Fléxa Ribeiro: Trechos d’O Imaginário (Pretextos de Arte) *

organização de Vinícius Aguiar

AGUIAR, Vinícius (org). Fléxa Ribeiro: Trechos d’O Imaginário (Pretextos de Arte). 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/flexaribeiro01.htm>.

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José Pinto Fléxa Ribeiro (1884-1971) nasceu em Faro, no Pará. Atuou como crítico e historiador de arte em periódicos brasileiros do começo do século XX, como Correio da Manha, Illustração Brasileira, Jornal do Commercio, O Malho e O Paiz, além do periódico argentino La Prensa. Publicou diversos livros, como: Fialho D'Almeida (1911), Rubens e os flamengos (1917) - título da tese que apresentou ao concurso para a cátedra de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes, instituição da qual foi professor de História da Arte e diretor, de 1948 e 1952 -, O Imaginário (Pretextos de Arte) (1925), Renan, Narciso (da Arte, do Amor e da Moral), e a coleção História Crítica da Arte, com primeira publicação em 1962. Possui também um trabalho consistente como poeta, fundamental para sua obra como escritor, com a publicação do poemeto Episódio Trágico (1905) e dos livros Sol (1906), Litania pagã (1907) e O amor e a morte (1913).

Fléxa Ribeiro é um autor ainda pouco explorado na historiografia de arte brasileira, com escritos de uma certa dificuldade de acesso. Neste espaço, disponibilizamos a transcrição do prólogo e de dois capítulos d'O Imaginário (Pretextos de Arte), partes do livro marcadas por uma concepção muito forte na produção de Fléxa Ribeiro. Há, logo no Prólogo, uma frase que pode causar surpresa: “A crítica é uma arte”; inicia-se, então, uma pequena elucidação sobre o papel e a importância do crítico de arte, com colocações muito claras e coerentes; a questão é disposta, favorecendo a reflexão, que é retomada nos capítulos posteriores.

Já no capítulo A crítica de arte, Fléxa Ribeiro explicita a dificuldade em citar bons críticos de arte visuais; aponta alguns quesitos determinantes e basilares à composição da crítica de arte; apresenta o conceito de “educação visual” - essencial para a compreensão de seu pensamento e que se tornaria exímia, como o próprio Fléxa diz, “no trato diário com as obras de arte, nas familiaridades de atelier, como também com o convívio dos princípios filosóficos”; elenca, enfim, o pintor e escritor francês Eugène Fromentin (1820-1876) como o grande representante da crítica de arte do século XIX, capaz de conjugar as qualidades especificadas à constituição de um verdadeiro crítico de arte.

No capítulo Da crítica nacional, Fléxa Ribeiro é enfático e faz uma pujante recriminação ao cenário em que se encontrava a crítica de arte brasileira de seu tempo, comentando que os poucos que se preocupavam verdadeiramente com o tema eram esmagados pelos “mocinhos do jornal”. Volta a desenvolver a discussão sobre as condições necessárias para a formação do crítico de arte, que se sustentariam pela apreensão da Beleza e pela já mencionada “educação visual”. Importante atentar, por fim, à sua colocação sobre a qualidade de educador que o crítico desenvolveria quando soubesse manejar todos esses princípios já citados: o crítico funcionaria como um orientador do público, um ponto de referência, além de um instigador do artista, influenciando na sua evolução.

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Prólogo [n/p]

Os quadros que constituem as galerias d'“O Imaginário” foram compostos em diferentes momentos, em anos diversos, e todos, ou quase todos, como simples esbocetos, no escambar do espírito, entre névoas e luzes de sensibilidade. São notas que esperam, com evidência, ulterior desenvolvimento.

Há em todos eles uma intenção particular em referência ao método de inspiração, na crítica de arte, e que o leitor verificará. - Não na julgo como simples bibliografia, nem ementa de erros: antes como uma energia evocativa, confiante em que o despertar comovido do sentimento é o melhor meio para atrair-se, com veemência, o raciocínio.

A crítica é uma arte. Ela tem o poder de irradiar, no objeto criticado, as imanências emotivas que o artista deixou vivas, mas irreveladas, pressentidas e não reais, como elementos de vitalidade, revivência e sugestão.

