Pedro Weingärtner: sob o olhar fotográfico

Susana Gastal *

GASTAL, Susana. Pedro Weingärtner: sob o olhar fotográfico. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 3, jul. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/pw_sg_fotografia.htm>.

*     *     *

1 - Introdução

Preconceito, medo, deslumbramento, são alguns dos sentimentos que marcam a inter-relação entre as artes e a fotografia. Se nos dias de hoje ainda se assiste, com mais freqüência do que seria esperado, a discussões quanto à fotografia ser ou não uma forma de Arte, ao longo do século XIX as relações eram ainda mais emaranhadas.

À fotografia como documento, opõe-se a idéia de fotografia como ramo das belas-artes, uma idéia já em discussão em fins do século XIX. As intervenções no registro fotográfico por meio de técnicas pictóricas foram amplamente realizadas numa tentativa de adaptar o meio às concepções clássicas de arte, no que ficou conhecido como fotopictorialismo

Os fazeres também se emaranhavam. Daguerre, o iniciador da fotografia - embora muito antes, Leonardo da Vinci já houvesse feito experiências com a câmera escura - foi originalmente pintor, com prêmios pelo seu trabalho plástico, e cenógrafo. Depois das experiências de Daguerre com a fotografia, iniciadas pela primeira metade do século XIX (STELZER, 1981), a técnica espalhou-se rapidamente. Em 1861, já haveria 33 mil pessoas vivendo da produção de fotografias em Paris (KOSSOY, 1980:38).

Se muitos foram os que realizaram experiências com a fotografia, alguns as fizeram com alto grau de maestria e competência, criando maior aproximação com a pintura. Segundo Stelzer (1981), o fotógrafo Gustave Le Gary, por exemplo, teria sido o primeiro a fotografar nuvens. Em 1880, estas fotos podiam ser compradas em vários pontos de Paris, e teriam servido de inspiração a Courbet, para a execução de suas marinhas. Outro que utilizou fotos, embora houvesse participado de um abaixo assinado ao governo francês, pedindo a proibição da fotografia, seria Ingres. Delacroix foi membro de uma das primeiras sociedades fotográficas, e há registros que teria utilizado fotografias como base para alguns de seus desenhos. Degas foi outro fotógrafo apaixonado, para não citar os impressionistas, cuja primeira exposição em 1874 - que serviu inclusive para caracterizar o movimento -, foi realizada no estúdio do fotógrafo Nadar. Para Stelzer (1981:59-60), no caso do uso da fotografia pelos impressionistas:

[...] não há nada de estranho, já que estes, pintores do ar livre que 'descobriram' a luz solar, que buscavam captar o 'momento' nas cenas fugazes, tinham que sentir em relação aos fotógrafos uma aproximação muito diferente da sentida pelos inumeráveis pintores acadêmicos e 'oficiais', os quais utilizavam a fotografia - às escondidas e com consciência suja - unicamente como substituto de seus modelos. Estes empregavam as fotografias como modelos, para poder copiá-las, pois só eram capazes de empregar as fotos derivadas de das pinturas, ou seja, as convencionais.

2 - O Rio Grande do Sul no final do século XIX

O sistema de artes no Rio Grande do Sul é tão recente como presença européia na região. Ele começa a se constituir entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, período em que surgirão os primeiros artistas nascidos na região, como Pedro Weingärtner, ou que ali se fixaram de maneira mais permanente.

Este período também será concomitante a entrada da região na Modernidade, se por tal entender-se que a sociedade regional, no período que vai em especial de 1890 a 1930, consolidou um processo de modernização iniciado nas décadas anteriores, com a inserção regional em um capitalismo mais sofisticado e de mercado exportador, e o surgimento de uma classe burguesa local. Seu trabalho tornou o sistema econômico mais complexo, a partir da produção agrícola e da implantação de uma indústria artesanal. Houve, ainda, uma aceleração dos processos de urbanização, em especial da capital, Porto Alegre, e a presença no local de uma forte indústria cultural, marcada não só pela proliferação de salas de cinema já na primeira década do século XX, mas também, por exemplo, da primeira gravadora de discos do Brasil - a Casa Elétrica - e da primeira grande editora, responsável pela Revista do Globo, primeira revista de variedades de circulação nacional. Ou seja, embora os artistas plásticos do período ainda fossem fortemente influenciados pelo academicismo, as lógicas culturais locais estariam associadas não só a um viés erudito clássico, mas muito influenciadas pela presença de manifestações da indústria cultural, que na falta de uma tradição erudita mais arraigada no local, ali encontraram solo fértil.

