Léonce Reynaud e a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro

Marcelo Puppi *

PUPPI, Marcelo. Léonce Reynaud e a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_mpuppi_reynauld.htm>.

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Embora continue sendo sempre útil lembrar que a arquitetura do século XIX foi e continua sendo objeto de um arraigado preconceito estético, preconceito que, como já demonstramos, deve-se a uma historiografia modernista ainda não superada no Brasil [1], hoje já é possível afirmar que as pesquisas relativas a esse período passaram por uma verdadeira revolução metodológica nas duas últimas décadas do século XX. Os novos estudos ampliaram consideravelmente o conhecimento sobre a cultura arquitetônica do século XIX, tanto em relação à abordagem teórica dos profissionais quanto, principalmente, no que se refere à relação entre a teoria da arquitetura e as concepções epistemológicas e científicas contemporâneas.

Continuando o processo de redescoberta do século XIX iniciado na década de 1970, os trabalhos recentes reconhecem cada vez mais a especificidade e a autonomia do período em relação ao século que o precedeu ou que o sucedeu. Primeiro, as novas abordagens metodológicas revelam um período muito mais complexo que o pálido retrato traçado pela grande maioria dos autores, um período tão complexo quanto qualquer outra grande época ou qualquer outro grande estilo; ou melhor, revelam um século de intensa experimentação estética e de formulações teóricas profundas e atualizadas. Segundo, os historiadores estabeleceram novos objetos de pesquisa capazes de estreitar ainda mais a relação entre as concepções arquitetônicas e o contexto cultural do período. Finalmente, e conseqüentemente, a nova história cultural do século XIX trouxe ao primeiro plano personagens que até há pouco tempo desempenhavam um papel menor na história da arquitetura [2].

Dentre estes personagens revalorizados através dos quais podemos ver um outro século XIX, o arquiteto-engenheiro Léonce Reynaud é talvez o caso mais exemplar. Autor de uma obra que no mínimo o iguala a seu grande rival Viollet-le-Duc, Reynaud praticamente caiu no esquecimento no século seguinte, ao passo que o célebre apóstolo da arquitetura medieval tornou-se, ou foi transformado pela historiografia modernista em um dos heróis do racionalismo contemporâneo. Contudo, a abordagem de Reynaud mostra-se uma das mais abertas e mais representativas de toda a cultura do século XIX. Resumindo sua contribuição teórica em uma fórmula breve, Reynaud propôs nada mais nada menos que uma nova concepção da arquitetura, a qual, opondo-se diretamente à teoria de Quatremère de Quincy e de Durand (oposição aliás comum a toda sua geração), pretende inserir plenamente a arquitetura no dinamismo do história contemporânea.

Engenheiro de estado, teórico racionalista, e além do mais simpático ao imaginário científico dos saint-simonianos, ele paradoxalmente mostrou-se favorável ao ecletismo de seu tempo. Sua principal obra, um abrangente e volumoso Traité d’Architecture [3], chegou a ser oficialmente reconhecida pela Academia, reconhecimento que lhe assegurou a livre utilização, desde meados do século, no ensino de arquitetura da própria Ecole des Beaux-Arts. A aprovação da Academia colaborando, o tratado de Reynaud tornou-se internacionalmente conhecido na segunda metade do século XIX. Ainda que não se saiba ao certo o grau de difusão internacional da obra, ela pode ser encontrada em vários países da Europa e da América, incluindo o Brasil. No nosso caso, o Traité d’Architecture parece ter sido uma fonte corrente na formação dos arquitetos durante o final do século XIX e início do XX, uma vez que há diferentes edições de seu tratado nas bibliotecas relacionadas ao ensino de arquitetura no período, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Graças à presença de uma escola de belas artes inspirada no modelo francês, o Rio de Janeiro era sem dúvida, no contexto brasileiro, o lugar mais favorável à transmissão da teoria de Reynaud. As condições particulares do ecletismo carioca permitem formular a hipótese bastante verossímil que, na antiga capital federal, o tratado de Reynaud ocupou um lugar proporcional ao que lhe fora reservado no contexto da arquitetura francesa. De fato, pretende-se mostrar a seguir que a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro deve muito mais a Reynaud e a seus discípulos franceses diretos que a qualquer outro autor contemporâneo ou a teóricos como Quatremère de Quincy e Durand que, nas primeiras décadas do século XIX, prolongam a cultura iluminista do século XVIII.