A constante beleza que imortaliza as obras de arte, através do tempo, resulta também da intensidade de vida que os críticos lhes emprestaram, conhecendo-as, louvando-as, divulgando-as, amando-as, - “criando-as” de alguma forma.

As obras de arte vivem, também, no tempo, da energia espiritual de nossa adoração.

Todo o livro está intencionalmente incompleto: o leitor terá a alegria espiritual de nele rever-se, ampliando-o com a sua própria sensibilidade.

Rio, 1924

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A crítica da arte [p.199-202]

Eugène Fromantin [sic]

I

No domínio da crítica literária, a França, que comemora o centenário de nascença de Fromantin, possui figuras em pé de intensa expressão, vigoroso modelado. E bastaria mencionar o nome de Sainte-Beuve, mestre incomparável do gênero em toda volta dos séculos, para que o asserto estivesse solidamente documentado.

Mas além do autor da suntuosa galeria das Causeries du Lundi - onde os tipos ostentam a sua nítida personalidade e compostura, como num salão - outros ainda se alinham em nobre e sugestivo destaque: ou se recorde o nome de Taine, ou venha à flor da memória, inesperadamente, o de Jules Lemaitre, ou se chame, de ar severo, pelo de Brunetière, ou ainda, à doce sugestão de páginas de um risonho e perfumado encanto, se evoque o nome lúcido, apostólico e vitorioso de Paul de Saint-Victor: todos eles são fontes de cultura, são paragens ricas e amáveis onde a sabedoria, a penetração psicológica, a dialética e a divina emoção das coisas e das almas se entreabrem.

Na crítica de arte, porém, raros e espaçados são os espíritos que se podem nomear como expressões verazes de compreensão do problema estético nas obras plásticas, como finura germinante de penetração, como aparelhos registradores de visões dos artistas que se retrataram - magnetizando parcelas da alma humana -, nas telas e nas estátuas.

E o fecundo e contínuo renovamento artístico da França, desde o século XVIII, não justifica aquela ausência, na mentalidade do povo.

É que o gênero é complexamente difícil. A crítica de arte exige, além do dom providencial, larga aptidão, específica, certeza instintiva no surpreender a beleza, uma espécie de perpétua adivinhação dos instintos revelados.

Não basta a cultura; é necessário uma copiosa educação visual. Nela o conhecimento lógico não é bastante; não satisfaz; o intuitivo, que logo se relaciona com a imaginação, é indispensável, é insubstituível.

A crítica de arte é uma criação raciocinada. Ela procede por uma análise do sentimento, que se deve concluir por síntese do pensamento. Sentir a minúcia - no modelado, na cor, e aprender - na linha e no volume - a relação de universalidade, de correspondência mental - eis aí as duas atividades inerentes, consubstanciais de um julgamento dessa natureza.

Um só desses fatores é impotente para gerar a nova forma do conhecimento. O crítico de arte não é que prefere; é o que compreende: e aqui compreender - é criar.

Ele precisa sentir o pensamento, e raciocinar as emoções. Só do jogo dessas faculdades, e do conhecimento direto da técnica, resultará, verdadeiramente, a aptidão predestinada a tão elevado ofício.

Com esses dons primordiais quantos se podem citar, ilustres e evidentíssimos? Diderot, Stendhal, Baudelaire...

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Em Eugène Fromantin tais qualidades primazes, virtuosas e inalienáveis se encontram e se fundem, dele fazendo a figura mais alta e representativa do gênero, no século passado. O seu livro de crítica da pintura flamenga e da Holanda - Les Maitres d'autrefois - ficou, nas letras francesas, sem irmão, e, na cultura moderna, exemplar e cheio de inesgotável prestígio.

Aquelas páginas que ele traçou, deixando o pincel, guardam no frêmito de suas frases, na intenção secreta dos pensamentos, na graça musical das imagens, todas as tonalidades da palheta, o senso evocacional [sic] do claro-escuro, a intuição luminista, e parecem abrir-se, aos nossos olhos comovidos, na radiosa alegria de um álbum maravilhoso de paisagista da vida interior.

Da sua análise resulta o estudo minudente da técnica de cada Mestre; de sua síntese, na felicidade definitiva da expressão, surge o próprio pintor e vem revelar-nos seus íntimos desígnios. Conhecemos a obra; amamos o homem, após termos lido a crítica de Fromantin.

