeus e africanos.

Evidenciou-se, a partir da leitura de fontes iconográficas como “charges” presentes em impressos, pinturas e a literatura, publicizados entre 1885 e 1930, e produzidos nos territórios do Salvador-Bahia e do Rio de Janeiro, a dinâmica sistemática do cotidiano social representado nesses espaços. Entendeu-se que o advento da Primeira República no Brasil permitiu o acesso às memórias das conexões culturais marcadamente europeias e africanas derivadas da colonização portuguesa e da escravização ameríndia e negro-africana.

É com o auxílio de uma metodologia multidisciplinar e teórico-metodológica variada, que este estudo se pautou pelas clivagens e suportes das especificidades da História, da Arte, da Literatura, da Antropologia e da Sociologia para a compreensão do legado das mestiçagens biológicas e culturais na formação da arte e das iconografias representadas nesses territórios.

As memórias da pele e as sensibilidades atribuídas às imagens e literaturas dessa época serviram como referências para o estudo de uma sociedade que se formou baseada nas identificações de códigos eurocêntricos, determinando papéis sociais, a partir dos princípios da religião católica cristã e, posteriormente, pela repersonalização e epidermização de seus sujeitos.

Por intermédio dos estudos da cultura e da iconografia, propõe-se, aqui, uma análise teórico-descritiva e analítica da observação da literatura produzida por Lima Barreto, Adolfo Caminha e Manuel Raymundo Querino, e imagens com conteúdo artístico e informativo, construídas e difundidas no território nacional, que contemplam a concepção histórica da miscibilidade e pluralidade étnico-racial da população brasileira do fim do século XIX e início do XX.

A utilização dos impressos para a compreensão desse universo de tensão favorece a escrita da história dos matizes de pele opacizados, bem como evidencia as múltiplas identidades dos seus sujeitos históricos, mantidas sob o tecido da historiografia marxista, que, durante muitas décadas, privilegiou apenas o estudo das culturas a partir das relações de poder, dominação e resistência, em detrimento das concepções mentais e das características ideológicas e sensíveis dos grupos sociais. Almeja-se, contudo, tratar criticamente a conjuntura da alteridade que marca o sujeito histórico a partir de seus matizes de pele no contexto desses espaços, atravessando suas relações no cotidiano da vida pública e privada.

Segundo Albuquerque Júnior (2007, p. 26) “para a história cultural [...] a invenção do acontecimento histórico, de qualquer objeto ou sujeito da história se dá no presente, mesmo quando analisa as várias camadas de discursos que o constituíram ao longo do tempo”. E é por meio desse viés que se busca, para além do retorno ao acontecimento histórico, e dos aportes teóricos impressos pela leitura de determinados documentos, o relato historiográfico das memórias calcificadas dos negros. Para tanto, foi realizado um recorte, estabelecendo uma seleção de obras literárias, fruto da produção de saberes e práticas de seus autores, valorizando suas experiências e representando a si mesmos nessas obras, ora como sujeitos, analisados no contexto histórico da longa duração que, aqui, é determinado pela transição do Império para a República no Brasil, ora como personagens que representam trajetórias e memórias de seu tempo.

Ao fazer a utilização das “charges” em contraponto e diálogo com a literatura elencada neste estudo, consideram-se os argumentos de Michaud (2008), ao escrever que o corpo humano é representado em seu caráter morfológico desde o Renascimento, quando sua anatomia e dissecação sustentaram os estudos nas escolas de arte, durando no século XIX, até parte do século XX. Desse modo, o ato de desenhá-lo, pintá-lo e modelá-lo “significa captá-lo nu em sua verdade anatômica e, depois, vesti-lo como o mandavam as circunstâncias da cena ou da ação” (MICHAUD, 2008, p. 541).

A cena e a ação são características fundamentais para a compreensão da imagem enquanto significado ou conteúdo. A primeira é entendida como o espaço norteador do corpo, e a segunda é o modo com o corpo se modela (PANOFSKY, 2001). O corpo humano, transplantado para sua representação imagética, seja em forma de desenho, pintura, gravura, grafite, escultura ou fotografia, adquire personalidade por estar condicionado à temporalidade de quem produz sua representação. Esse corpo, imageticamente representado, contém elementos naturais de sua substancialidade biológica e técnica, ou seja, a imagem se torna um objeto de clivagem, atravessada pelos sentidos de quem a serviu como inspiração e de quem a produziu.

Entende-se, portanto, com base em estudos de Panofsky (2001), que essa imagem será objetivada por sua nacionalidade e pelo caráter social e histórico que a norteou, visto que sua materialidade é coordenada por experimentações, observações, tradições intelectuais, política, intenção, moral e valores. Contudo, pensar a imagem enquanto uma materialidade nutrida do constructo de uma geração/época/história, é pensá-la a partir de seu significado. Nesse sentido, de acordo com Panofsky (2001, p. 50), esse significado pode ser definido “como um princípio unificador que sublinha e explica os acontecimentos visíveis e sua significação inteligível e que determina até a forma sob a qual o acontecimento visível se manifesta”.

Entende-se, contudo, que é a partir do aperfeiçoamento da técnica de representação da imagem, que a transforma num serviço do conhecimento e da utilidade, que sua racionalização e aprimoramento das práticas de modelagem são realizados com cuidados mais específicos, dando a ela agilidade e generalizações temáticas, como o da produção do tipo racial puro, os registros da doença e do estigma e as representações dos fatos do dia-a-dia.

Com base em estudos de Knauss (2006), percebe-se que essas imagens, ainda que ressignificadas ou sucessivamente reproduzidas, oferecem vestígios para que seus significados não sejam tomados puramente enquanto dados, mas como construção cultural, na qual seja possível compreender os processos de produção de sentido enquanto processos sociais. E é a partir da visibilidade desse processo, por meio da imagem, que se perceberam novas maneiras de compor a história e se ampliou a concepção documental, permitindo compreender e manipular um mesmo documento de diferentes maneiras e para diversos fins (CHARTIER, 1991). Esses novos modos de manipulação documental determinam novos recortes temporais e propiciam novas aberturas ao modo de fazer história[2].

O contexto histórico e social dos territórios elencados

A temporalidade eleita corresponde ao contexto historiográfico das tensões sociais registradas nos territórios elencados, nos quais se destacam a primeira capital do Brasil, a escravização compulsória de africanos, a valorização do sujeito a partir da epidermização das classes e do estigma da escravização, a sede da Corte Portuguesa, e, finalmente, a instauração da Primeira República. As regiões do Salvador/BA e do Rio de Janeiro/RJ são compreendidas, aqui, enquanto territórios politicamente determinantes para o entendimento do processo de instauração e instituição do sentido de nação brasileira.

A conquista portuguesa do Brasil não apenas definiu uma sociedade marcada por justaposições étnicas, socioculturais e religiosas, mas também deixou marcas e construiu memórias, dando destaque às capitanias do Brasil, palco principal desse processo, à Bahia e ao Rio de Janeiro como capitais que foram[3].

A Bahia foi responsável por abrigar os primeiros conquistadores, tendo Salvador por capital. Salvador, em seus primórdios, também conhecida simplesmente por Bahia, foi capital do Brasil e sede da administração portuguesa até 1763, além de ser a principal costa de descarregamento do tráfico negreiro e centro de distribuição e comércio humano para a escravidão. A cidade do Salvador é considerada como a primeira região onde os primeiros negros começaram a ser desembarcados em solo brasileiro no período dos Governos Gerais (VIANA FILHO, 1988).

A escolha do Rio de Janeiro se deveu ao seu status de capital entre os séculos XVIII e XIX, principalmente por se tornar a sede do Vice-reino português, ou seja, o lugar onde o amálgama colonial determinou o cotidiano e a posição de seus sujeitos, seja pela presença da sede da Corte Portuguesa, a partir de 1808, seja pelo avanço das culturas da cana-de-açúcar, da pecuária ou até mesmo pela sua reputação de segundo maior porto de entrada da mão-de-obra escrava no território imperial.

As duas capitais são tomadas por se considerar que a produção de impressos no período abrangido possibilita maior visualização da representação de um cotidiano, e, também, pelo fato de como foram estruturadas as relações sociais nesses dois espaços, enfatizando, principalmente, a relação estabelecida entre os sujeitos de matizes branco e negro, bem como seus devires. Assim, propõem-se, comparativamente, olhares sobre a presença do negro e do branco em Salvador e no Rio de Janeiro, associando-se o fato de ser o Rio de Janeiro a capital do Império Colonial[4] até 1822 e a sede da decadência política do seu regime, bem como palco do processo de Independência e do advento da República. Ambas as capitais do Brasil foram espaços marcadamente escravagistas.

Ao considerar os períodos pré e pós-abolição do regime escravocrata como acontecimentos decisivos para a mudança no comportamento político e ideológico no País, entende-se que a consolidação desse novo regime é que instaurará pontos de tensão sociais avessos ao processo de burocratização, institucionalização e impessoalização das relações sociais (HAUFBAUER, 2000). Como resultado, observa-se, efetivamente, a ressignificação dos valores epidérmicos nos sujeitos, produzindo novos discursos tensionados a uma espécie de alteridade comum, que antagonizam, assim, não apenas as relações entre senhores e escravos, mas também entre sujeitos livres e comuns de matizes branco e negro.

