Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906: resenha em Illustração Portugueza, Lisboa

organização de Arthur Valle, transcrição de Clevison Jesus de Carvalho e Diego Alves

VALLE, Arthur (org.); CARVALHO, Cleivison Jesus de; ALVES, Diego (transcrição). Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Página inicial disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/JM_1906.htm>.

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O PINTOR MALHÔA NO BRASIL. Illustração Portugueza, Lisboa, n. 11, II série, 7 mai. 1906, p.329-337.

A convite do Gabinete Português de Leitura, a benemérita e patriota instituição do Rio de Janeiro, vai organizar-se nas salas daquela sociedade uma interessantíssima exposição dos trabalhos do notável pintor José Malhôa. Muito breve, este mês ainda, o ilustre artista deve ter transposto o oceano, acompanhando a sua obra, destinada na capital federal a um enorme sucesso. Não desconhece o Rio de Janeiro o altíssimo valor do artista que na exposição daquela cidade se representou já com trabalhos seus, que alcançaram justificado êxito. Esta viagem, que pela primeira vez empreende um grande artista da nossa terra ao Brasil, é um acontecimento digno de registo espacial. Representa, além da merecida consagração ao mais realista dos nossos pintores e ao mais autêntico e prodigioso intérprete da paisagem e vida rural portuguesa, o espirito de acendrado patriotismo que anima os portugueses daquelas longínquas paragens. Ao formular o convite ao grande mestre para exibir ali o maior número dos seus trabalhos, moveu-os, antes de tudo, a suave recordação do país natal. É que José Malhôa, por sobre as qualidades técnicas da sua arte e pelas manifestações do seu formoso talento que lhe asseguravam em qualquer parte um lugar distinto no mundo artístico, é pelo sentimento o mais português de quantos procuram pela arte, depois de Silva Porto, fixar a paisagem e os costumes campesinos de Portugal.

A obra do ilustre pintor constitui documento precioso para o estudo dos costumes rurais do nosso país. Não há na vida do campo um único aspecto interessante que não tenha merecido a sua atenção, nem trecho pitoresco da nossa paisagem que não tentasse a exuberância da sua paleta. A produção de José Malhôa é um verdadeiro prodigio. Ainda em pleno vigor da vida, a sua obra é já considerável. Para se avaliar o número dos seus quadros basta dizer que o notável pintor envia à exposição do Gabinete Português de Leitura mais de cem trabalhos e que essa é a porcela mínima que tem produzido a sua atividade. É tão extensa a galeria de retratos pintados por aquele artista que ele próprio os não pode enumerar já. E não é só na pintura a óleo que o autor da Volta da Romaria e Procissão exerce as suas poderosas faculdades. Todos conhecem os deliciosos quadros a pastel que o artista de vez em quando envia à Sociedade Nacional e que assinalam como que o repouso das suas grandes composições. Além de todos estes trabalhos que o curioso da arte tem meio fácil de admirar, quantas obras não tem produzido José Malhôa por incumbência particular, já para decoração, já para galeria e que apenas ficam patentes às relações dos seus possuidores? Para esta enorme produção feita, naturalmente, sem esforço, a envergadura do artista é, como o aspecto da sua obra, sadia e vigorosa. Na sua casa de Figueiró dos Vinhos, mal rompe a manhã, já o ilustre pintor está irresistivelmente pegado à sua tarefa. No regresso à capital, ao cabo de três ou quatro meses, o seu atelier sofre uma inundação: esquissos, manchas, esbocetos, apontamentos e não raro obras já concluídas.

A exposição que José Malhaa vai organizar no Rio de Janeiro tem ainda o valor especial de tornar conhecidos pela primeira vez os estudos do artista para os seus quadros e decorações; soberbos estudos a carvão que são verdadeiros primores da arte e pelo motivo de serem ali expostos os trabalhos que o distinto pintor executou na passada vilegiatura em Figueiró.

Avultam, entre os primeiros estudos, os esquissos para os quadros Barbeiro da Aldeia [Imagem, Imagem e Imagem], Cócegas, Volta da Romaria [Imagem] e decorações da casa Lambertini [Imagem , Imagem e Imagem].[1] São deliciosos os estudos dos camponeses para o grupo do Barbeiro, soberbas as imagems que se destinam aos quadros decorativos.