O autor de Les Maitres d'autrefois frequentou, no século passado, mais dois gêneros literários: o romance, com Dominique, - um dos livros clássicos do sentimento francês - e as impressões de viagem, com as obras magníficas que são Un Été dans le Sahara e Un Anée das le Sahel, que o tornam um precursor do moderno Orientalismo.

Mas é só com seu livro de crítica que ele perdura, na história da cultura da sensibilidade, como um ornamento do gênio francês.

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Da crítica nacional [p.203-209]

I

Será sempre um dever de probidade mental assinalar um alarmante sintoma de nossa pobreza: e maior ainda se torna esse dever quando a miséria não resulta da indigência intelectual, antes de desonestidade moral.

Por agora, bastará que analisemos, e tanto quanto ao de leve, o fator crítica nacional.

Sem as ideias gerais orientadoras - forma sintética de uma cultura demorada - é de todo impossível tentar-se, e menos ainda conseguir, modificações estéticas na vida de um povo.

E é, precisamente, o crítico - com sua capacidade instintiva de apreender a Beleza, com a sua educação visual, tornada exímia no trato diário com as obras de arte, nas familiaridades de atelier, com também com o convívio dos princípios filosóficos, - que poderá, na comunhão com o artista, influir beneficamente na sua evolução, fazendo que ele passe da destridade manual às realizações superiores; emulando os jovens de assinaladas inclinações e até descobrindo, no sonho providencial do talento germinante, a cor e o perfume da flor que há de desabrochar.

Além disso, e com o mesmo poder e autoridade, o crítico deve ser o ponto de referência pelo qual o público se oriente e se guie, nele encontrando o seu educador sincero, entusiasta e lealíssimo; o que lhe faz notar, intencionalmente, as qualidades peculiares a cada obra e os seus defeitos menos visíveis. Não que o caráter de beleza que exista numa tela ou numa estátua só seja perceptível pelos que se formaram, pedagogicamente, na sua ambiência, pois que ela é sempre absoluta; mas a vista não educada é sujeita, e facilmente, às mistificações que se podem operar nas representações plásticas com uma técnica sumária e sem grandes aptidões.

II

Essa disciplina pública é um dever sagrado que o crítico é chamado a exercer: mas que, infelizmente, entre nós, quase não existe, pois que um ou dois espíritos que dela se ocupam com devotamento, com ardor, com fé e honestidade ficam desde logo esmagados pela algaravia de latão e pechisbeque com que os mocinhos dos jornais atestam a opinião comum. Manda-se fazer, nas folhas, o comentário do “Salão” com o mesmo leviano açodamento com que se anotam, nas seções “Sociais” e “Elegantes”, as pessoas que se acotovelaram num baile; e o repórter que vai entrevistar o inspetor da Alfândega sobre as novas tarifas aduaneiras é o mesmo infeliz a quem se comete o carrego de criticar, com gravidade, as obras d'arte exibidas nas galerias anuais, pelos infelicíssimos expositores.

Aliás, o mesmo treino se passa na crítica literária, gênero que parece ter desaparecido, depois de haver dado flores e frutos com certa ufania e vigor pelos nomes ilustres, curiosos e probos de Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo. Principalmente o último (que mais contato teve com a opinião, jamais andou ao de leve em questões sérias e passou uma vida laboriosa em torneios incessantes) - que sempre fora como que o pêndulo determinante da valia das obras literárias de seu tempo. E era de ver-se, quando aparecia uma novidade, como todos esperavam e desejavam saber “o que o Veríssimo diria...”

Assim, nesse torvelinho de ideias e de estilos, a massa geral sabia, constantemente, como guiar-se, - ela que se não preocupa senão das coisas objetivas e imediatamente úteis, e precisa, portanto, de quem a oriente para que possa, com segurança e proveito, encaminhar as suas predileções. Ao crítico é que cumpre examinar, distinguir, classificar - aplaudir ou censurar. Ele deve fazer, enfim, a história natural dos espíritos, como queria e praticou o grande e incomparável Sainte-Beuve, nas suas Couseries du Lundi: e, por isso, até hoje, aqueles estudos, que são sempre atuais, formam, não herbários de plantas mortas ou mostruários de animais empalhados, mas galeria rica de seres de vida intensa, comoventes, sedutores, risonhos e murmurantes, e que só nos esperam - que os escolhamos da coleção - para que venham conversar conosco, lado a lado, compartes da nossa emoção, de jeitos prontos, atitudes felizes e gestos inolvidáveis, tão animadamente, com tanta graça e espontaneidade, como se fossem convivas, em verdade, de uma crítica real.