Um novo contexto cultural

No seu longo itinerário de formação, que se estende por mais de uma década, Léonce Reynaud deparou-se com algumas das grandes questões culturais de seu tempo e que estão na origem mesma da cultura contemporânea. Seus estudos começam em 1820 na Ecole Polytechnique, continuam em seguida na Ecole des Beaux-Arts e se concluem em 1833 na Ecole des Ponts et Chaussées depois de uma breve passagem pelo movimento saint-simoniano. Esse percurso aparentemente errático atravessou um período de grande ebulição e de grandes transformações culturais e científicas na França, transformações que, passando de descoberta em descoberta, Reynaud acompanha passo a passo e incorpora finalmente a seu próprio pensamento.

Inicialmente, a Ecole Polytechnique lhe revela o processo de matematização do saber que punha em questão os conhecimentos tradicionais da engenharia, até então baseados apenas na geometria; isto é, ele ingressa na instituição no momento em que as ciências do Iluminismo davam lugar às novas ciências físico-matemáticas do engenheiro moderno. Entrando em seguida na Ecole des Beaux-Arts, ele passa a integrar o meio artístico e assim descobre o romantismo, movimento que, como se sabe, apresentava-se como uma alternativa tanto à cultura do Iluminismo quanto ao processo de especialização da ciência contemporânea que Reynaud presenciara na Ecole Polytechnique. Por sua vez, a descoberta do romantismo abre-lhe o caminho para o pensamento dos saint-simonianos, cuja doutrina proclamava a superação definitiva de todas as contradições do presente, e principalmente das contradições intelectuais que ele, transitando de um lado a outro do pensamento da época, já constatara por sua própria conta. Finalmente, na Ecole des Ponts et Chaussées ele reencontra as ciênciais do engenheiro das quais ele partira na Ecole Polytechnique; ou melhor, ele agora já considera essas ciências segundo uma perspectiva bem diferente da idéia que o próprio conhecimento científico da época faz de si mesmo, bem como da visão que ele mesmo tinha da organização do saber no início desse percurso.

Durante a década de1820 e início dos anos1830, Reynaud descobre em suma um novo contexto cultural que representa uma verdadeira revolução em relação à cultura ainda Iluminista das primeiras décadas do século XIX, e que ele incorpora operando uma reviravolta total em seu pensamento. Enquanto na organização do saber do século XVIII e primórdios do XIX todo conhecimento deve estar subordinado ao imperativo da utilidade e à razão científica que assegura sua concretização, na filosofia romântica da primeira metade do século XIX, e em particular no saint-simonismo que ele conheceu de perto, o conhecimento intuitivo e a imaginação estética passam a ocupar o topo do processo cognitivo. Se, como se sabe, o século XIX não se tornou uma época plenamente romântica nem muito menos saint-simoniana, os dois movimentos contribuíram significativamente para moldar uma nova cultura de natureza contraditória e também, por isso mesmo, mais complexa que o Iluminismo do século precedente. Reynaud pretendia justamente inserir a teoria e a prática da arquitetura no novo contexto cultural que emergiu a partir dos anos 1820 e 1830 e que ele vivenciou pessoal e ativamente.