Percebe-se, dentro da complexidade do contexto histórico e social que marca esses dois espaços geográficos, aqui percebidos enquanto espaços de clivagem, que as representações imagéticas dos corpos brancos e negros em “charges” publicadas em jornais produzidos nesses territórios difundem as tensões de sua época, relacionadas à abolição da escravatura e à instauração da República no Brasil. Essas imagens que enfatizam os tipos físicos comuns de negros, opacizaram a pluralidade étnica brasileira e difundiram a ideia de diversidade étnica identificada como branca, seus costumes sócio-culturais baseados nos valores clássico-europeus, passando a significar as considerações sobre o fenótipo do corpo e o matiz da pele, tomados como valor.

A partir dessas significações, os costumes, modos e os corpos no mundo ocidental passaram a ser medidos e associados pela concepção de alteridade europeia, responsável por significar as identidades dos sujeitos negros e daqueles entendidos como brancos nessas sociedades. Desse modo, é possível pensar que a queda do regime escravocrata e a instauração da Primeira República no Brasil, ao invés de promover o ideário de igualitarismo e estatização do bem público, vão reforçar as diferenças entre os sujeitos, e impor, através do discurso social, o ideal do branqueamento de forma hegemônica até a primeira metade do século XX, em respeito às “relações de poder patrimoniais e clientelistas que marcaram profundamente a formação sócio-política do país” (HAUFBAUER, 2000, p. 10).

A literatura e as representações identitárias: o valor e a hierarquia pela pele

Categorizar o conceito de literatura é o pressuposto inicial mais adequado para pontuar o objeto constitutivo ou material representado pela obra literária. Esta, muitas vezes, se apresenta como a expressão da individualidade de seu criador/autor, que imprime em sua obra considerações e/ou ideias coletivas, a partir de suas subjetividades como sujeito social de determinado tempo, espaço e lugares de suas subjetivações. Esse fenômeno só é possível ao se considerar que o autor, ao compor sua obra, a concebe de lirismos referenciais, ou seja, de acontecimentos inerentes à sua experiência de vida em sociedade, embora também ofereça nuances de pensamentos de seus personagens, efetivando o elo entre o si e o outro, por meio de dispositivos mnemônicos capazes de distinguir este sujeito relator a partir da memória coletiva[5] que o constitui e da qual faz parte.

O texto em prosa a que se denomina literatura é também entendido neste estudo como espaço de interconexão, ou ponto de clivagem. É um espaço histórico-social nutrido de memórias individuais e coletivas capazes de imprimir e apresentar práticas, saberes e representações identitárias, tanto do universo espelhado de seu relator, quanto de seus relatados.

Utiliza-se a obra literária para relatar e analisar as representações mnemônicas das identidades negras no País, por se considerar a literatura nacional um marco sociocultural no século XIX, elevada pela transição do Império para a República, pelos movimentos abolicionistas encabeçados por escritores, jornalistas, artistas negros e mestiços forros, muitos deles desconhecidos pelo grande público, e outra boa parte utilizada como mote e inspiração para romances[6].

Os questionamentos acerca da ausência do sujeito negro em documentos midiáticos, assim como na literatura e história nacionais da contemporaneidade, durante o século XX, remetem às evidências da opacização dos acontecimentos históricos, pois, conforme Albuquerque Júnior (2007, p. 26), “Somos nós que evidenciamos, colocamos em evidência dado evento ou conjunto de eventos e, no mesmo ato, esquecemos ou jogamos para os bastidores outros tantos acontecimentos”.

Os poucos indícios, nos quais a representação do negro se limitava na literatura nacional, se dá aos estereótipos clássicos de tipos de negro, indicados, por exemplo, pelas características representadas pelo romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha ([1895]2001), em que a fisionomia bruta, os lábios excessivamente grossos, a voz assustadora, os gestos rudes, o odor excessivo, a bestialidade, a pobreza e a sensualidade selvagem do protagonista negro são apresentadas como qualidades naturais da raça[7].

O desejo de realizar um ensaio em torno das identidades negras se deu ao verificar que Caminha, embora tenha utilizado a naturalização de um tipo estereotipado de negro em seu romance, abriu o diálogo sobre os discursos científicos, suscitados em seu tempo, que davam legitimidade aos ideais coletivos acerca do sujeito negro, enquanto esses ideais, promulgados com base nas teorias darwinistas, limitavam a capacidade cognitiva dos africanos e seus descendentes[8].

Acredita-se que Caminha foi um dos primeiros autores a inserir o negro, em um romance nacional, no centro de sua narrativa, de forma que não se tratava de um mestiço, ou de um porta-voz de pele branca e sangue negro, como foi proposto, por exemplo, em A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães ([1875]2005)[9].

O cenário do romance de Caminha, ao contrário da representação bucólica e escravocrata do ambiente rural no Brasil de Guimarães, é a Marinha Nacional e a cidade do Rio de Janeiro, segundo uma ordem física e política, representada pelo poder militar, de uma população que testemunhava a transitoriedade e o estabelecimento de seus novos valores.

Foi no contexto escravocrata do Rio de Janeiro que o personagem Amaro, da obra de Caminha, se tornou homem escravizado devido à cor escura de sua pele, condição social, mentalidade e, também, por suas afeições, que o levaram a questionar todas as regras e se rebelar contra a ordem hierarquizante que se estabelecia, há muito, à sua volta, como o regime de escravidão nacional e os limites oferecidos às populações negras e mestiças ainda que alforriados.

Os personagens de Caminha estavam adequados aos seus lugares e respeitavam a ordem de suas posições, ao menos até o momento em que Amaro assumiu-se transgressor dessa ordem. E, mesmo assumindo o papel de transgressor, transgredindo os espaços limitados para sua posição na hierarquia, o negro foi punido, e esta punição foi dada por um de seus superiores brancos, conforme a ordem vigente.

Ao longo da trama do Bom-Crioulo, o lugar e os estereótipos que diferenciavam o branco do negro foram bem evidentes, informando ao leitor que, segundo a obra, não há meios de confundi-los, principalmente por suas peculiaridades psíquicas, fisiológicas e comportamentais, conforme era possível observar na ilustração do trecho da obra em que Amaro utilizou-se do lazer de um banho: “[...] a primeira vez que o viram, nu, uma bela manhã [...] foi um clamor! Desde então Bom-Crioulo passou a ser considerado um homem perigoso [...]  Os grandes pesos era ele quem levantava” (CAMINHA, 2001, p. 24-25).

Caminha referenciou alguns matizes de pele em seu romance, a exemplo de um dos prisioneiros presente logo no início da obra, como o “rapazinho amarelo, cor de terra [...]” (CAMINHA, 2001, p. 14).  E mais adiante, “[...] O outro, um mulatinho esperto, que tinha o hábito de andar espiando à noite, o que faziam os companheiros, [e, finalmente um] moreno cor de jenipapo, cabelo rente, à escovinha, olhos negros, nariz acaçapado [...]” (CAMINHA, 2001, p. 17).

Esses exemplos se assemelham aos exemplos presentes na obra de Guimarães, no que tange ao caráter negativo e à personalidade tola dos personagens mais retintos, e o abrandamento, com inquietude dos personagens mais claros a exemplo de Rosa, ciumenta, mentirosa, vingativa, e do mulatinho esperto que se ocupava da vida dos companheiros no convés.

Caminha, contudo, não utilizou dos estereótipos apenas para a depreciação do negro conforme a proposta vigente na população baiana de fins do Império na iminência da República, nem tão-somente para a representação da superioridade do branco. O autor oscilou suas representações estereotipadas, propondo um diálogo inédito e sugestivo à narrativa considerada naturalista no Brasil. Tanto Amaro, o Bom-Crioulo, quanto os personagens brancos, a exemplo de Aleixo, o grumete, foram, cada um deles, representados em seus conflitos identitários.

Em Bom-Crioulo, Caminha apresentou o seu desejo de abrir o diálogo acerca do que os estudiosos e teóricos científicos suscitavam e/ou legitimavam, seguindo as teorias darwinistas, que limitavam a capacidade cognitiva dos africanos e seus descendentes, bem como novos estudos que surgiam para classificar como antinatural e/ou patológico a homossexualidade, assim como a questão negra.

O boicote e censura a sua obra em muitas instâncias sociais se manteve durante muitas décadas e sua imagem de subversor não foi apagada mesmo no século XX. É neste processo de transição, marcado pelas considerações científicas acerca da patologização da homossexualidade e da degeneração, representadas pela população negra e mestiça, que foram demarcadas novas categorias e classificações identitárias, apresentadas na figura do personagem central Amaro, negro e homossexual. A observação em torno destas questões leva à compreensão de que foi neste momento a constituição da ideia de cidadão nacional para a modernidade, representado “num jogo de inter-relação com um modelo de identidade hegemônica” (LARA NETO, 2007, p. 9).

Conforme elucidou Miskolci (apud LARA NETO, 2007), o pensamento social brasileiro de fins do século XIX, respondeu a este contexto com um diagnóstico que expressava o temor à degeneração ou o rompimento da ordem, portanto, o romance Bom-Crioulo não representou apenas uma forma de classificação de certas identidades e tipos sociais, como fez com as imagens do negro, mas, também, sobre a emergência do dispositivo da sexualidade no contexto brasileiro, que marcou a memória social, a partir do campo estabelecido entre o poder público da ordem e a memória que se constitui a partir deste.

De acordo com Lara Neto (2007), é possível pensar que Caminha propôs em seu romance a naturalização de comportamentos e identidades que trouxeram à luz temores sociais, que a maioria preferia manter opacizado, como a questão contextual pós-abolição, e a apresentação histórico-narrativa da memória em que a abolição se pautou pelo abandono dos ex-cativos, embora se considere o caráter denunciador de Caminha, ao escolher a estrutura da Marinha de Guerra, um dos símbolos de civismo e moral, durante o Império brasileiro, como cenário em uma atitude desmistificadora de suas patentes.

