Imagens sobre a proclamação da República brasileira no periódico A Ilustração, 1889-1890 *

Arthur Valle

VALLE, Arthur. Imagens sobre a proclamação da República brasileira no periódico A Ilustração, 1889-1890. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 2, jul./dez. 2014. http://dx.doi.org/10.52913/19e20.IX2.09

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1.      O golpe militar que afastou o Imperador D. Pedro II do trono e implantou o regime republicano no Brasil, ocorrido em 15 de novembro de 1889, mobilizou a atenção de um público variado em diversos países europeus, especialmente em Portugal. Um dos resultados disso foi a publicação, em periódicos ilustrados do “Velho Mundo,” de imagens retratando acontecimentos e agentes vinculados à proclamação da República no Brasil. Um papel importante nesse processo foi desempenhado por  A Ilustração, um periódico luso-brasileiro cuja redação à época estava instalada em Paris. Dirigida pelo escritor e jornalista português Mariano Pina, A Ilustração não só publicou uma quantidade considerável de imagens relativas à implantação do novo regime político o Brasil, como também intermediou a publicação desse material em outras revistas europeias. Partindo das imagens d’A Ilustração, o presente artigo procura discutir os modos como imagens sobre a proclamação da República no Brasil circularam na Europa na passagem de 1889 para 1890, bem como algumas das leituras a respeito do evento por elas vinculadas.

2.      A Ilustração foi um periódico quinzenal que somou 184 números publicados entre maio de 1884 e janeiro de 1892,[1] que pertencia ao gênero de outras afamadas revistas ilustradas europeias, como The Illustrated London News, L'Illustration, Le Monde Illustré ou o Illustrirte Zeitung.[2] Até novembro de 1890, o periódico foi editado e impresso em Paris, de onde era remetido para Lisboa e Rio de Janeiro, onde se encontravam seus principais públicos-alvo. Em sua política editorial, as imagens desempenhavam um papel central: entre outras funções, elas ilustravam acontecimentos cotidianos dos mais diversos; retratavam personalidades de destaque na política, nas artes ou nas ciências; reproduziam obras de pintura, escultura, arquitetura etc. Justapostas de maneira mais ou menos coerente, as imagens d’A Ilustração eram acompanhadas em todos os números por uma seção escrita chamada “As Nossas Gravuras,” usualmente anônima, que descrevia a parte iconográfica do periódico e orientava o olhar do leitor.

3.      É importante recordar que, durante o século XIX, Paris havia se tornado um centro internacional para o gênero das revistas ilustradas. Na “Cidade-Luz,” editores estrangeiros como Mariano Pina podiam se beneficiar das mais novas tecnologias para obter uma qualidade de impressão melhor do que aquela que obteriam em seus países de origem - e isso com custos de produção suficientemente baixos para compensar aqueles envolvidos no transporte do material impresso.[3] Além disso, os editores de revistas ilustradas podiam se beneficiar de um mercado de gravuras de “segunda mão,” ou seja, gravuras já utilizadas por outras publicações cujo custo era consideravelmente mais baixo do que a produção de gravuras inéditas. Essa prática está bem documentada em um orçamento de impressão d’A Ilustração endereçado a Mariano Pina pelo chefe da Imprimerie de la Société Anonyme of Publications Périodiques em 1883.[4] Nesse orçamento se encontra indicado, inclusive, aquele que se tornaria o principal fornecedor de gravuras para o periódico luso-brasileiro: o hebdomadário francês Le Monde lllustré,[5] cuja redação nos anos 1880 estava instalada no n. 13 do Quai Voltaire, o mesmo endereço da redação d’A Ilustração durante a maior parte do tempo em que esta esteve em Paris.[6]

4.      Imagens relacionadas ao Brasil foram publicadas por A Ilustração desde as suas primeiras edições. O periódico estampou, por exemplo, reproduções de algumas obras do pintor brasileiro Rodolpho Amoêdo[7] e uma série de paisagens brasileiras desenhadas por artistas portugueses como Antônio Ramalho[8] e Francisco Villaça.[9] Embora a frequência na publicação de imagens relativas ao Brasil tenha diminuído sobretudo a partir de 1886,[10] o país nunca deixou de estar na pauta da revista. Não é de se espantar, portanto, que quando sinais do desprestígio da Monarquia brasileira se tornaram evidentes, A Ilustração tenha lhes dado destaque.