Do método analítico de Durand à composição orgânica de Reynaud

O envolvimento direto de Reynaud com as grandes questões culturais de seu tempo leva-o a rever completamente os fundamentos teóricos da arquitetura, a começar pelo método de composição ensinado na Ecole Polytechnique por Durand, de quem ele fora aluno no início de seu longo período de estudos e a quem ele finalmente sucederia em 1837, logo no início da sua vida profissional. Reynaud não estava sozinho neste ambicioso programa de renovar de cima abaixo a teoria da arquitetura para inserí-la plenamente na nova cultura que emergia na primeira metade do século XIX. Ele combatia ao lado de Labrouste, Vaudoyer e de outros contemporâneos da geração dos historicistas românticos, que se opunham à concepção estática da arquitetura sustentada pela Academia, e particularmente à teoria da imitação de Quatremère de Quincy. Mas, sempre contribuindo para a discussão de seus amigos arquitetos sobre os princípios teóricos que deveriam fundamentar o ensino da arquitetura na Ecole des Beaux-Arts, Reynaud dedicou-se principalmente a formular um novo método de composição para ser ensinado na Ecole Polytechnique, método destinado também aos arquitetos. Mais precisamente, Reynaud consagrou-se a substituir o método analítico de Durand por um novo método orgânico, ou sintético, de composição arquitetônica.

Para Durand, que desde 1794 é professor da Ecole Polytechnique, primeiro de desenho, e logo em seguida do curso de arquitetura, a arquitetura define-se como uma aplicação da ciência, tanto teórica quanto prática. Trabalhando em um dos principais centros de produção científica na França do final do século XVIII e início do XIX, Durand incorpora plenamente a ciência analítica do Iluminismo, segunda a qual o conhecimento deve começar pelas partes para depois chegar ao todo. Isto é, qualquer objeto de estudo deve ser dividido em quantas partes forem necessárias, para que a compreensão do todo resulte da somatória dos conhecimentos particulares e detalhados de cada uma das partes do objeto. Se no século da utilidade a arquitetura buscava a legitimação da ciência, para Durand a própria composição arquitetônica deve seguir o método analítico. A composição deve tornar-se um processo combinatório baseado na decomposição do todo em partes e, inversamente, na recomposição das partes para formar novamente o todo. Ou seja, tornar-se um método no qual o todo resulta simplesmente da soma de partes independentes umas das outras. Trata-se além do mais de uma combinatória destinada à prática profissional dos engenheiros, e assim reduzida ao arranjo geométrico mais simples, a disposição axial das partes [4].

O método de composição que Durand elaborou e ensinou na Ecole Polytechnique de 1794 a 1833 foi resumido na sua obra mais influente, Précis des Leçons d’Architecture Données à l’Ecole Polytechnique, publicado em dois volumes em 1802 e 1805. A legitimação científica da arquitetura e a abordagem geométrica da composição expostas na obra enquadram-se no espírito politécnico, mas vão também ao encontro da expectativa dos arquitetos, os quais, durante a primeira metade do século XIX, encontram no Précis uma fundamentação teórica e prática para o processo de composição aprendido na Ecole des Beaux-Arts. Aqui é preciso lembrar que Durand fora discípulo de Boullée, e portanto que o método analítico do professor da Ecole Polytechnique representa a sistematização dos fundamentos teóricos e práticos da composição buscados por Boullée e Ledoux no último quarto do século XVIII.

Quanto a Reynaud, para ele a composição não é mais uma simples aplicação da ciência, mas está além dela, situando-se em um plano mais elevado do processo de conhecimento. Acompanhando as especulações filosóficas de seu tempo, isto é, do romantismo e principalmente do pensamento saint-simoniano, segundo os quais são as partes que nascem do todo, e não o todo das partes, ele considera a composição como um todo maior que a simples soma das partes, um organismo complexo que gera as partes ao invés de ser gerado por elas. Isto representa uma inversão total em relação ao método elaborado por Durand. Na perspectiva de Reynaud, o processo de composição deve caminhar não das partes ao todo, mas do todo às partes, ou, dito de outra forma, a concepção arquitetônica deve ser guiada por um método sintético, ao invés de analítico, ao contrário portanto do que preconizava seu antigo professor. A seus olhos, e de modo geral de toda a geração que se formou durante o apogeu da cultura romântica, a vantagem do método sintético era evidente: somente uma arquitetura complexa, ou orgânica nos termos da própria época, seria capaz de incorporar a complexidade e o dinamismo do século da indústria, para inserir-se plenamente nele e poder interagir com a sociedade contemporânea.