Quanto à fotografia, ainda há poucas pesquisas sobre a presença de fotógrafos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Além dos conhecidos Irmãos Calegari, de Terragno, de certa Mme Reeckel - que participara da Exposição Comercial e Industrial de 1875, em Porto Alegre - e de Lunara, sabe-se pouco sobre aqueles profissionais que estiveram na cidade e no Estado, no período (ALVES, 1998). Segundo Athos Damasceno (1971), na Exposição Brasileiro-Alemã de 1901, realizada na Capital, havia um setor dedicado às Artes Plásticas - transformando-a no segundo grande evento de artes, realizado na cidade - do qual participaram vários fotógrafos. A começar pelo artista Santiago da Costa, vindo da cidade de Rio Grande, que mesmo inscrito na categoria pintura, juntou à mostra várias de suas fotografias.

Mas outros fotógrafos estiveram presentes na Exposição de 1901, entre eles Balduíno Röhrig, que apresentou “grande quadro contendo retratos fotográficos de alto estilo e, para dar-lhes maior saliência, colocou-o como tal procedera com sua experiência a óleo, sobre avantajado cavalete” (DAMASCENO, 1971:191). Röhrig chegara a Porto Alegre em 1865 e estabelecera-se como fotógrafo. A partir de 1869 esteve com um atelier bem freqüentado na Rua da Praia, a principal da cidade. Só depois de consagrado como fotógrafo, conquistaria espaço como pintor.

Apesar destes registros, no cuidadoso estudo de Athos Damasceno sobre as Artes no Rio Grande do Sul, há poucos registros sobre presença da fotografia. Essas rápidas referências à fotografia, quando acontecem, vêm antecedidas de uma explicação constrangida do pesquisador (que, destaque-se, lança seu tratado em 1971, mostrando a permanência dos ranços do século XIX em relação à fotografia):

Aos rigoristas há de parecer pouco cabível, em notícias sobre Artes Plásticas, o registro de fotógrafos e fotografias presentes ao certame [refere-se à exposição de 1901]. Mas, como para tudo há explicações, queremos dizer que assim procedemos por três motivos: primeiro, porque a inclusão, na galeria artística, de profissionais do ramo e obras do gênero obedeceu critério adotado pelos organizadores da mostra [...]; segundo, porque a arte fotográfica não deixa de ser paraplástica e - olhem lá! - bastante difícil...; e, terceiro, porque - e isto vai por nossa conta! - sendo certo que há fotógrafos que são verdadeiros pintores e pintores que não são mais do que fotógrafos, não vemos razão para que não vivam em perfeita harmonia debaixo do mesmo teto... (DAMASCENO, 1971, p. 191).

Ou seja, o pesquisador reconhece que a fotografia, em mãos talentosas, transforma-se em expressão artística, mas estes artistas só entrarão no seu livro sobre as Artes Plásticas, nos vieses do texto.

Seguindo ainda as anotações de Damasceno, vê-se que, se os fotógrafos eram tidos pela sociedade com certo desdém, a aproximação dos artistas com a fotografia, em Porto Alegre, não foi rara. O italiano Frederico Trebbi, por exemplo, acabou optando por residir no sul em 1869. Ex-aluno da Academia de Belas Artes de Roma, foi responsável pela formação de muitos artistas locais, alunos em suas aulas. Trebbi associava ao ofício da pintura, o de fotógrafo, tendo atuado com esta última atividade, inclusive, na Guerra do Paraguai. Mas Trebbi realizou poucas experiências com a pintura de observação, preferindo trabalhar no atelier, a partir de moldes em gesso, ou cartões. Segundo Damasceno, Trebbi reconheceria a superioridade da pintura a partir da observação direta, mas quase não a realizava porque “muito difícil lhe seria opor-se a certos escrúpulos do meio, pois falar, então, em pintura ao ar-livre constituiria um desfrute e pensar em modelo vivo - o nu, por exemplo, que horror!... - produziria escândalo” (DAMASCENO, 1971:221).