5.      Foi esse o caso da edição de 5 de outubro de 1889, que estampou uma gravura do “atentado contra S. M., o Imperador do Brasil”, D. Pedro II,[11] ocorrido no Rio de Janeiro na noite de 15 de julho de 1889, quando o monarca deixava, com a sua família, o Teatro Sant’Anna [Figura 1].[12] O repúdio a esse ato por parte dos responsáveis por A Ilustração parecia mais do que necessário, uma vez  que o perpetrador do atentado fora um português chamado Adriano do Valle, cujo retrato foi reproduzido na gravura.[13] Nesse sentido, o texto anônimo referente a essa imagem, publicado na seção “As Nossas Gravuras,” era explícito: “A ILUSTRAÇÃO de novo se associa a todas as manifestações que tem partido de Portugal, protestando contra semelhante atentado, e fazendo votos pela saúde e longa vida do ilustre monarca que tão digno é do respeito dos povos.”[14] Como usualmente ocorria, a gravura do atentado contra D. Pedro II era oriunda da redação de Le Monde Illustré, que a havia publicado com algumas semanas de antecedência [Figura 2].[15] A relativa dependência do periódico luso-brasileiro com relação ao hebdomadário francês pode ser percebida também no referido texto de  “As Nossas Gravuras,” que reincidiu no lapso de Le Monde Illustré e reportou a data do atentado como sendo 16 - e não 15 - de julho.

6.      Mas essa dependência seria de certa maneira invertida quando a proclamação da República no Brasil ocorreu. O evento foi seguido com interesse pelas nações europeias e se revestiu de particular interesse para Portugal por diversas razões. Em sua “Crônica” d’A Ilustração de 5 de dezembro de 1889, Mariano Pina se referiu, por exemplo, à preocupação disseminada entre certos setores da população portuguesa de que algo semelhante à abolição da Monarquia brasileira ocorresse também em Portugal.[16] Ainda na edição de 5 de dezembro, a atenção conferida por A Ilustração à recepção da proclamação da República brasileira em Portugal se expressou em uma detalhada “resenha das opiniões mais importantes da imprensa portuguesa de todas as cores políticas, acerca da revolução no Brasil.”[17]

7.      As primeiras imagens relativas à “revolução no Brasil” foram estampadas na capa dessa mesma edição de 5 de dezembro. Eram os retratos de quatro dos principais responsáveis pelo movimento [Figura 3], designados pelos cargos que passaram a ocupar no novo regime: o Marechal Deodoro da Fonseca, Presidente do Governo Provisório; Benjamin Constant, Ministro da Guerra; Quintino Bocayuva, Ministro dos Negócios Estrangeiros; e Ruy Barbosa, Ministro da Fazenda - militares e civis dividiam equitativamente, desse modo, as atenções dispensadas pela revista. Como complemento, na seção “As Nossas Gravuras,” era apresentada uma síntese do papel que cada um desses quatro agentes desempenhou no processo de instauração da República.[18] O comentarista anônimo manifestou então o desejo de publicar o retrato dos outros ministros brasileiros, mas isso não podia então ser feito por ser “impossível encontrar tanto em Paris como em Lisboa retrato de cada um deles.”[19] Tal lacuna só pôde ser preenchida por A Ilustração um mês depois, na edição de 5 de janeiro de 1890, que estampou uma página com retratos “escrupulosamente desenhados de uma folha litográfica que apareceu no Rio, e onde se viam as fisionomias de todos os membros do governo provisório.”[20] É possível que a referida “folha litográfica” fosse o suplemento do n. 569 da Revista Illustrada do Rio de Janeiro, publicado em 16 de novembro de 1889, que mostra o “Primeiro Ministério dos Estados Unidos do Brasil” [Figura 4].

8.      Periódicos de outros países se adiantaram com relação à Ilustração na publicação de todos esses retratos. Por exemplo, em 30 de novembro de 1889, La Ilustracion Española y Americana, uma revista sediada em Madrid, publicou exatamente a mesma série de quatro retratos estampada n’A Ilustração de 5 de dezembro [Figura 5].[21] Le Monde Illustré de 30 de novembro também publicou uma série de quatro retratos de republicanos brasileiros que só diferia daquela no periódico luso-brasileiro por apresentar o Ministro da Justiça Campos Salles, ao invés de Ruy Barbosa [Figura 6].[22] Se considerássemos somente as datas das respectivas publicações, poderíamos pensar que A Ilustração novamente trabalhava com gravuras de “segunda mão” de suas congêneres europeias, mas uma análise mais detida das publicações indica que a circulação dessas imagens na Europa seguiu um caminho mais tortuoso.