Nada que seria possível através do método analítico de Durand, e muito menos da teoria da imitação de Quatremère de Quincy, concepções estáticas do homem e da natureza, e portanto indiferentes às transformações históricas e ao aperfeiçoamento da sociedade esperado na época. Todavia, se para alguns historiadores Reynaud limitou-se a continuar o ensino de Durand na Ecole Polytechnique, a confusão deve-se em parte ao fato que o aluno conservou o uso do termo composição tanto no seu curso de arquitetura quanto no Traité d’Architecture, publicado igualmente em dois volumes em 1850 e 1858. Mas uma comparação aprofundada entre o Précis de Durand e o tratado de Reynaud revela diferenças fundamentais entre as duas obras, que apareceram em um intervalo de quase exatamente meio século. A começar pela ciência, que já não é a mesma nos dois autores; se a ciência de Durand é a geometria analítica de Monge, a qual domina a primeira fase do ensino na Ecole Polytechnique, a ciência de Reynaud já é o conhecimento físico-matemático que começa a fazer parte da formação do engenheiro a partir de aproximadamente 1830 [5]. Por exemplo, o primeiro volume do Traité d’Architecture, intitulado justamente Art de Bâtir, expõe noções de resistência dos materiais e apresenta fórmulas para o cálculo matemático de estruturas simples.

Da mesma forma, a noção de composição também não é a mesma nas duas obras. Ainda que Reynaud retome o termo que a esta altura já tinha se tornado sinônimo do método analítico de Durand, ele dá-lhe um sentido completamente diferente, como acabamos de observar acima. Ao invés de abandonar a noção de composição, o autor do Traité d’Architecture prefere introduzir um deslocamento teórico na própria concepção do termo, como se ele estivesse restituindo-lhe seu verdadeiro significado. Tudo se passa como se ele proclamasse sutilmente no seu tratado que uma composição analítica é por princípio inconcebível, e que por definição toda composição é orgânica, ou sintética. Uma forma não de convencer pelo argumento, que poderia gerar dúvidas e suspeitas, mas de estimular a imaginação e a inteligência do leitor, para que ele chegue por ele próprio aos fundamentos mais profundos da arquitetura, ou então se entregue inconscientemente a um novo pensamento que está além da razão. Justamente como deve ser o papel de toda arquitetura digna desse nome, isto é, de toda verdadeira obra de arte. Eis a dificuldade, mas também o prazer, de descobrir Reynaud.

Uma nova concepção da arquitetura

Se para Reynaud a arquitetura está além da ciência (de seu tempo, deve-se acrescentar), qual então seu lugar? Desde seu primeiro escrito, que data de 1834, ele responde sem hesitar que a arquitetura é uma arte: ela precisa ser útil e econômica, como qualquer outra atividade que faz uso da técnica, mas deve sobretudo falar à imaginação, papel aliás que lhe é próprio e que conseqüentemente lhe garante um lugar à parte na esfera das atividades de caráter técnico [6]. A resposta é aparentemente simples, mas no contexto da época quer dizer muito. No romantismo em geral, como no pensamento saint-simoniano que Reynaud incorporou em suas grandes linhas, a arte tem um papel fundamental no processo cognitivo que Schlegel define como o “conhecimento a partir do todo”: a imaginação teórica e a arte que lhe dá acesso formam a um só tempo o início e o fim desse processo, confundindo-se com a própria filosofia e, portanto, estando acima da razão e da ciência. Para Reynaud, como também para muitos saint-simonianos, a arquitetura é uma manifestação artística que, retomando seu poder de falar à imaginação, pode contribuir mais do que qualquer outra forma de arte tanto para levar o público à compreensão da unidade orgânica do mundo quanto para aperfeiçoar cultural e socialmente a humanidade.