Dos novos trabalhos destacam-se os retratos de suas majestados el-rei D. Carlos [Imagem] e rainha D. Amélia [Imagem], vestindo o soberano português a sua farda de generalíssimo e ostentando o manto real e sua majestade a rainha que veste uma linda toilette branca. Desde a atitude aos mínimos detalhes, os retratos dos monarcas são duas obras primas. A par de telas valiosas, como o Infante D. Henrique [Imagem], A Velha fiando [Imagem], Cavaleiro de Santiago [Imagem], Os oleiros [Imagem],[2] O viático [Imagem], As cócegas [Imagem], trabalhos já premiados em exposições nacionais e estrangeiras, figuram os novos quadros Cuidados de Amor [Imagem], S. Martinho [Imagem], Sétimo não furtar... as uvas ao “sôr” prior [Imagem], Chegada do Zé Pereira [Imagem], que são outros tantos aspectos da vida rural, estudados carinhosamente, como só o sabe fazer o ilustre pintor.

Não nos deteremos no exame dessas obras já conhecidas e apreciadas pela crítica. Referir-nos-emos apenas às produções do artista ainda não expostas em Lisboa e onde muito provável é que já não venham a ser conhecidas. Principiaremos pelo delicioso trecho de pintura, cheio de sentimento e inexcedível correção que se intitula Cuidados de amor. Destaca-se no quadro a figura de uma gentil lavradeira, sentada no pequeno muro que limita um quintal. É à hora do jantar e o sol bate de chapa sobre as couves gigantes com reverberações metálicas. Um sopro de melancolia turva a linda face da minhota. O seu pensamento está muito longo da bizarra e cálida paisagem que envolve o quadro.

A par da nota vagamente sentimental e triste, destaca-se um dos aspectos mais pitorescos da vida do Norte: a chegada do “Zé Pereira” ao arraial. É uma linda composição essa. Na modesta povoação que se oculta na encosta erguem-se os galhardetes, e agitam-se bandeiras. Grinaldas de verduras e balões prendem-se de mastro a mastro. Tudo está em festa e o céu purissimo só tem as nuvens do estralejar dos foguetes. A música deu entrada no arraial. À frente vem o bumbo, no plano intermediário o tambor e a gaita de foles. Seguem atrás os festeiros queimando os foguetes. Adivinha-se em todo o quadro o ingênuo entusiasmo da povoação, a vida feliz dos seus moradores.

O S. Martinho é um quadro precioso de estudo, que se filia na segunda maneira do ilustre artista, característica por essa feição histórica que tem produzido Os oleiros, As papas e outras obras primas, que contrastam com a maneira pitoresca das suas paisagens. É o aspecto filosófico da vida rural. No assunto do quadro, Ceres deu lugar a Baco. No recanto do casebre abancam três campônios, que festejaram alegremente o S. Martinho esvaziando algumas canadas. Um deles encosta-se já adormecido sobre a mesa, enquanto o segundo entrando no período da meditação considera as coisas deste mundo através dos laivos melancólicos do sumo da uva.

Mas lá no extremo da mesa o terceiro e alentado companheiro, mais descrente e mais forte, faz-lhe o sinal de desenfado e prepara-se para esgotar a sua tigela. Se não fora já o nosso primeiro pintor realista, José Malhôa alcançaria esse lugar com o quadro que se intitula S. Martinho.

A seguir volta o notável artista a retomar o seu pincel descritivo, ligeiramente irônico, no quadro intitulado: Sétimo não furtar... as uvas ao sôr Prior.

Um rancho de raparigas invade a vinha do sr. cura, fazendo ali boa colheita de louros e maduros cachos. A incursão não se faz sem perigo, porque já o guarda, ao longe, corre de encontro às invasoras que fogem, levando no avental o saboroso furto. A luz, o movimento, a cor, casam-se admiravelmente com a graciosidade do assunto. Ao lado deste quadro encontramos o Viático e, conquanto já estivesse exposto na Sociedade Nacional de Belas Artes, não nos furtamos no desejo de lhe fazermos algumas referências. Raras vezes se consegue numa tela transmitir tanto sentimento, a par da exuberância do colorido. É encantador tudo o que envolve o quadro, todo o meio em que se desenrola a ação, e, no entanto, o acontecimento é doloroso, a situação difícil. À volta da casaria vai desaparecer o cura, sob a umbela, levando a Eucaristia. À porta do casebre, modesto e muito branco, uma figura de mulher assenta-se como que desfalecida, encostada à ombreira. Foi dali que saiu o cura, levando o Santo Sacramento. Naquela altitude desalentada, observa-se uma grande dor. Em volta, a atmosfera é linda, como se em todos os casebres pairasse a felicidade.

