Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos

organização de Fernanda Justo, Cynthia Dias da Silva e Arthur Valle

JUSTO, Fernanda; SILVA, Cynthia Dias da; VALLE, Arthur (org.) Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/apb_am.htm>

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MATTOS, Adalberto. Artistas portugueses no Rio de Janeiro. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, out. 1925, n/p [Transcrição com grafia atualizada de Fernanda Justo].

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FAUSTO GONÇALVES

No mesmo ambiente, em que os grandes mestres portugueses apresentavam as suas obras, Fausto Gonçalves mostrou a sua arte. O jovem artista ocupa lugar de destaque entre os seus irmãos de credo que nos têm visitado: muito jovem ainda, impôs o seu nome com segurança. Apenas inaugurada a sua interessante mostra, a critica honesta adjetivou veemente a coleção de quadros encantadores; uma ou outra voz desgarrada, sem autoridade, se fez ouvir para diminuir o valor do pintor aos olhos do público sempre presente à mostra do pintor de Coimbra. Os ataques ao artista, unicamente por ser ele português, tiveram os resultados mais contraproducentes: imediatamente após uma saraivada de pedras, recebia Fausto Gonçalves um punhado de louros e na certa, tinha a aquisição de uma de suas telas…

Pinto da Rocha, escritor cintilante em magistral estudo sobre a individualidade do pintor, teve palavras que valem a mais completa consagração; que o próprio leitor ajuíze o encanto e a verdade na página do escritor: um trecho apanhado ao acaso dirá o que foi a mostra do artista:

Fausto Gonçalves soube compreender toda a psicologia da paisagem do Mondego e dos arredores de Coimbra, até Arganil e Condeixa, e, no entanto bem se vê, pelos poetas que tem cantado, desde Camões celebrando os Saudosos Campos do Mondego, até Antonio Nobre, glorificando-a soberbamente nas iluminuras do , que naquele ambiente, onde voejam em cardumes as tradições, a amantude da raça, a saudade dos dias vividos e dos bens perdidos, há uma alma das coisas que bem poucas almas de homens entendem e conhecem.

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E toda a obra do artista é assim: mocidade, luz, liberdade em plena natureza, sinceridade nas expressões da sua alma, adoração panteísta da terra, horizontes vastos como as suas aspirações de glória e, pairando sobre todas as telas um não sei quê de vago, de indefinido, de evocativo, que não pode deixar de ser a saudade, principalmente para as almas que já tiveram algum dia a ventura de viver naquele meio, de aspirar aquele oxigênio, de engolfar-se naquela luz, e de sondar o fundo secular de tristeza suave que a envolve e que a história se encarregou de perpetuar, embora colorida, às vezes, pelos encantos das lendas e, marchetada pelos versos dos rapsodos que, desde Bernardino Ribeiro a Antonio Fogaça, de Sá de Miranda a Antonio Nobre, andavam trovando por aquelas sombras deleitosas. E Fausto Gonçalves é bem pintor poeta dessa saudade que faz merencória a paisagem de Coimbra.”  Em toda a mostra do artista, vivia um critério elevado: o da honestidade calcada em uma individualidade característica e expressiva.

As suas telas nos deram uma nota vibrante, um conjunto sadio completamente afastado das normas cabotinas, tão comuns na mocidade de nossos dias. A par de tantas qualidades, verificamos uma orientação conscienciosa nos verdadeiros princípios do raciocínio artístico. Fausto Gonçalves pratica o impressionismo dentro de um desenho justo, com alma, sem malabarismos grotescos, sempre empregados para perturbar e distrair o observador pouco experimentado…

As suas manchas - o próprio pintor o confessou, eram flagrantes rápidos, pintados no estreito limite de rápidos momentos: impressões, onde a compreensão dos valores obedeciam ao critério do Belo e a estados perfeitamente emotivos.

O pintor apresentou-se manejando com segurança todos os motivos, porém, a paisagem e os interiores encontram um intérprete mais brilhante no jovem artista; em tais assuntos, Fausto Gonçalves encontrava vasto campo para o desenvolvimento e aplicação do seu famoso talento.