Os fotógrafos também valorizavam a aproximação com os artistas. Os Irmãos Ferrari, fotógrafos reconhecidos, sempre mantiveram artistas trabalhando em seu atelier. No final do século XIX, o mercado de retratos, associando pintura e fotografia, era tão próspero que certa Sociedade de Artes, de Buenos Aires, angariava encomenda de trabalhos em Porto Alegre. Estes trabalhos, depois, seriam pintados na Argentina, a partir de fotografias. A concorrência argentina deve ter se tornado perigosa porque, em 1897, o estúdio Ferrari contratou o artista Giusuppe Boscagli[1], que vinha seguidamente à cidade, a serviço do atelier argentino[2]. A crítica da época, entretanto, registrou suas desconfianças em relação a este tipo de proposta, quando de uma exposição de dois retratos, assinados por Boscagli:

Os dois retratos referidos são cópia fotográfica, e nesse gênero não é possível exigir mais de um artista que tem de se subordinar à fotografia que o cliente escolhe. Entre nós ainda há quem queira submeter à exigência artística de pousar para ser retratado por um pintor, durante quatro ou cinco sessões, como seria para desejar, não só para as condições do retrato, mas ainda como conveniência do próprio interessado (apud DAMASCENO, 1971:413).

Enfim, são alguns exemplos de como a pintura e a fotografia imiscuíam-se, numa Porto Alegre que dava seus primeiros passos em termos plásticos, em especial no que se refere a produção de retratos.

3 - Weingärtner e a fotografia

Pedro Weingärtner (1853-1929), o mais importante artista do Rio Grande do Sul entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, não ficou imune a esta aproximação com a fotografia, em que pese à desconfiança que tal afirmação possa causar entre os teóricos e os historiadores mais tradicionais. Weingärtner é fruto da primeira geração de imigrantes, já nascida no Brasil, onde a família chegara alguns anos antes. Uma família que se estabeleceu com uma importante litografia, em Porto Alegre.

No Rio Grande do Sul, é a partir de 1849 que começam a surgir oficinas litográficas, onde atuavam artistas gravadores, desempenhando as atividades de desenhistas, ilustradores, retratistas e caricaturistas. Aqui no RS, a oficina era a um só tempo gráfica comercial e jornalística, ateliê e escola. [...] Uma das litografias mais famosas do Brasil e do Rio Grande do Sul foi a Litografia Weingärtner, que começou a funcionar em 1885. Tinha como gravadores o próprio [Inácio] Weingärtner e Antonio Francisco Ribeiro e contava com desenhistas da qualidade de João Petersen e Faustino Ladeira (TIBURSKI, 1995: s/p).

Esgotadas as possibilidades do meio local, e com muita habilidade para desenho e pintura, Pedro Weingärtner voltou à Europa para aprimorar-se como artista. Estudou na Alemanha, passou por Paris, e por fim estabeleceu-se - por muitos anos - na Itália. Sobre seu modo de vida, marcado por constantes deslocamentos, Bohns (2006: 403) registra:

[...] Pedro Weingärtner pertence a uma geração em que os acontecimentos precipitaram de maneira mais vertiginosa e, embora os relatos sobre sua personalidade dêem conta de um sujeito pacífico e pouco inclinado a aderir a revoluções no plano político ou artístico, um rápido olhar sobre sua biografia nos faz ver que a facilidade com que se deslocava entre diferentes países, estando ora no Brasil, ora na Itália, ora na Alemanha, já era coisa dos tempos modernos.

Nas vindas periódicas ao Brasil - e a Porto Alegre - apresentava seu trabalho ao público local. Aproveitava as visitas ao Sul para percorrer e cidade e o interior, fazendo anotações que serviriam para futuros trabalho. Mesmo quando não visitava a região pessoalmente, Weingärtner se fazia presente enviando telas que aqui deveriam ser vendidas pela família, ou fotos de trabalhos que estivesse realizando, para conhecimento dos possíveis interessados:

Weingärtner continuará a fazer-se lembrar, mesmo quando pouco esperançoso de deixar em mãos de seus co-estaduanos os frutos mais valiosos de seu labor. Em setembro de 1897, por exemplo, os jornais da capital voltam a ocupar-se do artista e o Correio do Povo registra: ‘A um dos nossos repórteres foram mostradas fotografias [grifo meu] de admiráveis telas que estão fazendo sucesso em Roma [...]. As fotografias, a que as notícias aludiam, eram as dos quadros Frauta (sic) de Pan, A sentença de Páris e Um banho em Pompéia, fotos que, apesar de reproduzirem as telas apenas em preto e branco, davam, na opinião do crítico do jornal de Caldas Júnior, prova cabal do extraordinário mérito do seu autor (DAMASCENO, 1971: 204-5).

