Fernando de Castro Lopes*
Como citar: LOPES, Fernando de Castro. Sobre o desenho “Apoteose de Bolívar”, de Miguel Navarro y Cañizares – Aproximações feitas por seu tataraneto. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIX, 2024. DOI: 10.52913/19e20.xix.09. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/sobre-o-desenho-apoteose-de-bolivar/
• • •
1. O pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares (Espanha, 1834 – Brasil, 1913), iniciou sua formação artística em sua terra natal, estudando, dos 11 aos 24 anos de idade, na Real Academia de San Carlos de Valência. Em Madrid, posteriormente, estudou na Academia de Belas Artes de San Fernando. Segundo o verbete “Navarro y Cañizares (Miguel)” da Enciclopédia Espasa,[1] nessa instituição ele foi discípulo do pintor espanhol Federico Madrazo. Teve obras selecionadas em Exposições Nacionais de Belas Artes e, em 1864, foi premiado em concurso público, para aprimoramento de estudos em Roma.
2. Sabemos que permaneceu nessa última cidade durante 7 anos, porém, surpreendentemente, não dispomos de praticamente nenhuma informação sobre esse período de sua vida. Não sabemos com que artistas e mestres Cañizares conviveu, e tampouco temos informações sobre obras que, possivelmente, ele teria produzido em Roma.
3. No Diario Mercantil de Valência, em 3 de novembro de 1871, foi publicado, a respeito de Cañizares,[2] que o Arcebispo de Caracas, Cardeal Guevara y Lira, estava em Roma por ocasião de Concílio Ecumênico do Vaticano, e muito apreciou as obras do artista. Considerando-o de mérito relevante, encomendou-lhe a pintura da catedral de Caracas, convidando-o também a fundar, baixo seus auspícios, uma Escola de Belas Artes na Venezuela. Embaraços de natureza política, após à chegada ao poder do caudilho Guzmán Blanco, em 1870, acirraram o conflito entre Estado e Igreja na Venezuela, determinando o exílio do Arcebispo Guevara do país.[3] Desse modo, o que foi prometido a Cañizares não aconteceu. Nesse contexto de incertezas, procedente de Roma, o pintor chega a Caracas no início de 1872. Poucos dias antes, Guzmán Blanco havia vencido os membros do partido conservador, na decisiva Batalha de San Fernando de Apure. Diante dessa significativa vitória, o diretor-proprietário do jornal governista La Opinión Nacional concebeu o projeto de contratar o artista, recém-chegado, por meio de financiamento por subscrição pública, para criar uma pintura que “imortalizaria” o triunfo do caudilho. Rapidamente, Cañizares realiza uma grande tela, com a figura equestre de Guzmán Blanco: a Gran Pintura Alegórica de la Batalha de Apure, instalada por mais de três décadas na sala de sessões do Senado,[4] que desaparecerá após violentos motins anti-Guzmanistas, ocorridos em outubro de 1889, quando foram arrasadas estátuas de Guzmán Blanco e destruídos seus retratos em prédios públicos.[5]
4. O pintor ficará em Caracas até 1874. Nesse mesmo ano, assina um desenho em homenagem a Simon Bolívar, de grandes proporções, que será o foco das análises deste artigo [ Figura 1 ]. Trata-se de um elaborado estudo, na técnica do crayon, no qual Cañizares relata e interpreta, de modo alegórico, o período de lutas pela Independência dos países da América do Sul, realizando uma homenagem aos seus principais atores.
5. É provável que o pintor tenha deixado a Venezuela devido aos conflitos políticos travados no país, então dominado pelo regime autoritário de Guzmán Blanco. Não fossem tais questões, seria possível a Cañizares permanecer na Venezuela, onde, além de sua produção artística, encaminhou ao então Ministro de Fomento diretrizes para a fundação de uma Escola de Belas Artes, conforme evidencia correspondência com a autoridade, datada de novembro de 1872.[6]
6. Da Venezuela, em 1874 o artista transferiu-se para Nova Iorque (EUA), com esposa e filha, permanecendo na cidade por cerca de dois anos.[7] Desse período resta um retrato das duas filhas, em crayon, tamanho natural, realizado com notável qualidade técnica, atualmente propriedade do autor deste artigo.[8] Procedente de Nova Iorque, foi registrada a chegada de Cañizares ao Brasil, em Salvador (Bahia), em 4 de abril de 1876.[9] Nessa cidade, no ano seguinte, cria juntamente com outros professores a Academia de Belas Artes da Bahia, existente até hoje, da qual é considerado o fundador. Em seu livro Pintores Espanhóis no Brasil, José Roberto Teixeira Leite destacou: “A fundação da Academia de Belas Artes deu início a uma nova era para as artes na Bahia, tendo sido organizadas exposições que serviram para sacudir um pouco o tradicional marasmo local. Cañizares foi a alma dessa renovação.”[10]
7. Cañizares permanece em Salvador por 5 anos, onde realiza diversos e importantes trabalhos, posteriormente fixando residência no Rio de Janeiro, até sua morte, ocorrida em 1913.[11]
8. O autor deste artigo é descendente de Cañizares, e nessa condição colaborou no levantamento de documentação relacionada ao artista espanhol, doando uma variedade de documentos à Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, fundada por seu antepassado. Igualmente, colaborou em uma renovada listagem de obras, divulgando pinturas em poder da família. Essa documentação foi elaborada por Viviane Rummler da Silva, em sua dissertação de Mestrado Pintores Fundadores da Academia de Belas Artes da Bahia (2008),[12] pesquisa que será citada aqui.
Descrição pré-iconográfica da obra
9. Em consonância com o caráter figurativo e alegórico da obra, esta análise desenvolverá um enfoque panofskiano.[13] Desse modo, procederemos inicialmente à descrição pré-iconográfica (observação primária), seguida da análise iconográfica (identificação de significados) e da análise iconológica (interpretação simbólica).
10. Segundo relatos de familiares, o desenho da Figura 1, feito a crayon e medindo 90 X 160 cm., foi levado por Cañizares quando o artista saiu da Venezuela, em 1874, e pertence a seus descendentes há muitas décadas. Convivi com essa obra, assim como com outras de Cañizares, desde que nasci. Minha bisavó, Emília, filha primogênita do artista espanhol, era avó de minha mãe. Muitas obras permaneceram em poder da família, e o desenho, atualmente, é propriedade de meu primo Jorge Schuller de Castro, residente em Friburgo, Rio de Janeiro.[14] De Castro acedeu ao uso das imagens neste artigo, e é autor de alguns dos registros fotográficos. Outras imagens provieram de negativos fotográficos revelados recentemente, feitos por mim há mais de quarenta anos. Entre eles, se inclui o único registro do conjunto da obra em um só negativo – infelizmente de foco prejudicado. Essas fotos foram feitas quando o desenho ainda se encontrava na residência de meus pais.
11. A imagem é composta por numeroso conjunto de personagens, divididos basicamente em 2 grupos, à esquerda e à direita, dispostos em torno a uma elevação do terreno, no centro da qual um homem a cavalo ocupa um lugar de proeminência.
12. Sua estrutura visual exibe uma divisão simétrica horizontal, em duas partes, à esquerda e à direita [ Esquema 1 ]. Do mesmo modo, pode ser organizada em três partes, sugeridas também por marcas de dobras no papel [ Esquema 2 ]. Conduziremos uma interpretação da estrutura visual, seguindo uma ordem de leitura imagética semelhante à da escrita, da esquerda para direita e de cima para baixo. Avaliamos que a estrutura da narrativa induz essa dinâmica de análise. Consideraremos também diferentes possibilidades de interpretação visual em diversos esquemas compositivos, fazendo uso de diagonais ou círculos.
13. Dois grupos se diferenciam, a cada lado: à esquerda [ Figura 1, parte esquerda ], sob altas árvores e galhos frondosos, cerca de 30 homens estão retratados, vestindo roupas contemporâneas à época do autor, com suas fisionomias bem caracterizadas, parecendo ser identificáveis – como de fato os identificamos, em alguns casos. Aparentemente imóveis, olhando na direção do espectador, um dos personagens, em maior evidência, segura a cartola, parecendo posar [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Em sua maioria são civis, alguns vestem trajes militares, poucos deles estão a cavalo. Os civis vestem elegantes casacas. Ainda no lado esquerdo, um pouco abaixo e atrás da entrada em cena das muitas figuras de autoridades, jovens em atitude de comemoração, de braços erguidos, empunham bandeiras que exibem elementos de diversos pavilhões nacionais latino-americanos, como estrelas e brasões. A seus pés, no canto inferior do quadro, descansam duas mulheres seminuas. Uma delas toca um violão ou alaúde.