Amaro era um negro, ex-cativo, que após se libertar dos domínios da escravidão encontrou refúgio na Marinha de Guerra, e passou a fazer parte do corpo da guarda, não oficialmente, exercendo funções menos apreciadas, porém utilizando-se de toda a formalidade proposta pela instituição[10].

Além de ser acolhido pela Marinha, após sua fuga do cativeiro como uma animal feroz e indomável, Amaro passou a ser reconhecido pelos seus pares como o Bom-Crioulo por sua obediência e sujeição. No entanto, ao se descobrir encantado pelos trejeitos de Aleixo, um jovem grumete branco e frágil, o oposto de suas feições rústicas, negra e forte, Amaro, o Bom-Crioulo, começou a lidar com a interface de sua condição passiva e servil. É neste instante que ele se vê novamente cativo. Sua escravização se dá primeiro enquanto um escravo do trabalho e dos mandos de um senhor branco, segundo por sua subserviência a bordo do convés e terceiro por sua condição de afetuosidade de gênero: sendo ele homem, como poderia lidar com a paixão que se inflamava pelo outro do mesmo gênero?[11]

[...] Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rude como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos eram de parecer que “o negro dava para gente”. Amaro já sabia manejar uma espingarda segundo as regras do ofício, e não era lá nenhum botocudo em artilharia; criara fama de “patesca” [...] - Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com ele, quando não era logo metido em ferros... Ah! vida, vida!... Escravo na fazenda, escravo a bordo, escravo em toda a parte... E chamava-se a isso de servir à pátria! (CAMINHA, 2001, p. 22,41)

Essas evidências suscitam à ideia de tempo e consciência para Reis (1994), na qual em certas narrativas estão interligadas à destruição e ao terror, tanto dos sujeitos brancos, quanto os esclarecidamente negros, que se veem frágeis e austeros, simultaneamente, quando estão diante da finitude inexplicável, proporcionada pelo tempo e pela segregação. Esse tempo vivido por Amaro na companhia dos oficiais, apresentado pela obra de Caminha, possibilitou ao branco - representado pela figuração dos oficiais, assim como ao negro, exemplificado na imagem do Bom-Crioulo, que ambos enxergassem suas diferenças e semelhanças, de lugares invertidos. Entretanto, o que é apresentado, inicialmente, tratava-se de um estranhamento e de uma aceitação incorruptível do outro. Este, o outro, o principal mote suscitado pela obra[12].

O outro, neste estudo, povoa o imaginário mnemônico de uma época e se estabelece como a degeneração de uma ordem, de uma política pública, de uma memória que se constituiu através de imposições de outras memórias. O outro, ou seja, Amaro, o mesmo Bom-Crioulo, ocupou um lugar que não era seu, e isso provocou risos incontidos nos oficiais estranhos à sua rudeza selvagem, ingenuidade tipicamente docilizada em decorrência de sua condição escrava e obediente, e de seu distanciamento daquilo que era compreendido como ritual do homem civilizado, considerando-se a passagem descrita por Caminha em que relatou a surpresa coletiva de muitos ao perceberem que, ao longo dos meses, até se via o que todos eram de concordar que “o negro dava para gente” (CAMINHA, 2001, p. 22), por saber manejar uma espingarda, segundo as regras do ofício.

É possível compreender que há, ao longo do romance, não somente a evidência eurocêntrica reconhecendo a bestialidade da raça negra, mas também a confabulação e manutenção de uma memória sobre o africano enquanto sujeito provido de incapacidade intelectual e traços de bestialidade. O negro era o centro de um romance nacional, e este transcendia o tratamento marginal trazido por Guimarães, ao colocar uma porta-voz de pele branca e sangue mestiço de negro. O cenário do Bom-Crioulo é metafísico, embora também representasse a ordem física e política, mantida pelo poder militar instaurado por uma nação que testemunhava a transitoriedade e o estabelecimento de seus valores.

O anti-herói Bom-Crioulo apenas se rebelou contra sua condição de escravo, anterior à fuga, ou de subjugado quando sentiu o corpo se queimar de paixão. Caminha, contudo, ofereceu inúmeras possibilidades de compreensão do seu romance mais polêmico quando sua vida foi analisada e concluiu-se as assertivas de que ele, um branco partidário da causa igualitária dos direitos humanos, provou, ao seu modo, a existência de uma consciência para o negro inscrita na literatura de seu tempo, mesmo imbricada pelo eurocentrismo[13].

Na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha, um livro tomado pela crítica nacional como referencialmente autobiográfico, cujos principais motes são o preconceito racial sofrido por sujeitos de ascendência negra, bem como da subordinação a que é tratado o tema racial nos veículos de comunicação no Rio de Janeiro, que, na visão denunciadora do autor do romance, Lima Barreto ([1909]1989), se prestou a manter a soberania daqueles que foram os senhores de escravos e, porque não, herdeiros dos colonizadores majoritariamente brancos responsáveis pela posse, produção, manipulação e detenção de grande parte do território geográfico do Brasil, desde a instalação da Corte, gerando de forma subsequente uma hegemonia branca e aristocrática no País.

O autor brasileiro, filho de uma mãe descendente direta de uma africana escravizada e de um pai com ascendência portuguesa, negro, conforme relatou (BARBOSA, 2002), também poderia ser identificado como pardo respeitando sua miscigenação. Entretanto, segundo Alves (2008), identificar qualquer sujeito como pardo se vincula às subjetividades sociais adjetivadas por uma ideia de preconceito racial brasileiro, em que seus sujeitos, na busca do distanciamento de suas raízes inseriram normas e termos que visam destoar o peso significativo que a identidade terminológica da palavra negro lhes traria[14]. Desse modo, ser chamado ou identificar o sujeito como mulato, moreno, pardo, cafuzo, bazé, mameluco (índio) ou pessoa de cor, seria fatalmente menos carregado de julgamento, que chamá-lo propriamente de negro.

Assim é possível aproximar-se do fenômeno recorrente entre o período político da ideologia do branqueamento, corrente em fins do século XIX no País, em que foram incentivados os casamentos inter-raciais com o objetivo de erradicar, em uma projeção matemática, todos os negros presentes no Brasil por meio da miscigenação (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 207)[15].

Em sua obra, Lima Barreto se apropriou das memórias em torno dos matizes da pele, para a composição de seu personagem Isaías Caminha, um interiorano mulato que decidiu seguir para o Rio de Janeiro para cursar medicina e se tornar doutor, - uma referência à hierarquização social na capital da República, em que todos os homens que exerciam influência sobre as comunidades mais populares, como senhores de engenho, coronéis, fazendeiros e médicos eram reconhecidos como doutores e, por isso, respeitados -, iludido pelo seu sucesso como aluno aplicado enquanto estudante secundarista.

Em O triste fim de Policarpo Quaresma, também de Barreto ([1915]1992)[16], se evidenciou explicitamente a denúncia do lugar do negro, como ele foi visto pela lente monofocal a determinar posições socioculturais, dando a cada brasileiro o seu lugar na manutenção hierárquica da República (DAMATTA, 1997). Conforme Bosi (2010), Lima Barreto pertence à geração pós-abolicionista da Primeira República, e por isso, enfrentou a solidão com desassombro, estabelecendo relações de troca limitadas com seu meio devido à sociedade que repreendia o negro e as manifestações que transpunham certo controle do sujeito[17].

O sujeito negro era representado na literatura dos autores negros e não-negros do século XIX e XX como possuidor de identidades estereotipadas, demarcando lugares onde, a partir da observação do corpo físico e de seus fenótipos, da emoção de seu modo de ser e agir, se torna reconhecido. Todavia, esses lugares e modos de ser correspondiam à memória de um período em que o temor da degeneração ou o rompimento da ordem, perante as ideologias de progresso do início do século XX, acometiam o projeto de civilidade e construção do novo no cenário baiano do Salvador e, também, na capital da República, o Rio de Janeiro (PERES, 1974).

Lima Barreto exemplificou a ideia de introjeção por se tratar de um autor negro com rejeição dos seus fenótipos negroides e a “natureza selvagem de africano”. É possível ver na passagem de sua obra, Recordações do escrivão Isaías Caminha, momento em que o personagem Isaias Caminha se viu ridicularizado pelo deputado Castro que lhe mentiu com a promessa de ajudá-lo: “Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato” (BARRETO, 1989, p. 67). Tem-se, após a sensação de traição do deputado, uma reação de revolta em Isaias Caminha, que se aproximou das concepções representadas pela maioria dos autores não-negros do período supracitado, a exemplo de Caminha, responsável por evidenciar o caráter animalesco e assassino de Amaro que encerra o romance após assassinar Aleixo e abandonar o local do crime com indiferença.

Não obstante, Barreto ofereceu a Isaias Caminha a possibilidade de redenção ao se arrepender de ter deixado submergir, de sua natureza selvagem, sentimentos degenerados tão desprezíveis ao homem civilizado. E preferiu que o leitor contemplasse um personagem mulato de caráter covarde e obediente e, por que não, vitimizado pela opressão da sociedade responsável por graduar os seus atos. Anulou seus esforços, considerando que essa mesma sociedade fosse determinada a esmagá-lo tão fortemente até aniquilá-lo por inteiro[18].