No número dos trabalhos destinados ao Rio de Janeiro figura também o quadro Cócegas, que foi admitido no ano passado ao Salon, e que, em proporções reduzidas, já havia sido exposto também em Lisboa. O quadro tem três metros de comprimento e as figuras são quase em tamanho natural.

É um delicioso trecho de paisagem, de largo horizonte, calmo e límpido.

Vão concluídas as ceifas e já o trigo se amontoa ressequido e louro. No primeiro plano, estiraçado no chão, destaca-se o trabalhador, tendo ao lado a companheira de labuta. É a hora da sesta. Com que gracioso movimento a moçoila estende o braço, entretendo-se se em distrair do sono o fatigado companheiro.

É um verdadeiro encanto aquele trecho de pintura, em que as qualidades de exímio paisagista que caracterizam José Malhôa estão postas à prova. É bem aquele o nosso campo, cheio de luz, de suave colorido, coberto por um céu de puro anil. Não há ali um único exagero de cor; todas as tonalidades são rigorosamente acentuadas, sem precipitação nem falsidade tanto em uso dos modernistas.

Este quadro obteve em Paris o aplauso unânime da critica, que o considerou um dos melhores trabalhos enviados ao Salon.

O quadro Infante D. Henrique, de que o artista fez a sua decoração para a sala do Museu de Artilharia, está também incluído no catálogo da exposição do Gabinete Português de Leitura. Esse estudo avantaja-se muito ao panneau do museu, principalmente porque a porta que o intercepta lhe tirou muitas das suas melhores qualidades.

É uma excelente composição, vigorosa e sentimental. É ao mesmo tempo a obra de um artista e de um patriota. O infante do Sagres está sentado numa roca, sobre o promontório onde vem quebrar-se o impetuoso mar.

A figura do príncipe, dominando o aspérrimo rochedo, é majestosa e imponente. Apoia-se na espécie de cátedra que lhe oferece a rocha e sonha com o seu plano de glórias. Do seio das águas, numa curva que se perde no espaço, como um arco-íris de todas as passadas grandezas, ergue-se a materialização do vago sonho do infante. Aparecem no primeiro plano, mal esfumadas, as caravelas que deram a Portugal o vasto domínio do mar, esquissam-se numa penumbra os combates que asseguram aos portugueses o mais vasto império da Renascença. Flutua em terras do Oriente o pendão das quinas, esboçam-se ao longe os cortejos triunfais, os combates de Ormuz, Goa e Malaca.

Sonho de um império para o infante de Sagres, quase sonho para nós a quem o destino levou realizadas as grandezas que incandesciam a mente do infante.

Quer da sua composição geral quer nos mínimos detalhes, este quadro merece um lugar de honra na exposição e na análise dos trabalhos de José Malhôa.

O ilustre artista excedeu-se a si próprio no arrojo, vigor da concepção desse quadro de que felizmente podemos fazer uma ideia muito aproximada pelo panneau do Museu de Artilharia.

A galeria de trabalhos do nosso ilustre pintor, que o Brasil vai ter ocasião de apreciar, é enriquecida ainda por dois soberbos quadros, que se intitulam Cavaleiro de Santiago e Provocador [sic]. O primeiro já figurou na exposição da Sociedade Nacional, o segundo ainda não havia saído do atelier de José Malhôa. Debaixo do caráter genérico que o artista imprimiu àquelas obras, nota-se a esplêndida fatura de dois retratos, de Antonio Lobo da Silveira (Alvito) e de Manuel Henrique Pinto. Na figura do cavaleiro de Santiago admira-se a expressão de fidalguia, adivinha-se um passado de pergaminhos. No aspecto do segundo transparece a audácia, no olhar provocante e enérgico, reconhece-se o batalhador arrojado e aventureiro. São duas curiosas figuras que o artista animou numa concepção típica.