Isto não significa que Reynaud desconheça ou subestime o valor da ciência e seu papel na arquitetura. Ao contrário, Reynaud foi um dos principais representantes do racionalismo estrutural do século XIX, figurando ao lado de nomes como Viollet-le-Duc e César Daly. Mais ainda, ele conhecia melhor do que qualquer outro arquiteto do seu século as ciências da construção, como testemunha o primeiro volume do Traité d’Architecture. Por razões profissionais, ele acompanhava de perto, como vimos, o processo de matematização das ciências do engenheiro, tendo sido aluno e depois colega, na Ecole de Ponts et Chaussées, de alguns dos principais responsáveis por esse desenvolvimento. Por exemplo, embora o imaginário científico de Viollet-le-Duc fosse mais abrangente que o domínio teórico de Reynaud, a ciência deste último era bem mais atualizada e mais complexa que a mecânica romanceada do autor do Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française. Se o racionalista Reynaud põe a arte acima da própria ciência, é porque ele, como antigo simpatizante da utopia saint-simoniana, acreditava que em um futuro não muito distante triunfaria o novo pensamento orgânico a cuja elaboração e difusão ele e alguns dos seus contemporâneos se dedicaram ao longo de suas vidas. Um pensamento no qual não haveria mais distinção entre ciência e arte, isto é, no qual arte e ciência constituiriam a um só tempo origem e fruto do potencial criador da imaginação teórica.

Em suma, a concepção arquitetônica de Reynaud representa, em todos os sentidos, uma reviravolta total em relação à Durand, e mais geralmente a toda teoria do século XVIII, Quatremère de Quincy incluído. Rompendo com o utilitarismo e com o método analítico do Iluminismo, ele reatava com a concepção orgânica do vitruvianismo que, a partir de Alberti, inseriu a arquitetura no território da arte e da imaginação criadora. Não para voltar a uma tradição anterior que já estava superada, mas para atualizá-la, aprofundá-la e, principalmente, dar-lhe um novo conteúdo. Do mesmo modo que o Traité d’Architecture conserva a noção de composição para alterar seu significado, Reynaud não hesita, uma vez mais, em retomar a tríade albertiana solidez, comodidade e beleza. Para ele, como para Alberti, apenas a beleza é capaz de gerar um todo orgânico, razão pela qual ela constitui o coroamento do processo de composição arquitetônica. Porém, diferentemente de Alberti, a beleza é um meio privilegiado para “superar as lacunas da ciência” (palavras do próprio Reynaud, em outro contexto), conduzir a uma nova compreensão da natureza e promover o advento de uma nova cultura. Ou, dito de modo mais simples, para criar uma arquitetura orgânica e dinâmica capaz de avivar a sensibilidade do expectador, elevar o pensamento da sociedade que a criou e, conseqüentemente, contribuir para o aperfeiçoamento do homem e da sociedade.

Um estilo transitório e contraditório

A teoria de Reynaud apresenta-se na dupla perspectiva da fundamentação teórica da arquitetura de uma nova era orgânica e do papel da arquitetura em seu próprio tempo. A primeira dimensão fica deliberadamente mais oculta que aparente e dirigia-se aos poucos leitores interessados em desvendá-la; ela permanecia acessível somente a quem a procurasse, isto é, a quem estabelecesse as conexões necessárias com o contexto cultural que lhe deu origem (conexões estrategicamente excluídas da exposição). O segundo aspecto, inversamente, destinava-se ao público mais amplo que se interessava apenas pelas questões arquitetônicas da época ou simplesmente pela prática profissional. Como provavelmente calculado pelo autor, foi este ponto de vista que assegurou o reconhecimento do Traité d’Architecture pelos contemporâneos, bem como sua aprovação oficial pela Academia. Aprovação que, por outro lado, gerou recentemente a desconfiança de alguns historiadores a respeito do caráter racionalista da doutrina de Reynaud [7].