A humildade proposta ao personagem Isaias Caminha também pode ser tomada com o objetivo de criar uma ideia positiva do negro (BERND, 1983), que deixava de ser vinculada tão-somente à bestialidade, ao caráter débil e à ausência deste. Porém, Rabassa (1965) viu a obra de Barreto como tendência à posição do autor enquanto sujeito, ou seja, a voz de Isaias Caminha poderia ser a própria voz de seu autor que, ao basear seu romance nas próprias experiências de vida, inseriu sua opinião sobre diversos assuntos acerca das mudanças políticas e sociais no Brasil. Damatta (1997) apontou para o caráter político, retratado na obra de Lima Barreto, sendo reveladora, não apenas da insatisfação de seu autor quanto à política de hierarquização na qual a sociedade se organizava, quanto também a apropriação de modelos de heróis e intelectuais estrangeiros a povoar o imaginário nacional. Ao descrever as feições do seu amigo Leiva, Barreto deu exemplos da sua ideia de herói, este parecido com Georges Ohnet: “Bem parecido, de rosto bem feito, e um nariz clássico e uns cabelos pretos, tratados com especial carinho de manhã e à tarde, ele tinha a insignificante boniteza dos homens, tanto do agrado das nossas mulheres” (BARRETO, 1989, p. 98).

Não eram eles que não me queriam deixar passar, era o meu sangue covarde, era a minha doçura, eram os defeitos de meu caráter que não sabiam abrir um. Eu mesmo amontoava obstáculos à minha carreira [...] O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso [...] a gente que me cercava, me tinha numa conta inferior [...] e fosse qual fosse o fim da minha vida os esforços haviam de ser titânicos [...] a beleza é uma promessa de felicidade! (BARRETO, 1989, p. 87-88).

Isaias Caminha tinha a consciência de seu lugar e, conforme Damatta exemplificou, Lima Barreto deixou para a literatura nacional “uma descrição pormenorizada do mundo social brasileiro que nenhum outro escritor jamais replicou, seja sociólogo ou romancista” (DAMATTA, 1997, p. 202). Em seus dois romances analisados neste estudo e, ao longo dos demais, Lima Barreto se mostrou enquanto sujeito de seu tempo, descrevendo com riqueza de detalhes as contradições da sociedade carioca, que se baseava em dois principais ideais antagônicos, sendo o primeiro o desejo de igualdade e o segundo a manutenção da hierarquia (DAMATTA, 1997).

Isaias Caminha também tinha o conhecimento de sua lassidão e fraqueza mental, conforme a ideia de introjeção exemplificada por Bastide (1983). Tanto que, ao caminho do bonde, depois de ter o emprego negado pelo padeiro e de refletir a respeito do acontecido, viu a imagem de ingleses pela rua e perguntou a si mesmo se estes, para ele convencidos de sua originalidade, saberiam da inteligência incalculável que trazia o povo escondida sob seus matizes negros. Persuasivo pela hierarquização, Barreto (1989) partindo de Isaias Caminha, repudiou “aquela sociedade com pessoas que me tinham suspeitado ladrão, pesava-me, abatia-me [...]” (BARRETO, 1989, p. 93). Entretanto, não eram apenas os sujeitos que se denominavam brancos, os políticos detentores de poder e os antigos senhores de escravos que compunham a sociedade renegada por Isaias Caminha. Muitos negros, como o exemplo da mulher no bonde, reiteravam a ideia de introjeção, quando a mesma a observá-lo, vestido com trajes tradicionalmente usados pelos senhores, passou a vê-lo como inadequado, por ele não reconhecer o seu lugar de não-nobre, embora se vestisse como um:

Num dado momento, virei-me e dei com uma rapariga de cor, de olhos tristes e feições agradáveis. Tinha uma bolsinha na mão, um chapéu-de-sol de alpaca e o vestuário era pobre. Considerei-a um instante e continuei a ler o livro, cheio de uma natural indiferença pela vizinha. A rapariga começou a murmurar, perguntou-me qualquer cousa que respondi sem me voltar. Subitamente, depois de fazer estalar um desprezível muxoxo, disse-me ela à queima-roupa:

- Que tipo! Pensa mesmo que é doutor... (BARRETO, 1989, p.94)

Não apenas da introjeção de um modelo hierarquizante viviam a população de matiz negro no Brasil, de Salvador e do Rio de Janeiro dos séculos citados. Segundo Bernd (1983), muitos desses autores negros utilizaram da literatura como forma de resistir à memória de degeneração da sua raça, propondo assim, de forma articulada, um vocábulo próprio, bem como símbolos particulares para resgatar uma memória cultural do negro que, gradativamente, se colocava no esquecimento ao longo do advento da nova ordem social.

Para essa autora, isto legitimou uma escrita negra, “uma literatura que se propõe a desconstruir o mundo nomeado pelo branco e erigir a sua própria cosmogonia” (BERND, 1983, p. 18). Pautada por um viés ideológico, quanto à questão negra, a autora definiu essa literatura como um grito de apropriação do discurso negativo, enquanto um modelo de elevação da cultura, do caráter e do corpo físico do sujeito negro, assim determinado pelo movimento político-ideológico francês da negritude.

Este movimento representou, na perspectiva de Bernd (1983), o reflexo de uma crise de identidade, adotado pelo movimento negro no Brasil, com início no século XIX, dando margem para o posicionamento em torno da questão da pele na sua amplitude. E assim, considerando os fenótipos, a relação de pertencimento identitário de alguns grupos que se reconhecem como negros. Todavia, conforme Jaguaribe (apud BERND, 1983, p. 16): “A afirmação da negritude como uma ideologia que assume supostas correlações inerentes entre as características psicofísicas do negro e a cultura por ele produzida constitui algo de cientificamente falso e ideologicamente negativo”.

Escritas pelo autor baiano Manuel Raymundo Querino (1851-1923)[19], as obras A Bahia de outrora ([1919]1946)[20] e Costumes Africanos no Brasil (1938)[21] completam o “corpus” literário selecionado para a composição deste estudo. Essas duas obras, no entanto, não correspondem às características estruturais da narrativa literária, embora, de acordo com Flexor (1998), também não representem características que pudesse desautorizar esse status.

Na contracorrente do que se pudesse incorrer ao se falar desse autor, Manuel Querino, entende-se que a obra, bem como o autor, são entendidos, desde os equívocos de precisão científica presentes nessa literatura, marcada pela inserção demasiada de depoimentos orais, até às concepções subjetivas acerca da sua própria vida:

Manoel Querino [sic], apesar de sua interessante produção intelectual para o período em que viveu - segunda metade do século passado e começo do XX -, foi mais um cronista que historiador e suas obras apresentam informações errôneas, impressões, cronologias e atribuições indevidas. Muitas das suas referências, especialmente do período que não vivenciou, basearam-se na tradição oral, ou deduções pessoais, o que, de fato, não credenciam seus dados como verdadeiros. (FLEXOR, 1998, p. 80)

Embora as obras A Bahia de outrora e Costumes africanos no Brasil sejam consideradas e tomadas como textos científicos, correspondentes a importantes estudos resultantes de pesquisas incansáveis de seu autor, em torno da multiplicidade cultural e étnica da população negra e africana no Salvador, elas são tomadas aqui em duas condições que se distanciam e se aproximam dessas considerações: a primeira como estudo teórico-científico, por se entender a importância de sua contribuição acadêmica como fonte de pesquisa sobre as memórias e identidades negras. E, na segunda condição, compreendida como literatura, ao se considerar que os estudos narrados nas obras são nutridos majoritariamente por relatos orais e por muito da intenção e experiência de seu autor e, portanto, são memórias que descrevem um retrato das comunidades negras no ambiente desigual e excludente no período que vivenciou[22].

No entanto, não se descarta a realidade e o contexto da época em que Manuel Querino estava inserido e, mesmo sendo ele alguém que transcendia os espaços que eram delimitados por sua etnia, entende-se que o acesso a documentos importantes por uma pessoa negra não era facilmente permitido[23].

Manuel Raymundo Querino foi da geração da segunda metade do século XIX, no Brasil, contemporâneo de Adolfo Caminha e Lima Barreto. Ao mesmo tempo, esses autores, que experienciaram as memórias de uma sociedade escravagista no País, tiveram também a vivência do período pós-abolição em meio aos conflitos sócio-políticos e econômicos.

A Bahia, particularmente a capital do estado, vivia momentos de tensão marcados pela transição de um modelo imperial, mantenedor do tradicionalismo agrário-escravista para outro de características mais liberais, evidenciando a luta pelo abolicionismo dos escravos e a tentativa de implantar uma política republicana. Manuel Querino presenciou esse contexto, que se enriqueceu ideologicamente baseado na ascensão e crise da ordem liberal no País, estabelecida desde a guerra contra o Paraguai marcando toda uma geração em busca de um porvir diverso e, por que não, constitutivo de uma ordem comum em direção à ideia de progresso e civilidade. Todavia, é sabido que a luta de Querino pelos cidadãos comuns era inerente à sua própria história de vida. Ele se esforçou para arredar o artista da tutela da política almejando sua independência e autonomia, bem como pela causa operária a qual pertenciam os artistas do período; “A primeira vez que Manuel Querino militou em política foi em 1878, como republicano, quando teve o seu nome indicado aos sufrágios do povo, tal o devotamento com que se empenhara na propaganda democrática” (BARROS, 1946, p. 8).

Sujeito do seu tempo, experienciando o fenômeno social que o condicionava na posição de imobilidade, Querino se articulou sob esta condição em defesa de interesses comuns ao mesmo tempo coletivos, em favor da causa negra, defendida pelos ideais do Partido Liberal, visando o republicanismo e o abolicionismo. Ele experimentou, na pele, a condição limitada, reservada ao negro dos fins do século XIX, ao ver que inúmeras manifestações e ações realizadas pelo seu movimento em defesa dos direitos civis dos negros e operários não alcançavam as mãos das lideranças de renome, assim como Ruy Barbosa e José do Patrocínio, conhecidos pela história oficial por alguns feitos relacionados à questão escravista (LEAL, 2009).