Quando iniciei a pesquisar as Artes Plásticas em Porto Alegre no século passado, as evidências - como as aqui apresentadas - indicavam que os artistas em atuação no sul do país não estavam imunes à presença da nova tecnologia para obtenção de imagens, com destaque para a máquina fotográfica, e que esta aproximação traria conseqüências diretas na construção das imagens na pintura.

A lente fotográfica introduziu uma maneira nova de reproduzir o mundo em imagens. Por suas características, as imagens fotográficas produzidas na segunda metade do século XIX “são marcadas por fortes contrastes, traços sintéticos, ênfase no primeiro plano, exploração de planos diagonais, enquadramento fechado, corte abrupto e o gosto pela geometrização espacial. Características presentes, porém quase nunca simultâneas [...]” (CARVALHO, 1991:208). Na pintura, por outro lado,

[...] a composição é ampla. O tratamento de conjunto prevalece e com ele a captação de imagem de um ponto de vista distante, onde predomina o plano médio e a centralização da linha do horizonte. [...] Na esteira das inovações fotográficas, a pintura do final século começa a explorar o primeiro plano aproximado (CARVALHO, 1991:209).

Estudar como estas características estariam ou não presentes na produção pictórica de Pedro Weingärtner, é um trabalho exaustivo que está por ser feito. Entretanto, verifica-se, mesmo aprioristicamente, que o pintor do Rio Grande do Sul não ficou imune à questão do primeiro plano. Na pintura intitulada Morro do Chapéu, por exemplo, há um morro, recoberto de vegetação em primeiro plano, e deste morro em relação ao resto da composição há um corte abrupto, embora o fundo da composição atenda aos padrões clássicos da pintura: a imagem coloca o observador à distância e predomina a centralização da linha do horizonte. Nesta mesma imagem, ainda há a visão de um ponto de vista elevado, o que, segundo os autores, também seria uma conquista da estética fotográfica, já que a pintura em seus padrões acadêmicos priorizaria a visão de mesmo nível do observador/paisagem. Este é apenas um caso e, repita-se, este estudo deva ser aprofundado. O que se propõe ressaltar, aqui, é a intimidade de Weingärtner com a fotografia, um fato que talvez venha sendo menosprezado pelos pesquisadores, pelos mesmos preconceitos que, como colocado, acompanharia os críticos das artes.

Os primeiros passos para reconstruir a intimidade de Weingärtner com a fotografia podem ser garimpados no texto de Ângelo Guido (1956), o principal biógrafo do pintor. Guido registra, por exemplo, que nos seus primeiros tempos de Europa, com dificuldade para sobreviver em Berlim, “sem recursos algum, passando privações de toda sorte, desesperado, resolveu empregar-se numa fotografia e abandonar os estudos” (GUIDO, 1956, p. 25). Weingärtner foi salvo de destino tão cruel - abandonar a Academia, onde estudava, e tornar-se fotografo ou colorista de fotografias, ou ainda, pintor de retratos a partir de fotos - pela generosidade de amigos, que passaram a auxiliá-lo financeiramente.

Aliás, pintar retratos a partir de fotografias não era atividade desconhecida para o artista. Na carta que dirigiu ao Imperador D. Pedro II, em 13 de abril de 1883, solicitando auxílio financeiro concluir seus estudos na Europa, salienta, referindo-se a mesada recebida dos amigos, que “somente com ajuda de alguns negociantes brasileiros residentes em Hamburgo, foi habilitado de continuar nos estudos até agora”. No mesmo documento lê-se o seguinte parágrafo:

O Suplicante, Senhor tomou a liberdade de pintar um retrato a oleo de Vossa Majestade Imperial baseado em n´um pequeno cartão photographico de Alberto Haenschel da Corte, e tambem do Exmo Vosso Conselheiro Henrique d´Avila, actual Ministro da Agricultura, para mostrar os progressos que fez na parte techina d´arte, sendo alias bastante diffícil pintar um retrato sem presença da pessoa o que pode ter dado lugar a erros graves a respeito das cores e da semelhança [...].