Ainda que o Traité d’Architecture não fizesse o elogio da arquitetura eclética, distanciando-se assim de César Daly que expõe a apologia do estilo nas páginas da sua Revue Générale de l’Architecture et des Travaux Publics, a obra era indireta mas francamente favorável ao ecletismo de seu tempo. Este paradoxo não decorre nem de um aparente desencontro entre teoria e realidade, nem muito menos de oportunismo intelectual, mas é parte integrante e relevante da teoria do autor. Para ele, como para os saint-simonianos, a arquitetura e, de modo geral a era orgânica do futuro somente poderiam ser atingidos após uma fase de transição, na qual conviveriam contraditoriamente os últimos resquícios do conhecimento analítico do passado e as primeiras luzes da cultura orgânica por vir. A seus olhos, o ecletismo constituía justamente esta arquitetura transitória e contraditória do intervalo inevitável entre uma época e outra, uma criação que, sem ter a força dos grandes estilos do passado, tinha o mérito de representar as condições de sua própria época (deve-se observar que, para os saint-simonianos, o papel da verdadeira arte não é representar sua época, mas estar adiante dela). Transitório e contraditório, o ecletismo já contém em germe a arquitetura orgânica do futuro, um potencial cuja evolução não é de forma alguma determinista (eis o abismo que separa os racionalismos de Reynaud e de Viollet-le-Duc), mas que precisa ser alimentado e cultivado pelas gerações futuras para florescer. Ou que pode fenecer, se o potencial orgânico do presente não for fertilizado nem criar raízes.

O Traité d’Architecture apresenta enfim, de forma muito sutil é verdade, uma fundamentação teórica para o ecletismo de seu tempo. Isso não quer dizer que seu papel seja apenas teórico; ao contrário, para Reynaud sua relevância é também e sobretudo estética. Se, por um lado, a arquitetura eclética incorpora o progresso contemporâneo da ciência e da técnica à arquitetura, sem todavia se submeter a ele nem glorificá-lo, por outro ela se põe clara e incondicionalmente do lado da arte. Para ele, é justamente graças à valorização da arte que o estilo do século XIX pode contribuir para a superação das contradições históricas do qual ele é fruto e que ele põe em evidência. Defendendo e difundindo a imaginação estética, ele favorece indireta e originariamente a tomada de consciência da unidade orgânica da natureza como do conhecimento. Ou, dito de outro modo, o ecletismo seria o primeiro e importante passo para transformar o homem e a natureza através da arte e, mais geralmente da cultura.

Em um país ávido de progresso mas sem capacidade industrial nem infraestrutura, como era o caso do Brasil na passagem do século XIX ao XX, o ecletismo oferecia justamente essa possibilidade de estimular a evolução da sociedade através da arte, isto é, de utilizar a arte como instrumento para fomentar o próprio progresso. Daí o sucesso e a rápida propagação do estilo do lado de cá do Atlântico, e particularmente no Rio de Janeiro que, além de capital, abrigava uma escola de Belas Artes estreitamente ligada ao modelo francês. Triunfo que, olhando de perto, não se deve apenas nem principalmente ao fato que o ecletismo tornou-se símbolo do poder, como foi aventado por alguns historiadores [8]. Reynaud não tem, naturalmente, nenhuma relação com a introdução do novo estilo no Brasil, mas, em um segundo momento, e mais do que no próprio continente de origem, seu ponto de vista sobre a arquitetura eclética não apenas fundamentava o papel que já lhe era atribuído, mas principalmente propiciava uma compreensão mais profunda tanto do potencial da arte quanto do potencial histórico do próprio país.