III

Mas, voltando à crítica d'arte - que já teve o seu Gonzaga Duque. - É evidente que a nossa cultura jamais será completa enquanto esse espírito reparador de análise o [sic] de escolha, de intransigente seleção, não se acentuar, com veemência, em duas correntes determinantes: estimular e amparar o artista, desviando o artesão impenitente, e orientar o espírito do público, encaminhando-o para o senso do bom gosto, primor do sentimento, alegria da Perfeição.

E como julgue do maior interesse as palavras fotográficas de Camille Mauclair (para o advento e domínio dessa obra de nacionalismo e de estética geral), para aqui as translado, com toda a humildade: - … “la critique d'art est devenue presque uniquement un reportage - le journalisme, qui a dejá [sic] tué la critique littéraire, est en voie de tuer la critique d'art. Il exerce lá, comme ailleurs, sa honteuse influence, il y séme la démoralisation. Les journaux sont pleins de gens qui s'intitulent critiques d'art parce qu'ils signent des comptes rendus d'expositions, et qui ne connaissent ni l'histoire des arts, ni la formation des écoles, ni les techniques, parce qu'il faut dix ans au moins, pour s'en acquerir avec méthode. Les journaux se moquent bien des artes [sic] !

IV

Ora, precisamente, convinha que os jornais brasileiros não se moquassent bien des arts: vivemos num país onde a imprensa diária é o único fator decisivo da divulgação. As revistas não existem ainda, com caráter de erudição, de crítica, de veículos de ideias e de noções. Quase todas são meras formas disfarçadas de reclamos da Pasta Russa, do Cigarro Veado ou do fazendeiro de Minas que tem uma família numerosa, que celebrou as suas bodas de prata, e quer ver-se em fotogravura nos semanários.

E tal moquerie não tem razão, principalmente, porque a arte é o espelho imareável onde se refletem os costumes, as glórias, o gênio de uma nacionalidade!

A não ser, portanto, a crítica musical e a do teatro - e tão restritamente! - as das artes dinâmicas -, as estáticas estão sem quem as julgue, diferencie e lhes marque a hierarquia: e premie, com palavras de louvor, o esforço pertinaz, a dedicação ininterrupta, o labor insano do verdadeiro artista que, sob a inclemência frígida deste clima social de país em formação, de indiferença pelas puras realizações do espírito, se vê reduzido a si mesmo, sem esperanças, sem estímulos fecundantes, sem amparos guiadores, sem recompensas humanas que lhe mitiguem as horas cruéis e obscuras em que o seu ser se sacrifica na ara sagrada da criação.

Jamais se nos apresentou, entanto, uma oportunidade tão propícia como a do presente: há, em tudo, no Brasil como que um anseio de renascimento. Por outro lado, o centenário de nossa independência política foi celebrado. Cumpre portanto, ao governo, cuidar melhor da arte, que é o elemento primordial e por excelência de uma nação. E, à imprensa, cabe inadiavelmente dar mais atenção a esta obra, e compostura aos seus diários, em cujas seções comicamente chamadas de Belas-Artes, o julgamento da tela ou da estátua é apresentado em piores condições que o relato de uma navalhada ou de um pugilato entre dois ébrios, na Saúde; ainda porque, ao menos, para esse fait divers o repórter tem aptidão do ofício, competência técnica e moldes fixos...

Nem tudo na vida, afinal de contas, depende, como pensam os yankees, de uma conquista de técnica industrial; há alguma coisa que é um sopro mais alto, mais profundo e mais revelador.

Para julgá-lo, orientá-lo, aviventá-lo de novas esperanças, dar-lhe ordem e sequência na perfeição, é inadiável e de valia nacional, o aparelhamento de nossa cultura sob o influxo disciplinar da Crítica d'Arte.

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* Versão do trabalho final apresentado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão - História da Arte, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrado pelo Prof. dr. Arthur Valle, no segundo semestre de 2011.