Seus ideais republicanos eram defendidos por meio dos periódicos A Província e O Trabalho, ambos fundados por ele, no auge do advento do novo regime político que a capital da província baiana testemunhava. Em ambos os periódicos reclamou categoricamente os direitos da classe operária, “e isso lhe valeu a nomeação de membro do Conselho Municipal, 1891, e nos debates [...] não cessou de propugnar e acentuar suas ideias em relação à causa do operariado” (BARROS, 1946, p. 8).

Ao contrário de Lima Barreto, Manuel Querino não experimentou, segundo dados de sua escassa biografia, o conflito do alcoolismo, da loucura e das constantes prisões em desrespeito as leis de seu tempo, no entanto, o percurso de sua vida seguiu caminhos muito próximos aos vivenciados por Lima Barreto, como a condição econômica estagnada à margem social de uma Bahia ressentida, a não conclusão dos cursos técnicos nas escolas oficiais, o pouco reconhecimento dos pares de sua época quanto da legitimidade e da importância de sua produção intelectual. Não obstante, ambos os autores viveram a experiência dos processos que se restabeleceram com os laços do seu presente até o limiar do século XX.

Em Querino (1938), assim como em Barreto (2010), não há o distanciamento quanto às impressões do que se observa no sujeito que possua a pele negra, principalmente ao considerar o tempo no qual ele narra essas observações. Em seu tempo, ser negro é o mesmo que uma “fatalidade” (QUERINO, 1938, p. 100) em que o sujeito não tem a chance de decidir ou mudar o destino de sua genética, e, dando sequência ao seu pensamento, embora o corpo e o sujeito negro possuam atributos interessantes aos olhos do outro, como “qualidades para ser uma excelente companheira e uma criada útil e fiel... sadia, engenhosa, fina, sagaz, cautelosa” (QUERINO, 1938, p. 99-100), este não escapa do estigma da ausência da “força inteligível” atribuído a sua etnia, para elevar-se da fatalidade que lhe diz respeito

[...] a negra Mina apresentava-se com todas as qualidades para ser uma excelente companheira e uma criada útil e fiel [...] Escrava resistente a todos os trabalhos... ao mesmo tempo que nutria um fogo inextinguível, ela sabia dirigi-lo e aproveitá-lo em benefício da própria prole [...] em toda a parte do país onde houve escravatura ela influiu poderosamente sobre o galego e vacinou a família brasileira [...] Não possuindo força inteligível para elevar-se sobre a fatalidade de sua raça, ela pregava toda a sua sagacidade afetiva em prender o branco e a sua gente na tepidez do colo macio e acariciador (QUERINO, 1938, pp. 99-100)

Para Fanon ([1952]2008), muito além da identificação física do indivíduo estão os esquemas corporais, e estes especificam o sujeito conquanto representante de sua espécie, independente do lugar, da época ou das condições nas quais ele tenha vivido. O esquema corporal seria o responsável por reportar o corpo do presente à experiência imediata, podendo ser independente da linguagem e da história que relaciona o sujeito com outros. Um ponto possível para pensar em como Querino, enquanto autor, estabelece o distanciamento da negra que ele relata.

Noutro ponto, tem-se a remissão do que Gomes (2006) chama de memória do inconsciente, traçada na relação entre o colonizador e o colonizado. Uma consideração que, se tomada, leva ao que poderia ser considerado um contradito presente no enunciado de Querino, quando ele suscita a raça como um fator de fatalidade ao negar a si mesmo na imagem do outro e de seus grupos étnicos, resultando na ideia de introjeção do racismo.

Para Fanon ([1952]2008), neste contexto de introjeção, o conhecimento do corpo é uma atividade unicamente negadora. Por se tratar de um conhecimento em terceira pessoa, pois em torno desse corpo reina uma atmosfera de incerteza. Sendo assim, o negro é sobredeterminado do exterior[24]. Deste modo, esta posição de Querino não teria se tratado de um sentimento de inferioridade, mas sim de inexistência. Sentimento este que será compartilhado entre muitos negros após, principalmente, o advento da República, quando os negros resistiram e sofreram resistência para a inserção de si e de suas subjetividades no seio social do Brasil.

E, se de um lado, Manuel Querino atribuiu a não inteligibilidade a uma das etnias africanas, de outro lado, ele atribuiu à elite política e intelectual de seu tempo a culpa pela não mobilidade social e intelectual de outros grupos negros, deixando impresso o seu “protesto contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude, como qualidade congênita e não simples condição circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não evoluídas” (QUERINO, 1938, p.22)[25]. Sua reivindicação, todavia, mantém ao final da citação o lugar comum em que se via naquele período o negro africano, equiparado a todas as “raças não evoluídas”. Protesto este que para o historiador inglês Brookshaw (1983) teria sido mais uma reivindicação particular de Manuel Querino na tentativa de “reabilitação do mestiço urbano alfabetizado; de aspirações pequeno-burguesas” (BROOKSHAW, 1983, p. 56).

As ideias em torno da concepção da introjeção e também dos esquemas corporais não são tomadas por este estudo como resposta específica para o recorte e a posição de Querino (1938), especialmente por serem conceitos muito particulares da problemática do racismo e dos movimentos negros da segunda metade do século XX. Estes são conceitos tomados enquanto caminhos para se pensar o modo sensível do sujeito negro retratar a si na sua subjetividade afetiva e histórica.

A partir das abordagens de Fanon (2008) e de Gomes (2006), é possível concluir desta questão que Querino (1938) não estabeleceu identificação direta com a negra de etnia Mina por não pertencer ao contexto da escrava, ou seja, ele, enquanto sujeito nascido em um território fora da África é filho de pais miscigenados, e, ainda que sejam mais retintos não correspondem à memória descrita que reveste o corpo da personagem negra.

O distanciamento de Querino (1938) da negra que ele descreve, propõe o relato de uma lacuna que ligaria o sujeito negro do tempo de Manuel Querino à sua origem genealógica. E neste intercurso se observa, em Barreto (2010), o distanciamento determinado entre ele enquanto sujeito, da figura de seu pai, que tem sinais que conservam de forma mais evidente à sua raça e, por isso, lhe entregou a quem quer que o tenha visto. Em Barreto (2010), o fato de ser ele o filho de seu pai (BARBOSA, 2002), um homem mulato nascido escravo e de sua mãe, uma filha de escrava agregada de uma família branca, representa o distanciamento dos sinais da raça por ser ele cria miscigenada de uma geração antecessora de miscigenados. Com isso, o peso do estigma negro para Barreto (2010), bem como de sua identificação direta com a pele negra, teriam sido esmaecidos de sua memória.

Neste contexto, entretanto, é possível compreender que existiu o distanciamento e a negação da raça, justificados pela justaposição de um padrão de ordem/inclusão branca e de desordem/exclusão negra. E, todavia, é característico de um devir étnico-ideológico que não se enquadra nem em um fenótipo tomado no Brasil como branco e nem no fenótipo tido como reminiscência africana. É, por fim, nesta perspectiva, que se entende estes sujeitos no cruzamento de uma definição comum, em que há a consideração e/ou formulação que transpõe o limite de uma etnia genuína. Isso quer dizer que ele se coloca em um domínio no qual ele não é branco e nem negro, de acordo com as referências de identificação que emergem da narração feita sobre o outro. Para finalizar, eles parecem fundar outro lugar para o negro que ainda não havia sido descrito e com o qual não se identificam para criar outros tipos de identidade. Posto isto se quebra com a ideia purista que se tem de uma identidade negra fixa, que se molda a partir do olhar do negro para o negro constitutivamente diferente dentro de sua própria etnia.

Imagens do corpo e da pele em “charges” de brasileiros

Conforme evidências analíticas de resultados parciais da iconografia levantada em consulta aos jornais soteropolitanos, foram encontrados, nos jornais A Bahia (1900-1945) e A Coisa (1900-1904) 197 “charges”. Deste total, observou-se que 191 retratavam sujeitos com matizes de pele compreendidos como sendo brancos e 6 retratavam sujeitos com matizes de pele tomados como negro.

Dessas imagens e suas classificações, foram constatadas as divisões de cor/raça e gênero, sendo que 163 “charges” representavam sujeitos do sexo masculino, 30 representavam o sexo feminino e uma não tinha o sexo definido.

Em relação ao gênero e à cor/raça, foram identificadas 2 “charges” de representações da mulher de pele negra, 4 representações de homens negros; 162 representações masculinas dos sujeitos identificados como sendo brancos, 28 representações do corpo feminino identificado como sendo branco, e 1 representação de corpo identificado como branco sem sexo definido.

A evidenciação dos matizes nesse pequeno grupo de imagens permitiu que fosse percebida a relação do contexto sócio-histórico da época com as tensões em torno das etnias/raça dos sujeitos. Foi possível observar, ainda, a hierarquização da sociedade a partir da quantificação de “charges” contendo a representação de sujeitos de matizes branco e negro, assim como a hierarquização determinada pelos modos de agir e se vestir, denunciados pelas imagens.