14. Ainda do lado esquerdo da composição, mais em direção ao centro, um pequeno grupo se destaca, em plano mais próximo do espectador [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. É constituído por três homens que se dão as mãos, em atitude heroica, exaltada. Estão ali representadas três raças: um negro, um branco e um índio. Este último faz um gesto de admiração em direção ao cavaleiro ao centro. Cada um deles está vestido com trajes característicos, diferenciados. Entre eles, em evidência, pode-se identificar o pavilhão da nação peruana. A seus pés, jazem abandonados no chão um tambor militar, um rifle e um alforje. Logo atrás vemos um militar montado em um cavalo, que está sendo segurado por uma mulher. Mais ao fundo, outras duas figuras femininas levantam louros, com os braços erguidos, em direção ao conjunto dos homens retratados. Ao lado dos três homens de mãos dadas, à direita, duas mulheres ajoelhadas olham, admiradas, para a figura a cavalo, postada na elevação do terreno.
15. A análise da parte central do quadro [ Figura 1, parte central ], na parte superior, ressalta uma proeminente figura masculina, montada “a pelo” sobre um cavalo, com um esvoaçante manto, que realça seu aspecto dinâmico e heroico. Sobre essa figura, voando no ar, cinco mulheres, trajando mantos e largos vestidos, estendem coroas de flores em sua direção, em atitude de homenagem e reconhecimento. Além delas há duas figuras femininas aladas, que tocam trombetas, entre outras mulheres suspensas em voo, portando guirlandas.
16. Abaixo do cavaleiro, no centro que define a divisão simétrica do quadro, aos pés da pequena colina, uma figura feminina, ladeada por outras duas, segura um livro aberto, onde se lê: “APOTEOSIS DEL GRAN BOLIVAR” e “GLORIA ETERNA AL LIBERTADOR”. Espalhados, abaixo delas, há uma roda quebrada, apetrechos de guerra e um canhão, abandonados.
17. Na terceira parte, do lado direito da composição [ Figura 1, parte direita ], ao meio distinguimos, ao longe, um exército em retirada. Também vislumbramos dois grandes navios que se afastam, em direção a um enevoado horizonte de mar.
18. Ainda ao meio do quadro, no plano da colina, mais próximo a nós, vê-se um leão, parcialmente escondido atrás do que parece ser um casal de monarcas, sendo expulsos por duas figuras femininas idealizadas. Elas apontam em direção à direita da cena, com os braços estendidos.
19. Acompanhando o movimento dos personagens em direção à direita, descendo a pequena colina, um grupo de soldados tristes avança com dificuldade. Alguns deles, feridos, são carregados sobre uma pequena carroça. Um jovem entre esses soldados estende a mão em direção aos reis, em aparente desespero, enquanto outro caminha olhando para trás, também na direção dos reis. Outros soldados apenas seguem a longa marcha em retirada, sugerida pelas grandes fileiras que se perdem ao longe, na bruma. A ideia de fuga e retirada é acentuada pelos navios que se afastam, no mar. A escala das figuras humanas, muito pequena, induz à sensação de grandiosidade da paisagem, de solidão e vazio.
20. Fazendo parte do grupo de soldados retirantes e feridos, acima descrito, algumas mulheres em trajes da época, caminham chorosas, acompanhadas de crianças. Uma delas, parecendo ser a mais velha, dirige o pequeno grupo familiar em atitude pesarosa.
21. Ainda na metade direita da imagem, abaixo, mais próximo ao centro, destacados em um primeiro plano, dois homens se dão as mãos [ Figura 1, parte direita, detalhe ]. A localização de ambos sugere ser um contraponto visual ao conjunto de três personagens de mãos dadas, do lado oposto do quadro. À esquerda, um deles veste um traje típico camponês, de chapéu e lança, característico da região da Venezuela conhecida como os “llanos,” ou planícies. O outro é um elegante e altivo militar, que caminha para a direita, afastando-se. As atitudes sugerem tratar-se de uma despedida, ou de um gesto de amizade ou consolo, com a figura do camponês firmando-se na terra, enquanto o militar se afasta, integrando um grupo que parece estar fugindo ou se retirando. Esse pequeno grupo está composto, basicamente, por poucos homens: um deles, de rosto entristecido, carrega uma bandeira meio enrolada na haste, enquanto outro, igualmente pesaroso e pensativo, ferido e com o braço em uma tipoia, parece estar sendo consolado pelo discurso de um jovem soldado que está ao seu lado, aparentemente explicando-lhe algo. Os reis olham cabisbaixos, para um velho oficial – talvez um general do exército em retirada -, que estende a mão em sua direção, como se estivesse pedindo perdão aos monarcas.
22. Finalizo esta primeira parte, de descrição pré-iconológica, descrevendo um pequeno grupo no extremo inferior, ainda à direita do quadro [ Figura 1, parte direita, detalhe ]. Nessa localização, ele encerra a composição, no sentido da leitura visual que estamos efetuando, semelhante à direção convencional da escrita. Como proposto, observamos que a cena se inicia acima, da esquerda para a direita, com a entrada triunfal do grupo de civis que parecem estar deixando o espaço sob as árvores e entrando na paisagem, em concerto. Desse modo o enredo visual-narrativo se desdobra, dispondo, do lado oposto, direito, a retirada de um exército derrotado, que realiza sua descida da pequena elevação, na qual, centralmente, situa-se o cavaleiro homenageado.
23. O movimento dos conjuntos de figuras parece se deter, diante da presença passiva desse último grupo, localizado no canto inferior direito. Nele, um soldado cabisbaixo, em atitude conformada, oferece o ombro as lágrimas de um colega de farda, que tem nas mãos uma bandeira descaída. Outros dois soldados montados, à direita, no extremo da composição, também observam a cena, encerrando, com sua imobilidade, toda movimentação dramática.
24. O conjunto da cena, em sua totalidade, semelhante a uma montagem cênica teatral, está diante de nós sugerindo ser uma mensagem, a ser lida ou decifrada. As figuras estão imóveis, parecendo congeladas em gestos e atitudes sugestivas, como que representando, a pedido do autor, algum conceito, alegoria ou significação.
Gêneros pictóricos
25. Ainda no enquadramento desta análise pré-iconográfica, cabe relacionar a obra com os gêneros pictóricos estabelecidos pela tradição. A associação auxilia a situar a obra nos contextos culturais, sociais e históricos, e possibilita investigar as intenções do artista e suas expectativas com relação ao público. Como veremos, a complexidade deste desenho abarca, de algum modo, todos os gêneros pictóricos.
26. A obra em questão poderia ser classificada no gênero de pintura histórica, considerada a categoria mais elevada na hierarquia acadêmica tradicional. A pintura histórica retrata cenas narrativas com origem em eventos importantes, como representações de batalhas e feitos militares, além de decisivos acontecimentos políticos. Figurando temas nobres e edificantes, apresenta composições grandiosas e figuras idealizadas. A nosso ver, a “Apoteose de Simon Bolivar” de Cañizares cumpre com tais requisitos, ao representar – ainda que de modo alegórico -, fatos históricos de importância, envolvendo países implicados em grandes conflitos políticos e militares. O desenho, em suas amplas dimensões, expressa pretensão moral edificante, assim como a idealização do personagem principal, e de outras figuras, atribui à obra um caráter de nobreza modelar. A notável qualidade técnica do desenho, e sua exaustiva e precisa elaboração naturalista, nos inclinam a afirmar que o autor está ciente da valorização hierárquica que este gênero implica, com a consequente percepção da repercussão social que sua mensagem poderá alcançar. Esta impressão se confirmará, diante dos dados históricos relativos ao contexto de sua criação.
27. No gênero de pintura alegórica, figuras e narrativas são utilizadas para representar, de modo simbólico, ideias abstratas ou conceitos morais. Neste gênero, as imagens pedem interpretação, para aceder ao significado subjacente. O desenho analisado contém claros elementos alegóricos. O mais evidente deles é o já apontado conjunto de três homens – um branco, um negro e um índio -, unindo as mãos em um cumprimento solidário. De significado bastante óbvio, pode-se afirmar que representaria a união dos povos que constituíram o continente americano, no contexto da Independência. As diversas figuras femininas, algumas aladas, trajando mantos de feição clássica, também configuram alegorias – por exemplo, a da Vitória – ao erguerem em suas mãos guirlandas, tocarem trombetas e portarem flores ou espadas. A própria figura idealizada de Bolívar, engrandecida por sua centralidade na estrutura da composição, torna-se possível alegoria da coragem e do heroísmo. Pode-se compreender toda a imagem como uma grande alegoria sobre o valor da luta e da união contra a dominação estrangeira.