9.      Nesse sentido, é muito revelador o comentário, na já referida seção “As Nossas Gravuras” d’A Ilustração de 5 de dezembro de 1889, a respeito da maneira como as imagens relativas ao novo Estado republicano brasileiro circularam entre os periódicos editados na Europa à época do golpe:

10.                                  De resto, a revolução foi tão inesperada que os jornais ilustrados europeus andaram batendo a todas as portas de brasileiros e portugueses, suplicando elementos para a reportage artística de modo a satisfazer a curiosidade do público, tanto de Lisboa, como de Paris e de Londres, onde a revolução causou uma sensação extraordinária.[23]

11.    Na edição de 20 de dezembro de 1889 d’A Ilustração, o comentarista de “As Nossas Gravuras,” após reforçar a ideia do grande interesse de países europeus com relação à situação política brasileira, acrescentou:

12.                                  Uma das pessoas mais solicitadas em Paris da parte dos jornais ilustrados franceses e ingleses tem sido o nosso diretor Mariano Pina. Assim, todas as gravuras que apareceram no Monde illustré de 30 de novembro de 1889, o grande jornal parisiense de que é diretor o nosso ilustre colega Edouard Hubert, foram executadas sobre fotografias cedidas pelo diretor da ILUSTRAÇÃO.[24]

13.    Essa afirmação parece ser confirmada em algumas edições de Le Monde Illustré. Por exemplo, em uma legenda que acompanha a publicação de retratos de membros da família imperial brasileira na referida edição de 30 de novembro do hebdomadário francês [Figura 7], pode-se ler: “D’après les photographies communiquées par M. MAPIANO [sic] PINA, directeur de l’Illustration Portugaise.”[25] É bastante plausível, portanto, que também tenham sido cedidas por Pina as referências fotográficas que geraram os retratos de líderes republicanos brasileiros publicados por Le Monde Illustré em fins de 1889. Ao mesmo tempo em que elogiava a transparência com que o periódico francês dava o devido crédito a Pina, o comentarista de “As Nossas Gravuras” aproveitava para criticar os jornais ilustrados portugueses contemporâneos que, segundo ele, “serviam-se não só desses elementos, mas de antigos retratos que só a ILUSTRAÇÃO tem publicado, para os dar como seus.”[26]

14.    Pode também ter sido Pina a fonte de outra imagem que, ainda na edição de 30 de novembro de Le Monde Illustré, evocava o extinto regime monárquico: uma gravura do monumento a D. Pedro I do Brasil (D. Pedro IV de Portugal), grupo escultórico em bronze de autoria do francês Louis Rochet, localizado na então Praça da Constituição, no centro do Rio de Janeiro, que também pode ser vista na parte superior da Figura 7. Foi essa mesma gravura que ocupou a capa d’A Ilustração na edição de 20 de dezembro [Figura 8], adquirindo o destaque que, na edição anterior, coubera aos líderes republicanos. Estes últimos estavam praticamente ausentes do novo número do periódico luso-brasileiro,[27] que estampou, como alternativa, retratos de membros da família imperial brasileira.[28] É difícil saber se tal escolha editorial significava simplesmente a prestação de uma derradeira homenagem ou conotava algum desejo de restauração do regime monárquico abolido.

15.    Na edição de 5 de janeiro de 1890 d’A Ilustração, mais duas gravuras referentes às agitações do 15 de novembro foram publicadas [Figura 9]. A primeira mostrava o “atentado contra o Barão de Ladario,” Ministro da Marinha do Império, que resistira a uma ordem de prisão dada a ele por um oficial a mando do Marechal Deodoro [Figura 9a]; a segunda gravura mostrava o próprio ato de proclamação da República, em frente ao quartel-general do Rio de Janeiro [Figura 9b]. Paradoxalmente, a publicação da imagem do “atentado” servia para reforçar a ideia de que a instauração da República no Brasil teria ocorrido de maneira essencialmente não-violenta, pois o texto em “As Nossas Gravuras” sublinhava o caráter excepcional do incidente: “Eis a única cena de sangue provocada pela revolução brasileira. E de certo não se teria dado, se o Barão de Ladario se tivesse submetido ao movimento revolucionário, com a mesma bonomia com que o fizeram outros ministros do imperador, que só depois de se apanharem sãos e salvos na Europa, é que se mostram terríveis contra aqueles que proclamaram a República no Brasil” (grifo nosso).[29] Já a imagem da proclamação da República parecia afirmar a predominância do Exército no evento, pois apenas militares podem ser inequivocamente nela identificados; mais abaixo, teremos oportunidade de retomar esse tópico.