Ao se observar as “charges” O vigor [Figura 1] e Carpindo [Figura 2], ambas da década de 1900, pouco depois do advento da República e dois anos depois da abolição da escravatura no Brasil, nota-se que as duas imagens ocupam o imaginário que seria socialmente condicionado aos sujeitos negros, como é o caso da Figura 1, anúncio publicitário destinado aos trabalhadores com excesso de atividade física e intelectual. Neste caso e no tocante à Figura 2, imagina-se que, para o discurso da época, considerando-se o ideário de igualdade sócio-etnico-racial entre os sujeitos, o lugar do eito era o lugar em que os negros e mestiços se encontravam em maior quantidade que brancos. Porém, cabe à reflexão de que, o público consumidor desses anúncios era, em sua maioria, aquele que as imagens representam, levando-se a conclusão de que a população negra ainda não estava ou seria considerada como público leitor e consumidor desses tipos de anúncio. Assim, esta população negra constituiria um contingente à parte da sociedade leitora e, também, consumidora de jornais e bens de consumo, visto que não foi encontrada nenhuma imagem de negro exercendo funções que seriam naturais a eles na época.

A representação do corpo europeu nos anúncios de publicidade com objetivo de venda de bens de consumo, nos jornais brasileiros do início do século XX, em detrimento da inserção do corpo negro nesse segmento, revela indícios da psicologia da época, voltada para motivos e concepções gregas em torno dos valores de beleza física e das artes, de modo geral. Essa representação grega, todavia, estabeleceu materialmente o ideário do corpo grego que se dá pela combinação das qualidades de um modelo de beleza física e de uma concepção cristã de superioridade moral. Tem-se nessa combinação as qualidades arbitrárias da força física, mais comum no corpo negro escravizado, embora, transpostas para o corpo branco. São essas qualidades físicas que, também, não condiz com as qualidades do homem português do Brasil do século XX, mas que faz remissão ao herói grego cheio de valores vitais, que comportam sempre em referência ao modelo divino uma dimensão sagrada, cuja dosagem varia segundo os casos individuais: “o corpo reveste a forma de um tipo de tabula heráldica na qual se inscreve e se decifra o estatuto social e pessoal de cada um” (VERNANT, 1986, p. 35-36).

A forma com que as figuras Banhistas [Figura 3] e Modelando [Figura 4] são apresentadas, reitera à significação da ideia de qualidades vitais presentes no corpo, não tão-somente musculoso, quanto também curvilíneo e gracioso, em suas formas delicadamente acentuadas, conforme a exemplificação da moça com trajes de banho caminhando para dentro do lago. A moça nua em pose de duas representações de modelagem em posições sinuosas contrapostas a representação rústica, do que seria uma cozinheira robusta por detrás da banhista.

Os corpos apresentados nas figuras representando imagens do gênero feminino são mais próximos de um imaginário da mulher portuguesa, por sua voluptuosidade e os cabelos negros, mas também remetem às propostas do Renascimento[26], à exemplo da recriação rechonchuda da Vênus de Urbino (1538),  pintada por Ticiano Vecellio (1473/1490-1576), bem como as pinturas de mulheres com corpos volumosos encontradas em evidência nas pinturas de Sandro Botticelli (1444-1510) e Masaccio (1421-1428). A partir da leitura de Vernant (1986, p. 35-36) entendeu-se que este corpo grego seria a semelhança do corpo divino, porque reúne as combinações de beleza física com a superioridade moral, indissociáveis. Para o autor, “essas qualidades têm uma dimensão sagrada, e estas qualidades revestem o corpo de um estatuto social e pessoal estabelecendo uma escala de perfeição em relação aos deuses e aos próprios homens”.

O ato da leitura, em que há a manutenção despojada do corpo sobre uma “chaise” [Figura 5], em que o fenótipo físico, a manipulação do corpo, a vestimenta e as atitudes são correspondentes aos padrões europeus, também são remissivos ao contexto dos valores estéticos greco-romanos.

Considerando o contexto das imagens, demarcado no período pós-abolicionista e, também, de instauração da República Federativa do Brasil, à luz de um dos principais objetivos de estabelecer o igualitarismo jurídico de negros e brancos, senhores e escravos, tem-se nessas representações iconográficas o que Damatta (1997, p. 199) chamou de posições de hierarquização social. Segundo ele, “na medida em que [...] a bengala, as roupas de linho branco, os gestos e maneiras, o anel de grau e a caneta-tinteiro no bolso de fora do paletó se dissolviam” - ou seja, passavam a ser de uso popular tanto de brancos, negros, senhores e libertos -, os sujeitos da elite social brasileira buscavam novas maneiras de separarem suas posições sociais, para que o igualitarismo proposto pelo ideário da política abolicionista e republicana não se consolidasse em sua totalidade. Constituía esse igualitarismo social, portanto, apenas em sua formalidade de lei, mas nunca, na esfera social, onde as separações se evidenciam pelos modos de agir, vestir e calçar-se, consumir e falar etc.

Diante da lei geral e impessoal que igualava juridicamente, o que fazia o membro dos segmentos senhoriais e aristocráticos? Estabelecia toda uma corrente de contra-hábitos visando a demarcar as diferenças e assim retomar a hierarquização do mundo nos domínios onde isso era possível. É claro que a arena privilegiada dessas gradações veio a ser a casa e o corpo, esses domínios fundamentais do mundo das relações pessoais e dos elos de substância. E assim inventamos uma “teoria do corpo”, acompanhada de uma prática cujo aprendizado é, até hoje, extremamente cuidadoso (DAMATTA, 1997, p. 199, grifos e aspas do autor).

O corpo branco, sob o padrão da estética greco-romana, é retomado para representar uma nova categoria de anúncios de jornais no Brasil. A nova sociedade brasileira se reorganizou socialmente, substituindo as relações escravocratas e senhoriais pelas relações de hierarquização determinadas pela representação, sendo de um lado, o corpo, a pele, a vestimenta, os modos de agir, falar e andar e de outro lado, a casa, onde se encontram os domínios dos bens de consumo para a manipulação e manutenção de uma nova ideia de corpo sagrado.

Para Vernant (1986, p. 39), a aparência física, aquela que se pode ver com os olhos, diz respeito ao tamanho, ao contorno, às tonalidades, ao brilho do olhar, à vivacidade e à elegância dos movimentos. Sendo assim, a beleza de um determinado sujeito poderia ser transportada do exterior sobre o corpo para modificar seu aspecto a partir do uso da vestimenta ou de adornos, podendo embelezar aquilo que não é tão belo, “modificando o aspecto do corpo para modificá-lo e embelezá-lo”.

Embora em contextos e épocas diferentes, considera-se que há confluências nas impressões abordadas em torno da manipulação e apresentação do corpo nos estudos de Vernant (1986, p. 40-41) e Damatta (1997), pois ambos reiteram se tratar o processo do cuidado com o corpo, uma forma de deusificar, ou seja, propor a deferência de um sujeito em relação ao outro. Desse modo, “pensar a categoria do corpo significa ressaltar os polos opostos entre luminoso e sombrio, belo e feio, valoroso e vil, situando-o numa zona de oscilação entre esses extremos passando de um ao outro”. A identidade corporal se presta a essas mutações súbitas e essas mudanças de aparência, da adequação com as roupas e os adornos, passam a determinar identificações e dessemelhanças entre os sujeitos e os novos grupos que se estabelecem, com a proposta de igualitarismo.

É diante da nova ordem social em que o corpo branco é exaltado e levado para os anúncios publicitários nos jornais, devido a pigmentação clara de sua pele e seus fenótipos remissivos à Antiguidade Clássica Greco-romana, o corpo negro, sem o revestimento de indumentárias e os cuidados da toalete que possam embelezá-lo, mantém-se no mesmo lugar de antes, à margem da sociedade, quando ainda era tido como um selvagem. Para Skidmore (apud DAMATTA, 1997, p. 200) a problemática acerca da teoria do corpo, é pontuada, principalmente, neste contexto social, em que há a evidência do que ele chama de “racismo à brasileira”, compreendido por duas fases que se distinguem, sendo a primeira relacionada aos fatores de hierarquização rígidos, caracterizados “logo após a Abolição, quando, de fato, o problema se apresenta”, e, a segunda fase, após a publicação da obra Casa Grande & Senzala, que, na opinião de Damatta (1997), ao pautar-se pelos aspectos culturais do fenômeno da escravização e sociabilidade estabelecidos entre escravos e seus senhores, não evidenciou o problema da formação sociocultural brasileira no seu aspecto de fundação, passando a defender o ideário da miscigenação e da mulataria. É, entretanto, nas duas fases, que o autor acredita estar o corpo como elemento central da elaboração ideológica, oferecendo subsídios para o plano hierarquizador da sociedade brasileira moderna, “seguindo a lógica das relações pessoais [...] jamais chegamos a temer realmente o negro livre, pois todo o nosso sistema de relações sociais estava fortemente hierarquizado”. (DAMATTA, 1997, p. 200-201).

As formas de hierarquização são evidenciadas em muitas passagens dos livros de Lima Barreto, especialmente em Triste fim de Policarpo Quaresma, quando uma personagem descrita como velha preta dialoga com a personagem Coleoni. À personagem do gênero feminino e negra é determinado o temperamento choroso e humilde, e ao personagem de Coleoni são atribuídas às características de bondade e altruísmo e, ainda que haja a dispersão dos personagens negros neste romance, o tratamento estabelecido entre um personagem negro com um branco, é pontuado pela palavra sinhô, seu majó, sinhá e sinhazinha, em constante remissão ao contexto escravocrata brasileiro. É possível ainda notar às práticas de hierarquização nas constantes descrições dos olhos tristes e rebaixados do preto velho Anastácio, socado na roça, com sua voz mole de africano. Destaca-se aqui uma passagem da narrativa que evidencia a devoção do preto velho Anastácio para com o major Quaresma, mesmo depois da Abolição. Na cena, enquanto Anastácio trabalha embrenhado na sujeira da terra, muitas damas elegantes passeiam pelas ruas vestidas com brocados e sedas, evitando que a lama ou o pó sujasse seus vestidos.