28. Essa idealizada leitura simbólica estaria realçada pela figura de mulher, parecendo ajoelhada no centro da composição, que nos apresenta um livro aberto, com textos laudatórios ao herói.
29. O gênero do retrato, focado na representação de indivíduos ou grupos, representando suas características físicas e aspectos de sua personalidade ou status social, está amplamente exemplificado na obra, com mais de 30 figuras retratadas – todas masculinas -, entre políticos e militares. A maioria deles é identificável, com feições reconhecíveis, passíveis de comparação por meio de diversas fontes históricas. Esse aspecto constitui a homenagem de Cañizares aos homens que lutaram pela independência sul-americana.
30. O quadro agrega, ainda, elementos dos gêneros de paisagem (árvores frondosas) e natureza-morta (os vários apetrechos de guerra espalhados pelo cenário). Contém, do mesmo modo, cenas relacionadas ao mar e aos meios de transporte, navios que desparecem ao longe, na névoa. Até mesmo o gênero do nu se apresenta aqui, representado pelas lânguidas mulheres deitadas no chão, à sombra das grandes árvores.
Estilo
31. Ainda no contexto pré-iconográfico, Panofsky aponta como princípio corretivo de interpretação, a história da tradição, ou história do estilo, compreendido este como a “maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, objetos e eventos foram expressos pelas formas.”[15]
32. Constatamos que a obra em questão, devido à suas características técnicas e compositivas, exibe nítidas características neoclássicas. Essa escola, que floresceu entre os séculos XVIII e XIX, se inspira na arte e na cultura da Antiguidade Clássica (Grécia e Roma). Pode-se citar, entre essas características, uma composição simétrica e equilibrada, refletindo busca por ordem e clareza. Os elementos são dispostos de modo a criar harmonia visual, muitas vezes com figuras centrais definidas, como na obra de Jean-Auguste-Dominique Ingres Apoteose de Homero (1827) [ Figura 2 ]. Essa pintura, e outras obras de Ingres, devido à sua afinidade temática e estilística com o desenho em análise, será novamente mencionada e exposta neste artigo.
33. Com relação ao tema – questão que será aprofundada na análise iconográfica, em seguida -, pode-se citar a importância que assuntos históricos e heroicos detém no Neoclassicismo, com a valorização de cenas que exaltam as virtudes de coragem, dever, sacrifício e patriotismo. A representação idealizada da figura humana, em posturas heroicas, transmite um senso de fortaleza física e moral. A serenidade predomina.
33. Como afirma Arnold Hauser,[16] sobre o período da Revolução Francesa, no qual o Neoclassicismo encontra sua expressão mais estruturada:
34. Somente com a Revolução a arte passou a ser uma confissão de fé política, enfatizando-se agora, pela primeira vez, que “a arte não constitui mero ornamento da estrutura social, mas é parte integrante de seus alicerces”. Declara-se agora que a arte não deve ser um passatempo supérfluo dirigido exclusivamente aos sentidos, privilégio dos ricos e ociosos, mas que deve ensinar e aperfeiçoar, estimular à ação e estabelecer um exemplo. Deve ser pura, verdadeira, inspirada e inspiradora, contribuir para a felicidade do público em geral e tornar-se patrimônio da nação inteira.
35. Tais observações se aplicam, de modo apropriado, ao trabalho aqui analisado.
Descrição iconográfica
36. Segundo a metodologia proposta por Panofsky, na etapa de interpretação iconográfica buscamos relacionar os denominados temas secundários ou convencionais, ligando motivos e combinações de motivos artísticos com assuntos e conceitos. Essas combinações podem ser denominadas como histórias ou alegorias.[17] Desse modo, nossa análise segue, buscando descrever estruturas formais em sua conexão com possíveis conteúdos textuais, a relação entre os elementos visuais e o assunto.
37. Em um pequeno e envelhecido retângulo de papel, colado no lado inferior ao centro do desenho, está escrito na distinta caligrafia de Cañizares [ Figura 3 ]:
38. Independencia sul Americana em 1810.
39. Apotéose de Bolíbar.
40. Desenho original de Cañizares condecorado
41. com o busto do mesmo libertador.
42. Caracas 1874. [sic]
43. Esse título define o assunto da obra, nos orientando a buscar, na pesquisa, possíveis desdobramentos históricos e temáticos.
44. Como descrito anteriormente, é sugerido, pela composição visual da obra e seu conjunto de significados, uma estrutura dividida em 3 seções, no sentido horizontal, de modo simétrico. Começaremos a analisar, no contexto da pesquisa iconográfica, a partir da seção esquerda, tentando seguir, por sobre a irregularidade das cenas, a direção da leitura convencional de um texto. Analisaremos em seguida alguns destacados elementos de cada seção.
Seção à esquerda [ Figura 1, parte esquerda ]
45. Ilustrando a grandeza da natureza na terra sul-americana, no canto superior esquerdo uma paisagem de palmeiras e árvores exuberantes cobre a procissão de homens públicos e autoridades, posicionados à sombra de seus grandes galhos [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Do lado direito, voejam algumas figuras femininas. Estas serão objeto de análise ao comentarmos a figura central, à qual estão referenciadas.
46. Os personagens retratados nesta seção merecem uma pesquisa acurada de fontes históricas, buscando estabelecer sua correta identificação. Essa pesquisa não caberia no escopo deste artigo. Em 23 de julho de 2024, enviei e-mail ao professor venezuelano José María Salvador-González, autor de diversos estudos sobre Bolivar, arte e história em seu país, incluindo uma pesquisa específica sobre a atuação de Cañizares em sua permanência na Venezuela. Suas publicações são consideradas de grande interesse, e serão citadas em diversos momentos, neste artigo. O professor prontamente respondeu ao meu e-mail [cfr. Anexo 1]. Pedi em minha mensagem que, se possível, auxiliasse na identificação dos personagens retratados. Ele identificou um personagem histórico venezuelano, do qual falaremos adiante, ao descrever a seção correspondente.
47. É possível reconhecer os brasileiros José Bonifácio e Duque de Caxias [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Dos chilenos, identificamos o prócer Bernardo O’Higgins e o general José Miguel Carrerra, que, assim como o argentino San Martin, está a cavalo [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ].
48. Observamos que, em uma divisão da composição de modo simétrico [ Esquema 3 ], a partir do centro, a figura de Caxias e de O’Higgins estão alinhadas à metade do lado esquerdo, e perfiladas às mãos juntas dos três homens de diferentes raças, abaixo [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ].
49. A presença de um personagem retratado de corpo inteiro, em traje contemporâneo ao artista, olhando em direção ao espectador, sugere a execução de um desenho ao vivo, presencialmente [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ].
50. Apenas esta seção, rica em registro histórico, como afirmado anteriormente justificaria extensa pesquisa, capaz de relacionar as pessoas retratadas aos seus contextos políticos e sociais. Pelos achados feitos, deduzimos que representam líderes nacionais, militares e estadistas que lutaram pela independência de seus países.
51. O título manuscrito por Cañizares, mencionado anteriormente, indica que o desenho trata da “Independencia sul Americana de 1810” [sic]. Este é o ano da rebelião ocorrida quando as elites criollas, em vários países da América do Sul, negaram-se a acatar a autoridade de Napoleão Bonaparte sobre a coroa espanhola. Como consequência, foi iniciado um processo político que resultou na luta pela independência. Esse desenho de Cañizares, ao homenagear tais importantes personagens, se insere em uma estratégia de divulgação política personalista e ideológica. No contexto de sua relação com o poder político na Venezuela, Cañizares já havia pintado o Grande Quadro Alegórico da Batalha de Apure, em homenagem ao caudilho Guzmán Blanco. Discutiremos em mais detalhe, à frente, diversos aspectos históricos e políticos envolvidos nessa situação.
52. Além dos retratos de políticos e militares, examinamos nesta mesma seção, mais abaixo, as três figuras de mãos dadas mencionadas anteriormente [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Seus rostos são idealizados, regulares, sem características de retratos. Se assim fosse, apresentariam feições particularizadas, enquanto aqui observamos aspecto neutro, genérico, buscando apenas caracterizar tipos raciais e sociais. Com gestos exagerados, cada um deles estende seu braço direito, em um forte aperto de mãos. O conjunto expressa claro caráter alegórico, simbólico.