Algures, em uma crônica, lemos palavras que enquadram com precisão o valor do pintor: “… este moço artista, que é um adivinhador da Beleza, só a si deve o que é. E já é alguém.” São palavras singelas, mas portadoras de uma grande e brilhante verdade!

Compunha-se a mostra do pintor, de um conjunto afinado. Ali, tínhamos As trindades, uma cena de encanto e de tristeza; A canção das roupas, alegre, colorida, cheia de movimento, de vida e de ambiente…

Mais além, aparecia o casario de Coimbra, ora envolvido em bruma, ora beijado pela alegria do sol quente; um efeito de luz, um interior sombrio, de claro escuro intenso…

E assim é toda a mostra de Fausto Gonçalves, cheia de contrastes e cambiantes sedutores. O artista preocupa-se com o batismo dos seus quadros, dá-lhes nomes transbordantes de poesia, nomes que falam, que traduzem o seu lirismo. Veja o leitor, eis os seus títulos: Doce enlevo, Canção de repuxo, Apoteose d'Ouro, Canção de roupa, Cidade de bruma e de Lenda, Altar da Raça, Hora de evocação, Casal de Margarida, Fonte de Castanheiro, Claustro do silêncio, Mosteiro da Rainha Santa, Soidosos [sic] campos, Sinfonia pagã, Hora mística, Altar do Senhor, Rústica morada, Paisagem dolorida, A casa da ceguinha, Sonata de outono, Bucolismo santo, Desfiando o rosário, O moinho da Santa e Tragédia Outonal.

O pintor veio sem reclamos antecipados; como credenciais, trouxe apenas os seus quadros. Entregou-os ao público e à crítica. O resultado já é sabido. Em sua terra teve proceder idêntico e Coimbra inteira entoou louvores à sua obra simples, glorificou a sua paleta. João de Almeida assim se exprimiu nas colunas da Gazeta de Coimbra:

Venho da casa de Fausto Gonçalves, o pintor-estudante de Coimbra que lá em cima, na Cumeada, se recolheu a viver o seu sonho de cor e de graça: e, lá, presos e saudosos me ficaram os olhos, estes meus olhos fundos de estudante e moço que, neste velado de ambulatório de Catedral que é Coimbra, passeava sua mocidade, sonhando as horas que não passaram…

Uma extraordinária organização artística aquela de Fausto Gonçalves!

Ante a sua figura esbelta, fina figura de pajem sonhador, recortando-se na penumbra suave do atelier, ante o seu olhar triste, como errante em demanda de um Graal bendito de perfeição e beleza, eu que o visito amiúde, sinto-me ascender com ele nas asas do seu Sonho e é como se dentro e fora de mim ecoassem longas melodias de Schumann, perdidas melodias do outro mundo que aos humanos não é dado compreender, mas tão somente entrever pelos vitrais que são a alma dos artistas e dos poetas.

Uma exposição - a primeira - há anos, em Lisboa, ei-lo pintor-estudante, artista feito quase sem professores, ei-lo considerado como a maior afirmação dos novos. Agora Fausto Gonçalves vai expor no Brasil. Expor no Brasil como os maiores, como os consagrados! Expor ante um povo que mais que todos no Novo Mundo tem o culto da Beleza e da Harmonia! E nos olhos do Artista há, quando isto diz, um reflexo das miragens em que a sua alma se encanta.

Porque no Brasil, que é a pátria do sol., e da cor, a sua arte que é tantas vezes cheia de luz como um rincão da [...], terá olhos que a compreendam até ao fundo mais raro e mais inacessível da sua Beleza.

E de tudo isto uma certeza me ficou: é de que o estudante-pintor, que é Fausto Gonçalves, dirá com a sua obra, no Brasil, quanto o renascimento coimbrão nas artes e nas letras tem de equilibrado e de perdurável como em Coimbra se sente e se canta como nos tempos que foram, como nos que hão de vir.”

Representa o trecho citado uma grande verdade, um espelho, onde a alma emotiva de Fausto Gonçalves aparece límpida e privilegiada. Que o artista continue sempre na mesma estrada.

ADALBERTO MATTOS

Ilustrações originais

Fausto Gonçalves

As Trindades”

O pintor no seu “atelier”, em Coimbra

Canção de repouso”

Leitura”

Rústica morada”