A observação das figuras seguintes ilustra com mais clareza a condição e os lugares das etnias branca e negra na sociedade brasileira do Salvador, após o advento da Primeira República.

Vê-se à esquerda da “charge” Tudo é sellado [Figura 6], a representação de uma mulher negra adulta, comerciante, em companhia de um jovem negro. O jornal, cujo objetivo é tratar assuntos sérios do cotidiano baiano, com pitadas de humor, parece pretender a representação crítica do lugar do negro e do nordestino, figura central da imagem, perante a política instaurada no País. É possível analisar de maneira, bastante genérica, que o político é representado por uma fotografia e, estaria distante da realidade destes brasileiros, que, mesmo diante dos novos ares da República do Brasil, se veem basicamente nos mesmos lugares de antes.

A Figura 7 também reforça o lugar do negro no Brasil republicano, identificado ao fundo pela imagem de um senhor negro descalço, denominado como Zé povo, segurando ao alto, com os braços hasteados, o que seria a cabeça de um político. Na mesma imagem encontra-se a representação em destaque dos federalistas e, à esquerda, do que se tratava da concentração, ou seja, a imagem de jovens homens brancos.

Foram poucas as evidências em que o negro é representado sozinho na capa dos veículos pesquisados ou no interior de seus cadernos. As representações de negros nesses periódicos estão sempre em planos inferiores, dando a ideia de marginalidade, ou senão, a representação negativa de uma memória de escravidão e de morte, conforme os dois próximos exemplos abaixo.

Na “charge” Peste negra [Figura 8] é possível notar a pigmentação retinta do crânio em representação a peste bubônica. Na parte superior da imagem a pergunta - “ENTÃO, POSSO ENTRAR?” -, remete novamente ao lema editorial da publicação. É impossível não unir os elementos da cor negra da caveira ao torpor social da década de 1900, em que negros disputavam lugares na sociedade baiana, considerando que estavam livres e dependiam de novos modos de sobrevivência e sociabilidades.

Já em 13 de maio [Figura 9], a segunda e última evidência de um ícone negro na capa do jornal, tem-se a remissiva de sua condição escrava, embora com as algemas rompidas para lembrar o dia em que houve oficialmente a abolição da escravidão no Brasil. Os glifos inseridos na imagem, a dizer, o ponto de interrogação em substituição da cabeça da personagem, traz a tona a dúvida sobre os caminhos dos negros; mais uma vez, descalço a exemplo de todos os outros negros representados pelo A Coisa, este caminha sem direção.

O olhar do branco sobre o negro é caracterizado na evidência dessas figuras, na condição de pena ou vergonha do alheio. No entanto, embora seja aportada a condição da escravidão destes negros em seu passado, essa memória ignora os processos de fundação dessa escravização. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, o olhar do branco lançado ao negro ou do mestiço lançado ao negro é carregado de pena e distanciamento, conforme evidência do olhar do mulato Ricardo sobre a lavadeira, uma rapariga preta que lavava. Este, ao olhá-la no tanque da casa escondida dele, abaixando o corpo sobre a roupa, despendendo todo seu peso para ensaboar a roupa, sentiu pena dela, “teve pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor” (BARRETO, 1998, p. 93). Essa nova maneira de relacionar, proposta pelos novos modelos de socialização, institui preconceitos sutis, a partir de brincadeiras em que o negro se vê depreciado ou colocado na condição de inferioridade.

E, embora miticamente, a estrutura social moderna da Primeira República no Brasil possa não ter assumido o negro em sua concepção humana, sendo ele, em constantes oportunidades, representado ou assimilado à morte, à subserviência, à sujeira, à bestialidade, à pobreza e ao descaso, conforme as iconografias apresentadas, esta estrutura o integrou em caráter externo, ou seja, a partir do outro, responsável por lhe oferecer um lugar naquela sociedade que começava a seguir um ideal de modernização.

Conclui-se, portanto, que o outro, o mesmo responsável pela escravização do negro, também se responsabilizou por sua liberdade e, seguidamente, foi o responsável pelo seu descaso social e pela manutenção de uma identidade equivocada à seu respeito (VEJA [Gilberto Freyre], 2003).

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COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, jun. 1900, Ano. III, n. 143.

COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, mai. 1900, Ano. III, n. 139.

COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, fev. 1900, Ano. III, n. 126.

COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, mar. 1900, Ano. III, n. 139.

COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, mai. 1900, Ano. III, n. 141.

COISA, A - CRITICA, SATYRICA E HUMORISTICA. Salvador, jul. 1900, Ano. III, n. 149.


[1] Doutorando em História e Cultura pelo PPGHIS - Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU/CAPES) e membro do POPULIS - Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular Imagem e Som da UFU. E-mail: tuliohpereira@me.com.

[2] Em Chartier (1990, p. 62-63), todo documento é representação do real que se apreende e não se pode desligar de sua realidade construída, pautada em suas próprias regras e códigos. Esses códigos e regras estabelecem um universo de historicidade de sua produção e intencionalidade da sua escrita. Assim, todo tipo de texto/imagem possui uma linguagem específica, na qual foi produzido, instituindo uma ideia de realidade.

[3] As considerações de Depestre (1980) auxiliam na compreensão do entendimento do processo de justaposições étnico-raciais, pois segundo ele o valor inferiorizado do negro foi consequência do regime escravocrata, que deixou como herança às inúmeras populações negras no Brasil e Américas a epidermização das relações socioeconômicas “acrescentando assim, às contradições e às alienações inatas do capitalismo, um conflito de um novo gênero, um tipo de caráter adquirindo nas condições específicas das colônias americanas: o passional antagonismo racial(DEPESTRE, 1980, p. 8-9 grifos do autor), “ou egoísmo de classe reduziu a 'essência' humana [...] de diferentes etnias africanas a uma fantástica essência-inferior-de-negros; e a 'essência' humana dos proprietários saídos de diversas nações europeias em uma não menos extravagante essência-superior-de-brancos”.

[4] Antes da República houve o regime Imperial, com Imperador, por pouco tempo português e, depois, por Imperador brasileiro.

[5] Para Halbwachs (2004, p. 26-34), a memória coletiva frutifica por intermédio do conceito de memória social, advinda das considerações de Durkheim a respeito da temática da memória. Nesta concepção, a memória social se dá a partir do conhecimento coletivo dos símbolos e acordos vigentes em uma sociedade e/ou grupo. Desse modo, o sujeito nunca está isolado mesmo se mantendo afastado de outros, pois, na perspectiva halbwachiana, todas as referências e pulsões, acionadas por esse sujeito, advém de seu grupo. Portanto, para ele “nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem [...] Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum” (HALLBWACHS, 2004, p. 26-34).

[6] Algumas das personalidades negras a compor o imaginário da luta étnico-racial no Brasil foram: Machado de Assis (1839-1908), Francisca da Silva de Oliveira ou Chica da Silva (c. 1732-1796), Juliano Moreira (1873-1933), responsável por discordar de Nina Rodrigues quanto à suposta contribuição negativa dos negros na miscigenação brasileira, e o mais antigo e mítico Zumbi dos Palmares (1625-1695).

[7] A ideia de raça é uma concepção do Século XIX. Ela advém de teses produzidas na Europa neste período e diz respeito aos seres humanos em suas diferenças. Segundo Haufbauer (2000, p. 9), “como o ser humano era concebido como parte integrante da natureza, recorria-se a critérios físicos-naturais para 'medir' tais diferenças”.  Essa ideia de raça se transforma ao longo da história e através dos estudos da sociologia, antropologia e medicina, passando de uma categoria biológica inerente aos fatores de determinação climáticos e geográficos, e, também, independente destes, até se configurar em uma concepção pejorativa na contemporaneidade. Neste estudo, a categoria “raça” será utilizada respeitando o momento histórico recortado, de modo que não configure equívocos de extemporaneidade ou anacronismo.

[8] Adolfo Ferreira Caminha foi um escritor brasileiro classificado como naturalista. Branco, nasceu em Aracati, Ceará, em 29 de maio de 1867. Atormentado pelo falecimento da mãe, e pela dificuldade provocada pela seca que assolou a região Nordeste nos idos da década de 1877, decidiu se mudar para Fortaleza onde iniciou os estudos, porém seguiu para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Naval da Marinha de Guerra do Brasil, em 1883. Inserido em um contexto histórico escravocrata e monárquico, Adolfo Caminha, com apenas 17 anos, apresentou-se contrário à mentalidade da época. E nas poucas ocasiões das quais participou deixou clara sua posição de opositor às leis do Império. Formou-se guarda da Marinha Nacional e seguiu a carreira de marinheiro até ser assolado por decisões consideradas ousadas e/ou a frente de seu tempo, como amasiar-se com a esposa de um segundo tenente. Iniciou sua carreira literária em 1886, com o livro de poemas Voos incertos, seguido dos livros de contos Judite e lágrimas de um crente, ambos com pouca repercussão no cenário nacional, e, A Normalista, um dos romances de maior projeção da carreira de Adolfo Caminha. (CAMINHA, 2001, p. 3).