53. À esquerda dos três homens, o personagem negro inclina sua cabeça para trás, olhando em nossa direção, com lábios entreabertos, parecendo emocionado. Veste roupas brancas e um longo manto, talvez referências à trajes africanos ou muçulmanos. Ao seu lado, logo atrás, entre ele e o jovem branco que está ao centro do grupo, entrevemos a bandeira do Peru, com seu símbolo heráldico – uma cornucópia derramando moedas, significando as riquezas do país, elemento da bandeira criada em 1825 por Simón Bolívar e um Congresso Constituinte realizado naquele ano.
54. No meio dos três homens, o jovem militar, branco, de pose firme e rosto decidido, cobre com sua mão as outras duas, sugerindo autoridade e liderança. É o único que está calçado, com botas, acentuando sua condição de civilizado.
55. À direita dos três, o índio está caracterizado de modo estereotipado, seminu, vestindo cocar e tanga de folhas ou pequenas penas de pássaros, dispostas sem arranjo. Porta um pequeno machado, com forma característica de uma peça dos nativos norte-americanos Tomahawk, colocado na lateral da pequena tanga. Suas feições não apresentam traços indígenas. Levanta o braço esquerdo em um gesto de admiração, e olha em direção a Bolívar. Pode-se conjeturar sobre possíveis motivos da deficiência figurativa na representação desse personagem. Entre elas, a possibilidade de que o apego formal ao modelo greco-romano, devido à sua formação acadêmica, tenha aprisionado a criação do autor em padrões rígidos, pré-estabelecidos.
56. Ainda no lado esquerdo da composição, observamos vários jovens, posicionados entre militares de aparência distinta e as importantes autoridades retratadas, sugerindo o excesso e a espontaneidade próprias da juventude [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Com suas feições idealizadas, se abraçam, fazendo gestos de comemoração e alegria. Em trajes civis e militares, alguns carregam bandeiras, com elementos visíveis de pendões pátrios de diversas nações sul-americanas.
57. Finalizando a análise da porção esquerda do desenho, destacamos duas figuras de mulheres seminuas, cobertas por exíguos panejamentos [ Figura 1, parte esquerda, detalhe ]. Uma delas usa brincos e uma tiara com penas. Representada com graciosa feição, morena, de traços e enfeites que sugerem o contexto nativo, nos olha sorrindo suavemente, enquanto dedilha um violão ou outro instrumento de cordas. As duas estão recostadas sob as árvores, em poses que sugerem oferecimento e languidez. Diante da total predominância de homens na cena (em um contexto de “natural” machismo), estariam simbolizando a generosidade das dádivas da terra, o bem-estar que ela evoca.
Seção central [ Figura 1, parte central ]
58. Como já indicado, ao dividir o desenho em três seções, a parte central apresenta a figura de Simón Bolívar, objeto da apoteose. Descrevendo simplificadamente, ele está rodeado de figuras femininas, de caráter alegórico, alguns poucos homens e objetos, espalhados pelo chão. Iniciamos agora a análise desta parte da obra.
59. Ao centro, sobre uma pequena colina, o personagem principal, Bolívar, está montado a pelo sobre seu cavalo (esta condição merecerá ser analisada, em pormenor, mais adiante) [ Figura 1, parte central, detalhe ]. O “Libertador” está sendo anunciado com trombetas, e homenageado por figuras femininas idealizadas, de natureza alegórica, que acentuam o sentido de grandeza e a mistificação de sua figura.
60. Na parte superior, cinco figuras femininas, vestidas com largos mantos, estendem coroas e flores em direção a Bolivar. Uma delas segura uma bandeira, em alusão às nacionalidades. Com essa configuração, é provável que o grupo constitua uma menção aos cinco países que, segundo a tradição histórica, Bolívar emancipou da condição de colônia espanhola. Corresponderiam eles aos atuais Equador, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela. Estes processos de independência foram realizados entre 1819 e 1830.[18] A cada lado desse grupo uma figura feminina, alada, assemelhando-se a um anjo, toca uma trombeta, anunciando a vitória do herói. Ainda nesse grupo, nas laterais, a cada lado há outro par de figuras femininas que estendem guirlandas, com longos mantos ao vento.
61. Figuras voadoras, às vezes aladas e representando anjos em contextos religiosos, constituem uma longa tradição na história da pintura. Mencionaremos três exemplos: remetendo ao início do Renascimento italiano, a Crucificação, de c. 1305, de Giotto [ Figura 4 ]; posteriormente, em plena Renascença, a Ressurreição de Cristo, de c.1500, de Rafael de Urbino [ Figura 5 ]; e finalmente, no estilo Neoclássico, um fragmento da Apoteose de Homero [ Figura 6 ], quadro de Ingres mencionado anteriormente.
62. Observamos como a extremada idealização do personagem torna-o, metaforicamente, merecedor de homenagens em uma dimensão transcendental, além do físico ou material. Esta concepção, com origem na iconografia religiosa, está representada por meio de alegorias, em forma de figuras angelicais, associadas às ideias de proteção, pureza ou intervenção divina. Pode-se igualmente interpretar as figuras femininas que estão no ar, sem asas, como signos visuais sugerindo uma presença divina, superior, ou outra ideia ou conceito. Podem também ter um significado estabelecido, como no caso de mulheres que simbolizam as 5 nações mencionadas acima
63. Avançando em nossa análise, buscamos interpretar o sentido de outras figuras, ainda na seção central da composição. A cada lado de Bolívar, veem-se dois pares de mulheres, apresentadas como figuras alegóricas, trajando longos mantos e vestidos. As figuras reforçam a distinção entre o lado esquerdo, dos vencedores, e o direito, dos vencidos. Do lado esquerdo, sustentam guirlandas e flores com seus braços levantados, em gestos de celebração. Do lado oposto, empunhando espadas, com gestos autoritários e apontando a direção da fuga e da retirada militar, da saída de cena, o par de figuras expulsam os reis da Espanha, posicionados já na seção à direita.
64. Logo abaixo de Bolívar encontra-se uma figura feminina, de posição central e destacada na composição, ladeada por outras duas, configuradas no modelo idealizado descrito. Localizadas na parte inferior da pequena colina sobre a qual se encontra Bolivar montado em seu cavalo, estão sentadas em mantos ou algum assento apoiado sobre o chão, e a seus pés vemos, abandonados, apetrechos de guerra. A mulher no centro do grupo abre um volumoso livro em direção ao espectador, onde se lê, como descrito anteriormente, “APOTEOSIS DEL GRAN BOLIVAR” e “GLORIA ETERNA AL LIBERTADOR.” Aos pés dessa figura central, vemos canhões de guerra e suas balas, rodas de carroça quebradas, tambores de guerra no chão, alforjes, despojos que sugerem o fim da batalha. A figura feminina à esquerda parece estar armando guirlandas, enquanto olha para o lado onde estão retratados políticos e militares, como que buscando um herói merecedor da homenagem. Do lado oposto, à direita, a mulher sentada, em atitude pesarosa segura uma espada, talvez em uma referência à justiça, e parece meditar sobre o destino dos derrotados, em cuja direção está voltada.
65. Ainda na seção central, abaixo, à esquerda, duas mulheres com vestidos simples, aparentemente rasgados ou em desalinho, estão ajoelhadas e abraçadas, de costas para nós, e fazem gestos de admiração e súplica em direção a Bolivar. Seus cabelos negros, soltos, e suas vestes, nos indicam serem mulheres do povo, e não entidades idealizadas. Os diversos “status” do gênero feminino, no desenho em análise mereceriam um estudo à parte, não contemplado neste artigo.
66. Finalizando a análise do conjunto central, abaixo, à frente de alguns soldados que marcham cabisbaixos, e de um velho general que parece estar se desculpando com os reis, duas figuras masculinas se destacam, em primeiro plano, dando-se as mãos [ Figura 1, parte central, detalhe ]. O personagem à esquerda constitui um característico retrato do caudilho José Antonio Páez, de importância decisiva nas lutas pela independência da Venezuela, conhecido como “el Centauro de los Llanos” ou “el Llanero.” Isso foi identificado pelo historiador José Maria Salvador-Gonzáles, em mensagem por e-mail, já mencionada [ Anexo 1 ].