Por via das dúvidas, e para não comprometer o bom nome do seu trabalho, Weingärtner anexou à missiva um estudo feito na Academia alemã, a partir do modelo vivo.

Se a utilização de fotografia como base para o trabalho em pintura não lhe era totalmente estranha, como se pode ver, a aproximação com o meio fotográfico era uma constante. Como registra Guido, em suas voltas ao Brasil, Weingärtner realizaria sua primeira exposição no Rio de Janeiro: “Esta exposição foi realizada em 1888, à rua do Ouvidor, no salão do estabelecimento fotográfico Insley Pacheco & Cia[3], onde freqüentemente se  expunham quadros e outras obras de arte” (GUIDO, 1956, p. 41). Esta exposição foi muito bem sucedida e, como o Imperador não pudesse visitá-la pessoalmente, “resolveu Weingärtner ir ao passo imperial, em São Cristovão, mostrar ao Imperador alguns trabalhos e fotografias de outras telas” (idem, p.42).

Se até aqui parecer ficar demonstrada a aproximação de Weingärtner com os fotógrafos e a fotografia, restaria a dúvida sobre se ele teria utilizado, ou não, a máquina fotográfica como instrumento de registro e levantamento de informações para futuros trabalhos. Ângelo Guido (1956, p 76) registra: “Pelo que se pode deduzir de vários cadernos que examinamos, não viajava nunca, não realizava mesmo um passeio, como os que fazia aos domingos, em geral em companhia do íntimo amigo Carlos Magalhães de Azeredo, então cônsul em Roma, sem levar o seu pequeno caderno em que ia anotando o que lhe interessava ou podia servir para uma composição”. O que Guido não informa é se, além do caderno, Weingärtner também carregaria sua máquina fotográfica. Esta dúvida, entretanto, pode ser desfeita por um cartão, cuidadosamente guardado por seus descentes, assinado pelo cônsul em Roma, Azeredo, e datado de 5 de maio de 1905. No cartão se lê:

Meu caro Amigo, muito te agardeceria se pudesses vir abraar domingo, trazendo contigo a máquina fotográfica, para desejo que me tires uns retratos do nosso camarada Micello. Teu de coração, Azeredo.

Nas visitas a Porto Alegre, os passeios eram feitos na companhia do fotógrafo Lunara. Os dois costumavam percorrer locais dos morros da Glória e Teresópolis, e as margens do arroio Dilúvio, nas cercanias da cidade mas, novamente, as pesquisas não registram se nestas ocasiões Weingärtner também fotografaria.

Lunara, pseudônimo de Luiz Nascimento Ramos (1864-1937), deixou para a contemplação do futuro a pequena Porto Alegre do início do século XX. Comerciante bem-sucedido, dono de um Secos e Molhados, saía pelos arredores para fotografar a rua, as pessoas comuns, os namorados, os ex-escravos, os aguateiros, os imigrantes alemães do Vale dos Sinos e, claro, gaúchos a cavalo. Congelou, em preto e branco, a Capital de 70 mil habitantes que seguia, passo a passo, o receituário positivista da modernização ainda com a delicadeza das grades rendilhadas nas fachadas. Como bem disse o cronista da Gazeta do Comércio, em 1903, Lunara é um “incorrigível amador da fotografia, que trata simultaneamente de açúcar e de tudo que passa... pela Praça”. Seu olho jornalístico não deixou passar a tradicional exposição festiva de abertura do século (1901), junto à Escola de Engenharia, revelando em panorâmicas os primórdios do nosso Parque de Redenção, um campo sem maiores atrativos onde os carreteiros comercializavam mercadorias do interior. [...] O fotógrafo era um grande amigo do pintor Pedro Weingärtner, uma das referências fundantes da arte no sul. (GOLIN, 2002:3)

Sobre o processo de trabalho de Weingärtner, Guido (1956:63) registra:

A série de telas inspiradas na paisagem, as cenas, tipos e ambientes do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, verá representar uma parte muito importante no forte e variado conjunto das obras pintadas por Pedro Weingärtner. Não poucas dessas telas foram pintadas no próprio ambiente que representam; diversas, porém, resultaram de composições posteriores, feitas em Roma, mediante numerosos estudos de desenho e pintura executados no local. Esses desenhos, esbocetos, manchas e pequenas impressões de paisagem e figuras, mostram com que meticulosidade e espírito de fidelidade ao real Pedro Weingärtner reunia o material para os seus quadros de costumes de assuntos rio-grandenses.

Como se vê, em diferentes momentos e por diferentes razões Weingärtner esteve muito próximo da fotografia. Repita-se: o quanto esta aproximação condicionou ou influenciou o seu processo de trabalho diretamente, está por ser averiguado. Mas, com certeza, a sensibilidade do século XIX, de modo geral, não ficou imune ao olhar fotográfico. Por que um artista, que justamente se marca por seu olhar sensível, ficaria?

Referências Bibliográficas

ALVES, Hélio Ricardo. “A fotografia em Porto Alegre: o século XIX” In ACHUTTI, Luiz E. R. Ensaios (sobre o) Fotográfico. Porto Alegre: Unidade Editorial/SMC, 1998, p.9-21.

BOHNS, Neiva M.F. “Os primeiros pintores - Presenças desapercebidas, ausências sentidas”. In.GOLIN, Tau et al. História geral do Rio Grande do Sul. V. 2 - Império. Passo Fundo: Méritos, 2006.

CARVALHO, Vânia C. “As representações da natureza na pintura e na fotografia brasileira do século XIX”. In FABRIS, A. (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991

DAMASCENO, Athos.  Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1971.

GOLIN, Cida.  Lunara.  Jornal do MARGS, nº 78, abril de 2002, p. 3

GUIDO, Ângelo.  Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Secretaria de Educação e Cultura, 1956.

KOSSOY, Bóris. Origens e expansão da fotografia no Brasil. Século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980.

STELZER, Ott. Arte e Fotografia - Contactos, Influencias y Efectos. Barcelona: Gustavo Gili, 1981

TIBURSKI, João C. Boletim Informativo do MARGS, nº 23, out/dez de 1995.


* Doutor. Pontifícia Universidade Católica do RS e Universidade de Caxias do Sul

[1] Boscagli, Giuseppe (Floreça, 1862 - Rio de Janeiro. 1945). Pintor, desenhista, discípulo de Morini e Massani ca.1897 - Porto Alegre RS - Pinta retrato de Júlio de Castilhos, a serviço do Atelier Ferrari.  ca.1899 - Porto Alegre RS - Faz alguns trabalhos para a Sociedade de Artes de Buenos Aires, que mantinha uma agência em Porto Alegre, e recebia encomendas de retratos a óleo, aquarela e crayon, copiados de fotografia. ca.1909 - Torna-se pintor oficial das expedições do Marechal Rondon ao interior do Brasil ao interior do Brasil e fixa inúmeros aspectos da natureza, fauna, população e costumes da região amazônica (Enciclopédia Itaú Cultural Artes Plásticas).

[2] Como se vê na nota anterior, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural Artes Plásticas, a situação seria inversa a apresentada por Athos Damesceno: Boscagli teria primeiro trabalhado para o Atelier Ferrari e depois sido contratado pelos argentinos.

[3] Insley Pacheco: “Fotógrafo y litógrafo brasileño activo en Río de Janeiro desde 1854 hasta fines del siglo XIX. [...] En Nueva York trabajó primero como aprendiz de Mathew Brady y luego con Jeremiah Gurney, donde se puso al tanto de los últimos adelantos fotográficos. Además estudió pintura con el paisajista Grazoffre. (..) Por mucho tiempo tuvo su estudio en la rua do Ouvidor 102. Participó de varias exposiciones nacionales e internacionales y obtuvo 14 medallas por sus retratos y paisajes. Fue fotógrafo de la Casa Imperial y Caballero de la Orden de Cristo de Portugal. Practicó también la fotopintura”. < http://www.geocities.com/alloni1/biografiaslatin.htm>