[9] O romance A Escrava Isaura (1875) foi fruto do período em que a campanha abolicionista estava em voga no Brasil. O autor narrou os desafetos e as conquistas de Isaura, uma escrava branca e educada, com caráter nobre, filha de pai português e mãe mulata que, para escapar das intenções do seu senhor, acabou fugindo do seu lugar de origem e indo parar em Recife, onde se viu apaixonada por um milionário com ares republicanos. As características dos personagens desse romance foram: o lugar comum reforçando um imaginário deturpado sobre os personagens negros, e a utilização de uma personagem branca para ser porta-voz de negros e mulatos escravizados. Embora, muitos estudiosos chamem a atenção para o fato de ser, talvez, a escolha do autor o reflexo do público leitor consumidor de romances. Foi uma estratégia de alcance de sua obra e mensagem, pois esse público leitor era composto, na época, de mulheres da sociedade que, além de suas preocupações corriqueiras relacionadas aos cuidados da casa e de sua beleza, se dedicavam a leitura de romances. Entretanto, vê-se que grande parte da posição da personagem de Isaura segue na contramão de um ideário plural e significante do caráter negro limitado ao cativeiro.

[10] Baseado no princípio da memória social, aquela a designar o conjunto de fenômenos da memória na sociedade, Sá (2007) exemplificou as co-relações da vida na sociedade moderna a partir da esfera pública, esta considerada democrática partilha de crenças e juízos estabelecendo regras e impondo moral. “De fato, diz Jedlowski, a discussão política não se faz sem referência constante ao passado e às representações sobre o passado, constituindo assim a arena onde memórias coletivas múltiplas se confrontam” (JEDLOWSKI apud SÁ, 2007, p. 294).

[11] O personagem de Aleixo, do autor Caminha era, assim como o de Isaura de Guimarães, de pele alva, os olhos azuis e a beleza arrebatadora oferecida pela delicadeza e os fenótipos finos atribuídos aos brancos: “Achava uma graça infinita naquele pedacinho de homem vestido de marinheiro, alvo e louro, sempre muito bem penteado, o cabelo sedoso, os borzeguins lustrosos, todo ele cheirando a essência, como uma rapariga que se vai fazendo mulher” (CAMINHA, 2001, p. 49).

[12] Vê-se neste episódio o distanciamento sócio-cultural, que longe de propor uma consideração que o entenda enquanto natural, tem como objetivo legitimar a distância entre o sujeito tido como selvagem e o sujeito civilizado. Para Gomes (2006), as diferenças culturais foram tomadas pelo discurso moderno com um sentido negativo, englobando assim os aspectos físicos, estéticos, a crença e a arte.

[13] De acordo com Sayers (1958), na obra de Caminha encontram-se as mesmas propostas de escritores do século XIX, como Aluísio Azevedo, em O Mulato, sob o rótulo de naturalista. Esses estariam ocupados em descrever os fatos externos da vida diária das classes inferiores, e, por isso, representando os problemas do negro pobre discriminado pela sociedade em circunstância de sua escravidão, e não em razão de sua cor. Esse agravante que seria, no estudo do autor, evidenciado socialmente, principalmente após 1988 no Brasil.

[14] De acordo com Flexor (2006, p.11): “Pardo ou parda [...] designava a mestiçagem de branco e negro e em número mais crescente a partir dos anos de 1790. Mulatinho ou mulatinha [...], mulato ou mulata [...], foram correntes a partir dos meados do setecentos e diziam respeito à mistura de pardos por parte de mãe e de pai, o que equivale dizer, descendentes, de ambas as partes, de mestiços de pretos e brancos”. Mais adiante, citando Oliveira (FLEXOR, 2006, p.11), mostrou que em se tratando de libertos, na segunda metade do século XIX, se denominava pardo como sinônimo de mulato. E, em seguida ao citar Karasch (FLEXOR, 2006, p. 11), mostrou a denominação de pardo como sinônimo de mulato.  Vê-se: “O viajante alemão Meyer (apud KARASCH, 2000, p. 38-39) dizia que os pardos do Rio eram um grupo distinto que se orgulhava de ser pardo. Acrescentava que mulato era designação menos polida, usada pelos senhores como insulto. Soares (2000, p.102), notifica que os pardos não passavam de 10% da escravatura baiana. No universo pesquisado, entre 1730 e 1830, chegou-se apenas a 5%. A documentação, claramente, faz distinção entre pardo e mulato, indicada pelo grau de mestiçagem. Os mulatos eram vistos como brancos. Na revolta de 1814, segundo Silva (2005, p. 174-175), o principal alvo de ataques eram os brancos e mulatos” (FLEXOR, 2006, p. 11).

[15] Para (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 207), “era justamente a miscigenação que garantiria a civilização no Brasil. A esperança era que, em médio e longo prazo, o país se tornasse predominantemente branco. E o caminho para o branqueamento era a miscigenação. Desse modo a 'raça branca', considerada mais evoluída, corrigiria as marcas deixadas na população brasileira por aquelas tidas como 'raças inferiores', negros e índios”.

[16] Em 1915, a obra foi reunida e impressa em formato livro, porém, antes de sua editoração, os textos foram publicados em folhetins entre o período de agosto e outubro de 1911.

[17]Desde o início dos seus apontamentos, Lima Barreto mostra que a polícia é um instrumento que serve de veículo para encaminhar o suposto demente a um lugar apartado, na medida em que ele é confundido com o marginal. Por algum tipo de comportamento considerado anormal, deve ser retirado da sociedade e encerrado em uma espécie de depósito onde os seres “normais” não o vejam nem mantenham com ele qualquer contato” (BOSI, 2010, p. 12).

[18] Logo em seguida Barreto (1989) ofereceu ao leitor a vitimização do sujeito negro, frente à sua condição sofrida. Isaias Caminha ponderou sua revolta mostrando que, embora tivesse uma natureza selvagem e assassina, era capaz de controlá-la e se recolher mesmo em face de uma injustiça entendida como coletiva: “Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiu-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, e reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente” (BARRETO, 1989, p. 67-68).

[19] Manuel Querino nasceu no dia 28 de julho de 1851, na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano. A data de seu registro é relativa, considerando a realidade da época, principalmente em se tratando de descendentes de africanos no Brasil, que encontravam dificuldades de acesso aos cartórios de registro civil, na maioria das vezes oneroso e distante de suas habitações (RAMOS, 1938). Filho do carpinteiro José Joaquim dos Santos Querino e de Luzia da Rocha Pita, ambos negros livres, foram vitimizados pela epidemia de cólera morbus na região, no ano de 1855, que deixou Manuel Querino órfão de pai e mãe. Neste período, Santo Amaro da Purificação era relativamente populosa e bastante conhecida por sua produção açucareira, destacando-se como referência na Província da Bahia. Segundo pesquisadores da história da região, a cidade sofreu uma queda acentuada no número de habitantes, estimando-se ao todo 25 mil óbitos causados pela epidemia (Tavares, apud GLEDHILL, 2009). Encaminhado à capital da Bahia pelo juizado responsável pelos órfãos, Manuel Querino foi confiado aos cuidados de um tutor, o professor aposentado, praticante da doutrina espírita, Manuel Correia Garcia, doutor em Filosofia pela Universidade de Tubinga, na Alemanha. Político, jornalista e advogado, também era deputado pelo Partido Liberal. Contrariando a ordem estabelecida pela condição vivenciada pela maioria dos negros sob a tutela de brancos, Manuel Correia Garcia, não criou Querino para o serviço braçal, comumente destinado aos negros, e o iniciou nas primeiras letras, despertando o interesse do jovem pelos estudos (RAMOS, 1938).

[20] A primeira edição desta obra foi lançada em 1919.

[21] Este é o XV volume da obra original organizada por Arthur Ramos. A obra reúne os principais trabalhos de Manuel Querino no Brasil e, são consideradas pela editora Civilização Brasileira, como as memórias do autor. Estão inclusos os textos de: A raça africana e seus costumes africanos na Bahia, O colono preto como factor da civilização brasileira, e textos publicados apenas depois de seu falecimento, como a A arte culinária na Bahia.

[22]A época em que Manoel Querino [sic] escreveu, [...], foi o de valorização das coisas nacionais, pois decorria o período posterior à comemoração do centenário da Independência do Brasil e se era atingido pelo espírito nacionalista do mundo ocidental. Assim, procurava-se valorizar, também, o tipo nacional como o mestiço de negro e índio (cabra), o mulato, o índio confundindo-se, inclusive, trabalho mal elaborado [entenda-se inicialmente nas artes plásticas] com a cor da pele”. (FLEXOR, 1998, p. 81-82)

[23] A partir de diálogos de orientação, a professora Maria Helena Flexor apontou que, Manuel Querino, assim como muitos historiadores de sua época, não pensava como os pesquisadores do tempo presente, preocupados em fundamentar ideias por meio de documentos. Segundo ela, Manuel Querino herdou a prática de escrever crônicas do século XIX.

[24] Neste estudo entende-se que, se o negro é entendido pelo seu exterior em relação a sua visibilidade através do branco, o inverso também pode ser considerado. Nesta linha de raciocínio não se vê características especiais de introjeção às etnias negras senão aquelas norteadas ao processo histórico no qual estes sujeitos foram inseridos no contexto da escravidão.

[25] Neste trecho, é possível observar a separação que Querino (1938, p. 22) faz das etnias africanas, tomadas em seu tempo como raças. Em sua fala “todas as raças não evoluídas” entende-se que o autor esteja reiterando a classificação positivista retratada por Rodrigues (2008) e Ramos (1938), ao separarem os grupos africanos em escala de inteligência e habilidades, considerando seus fenótipos e os matizes de sua pele.

[26] Movimento histórico iniciado na Itália e difundido por toda a Europa entre os séculos XV e XVI, que teve como principal característica histórica criticar os valores medievais em valorização da Antiguidade Clássica Greco-romana.