67. Seu gesto de dar a mão ao soldado espanhol, dignamente postado, que caminha em direção à direita, junto a seus companheiros, sugere um chamado à reconciliação, um consolo diante da derrota. O “Llanero” firma sua lança no solo, parecendo reforçar a posse do território. Porém, olhando em direção ao soldado, parece buscar uma pacificação. José Antonio Páez é considerado por historiadores como o verdadeiro “criador” da Venezuela, ao combater, e ser bem-sucedido, pela separação do país da “Gran Colombia,” projeto original de Bolívar. Paez está retratado vestindo o traje típico de llanero, que Cañizares usaria como referência [ Figura 7 ].[19]
68. Em um estudo da divisão compositiva, observamos que há dois apertos de mãos: este analisado aqui, e o dos três homens de raças diferentes vistos anteriormente. Ambos, mesmo em diferentes lados da imagem, estão representados praticamente na mesma altura. Além disso, assinalam pontos simetricamente determinados, em seções divididas ao meio [ Esquema 4 ]. A conexão entre esses dois grupos será destacada, mais adiante.
Seção à direita [ Figura 1, parte direita ]
69. Analisaremos a seguir a terceira porção do quadro, localizada à direita. Iniciando pelo lado esquerdo dessa sessão, um pouco acima de uma linha horizontal central, vemos duas figuras femininas voando, voltadas em direção a Bolivar (que está na porção central do quadro), lhe estendendo guirlandas. Uma delas olha para o outro lado, significativamente, onde desfila a procissão dos derrotados e barcos se afastam em direção a um horizonte longínquo. No quadro, esta não é a única figura a manifestar, por meio do olhar, gestos e atitudes, pena ou interesse nos infelizes personagens presentes no lado direito da narrativa visual, caracterizados como derrotados. Esse aspecto, de humanidade e empatia, será retomado nas considerações finais.
70. Abaixo das duas mulheres descritas, caminha o casal de monarcas. Está sugerida uma caracterização alegórica dos reis da Espanha, pois estão acompanhados por um leão, elemento heráldico então associado à nacionalidade e à identidade espanhola.[20] Os dois olham para trás, em direção às figuras à esquerda – localizadas na seção central, que os expulsa, com espadas e dedos em riste. Aparentemente os monarcas estão tão amedrontados quanto o leão, que se esconde atrás do vestido da rainha.
71. Observamos, anda, que a figura do rei está sobre a linha virtual que separa esta seção da parte central, acentuando visualmente a condição da expulsão [ Esquema 5 ].
72. À sua direita, no declive da colina, desce um grupo com aspecto de retirantes. Soldados feridos estão sobre uma carroça, da qual se vêm apenas as rodas de madeira, e segue em direção ao fundo da cena, onde colunas de soldados desaparecem na bruma, marchando por um enorme campo vazio rumo ao mar, ao longe.
73. Um grupo de mulheres está ao lado dos soldados feridos, acompanhadas de crianças, carregando bolsas e trouxas [ Figura 1, parte direita, detalhe ]. É possível que seja uma mãe com seus quatro filhos. Talvez caminhem na mesma direção, junto aos soldados. Mas parecem ter parado a marcha. A mais velha à frente, de rosto trágico, talvez viúva, consola as mais jovens. Uma delas chora.
74. Para finalizar a análise desta última seção, focaremos um último grupo de figuras, dispostas no extremo esquerdo, abaixo [ Figura 1, parte direita, detalhe ].
75. O soldado em primeiro plano, representado de corpo inteiro, quase de costas para nós, com a cabeça descoberta segura um chapéu militar, com a espada embainhada, em atitude passiva. À sua frente vemos a cena infeliz das mulheres e crianças, seguindo com o exército em retirada. O homem está cabisbaixo, pensativo. Tem a seu lado um companheiro que parece evitar olhar para frente, e chora apoiado em seu ombro, segurando a haste de uma bandeira inclinada, caída. Atrás deles, dois soldados, oficiais mais velhos, estão a cavalo observando a coluna militar que passa, desaparecendo na poeira. É o fim do caminho.
76. Destacamos a figura do soldado representado de corpo inteiro, visualmente realçado pela suave luminosidade que envolve sua figura. Olhando o quadro em conjunto, essa claridade é um dos pontos mais luminosos do quadro, acentuando o relevo dado ao personagem. Lembramos que a cena se desenvolve como uma narrativa visual “escrita,” cuja leitura se inicia acima e à esquerda: o começo está sinalizado pela entrada triunfal dos políticos e militares republicanos. Do lado oposto, no término do “texto,” no canto inferior direito, o pequeno grupo de soldados encerra a narrativa. Eles têm a visão completa do conjunto que ali foi desfraldado por Cañizares. Simbolizam, talvez, a possibilidade de um julgamento, a avaliação final?
77. Voltaremos a essa figura do homem e a essas interrogações, nas considerações finais. Seu lugar na composição, entre outras configurações e análises, nos parece encerrar, silencioso – talvez a concepção original, uma conclusão, espécie de solução ou resposta, dada pelo autor ao drama figurado.
78. Na etapa de análise iconológica, seguindo as indicações de Panofsky, buscamos focar o significado intrínseco ou conteúdo, apreendido pela determinação dos princípios subjacentes e da atitude básica de uma nação ou de um período, qualificados por uma personalidade e condensados em uma obra. Estes princípios se manifestam e podem ser trazidos à luz através da análise dos “métodos de composição” e da “significação iconográfica”. A análise das condições em que surgiram as obras de Cañizares nos leva a perceber alguns sintomas culturais, representativos do contexto histórico, político e social em que elas foram criadas. Constituem símbolos e expressam “tendências essenciais da mente humana.”[21]
79. Esta pesquisa apontou nexos significativos entre Arte e História. No sentido social, estes estão conectados ao contexto dos comitentes e à recepção pública. No aspecto subjetivo, acreditamos que a análise permitiu acesso àquilo que o artista configurou: um núcleo conceitual criativo no interior do trabalho, estruturante, fundamental na mensagem veiculada por sua obra, que determina a composição e sua estrutura visual.
80. Na sequência da análise, nos referiremos aos estudos do historiador venezuelano José María Salvador-González, Professor da Universidad Complutense de Madrid,[22] com o qual estivemos em contato via e-mail. O professor é autor de diversos estudos sobre Arte venezuelana no século XIX, sobre a presença de Bolívar e outros caudilhos que pontuam a cultura política do país. Escreveu também um artigo sobre Cañizares e seu mais importante trabalho público na Venezuela, o Gran Cuadro Alegórico de la Batalla de Apure (1872) [ Figura 8 ]. [23] [24]
81. A realização desse quadro, em homenagem ao então presidente da Venezuela, Antonio Guzmán Blanco, aconteceu no início de um período de quase vinte anos, denominado por historiadores como Guzmanato, durante o qual prevaleceu a poderosa hegemonia do caudilho. Guzmán Blanco exerceu um estilo de governo autocrático, repressivo com os adversários, com intensa e variada atividade de adulação à sua figura. As homenagens se davam por meio de eventos, celebrações e demonstrações públicas de reconhecimento, com a criação de instituições que recebiam seu nome e a construção de monumentos, estátuas e outras obras. Apesar dos traços negativos, pode-se afirmar que o governo de Guzmán Blanco estabeleceu na Venezuela um ideal de Estado moderno. Sob seu governo, a fragmentação política diminuiu radicalmente e forjou-se um novo quadro institucional. As instâncias do regime civil foram determinadas, buscando assemelhar à Venezuela ao modelo dos Estados europeus da época.
82. Guzmán Blanco consolidou seu poder político e militar com a decisiva vitória do exército liberal na Batalha de Apure, no início de 1872, celebrando o sucesso de forma apoteótica, com grandes celebrações realizadas em Caracas, que incluíram a construção de catorze arcos triunfais. O apoio popular e as alianças com a burguesia comercial permitiram ao caudilho condições de governo extremamente favoráveis. Proclamado pelo Congresso como “El Ilustre Americano,” sua posição e heroísmo foram elevados ao mesmo nível do “Libertador” Simón Bolívar.[25]
83. Cañizares chega à Venezuela nesse momento de intensa movimentação política. No capítulo sobre a iniciativa que levou o artista a pintar o mencionado retrato do General Guzmán Blanco, a mestranda Viviane Rummler, da Universidade Federal da Bahia, cita os estudos do professor Salvador-González:
84. Segundo [Salvador-]González, Cañizares chega em Caracas no início de fevereiro de 1872, justamente dias antes de a Venezuela conhecer a vitória de Guzmán Blanco na batalha de Apure frente às tropas do partido conservador. A respeito da encomenda do mencionado retrato do general montado a cavalo, este mesmo autor diz o seguinte:
85. Ante tan decisivo avatar, Fausto Teodoro de Aldrey, director-propietario del progubernamental diario La Opinión Nacional, concibe el proyecto de encargar al recién venido artista un cuadro que “inmortalizase” el triunfo del Caudillo de Abril. Sin perder tiempo, Navarro y Cañizares pergeña el boceto de un gran lienzo, con la figura ecuestre de Guzmán Blanco, cuyas sienes ciñe la Gloria con una corona de laurel.