Não concluiremos a ligeira referência à obra do distinto pintor sem falarmos desse quadro exposto há sete anos no Grêmio Artístico e que se intitula A passagem do comboio.[3] Faz parte esta tela da exposicição do Gabinete Português de Leitura e é um dos trabalhos de José Malhôa em que primeiro se firmaram os seus créditos de observador da vida pitoresca no campo. O apreço em que foi tida esta composição, provam-no as reproduções que do quadro de então para cá se tem feito.

Raras pessoas não terão fixado de memória esse rancho de crianças, junto da passagem de nível, saudando o comboio que passa. É um trecho leve e gracioso, que já não se pode examinar sem sentir um inefável prazer.

Antes de partir para o Rio de Janeiro, o ilustre pintor franqueou o seu atelier a diversos amadores de arte que haviam manifestado desejo de admirar os trabalhos que vão ser expostos ali.

Suas Majestades El-Rei o Senhor D. Carlos e Rainha D. Amélia e D. Maria Pia estiveram na residência de José Malhôa admirando as produções destinadas ao Brasil.

Os régios visitatantes, que muito distinguem aquele artista, fizeram as mais encomiásticas referências a todos os trabalhos, destacando principalmente o retrato de Sua Magestade a Rainha, que é uma perfeita maravilha.

Imagens

[Figura sem legenda, retrato de José Malhôa] [Imagem]

Estudo para a decoração da sala de música do sr. Lambertini por J. Malhôa [Imagem]

Cavaleiro de Santiago [Imagem]

Retrato de Sua Majestade El-Rei [Imagem]

Retrato de Sua Majestade a Rainha [Imagem]

“Provocador” [sic] [Imagem]

“Cuidados de Amor” [Imagem]

Estudo para o “Barbeiro da Aldeia” [Imagem]

A chegada do “Zé Pereira” [Imagem]

Estudo para o “Barbeiro da Aldeia” [Imagem]

Estudo para o “Barbeiro da Aldeia” [Imagem]

Estudos Decorativos [Imagem]

Estudos Decorativos [Imagem]

Estudos Decorativos [Imagem]

Os “Oleiros” [Imagem]

As “cócegas” quadro admitido ao “Salon” de 1905 [Imagem]

“S. Martinho” [Imagem]

“O Viático” [Imagem]

“O azeite novo” [Imagem]

“Sétimo não furtar... as uvas ao ‘sôr” Prior” [Imagem]

O “Infante D. Henrique” [Imagem]

“Velha fiando” [Imagem]

Estudo para “A volta da Romaria” [Imagem]

Um aspecto do “atelier” de J. Malhôa [Imagem]

A casa de J. Malhôa na Avenida Maria de Avellar [Imagem]

[Figura sem legenda, estudo decorativo] [Imagem]

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[1] Uma reportagem coeva sobre a casa de Miguel Angelo Lambertini, que inclui fotos das decorações feitas por Malhôa pode ser consultada em: Ilustração Portuguesa, Lisboa, n. 16, 11 jun. 1906, p.502-511. Disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/IlustracaoPort/1906/N16/N16_item1/P23.html> sg.

[2] A referência aos Oleiros aqui feita pelo periodicista anônimo parece ser um equívoco, pois Malhôa não teria exibido nenhuma versão da obra no Rio de Janeiro. Além disso, a imagem reproduzida no artigo se refere ao quadro que se perdeu no naufrágio do navio Saint-André, em 1900, quando trazia para Lisboa obras que diversos artistas portugueses haviam exibido na Exposição Universal realizada em Paris naquele ano. Para mais detalhes, ver: LBG. Malhôa e os “Salons” de Paris (II). Disponível em: <http://provocando-umateima.blogspot.pt/2012/12/Malhôa-e-os-salons-de-paris-ii.html>. Acesso em 1 jun. 2014.

[3] O periodicista parece se referir aqui à versão de À passagem do comboio exibida na 7ª exposição do Grémio Artístico, em 1897, outra obra que se perdeu no naufrágio do Saint-André, em 1900. No Rio de Janeiro, Malhôa teria exposto, sob o n. 24, uma segunda versão da obra. Para mais detalhes, ver: LBG. Paris 1900 - L'Exposition Universelle De meia dúzia, sobra um… Disponível em: <http://provocando-umateima.blogspot.pt/search?q=passagem+comboio>. Acesso em 1 jun. 2014.