16.    Além dessas duas gravuras, a edição de 5 de janeiro de 1890 apresentava outro indício valioso a respeito do papel d’A Ilustração na circulação europeia de imagens sobre a proclamação da República brasileira. Segundo o comentarista da seção “As Nossas Gravuras,” ambas as gravuras eram devidas a

17.                                  elementos particulares que nos foram comunicados no Rio de Janeiro, pelos nossos amigos Eduardo Garrido, o espirituoso autor dramático, e José de Mello, o nosso ativo e simpático correspondente na capital fluminense. Esses elementos, cedemo-los ao nosso prezado colega parisiense, Monde Illustré, que graças à atividade de seus colaboradores, os pode dar a lume no dia 21 de dezembro findo. Eis porque não puderam aparecer em nosso passado número.[30]

18.    Com efeito, exatamente as mesmas gravuras foram publicadas na página 380 da edição de 21 de dezembro de Le Monde Illustré [Figura 10]. Na legenda ao pé dessa página, cuja diagramação era idêntica à correspondente n’A Ilustração, podia-se ler: “D’après les documents communiqués par M. Edouard Garrido, à Rio-Janeiro [sic].”[31] Como ocorrera com relação à publicação dos retratos dos líderes republicanos, o atraso do periódico luso-brasileiro na vinculação dessas duas gravuras parece ter se dado em função da sua menor periodicidade e da sua consequentemente menor “atividade” editorial.

19.    A última imagem referente ao golpe republicano de 1889 é provavelmente a mais interessante e foi publicada por A Ilustração em sua edição de 5 de fevereiro de 1890 [Figura 11]. Naquele momento, o impacto relativo à proclamação da República no Brasil já tinha perdido muito de sua força e os portugueses, em particular, tinham outra preocupação premente: o chamado Ultimato Britânico. Entregue em 11 de janeiro de 1890, esse ultimato do governo da Inglaterra exigia que Portugal retirasse suas forças militares do território africano localizado entre Angola e Moçambique, que eram então colônias portuguesas. O Ultimato Britânico abalou a soberania de Portugal e acirrou o patriotismo português, levando a uma tomada de posição em defesa da nação que foi fortemente apoiada por A Ilustração.[32] Um bom exemplo é justamente a edição de 5 de fevereiro, que foi praticamente toda pautada pelo teor nacionalista e por textos que incitavam o conflito armado com Inglaterra. É de se supor que os responsáveis por A Ilustração tiveram menos tempo do que o habitual para cuidar das imagens da edição, uma vez que quase todas, inclusive a capa, foram simplesmente tomadas de uma mesma edição de Le Monde Illustré, a de 18 de janeiro de 1890.

20.    Foi justamente nessa edição de Le Monde Illustré que apareceu, pela primeira vez, a representação do ato de proclamação da República referida no parágrafo anterior [Figura 12].  A seu respeito, o comentarista francês dizia tratar-se de “un document absolument officiel, repandú, parait-il, au moyen de la photographie, dans tout le Brésil, nous avons donc pensé que cet événement historique pouvait trouver sa place dans nos colonnes sans faire double emploi, à cause de la précision avec laquelle il est rendu.[33]

21.    Ao ser retomada por A Ilustração, a gravura era acompanhada por um comentário que, além de reforçar a ideia de sua suposta “exatidão,” fornecia mais alguns detalhes a respeito de suas origens:

22.                                  Para complemento das muitas gravuras que temos dado acerca da proclamação da República no Brasil, mostramos hoje um quadro exato do que foi o dia 15 de novembro de 1889, quando o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República em frente ao Quartel general do Rio de Janeiro, diante do exército e do povo. É cópia dum quadro executado por um distinto artista brasileiro, cujo nome infelizmente não nos ocorre neste momento, e que não podemos obter em Paris, atendendo a que se extraviou esse nome entre papeis que tínhamos na redação.

23.                                  Também mostramos a nossos leitores o desenho da bandeira oficial da República dos estados Unidos do Brasil [...]