86. O citado periódico, em edição de 23 de fevereiro, descreve o desenho do seguinte modo:
87. La idea es como sigue: en primer término, se destaca del fondo del cielo un ángel o genio de la gloria envuelto en amplio y undoso ropaje, cubierto por los pliegues de la bandera nacional que lleva en la mano izquierda juntamente con una rama de oliva, mientras que en la derecha tiene una corona de laurel que parece va a colocar sobre la frente del general Guzman Blanco, quien á caballo, y mostrando a punto determinado como quien da órdenes, domina la escena en la margen septentrional del Apure en que aparecen batiéndose las tropas constitucionales […][26]
88. Como expõe o professor José Maria,[27] entre os objetivos programáticos, de claro viés ideológico e propagandístico, durante longa hegemonia sobre a Venezuela, Guzmán Blanco deu especial ênfase em erguer, em espaços públicos, monumentos comemorativos à glória dos heróis da Independência. Os mais importantes desses monumentos eram destinados a exaltar a personalidade, o pensamento e a obra de Simón Bolívar, na qualidade de “Libertador” e “Pai da Pátria”.
89. As fortes conexões entre o culto à Bolivar, a auto exaltação de Guzmán Blanco e a produção de Cañizares fica realçada na seguinte análise, novamente do professor José Maria:
90. […] Já na data antecipada de 28 de outubro de 1872, dois anos e meio depois de tomar o poder, Guzmán Blanco realizou um complexo cerimonial destinado a exaltar com grande pompa a memória do Pai da Pátria e, aproveitando tão oportuno aniversário, exaltar-se sem a menor modéstia. Assim, com o objetivo de manter entre os cidadãos a memória “grata” da sua vitória na batalha de Apure (finais de janeiro de 1872) tão viva e duradoura quanto possível, o “Caudillo de abril” ordena que este feriado nacional bolivariano seja convertido numa festa patriótica que, além de reafirmar o culto ao Libertador, sirva também de palco para celebrar a paz recentemente conquistada e, por sua vez, para se auto exaltar como o “Pacificador” vitorioso da República. Com este propósito em mente, o autocrata organizou para os dias 26, 27 e 28 de outubro de 1872, segundo um meticuloso programa oficial, um tríduo de celebrações patrióticas, cujo apogeu é atingido no último dia, quando são conduzidas, em solene procissão triunfal, os objetos pertencentes ao Pai da Pátria, antes de serem expostos em dois locais de profundo significado simbólico: seu mausoléu na catedral de Caracas e a sala de sessões do Senado. Paralelamente, e para que ninguém esqueça quem é “o mestre do circo”, Guzmán Blanco expõe durante esses três dias com maior pompa no Palácio de Governo a Grande Pintura Alegórica da Batalha de Apure, pintura a óleo do pintor valenciano Miguel Navarro y Cañizares, pintado a pedido para exaltar hiperbolicamente a “glória” do Ilustre Americano.”[28] (Tradução e grifos nossos)
91. O direcionamento deste artigo a questões históricas, políticas e sociais, busca suporte no contexto de conceitos que Fernanda Pitta discute no artigo Limites, impasses e passagens: a história da arte em Carlo Ginzburg.[29] A análise visual é problematizada por conexões com acontecimentos de grande influência sobre a produção artística. Lidamos com questões relacionadas à conceituação da obra de arte como documento histórico; a relação entre o valor histórico e o valor artístico; as relações entre comitentes e artista; o testemunho figurativo, entre outras possibilidades. Esse rico campo de pesquisa está aqui apenas levemente esboçado. Destacaremos um aspecto desse vasto panorama, ao lidar com questões relativas à expressão dos chamados sintomas culturais, mencionados no início desta seção. Estes constituem símbolos representativos do contexto histórico, aos quais, com sua personalidade, o artista “qualifica e condensa” em uma obra.
92. No caso em estudo, buscaremos articular fatos e conceitos envolvidos na idealização de um herói nacional, transformando-o em paradigma de um modo de ação política patriótica. As características desse modelo permeiam, de modo determinante e até hoje, a realidade política da Venezuela. Esclarecendo, vejamos a descrição, eloquente, de José Maria Salvador-González:
93. […] Na opinião do historiador venezuelano Germán Carrera Damas, reconhecido especialista no processo de mitificação de Bolívar, na Venezuela a presença constante do Libertador, verdadeiro símbolo de sua emancipação nacional, atingiu a forma de um culto à sua personalidade individual, eixo, por sua vez, do culto ao herói venezuelano em geral.
94. […] Tão idealizado é o tratamento dado a Bolívar que o referido historiador não hesita em descrevê-lo como um verdadeiro culto religioso, uma espécie de religião secular segundo a qual o Libertador se torna um modelo autêntico de qualquer qualidade humana e de toda a ética e virtudes espirituais. Assim, em outro livro ilustrativo, Carrera Damas afirma:
95. Esta adaptação quase religiosa de Bolívar não responde apenas a uma demanda de paradigmas de natureza moral e espiritual, cumprindo uma função exemplar; corresponde também a um contexto social, político e até sentimental e, portanto, desempenha papéis cujo conhecimento é essencial para a compreensão do passado e do presente social e político da sociedade Venezuelana.
96. Com base em tais premissas, o mesmo autor conclui que a satisfação de tais as necessidades sociais exigem que Bolívar se torne um personagem que, além de paradigmático, corresponde às expectativas do presente, por isso, além de ilustrar valores morais, deve também representar “a nação e o nacionalismo, a democracia e até o populismo.[30] (Tradução livre)
Considerações finais
97. Com base nas informações compartilhadas até aqui, torna-se possível imaginar a situação em que se encontrava Miguel Navarro y Cañizares ao chegar à Venezuela. Com planos ambiciosos não realizados, muito rapidamente se vê no centro dos acontecimentos políticos, ligando-se à autoridade máxima do país. Está envolvido em grandes expectativas, tanto artísticas como sociais. Exposto aos cidadãos, que pagam seu trabalho por subscrição nacional, é aclamado pela imprensa. Nessas circunstâncias, inserido no contexto de um grande projeto propagandístico, personalista e patriótico, podemos supor o quanto o desenho da Apoteose teria sido estimulado, planejado e elaborado, após a realização da pintura em homenagem a Guzmán Blanco.
98. Destacamos um fato importante: em sua permanência de 4 anos na Venezuela, Cañizares toma a iniciativa da criação de uma Academia de Artes, objetivo que cumprirá somente no Brasil, anos depois. Acreditamos que o interesse do artista pela educação pública permite entrever ativa vocação de compromisso social e político, revelando um artista dedicado à promoção de uma formação nacional qualificada e republicana.
99. Estas são as condições: Cañizares é um artista de sólida formação acadêmica, possui ofício e disciplinada capacidade criativa. Está iniciando carreira na América e, estimulado, realiza uma obra significativa, no contexto histórico em que se encontra. Acreditamos que o desenho aqui discutido é um ponto alto de realização, no conjunto de sua obra.