No estado atual da pesquisa, ainda não é possível estabelecer até que ponto a teoria de Reynaud foi incorporada pelos arquitetos cariocas do período em questão. Mas a fecundidade de um pensamento também pode ser conhecida através dos frutos que ele produziu. Sabe-se hoje que a contradição, a complexidade e, podemos acrescentar, o potencial criador da arte que emanam da primeira arquitetura moderna brasileira (1936-45) estão diretamente relacionados à profunda compreensão e aplicação da teoria eclética pelos arquitetos da geração moderna formada na Escola Nacional de Belas Artes nas décadas de 1920 e 30[9]. No contexto histórico evocado acima, a imaginação estética que deu origem a essa arquitetura demonstra indireta mas claramente, a nosso ver, que a concepção teórica da arquitetura no ecletismo carioca deve muito a Reynaud.

Referências bibliográficas

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* Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Londrina, Mestre em História da Arte pela Unicamp e doutorando na Universidade de Paris 1/Sorbonne. Publicou Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira, Campinas, Pontes/Unicamp, 1998.

[1] M. Puppi, Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira, Campinas, Pontes/Unicamp, 1998.

[2] Para um balanço metodológico dos estudos decorrentes da nova história cultural do século XIX, ver M. Puppi, A nova história do século XIX e a redescoberta da dimensão imaginária da arquitetura, Arquitextos, São Paulo, março 2005 (http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq058/arq058_02.asp).

[3] L. Reynaud, Traité d’Architecture, Paris, Carilian-Goeury et Dalmont, 1850-1858, reeditado em 1860-63, 1867-1870 e 1875-1880. Um fac-simile da segunda edição (1860-63) se encontra disponível no site da Gallica: <http://gallica.bnf.fr/>. Notice n.: FRBNF31205225. Acesso em: 15 mar. 2008.

[4] Sobre a relação entre a teoria de Durand e o contexto científico e cultural do Iluminismo, ver A. Picon, “From ‘Poetry of Art’ to method : the theory of Jean-Nicolas-Louis Durand”, in J.-N.-L. Durand, Précis of the Lectures on Architecture, Los Angeles, The Getty Research Institute, 2000, pp. 1-68.

[5] Sobre a evolução do ensino na Ecole Polytechnique na primeira metade do século XIX, ver B. Belhoste, “Un modèle à l’épreuve. L’Ecole polytechnique de 1794 au Second Empire”, in B. Belhoste, A. Dahan Dalmedico, A. Picon (org.), La Formation Polytechnicienne, 1794-1994, Paris, Dunod, 1994, pp. 9-30. Sobre a evolução do ensino de arquitetura nas escolas de engenheiro, no mesmo período, ver A. Picon, L’Invention de l’Ingénieur Moderne. L’Ecole des Ponts et Chaussées, 1747-1851, Paris, Presses de l’Ecole Nationale des Ponts et Chaussées, 1992, pp. 528-563.

[6] L. Reynaud, Architecture, in Encyclopédie Nouvelle, t. I, Paris, Librairie de Charles Gosselin, 1836, pp. 770-778 (editado originalmente em 1834, em fascículo).

[7] R. Middleton considera que, em relação ao ponto de vista racionalista exposto em 1834 pelo próprio Reynaud no verbete “Architecture” da Encyclopédie Nouvelle, o Traité d’Architecture representa uma regressão ao classicismo conservador da Academia. Ver R. Middleton, Rationalisme et historicisme : un article de L. Reynaud pour l’Encyclopédie Nouvelle, in Amphion, Paris, Picard, 1987, v. 1, pp. 137-145.

[8] Ver G. R. del Brenna. Ecletismo no Rio de Janeiro (séc. XIX-XX). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo, Nobel-Edusp, 1987, pp. 29-66.

[9] Sobre a relação entre a teoria do século XIX e a arquitetura moderna brasileira no período 1936-45, ver C. E. Comas, Précisions Brésiliennes sur un Etat Passé de l’Architecture et de l’Urbanisme Modernes, tese de doutorado apresentada na Universidade de Paris VIII, 2002.