24.                                  Todos esses documentos nos foram comunicados diretamente do Rio de Janeiro.[34]

25.    É difícil saber se Le Monde Illustré também obteve a imagem “diretamente do Rio de Janeiro” ou - o que parece mais provável - contou mais uma vez com a mediação da redação d’A Ilustração. No comentário acima, é acrescentada a informação de que o original seria um quadro, mas a perda do nome do artista brasileiro deixa uma sensação de decepção. Felizmente, um ano após a proclamação da República, em novembro de 1890, outro importante periódico ilustrado português - O Ocidente - publicou uma versão em xilogravura da mesma imagem [Figura 13], dessa vez com uma descrição que, além de identificar o autor do quadro original, nos ajuda a melhor intuir as prováveis intenções por trás do mesmo à época. O comentário n’O Ocidente assim versava:

26.                                  À extrema amabilidade do sr. Vieira da Silva, digníssimo cônsul geral do Brasil em Lisboa, devemos o poder reproduzir nas páginas do OCIDENTE o quadro da proclamação da república do Brasil pintado pelo senhor Oscar [Pereira] da Silva, artista brasileiro.

27.                                  Foi o sr. Vieira da Silva que nos facilitou a fotografia de que nossa gravura é cópia, fotografia que lhe foi enviada do Rio de Janeiro pela redação do jornal o Paiz, nas salas do qual está em exposição. [...]

28.                                  O quadro representa a artilharia formada em frente do quartel do Campo de Santana, salvando como vinte e um tiros a proclamação da república feita pelo General [sic] Deodoro, Quintino Bocayuva e Beujamin [sic] Constant.[35]

29.    Como foi apontado pelo investigador Carlos Lima Junior, o quadro de Oscar Pereira da Silva pertence hoje ao Museu Casa Benjamin Constant, no Rio de Janeiro.[36] A obra em si e  a circulação de suas reproduções na Europa, logo após a golpe de 15 de novembro, são potencialmente significativas para a historiografia brasileira. Pois, ao menos no nosso entender, a imagem criada por Pereira da Silva parece ser uma das poucas que lidaram com um dilema levantado pelo historiador José Murilo de Carvalho em seu clássico livro sobre o imaginário republicano brasileiro: o de que, no alvorecer da República, era “difícil, se não impossível, elaborar um mito de origem baseado na predominância civil,”[37] devido a alegada ausência de participação popular no ato de proclamação do novo regime.[38]

30.    A imagem publicada n’A Illustração parece em parte refutar tal tese. Em primeiro lugar, vale notar a entusiástica aclamação dos civis representados em primeiro plano: eles como que confirmam as palavras do comentário n’A Ilustração, segundo o qual a proclamação se deu “diante do exército e do povo” (grifo nosso) - embora cumpra notar que o “povo” se encontra apartado do centro da ação por fileiras de soldados rigidamente perfilados. Mas é sobretudo ao esvaziar o ato fundador do regime de qualquer personalismo que a imagem parece afirmar o caráter coletivo do evento. Nenhuma figura específica é enfatizada e temos dificuldade, inclusive, em afirmar onde se encontram o Marechal Deodoro, Benjamin Constant ou Quintino Bocayuva, citados pelo comentarista d’O Ocidente. Ninguém ocupa o centro geométrico da imagem, que é desmaterializado pela fumaça da “salva de vinte um tiros;” tudo isso, somado ao fato da imagem ser pontuada por pequenas figuras mais ou menos coerentemente agrupadas, reforça o sentido de ausência de qualquer hierarquia explícita.

31.    Essa última imagem vinculada n’A Ilustração diverge, assim, daquela da Figura 9b, mas também - e de modo mais significativo - de outras representações muito conhecidas da proclamação da República brasileira, que apoiam uma versão dos fatos na qual o principal agente responsável teria sido o Exército. É esse o caso de uma pintura de Benedito Calixto de c. 1893 [Figura 14], que, embora seja similar ao quadro de Pereira da Silva, propõe uma leitura bem diversa do evento histórico, ao excluir os civis do primeiro plano da cena e colocar o Marechal Deodoro claramente no centro da composição. Em certa medida, é esse também o caso do Retrato do Marechal Deodoro da Fonseca, executado por Henrique Bernardelli em c. 1892 [Figura 15]: nesse quadro, não por acaso largamente conhecido pelo título Proclamação da República, a figura do Marechal montado sobre um cavalo e dominando totalmente a composição é equacionada ao próprio ato da proclamação.