100. Compondo estas considerações finais, apresentaremos novas interpretações. De modo informado, porém subjetivo e criativo, buscaremos corresponder às colocações apresentadas pela professora Vera Pugliese, sobre as teses renovadoras da historiografia da Arte, de Georges Didi-Huberman:
101. […] o historiador da arte não seria o erudito que analisará a imagem, cotejando-a ao repertório da época e às respectivas normas de estilo, traçando sua evolução ao longo do tempo, para apreender a dimensão simbólica da imagem. Longe da grande narrativa, na qual a partir de um ponto-de-vista ideal o historiador da arte vê o mundo limitado pelo cubo italiano, ele se vê como sujeito – portador de uma memória – diante da imagem […] [31] (Grifos nossos)
102. Mesmo enquadrados em análises de natureza iconográfica, buscaremos seguir além, talvez não correspondendo, de modo preciso, aos conceitos do historiador francês. O princípio epistemológico aqui adotado basicamente foi panofskiano, comprometendo, talvez, nossa capacidade de ver “o invisível”, como “virtualidade”. Mas a experiência pessoal com essa obra, presente em toda a vida, na memória do autor desta análise, talvez lhe forneça algumas chaves, que de outro modo dificilmente seriam usadas. Como coloca Vera Pugliese:
103. […] A metáfora que Didi-Huberman usa para evidenciar essa tensão é o sujeito diante de uma porta, uma abertura diante da qual ele se detém não apenas para compreender a imagem, mas para se relacionar com ela e com a distância que o separa e o une a essa imagem […]. Esta é a abertura crítica da problematização do objeto-imagem e da própria história da arte que o sujeito-historiador da arte projeta sobre ela.[32]
104. Nossas chaves, digamos assim, estariam guardadas desde a infância, em impressões virtualmente inconscientes. São memórias atualizadas por meio do olhar atento, de decifrar pelo ver, do trabalho da pesquisa. Talvez abram portas de sentido, como pede a metáfora do filósofo. Talvez essa abertura consiga ampliar a compreensão da cultura, da história de nosso continente; enriquecer nossa psicologia, influenciar nossa emoção. Talvez nos permita um acesso, uma espécie de contato pessoal com Cañizares, sua intenção. Com ele, sim, nosso humano antepassado, artista.
Sobre o herói estar representado montado a pelo, sem sela, estribo ou rédeas
105. Desde muito jovem, sentia estranhamento diante da figura de Bolívar montado “a pelo,” como representado por Cañizares [ Figura 1, detalhe ]. Talvez a percepção de certa fraqueza do desenho, com a perna estendida sem apoio e a bota parecendo frouxa, mole. Pressentia um desacordo na figura. Com essa percepção mais esclarecida, noto que os braços e pernas estariam curtos, com o braço surgindo do manto em tamanho reduzido e mal posicionado. A desproporção maior, parece, está localizada na cabeça, muito grande. Penso que, na execução, o retrato deve ter sido feito por último e a modulação não foi feliz. Uma sensação de inadequação permeava, para mim, o personagem.
106. Ao analisar seu gesto, a expressão corporal e facial, vemos que o movimento tampouco é feliz, em outro sentido. Parece estar segurando uma espada e o mastro de uma bandeira, à altura do peito, com as duas mãos. A bandeira não está desfraldada. É um gesto simbólico, de recolhimento, contenção. Não se configura nele uma gestualidade triunfal, expansiva, parecendo expressar uma íntima emoção. Por sua vez, o olhar não se dirige aos companheiros de luta, à sua frente, diligentemente homenageados por Cañizares. O herói vira o rosto para o outro lado, postura refletida e confirmada na posição da cabeça do cavalo, e parece mirar o vazio. Mas o faz na direção em que os soldados caminham, expulsos pela derrota. Acreditamos que, no conjunto da composição, são configurações significativas. Voltaremos ao assunto mais adiante.
107. Não é parte da iconografia oficial do “Libertador,” de suas habituais representações, ser retratado montando a pelo, sem os apetrechos tradicionais e honoríficos, normalmente atribuídos a um cavaleiro militar. No citado artigo Monumentos a Bolívar en Venezuela durante la supremacía de Guzmán Blanco,[33] o professor José María Salvador-González apresenta, entre outros, o Monumento equestre para a Plaza Bolívar de Caracas [ Figura 9 ], onde constatamos a elegante postura do cavaleiro, bem sentado sobre a sela, com os pés apoiados nos estribos.
108. O modo de montar do cavaleiro tem sua importância acentuada pela centralidade com relação à composição, constatada no cruzamento das diagonais que definem o centro da imagem, e suas divisões nos sentidos horizontal e vertical [ Esquema 7 ].
109. Único meio onde encontramos referências a esse assunto foi no site do ChatGPT, de Inteligência Artificial. Ali, ao pesquisarmos sobre “Representar o herói montado a pelo no cavalo”, lemos:
110. A representação de um herói montado a pelo, sem sela ou estribos, em um cavalo, geralmente carrega significados simbólicos profundos, tanto no contexto histórico quanto artístico. Alguns dos significados possíveis incluem:
111. Liberdade e Conexão com a Natureza: Montar sem sela ou estribos sugere uma ligação direta e primitiva com a natureza. O herói é visto como alguém em harmonia com o cavalo e o ambiente, capaz de controlar o animal com habilidade instintiva, sem a necessidade de acessórios.
112. Coragem e Destemor: A ausência de equipamentos de montaria (sela e estribos) pode simbolizar a coragem e a destreza do herói, que confia apenas em sua própria habilidade e força para manter-se seguro. Isso pode transmitir uma imagem de autossuficiência e bravura, qualidades heroicas fundamentais.
Simplicidade e Humildade: O herói montado a pelo pode ser retratado como alguém que rejeita os luxos e a ostentação, vivendo de forma simples e direta. Isso pode transmitir a ideia de que o herói é humilde ou está em uma situação de vulnerabilidade, mas ainda assim possui grande poder e habilidade.
113. Domínio e Controle: Em muitas culturas, a capacidade de montar sem sela simboliza domínio total sobre o cavalo, o que pode ser interpretado como uma metáfora para o controle do herói sobre seus próprios instintos ou sobre forças da natureza.
114. Retorno às Origens: Também pode ser uma representação de uma volta a uma condição ancestral ou mais pura, onde o herói está mais próximo de suas raízes ou de uma forma mais genuína de ser.
115. Essa imagem, dependendo do contexto cultural ou mitológico, pode evocar uma variedade de interpretações, mas geralmente está associada a características heroicas, como destemor, habilidade e uma forte conexão com o mundo natural.
116. Trata-se de ideias pertinentes, que mencionaremos nas considerações ao final deste artigo.
117. É uma prática acadêmica, tradicional, estruturar geometricamente a composição de um quadro, prevendo a construção de um esquema virtual, “invisível,” como etapa preliminar ao desenho das figuras. Uma malha subjacente possibilita organizar os elementos da imagem, estabelecendo relações formais, conferindo-lhes hierarquia, configurando repetições, concordâncias, ritmos, divisões. Esse diagrama determinava a localização e a relação entre os elementos de uma composição. No desenho de Cañizares, vimos anteriormente algumas possibilidades de estruturação compositiva. Veremos agora outras [ Esquema 8, Esquema 9 e Esquema 10 ]. É oportuno lembrar que as pequenas discordâncias que são percebidas no encaixe desses diagramas, com relação ao desenho, podem dever-se à preparação técnica de um trabalho dessa magnitude, realizado, a seu tempo, de modo manual, artesanal.
118. Observaremos, em diversas possibilidades de “diagramação”, ajustes formais entre os elementos, por meio do alinhamento de personagens, grupos, planos e movimentações. Por meio desse recurso é possível estabelecer interessantes correlações narrativas.
119. Esses exemplos de estruturação compositiva servem de preâmbulo à hipótese que exporemos a seguir, com relação à qual reapresentamos o Esquema 6.
120. Na verdade, a consideração final, neste artigo, surge de uma sensação original, algo que percebia quando jovem, ao observar cenas e personagens do desenho. Sem reflexões a respeito, me identificava com o soldado cabisbaixo, à direita, do qual falamos com algum detalhe na seção de análise pré-iconológica, anunciando que voltaríamos a ele. Quando jovem, minha percepção sobre essa semelhança era física: acontecia ao comparar com o dele o perfil ou contorno de meu rosto, de minha cabeça. Não havia suposições sobre o sentido da postura, ou elucubrações sobre sua situação no contexto do quadro. Já adulto, entendia que se tratava da figura do “derrotado,” representando o exército espanhol decaído, e tinha certa curiosidade sobre minha identificação acontecer precisamente com essa figura.
121. No decorrer da pesquisa, lembrei-me da pintura O Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel (1562),[34] relacionando a cena pintada pelo flamenco com a obra de Cañizares. Na Figura 10 e no Esquema 11, assinalo com um círculo, nos dois quadros, o personagem que, a nosso ver, articula com o resto da composição o mesmo, decisivo local. Naquele ponto se localiza o personagem que possui visão completa do drama, já desenrolado. Essa figura, com seu gesto e por sua atitude, teria o poder de expressar uma possível concepção original, a conclusão, uma espécie de “moral da história.” dada pelo autor ao drama. Como metalinguagem, talvez possamos entendê-lo como o próprio artista, auto-representado.