32.    Voltando a imagem da Figura 11, um último dado relevante é o local de exposição do quadro de Pereira da Silva que lhe teria dado origem: a redação d’O Paiz, um jornal diário do Rio de Janeiro, que, quando da proclamação da República, tinha como redator principal ninguém menos do que o já citado Quintino Bocayuva. Bocayuva foi provavelmente o mais influente líder civil republicano e um dos principais responsáveis pela redação do “Manifesto Republicano” de 1870; em 1889, quando a República foi proclamada, ele era também presidente do Partido Republicano Brasileiro. Como vimos, A Ilustração destacou Bocayuva como um dos artífices da proclamação em sua edição de 5 de dezembro de 1889, mas, bem antes disso, o periódico já havia lhe dedicado uma atenção toda especial em sua edição de 5 de outubro de 1887, quando publicou, além da reprodução de uma capa d’O Paiz  e de um retrato de Bocayuva [Figura 16], um artigo apresentando a atuação deste último na imprensa e na política, frisando a sua postura íntegra marcada pelo republicanismo e pelo anti-conservadorismo.[39] No contexto dessa discussão sobre uma versão da proclamação que sublinha a importância dos republicanos, vale aqui lembrar ainda de outra gravura publicada em O Ocidente, em dezembro de 1889,  e que representa, como talvez nenhuma outra, a ideia de adesão popular à proclamação da República [Figura 17][40]: nessa imagem, não por acaso, Bocayuva e a própria redação d’O Paiz ocupam um lugar central.

33.    À guisa de conclusão, podemos afirmar que, através da publicação das imagens acima discutidas, A Ilustração contribuiu de modo significativo para a divulgação na Europa da proclamação da República brasileira. Todavia, as leituras a respeito do evento vinculadas pelo periódico podiam divergir daquelas que se tornaram posteriormente canônicas: é esse particularmente o caso com relação à reprodução do quadro de Pereira da Silva, que parecia relativizar a centralidade da participação militar na proclamação e se alinhar com os interesses de parcela dos civis republicanos brasileiros. Cremos que fica assim sublinhada a importância do estudo da circulação europeia de imagens sobre a proclamação da República brasileira, pois estas podem contribuir para que aprofundemos o entendimento das diferentes versões a respeito do evento que então competiam pelo seu significado político.

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* A elaboração do presente trabalho contou com apoio do Programa de Pesquisa Pós-Doutoral no Exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, Processo - 17871-12-3.

[1] Na elaboração desse artigo, foram consultados exemplares d’A Ilustração pertencentes às bibliotecas do Museu Bordalo Pinheiro e da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Versões digitalizadas das edições de A Ilustração se encontram acessíveis no site da Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx

[2] A respeito d’A Ilustração, ver: MINÉ, Elza. Mariano Pina, a Gazeta de Notícias e A Ilustração: histórias de bastidores contadas por seu espólio. Revista da Biblioteca Nacional 2 (1992), p. 23-61; MINÉ, Elza. A Geração de 1870 e o Brasil: alguns ângulos e percursos. Via Atlântica 9 (2006), p. 213-224; LUCA, Tania Regina de. A ILUSTRAÇÃO (1884-1892): Algumas Questões Teórico-Metodológicas. in: ABREU, Márcia; DEAECTO, Marisa Midori, (org.), A circulação transatlântica dos impressos [recurso eletrônico]: conexões. Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2014, p. 167-174.  Post Scriptum, fev. 2015: Ainda com relação à revista, ver: VALLE, Arthur. Transnational Dialogues in the Images of A Ilustração, 1884-1892. RIHA Journal 0115 (19 January 2015) Disponível em: http://www.riha-journal.org/articles/2015/2015-jan-mar/valle-transnational-dialogues Acesso: 1fev. 2015.

[3] LUCA, op. cit., p. 173.

[4] “Les bois en cliché seront a votre charge; les clichés qui seraient | pris pour vous dans notre collection du Monde Illustré vous seront comptés = pour | les reproductions en galvano quinze centimes le centimetre carré, pour les reproductions | réduites photographiquement pour faire un relief typographique vous seront comptés |  vint cinq centimes le centimetre carré - Les Droits de reproductions sont compris | dans ces deux prix.” Carta da Imprimerie de la Société Anonyme de Publications Périodiques para Mariano Pina, 1883. Lisboa, Biblioteca Nacional. Espólio de Mariano e Augusto Pina, N17/202.

[5] Versões digitalizadas das edições de Le Monde Illustré se encontram acessíveis no site da Gallica: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32818319d/date.r=.langFR

[6] Inicialmente, a redação d’ A Ilustração estava localizada na Rue de Parme n. 7, mas já a edição de 20 de junho de 1884 informava que ela havia mudado para a Rue Saint-Petersburg n. 6. Na edição de 20 de dezembro de 1885, um novo endereço para a redação é indicado: Quai Voltaire n. 13. Ali a revista permaneceria pelos cinco anos seguintes, até a mudança final para Lisboa, no fim de 1890.

[7] Ver: SALON DE 1884. - A Partida da Jacob. - Quadro de Amoedo (desenho do autor). A Ilustração, Paris, 1. ano, v. I, n. 3, 5 jun. 1884, p. 36; PARIS PITORESCO: O Mercado das flores. - Desenho original de R. Amoedo. A Ilustração, Paris, 1. ano, v. I, n. 7, 5 ago. 1884, p. 41; INDIGENAS DO AMAZONAS. - Desenho original de R. Amoedo. A Ilustração, Paris, 1. ano, v. I, n. 15, 5 dez. 1884, p. 228.

[8] Nessa série, foram publicados três desenhos de A. Ramalho: Viaduto da Grota Funda, na estrada de ferro do Príncipe do Grão Pará, serra da Estrela (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 4, 20 fev. 1885, p. 60); A Praia da Saudade  (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 6, 20 mar. 1885, p. 84); Rio de Janeiro - A Baía (A Ilustração, Paris, 3. ano, v. III, n. 4, 20 fev. 1886, p. 60).

[9] Nessa série, foram publicados oito desenhos de Villaça: Uma vista do Amazonas (A Ilustração, Paris, 1. ano, v. I, n. 11, 5 out. 1884, p. 168); Rio de Janeiro. - Praia de Icaraí (Itapuca) (A Ilustração, Paris, Paris, 1. ano, v. I, n. 16, 20 dez. 1884, p. 245); Barcos no Amazonas (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 1, 5 jan. 1885, p. 13); A Baía de Botafogo (A Ilustração, Paris, Paris, 2. ano, v. II, n. 7, 5 abr. 1885, p. 109); Vista da Barra (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 8, 20 abr. 1885, p. 116); A Pedra do Marisco, Restinga da Tijuca (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 9, 5 mai. 1885, p. 141); Uma ponte rústica (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 16, 20 ago. 1885, p. 245); A Cascata Grande da Tijuca (A Ilustração, Paris, 2. ano, v. II, n. 17, 5 set. 1885, p. 269).

[10] Desde sua fundação, A Ilustração contava com o apoio da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, jornal para o qual Mariano Pina trabalhava como correspondente em Paris desde 1882. Porém, em março de 1886, essa relação foi rompida; presumivelmente, o apoio financeiro de patrocinadores no Brasil também acabou, o que pode ter contribuído para que Pina se sentisse menos constrangido a incluir matérias relacionadas ao Brasil n’A Ilustração. A respeito da relação entre a Gazeta de Notícias e A Ilustração, ver: MINÉ, 1992.

[11] A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 19, 5 out. 1889, p. 297.

[12] Ver, por exemplo, NOTA HISTÓRICA. Julho de 1889 - atentado contra D. Pedro II. Tribunal da Relação de Ouro Preto e seu apoio ao Imperador. Jurisp. Mineira, Belo Horizonte, a. 58, n° 183, p. 13-18, out./dez. 2007, p.16-18. Disponível em: http://bd.tjmg.jus.br/jspui/bitstream/tjmg/558/1/NHv1832007.pdf  Acesso em 1 fev. 2014.

[13] Esse repúdio fora precedido pela publicação, na edição de 20 de setembro de 1889, de trechos de um poema de Gomes Leal criticando o atentado. Ver: LEAL. Gomes. PROTESTO D’ALGUEM. A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 18, 20 set. 1889, p. 282-283

[14] “ATENTADO CONTRA S. M. O IMPERADOR DO BRAZIL”. A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 19, 5 out. 1889, p. 298. A grafia desta e de todas as outras citações de época em português foi atualizada.

[15] Le Monde Illustré, Paris, 33. annèe, n. 1659, 21 set. 1889, p. 188. A legenda dessa gravura precisava os seus autores: “RIO DE JANEIRO. - ATTENTAT CONTRE L'EMPEREUR DU BRÉSIL. - Portrait 'ADRIANO VALLE (Dessin de M. FARIA, d’après le croquis de M. NETTO.)”

[16] PINA, Mariano. CRÔNICA - ONDE ESTÁ O PERIGO... A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 23, 5 dez. 1889, p. 354-35.

[17] A REVISTA DAS REVISTAS - A República dos Estados Unidos do Brasil. Ibidem, p. 363 e 366.

[18] A REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Ibidem, p. 358-359.

[19] Ibidem, p. 358.

[20] Os acontecimentos do Brasil. A Ilustração, Paris, 7. ano, v. VII, n. 1, 5 jan. 1890, p. 6. Foram publicados então os retratos de Eduardo Wandenkolk, Ministro da Marinha; Campos Salles, Ministro da Justiça; Aristides da Silveira Lobo, Ministro do Interior; e Demetrio Ribeiro, Ministro da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas.

[21] La Ilustracion Española y Americana, Madrid, año XXXIII, n. XLIV, 30 nov, 1889, p. 318.

[22] Le Monde Illustré, Paris, 33. annèe, n. 1705, 30 nov. 1889, p. 341.

[23] A REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 23, 5 dez. 1889, p. 358.

[24] AS NOSSAS GRAVURAS - RIO DE JANEIRO. A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 24, 20 dez. 1889, p. 371.

[25] Le Monde Illustré, Paris, 33. annèe, n. 1705, Paris, 30 nov. 1889, p. 337.

[26] AS NOSSAS GRAVURAS - RIO DE JANEIRO. A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 24, 20 dez. 1889, p. 371. Teria sido esse o caso d’O Ocidente, que em sua edição de 1 de dezembro de 1889 publicou retratos muito semelhantes àqueles da capa d’A Ilustração de 5 de dezembro? Ver: Ocidente. Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, Lisboa, 12. ano, v. XII, n. 394,1 dez. 1889, p. 269.

[27] A exceção foi Campo Salles. Ver: A Ilustração, Paris, 6. ano, v. VI, n. 24, 20 dez. 1889, p. 375.

[28] Ibidem, p. 380-381. A Ilustração publicou o retrato do então ex-Imperador D. Pedro II; o de sua esposa, D. Maria Thereza; o de seu filho, o Príncipe dom Pedro Augusto de Saxe; o de sua filha, Princesa Isabel, do marido desta, o Príncipe Luís d'Orleans, e de seus três filhos (Pedro, Luiz e Antonio); e o do médico do Imperador, Conde da Motta Maia.

[29] Os Acontecimentos do Brasil. A Ilustração, Paris, 7. ano, v. VII, ano 1, 5 jan. 1890, p. 4.

[30] Idem.

[31] Le Monde Illustré, Paris, 33. annèe, n. 1708, 21 dez. 1889, p. 380.

[32] No fim, Portugal se submeteu às demandas britânicas. Isso foi percebido como uma humilhação nacional, especialmente pelos republicanos em Portugal, que culparam o governo e D. Carlos I. Ver: RAMOS, Rui. Capítulo 3 - “D. Carlos, o último”? (1889-1891). In: RAMOS, Rui. D. Carlos. 1863-1908. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2006, p. 72-102.

[33] Le Monde Illustré, Paris, 34. annèe, n. 1712, 18 jan. 1890, p. 38.

[34] A República brasileira. A Ilustração, Paris, 7. Ano, v. VII, n. 3, 5 fev. 1890, p. 42.

[35] A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA NO BRASIL (Quadro de Oscar da Silva). Ocidente. Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, Lisboa, 13. ano, v. XIII, n. 429, 21 nov. 1890, p. 260.

[36] Post Scriptum, fev. 2015: Carlos Lima Junior discute o quadro de Pereira da Silva em seu artigo: Apressados pinceis. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, n. 112, p. 60-65; uma reprodução colorida da obra pode ser consultada no blog da Casa Museu Benjamin Constant; ver link.

[37] CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas - O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 52.

[38] O documento de época mais lembrado com relação a essas afirmações é o texto de Aristides Lobo publicado no Diário Popular de São Paulo, em 18 de novembro de 1889: “Como trabalho de saneamento, a obra [de instauração da República] é edificante. Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. | O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava.”

[39] QUINTINO BOCAYUVA. A Ilustração, Paris, 4. Ano, v. IV, n. 19, 5 out. 1887, p. 294-296.

[40] A REPÚBLICA DO BRASIL. Ocidente. Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro, Lisboa, 12. ano, v. XII, n. 396, 21 dez. 1889, p. 285.