122. No caso de Bruegel, um homem que desembainha a espada para lutar, ainda que diante da Morte universal. No caso de nosso antepassado, o personagem expressa um desencanto, o sentimento humano de solidariedade, ao ver diante de si a família desamparada, o desfile dos feridos, o sacrifício e a solidão da retirada. E ele ainda oferece seu ombro ao companheiro desolado, deixando que chore, ali. É uma humanidade trágica, que se contrapõe, no diagrama compositivo, aos jovens que comemoram, do outro lado da cena, próximos às mulheres seminuas. Diante desse homem, elas estão sozinhas, com seus filhos.
123. Em outra significativa conexão, que se faz entre o soldado desesperançado e Bolívar, os sentidos entrevistos são enfatizados. Essa conexão estaria evidenciada pela diagonal mostrada no Esquema 6. Chegamos a essa linha intuitivamente, nos deparando com ela ao considerar o possível sentido afetivo, contido no fato de Bolívar, em gesto contido, de sentimento, olhar para o lado dos derrotados e não em direção aos vitoriosos companheiros de luta. Nesse enquadramento, mencionaremos as respostas recebidas por meio do Chat GPT, que expuseram possíveis significados contidos na imagem do cavaleiro montando a pelo. Relacionado os conceitos de humildade, simplicidade e rejeição à ostentação, acentuam uma concepção do herói pacificador, conectado à humanidade, solidário. Seria este um modo de interpretar a História.
124. Neste ponto, é oportuno também relembrar, e trazer à análise, os dois apertos de mão, em dois grupos de homens, comentados anteriormente [ Esquema 4 ]. Representados em simetrias e concordâncias bastante evidentes, sugerem a intenção do artista de realçar uma conexão entre as figuras e a relação existente entre os gestos. Desse modo, estariam também realçando, em acordo com as questões elaboradas na figura de Bolívar, acima, um sentido de união, reconciliação e pacificação. Os apetrechos de guerra abandonados, no primeiro plano da composição, reforçam esse sentimento.
125. E então, percebemos: não há mortos aqui. Vemos jovens, mulheres, crianças, homens, soldados, uma paisagem, a floresta… Trata-se de um drama piedoso, humanizado. E pensamos que talvez Cañizares – ele mesmo – representou-se no soldado cabisbaixo, derrotado, mas profundamente humano. Desse modo, parece ter criado para nós a possibilidade de acessar um encantamento particular de sua disciplina, a Arte: fazer emergir da imagem sua qualidade de espelho, de reflexão. A figura corporifica uma mensagem, e sentimos, de modo ambíguo e um pouco desconcertante, que nós somos aquele homem.
__________
ANEXO 1
De: “JOSE MARIA SALVADOR GONZALEZ” <jmsalvad@ucm.es>
Enviada: 2024/07/24 02:37:42
Para: fclope@uol.com.br
Assunto: Re: Miguel Navarro Y Cañizares y descendiente
Estimado D. Fernando:
le gradezco su mensaje con sus valiosas informaciones.
Al respecto, le diré:
1) Desconocía hasta ahora este complejo e importante dibujo, cuya realización pictórica probablemente fue encargada por (o sería propuesta a) el entonces Presidente de Venezuela Antonio Guzmán Blanco, cuyo retrato ecuestre pintó Navarro y Cañizares.
2) Supongo que esta Alegoría de Bolívar no llegó a pintarse nunca.
3) El único personaje que reconozco en esta foto de escasa resolución es José Antonio Páez, líder llanero, prócer de la Independencia y luego Presidente de Venezuela: es el personaje vestido de llanero, con una lanza en la mano que está en primer plano junto a la rueda y los cañones.
4) No conocía la disertación de Viviane Rummler, y le agradezco el dato.
5) Muy interesante, variado y creativo su trabajo como ilustrador gráfico. ¡Enhorabuena!
Le deseo suerte en su investigación para la Maestría en Historia del Arte.
Un cordial saludo.
José María
* Fernando de Castro Lopes nasceu no Rio de Janeiro, em 1957. Morou no Chile de 1962 a 1974. Aos quinze anos realizou sua primeira exposição, em Santiago, estimulado por Rolando Toro, criador da Biodança. Mora em Brasília desde 1982, tendo dedicado parte desse período à ilustração médica, no Hospital Sarah Kubitschek. Criou selos para a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Ilustrou os livros infantis O Equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida (Editora Ática), e Como nasceram as estrelas, de Clarice Lispector (Editora Rocco), entre outros. Trabalhou por mais de 20 anos no Correio Braziliense, principal jornal de Brasília. Concluiu o Bacharelado e a Licenciatura em Artes no Instituto de Artes da Universidade de Brasília em 2013. Aprovado em concurso público, trabalhou como professor de Artes no Ensino Médio, no Colégio Militar de Brasília, de 2016 a 2021. Ganhou 5 prêmios na categoria Artes, no concurso Vladimir Herzog de Direitos Humanos, promovido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, entre outras premiações nacionais e internacionais. Em 2019 realizou a retrospectiva “50 Anos de Desenho” no Centro Cultural da Caixa Econômica Federal. Links: https://www.instagram.com/fernandolopesilustrador/ ; https://www.facebook.com/profile.php?id=100048941809338
[1] NAVARRO y Cañizares (Miguel). In: Enciclopédia Universal Ilustrada (“El Espasa”). Barcelona: Editorial Espasa, 1908, p. 1293-1294.
[2] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Miguel_Navarro_Ca%C3%B1izares Acesso em 11 set. 2024.
[3] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Silvestre_Guevara_y_Lira Acesso em 11 set. 2024.
[4] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Miguel_Navarro_Ca%C3%B1izares Acesso em 18 set. 2024.
[5] SALVADOR-GONZÁLEZ, José María. Un pintor español en la adulación de Antonio Guzmán Blanco: Miguel Navarro y Cañizares y el Gran Cuadro Alegórico de la Batalla de Apure, 1872. III Congreso Internacional Alexander von Humboldt, 2005. Disponível em: https://docta.ucm.es/entities/publication/d364d1b7-c5c8-4c1c-8540-82170ff6e582 Acesso em 18 set. 2024.
[6] SILVA, Viviane Rummler da. Pintores fundadores da Academia de Belas Artes da Bahia: João Francisco Lopes Rodrigues (1825-1893) e Miguel Navarro y Cañizares (1834-1913). Dissertação, Universidade Federal da Bahia, Escola de Belas Artes (EBA), Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV), 2008, p. 273
[7] Ibid. p. 272
[8] Ibid. p. 253
[9] Ibid. p. 273
[10] LEITE, José Roberto Teixeira. Pintores Espanhóis no Brasil. Espaço Cultural Sérgio Barcellos, SP, 1996, p. 10.
[11] FREIRE, Laudelino. Um século de pintura – apontamentos para a história da pintura no Brasil de 1816 a 1916. Rio de Janeiro: Typographia Röhe, 1916, p. 156-157.
[12] SILVA, op. cit.
[13] PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2007.
[14] SILVA, op. cit., p. 269.
[15] PANOFSKY, op. cit., p. 64.
[16] HAUSER, Arnold, História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 645.
[17] PANOFSKY, op. cit., p.51
[18] Disponível em: https://pt.scribd.com/document/446775390/Los-5-Paises-que-Libero-Simon-Bolivar-docx Acesso em 18 set. 2024.
[19] Disponível em: https://www.biografiasyvidas.com/biografia/p/paez.htm Acesso em 18 set. 2024.
[20] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Le%C3%B3n_hispano#:~:text=El%20le%C3%B3n%20hispano%20es%20la,hispano%20como%20s%C3%ADmbolo%20de%20Espa%C3%B1a Acesso em 18 set. 2024.
[21] PANOFSKY, op. cit., p. 64-65
[22] Disponível em: https://www.ucm.es/capire/salvador Acesso em 18 set. 2024.
[23] SALVADOR-GONZÁLEZ, op. cit.
[24] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Batalla_de_San_Fernando_de_Apure Acesso em 13/09/2024.
[25] Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Antonio_Guzm%C3%A1n_Blanco Acesso em 18 set. 2024.
[26] SALVADOR-GONZÁLEZ, op. cit., p. 268.
[27] Disponível em: (PDF) Monumentos a Bolívar en Venezuela durante la supremacía de Antonio Guzmán Blanco (1870-1888) (researchgate.net) Acesso em 18 set. 2024.
[28] SALVADOR-GONZÁLEZ, op. cit., p. 2.
[29] PITTA, Fernanda. Limites, impasses e passagens: a história da arte em Carlo Ginzburg. ArtCultura, v. 9, n. 15, 2008. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/1478 Acesso em 18 set. 2024.
[30] SALVADOR-GONZÁLEZ, José María. Escenario y figura de Bolívar Super-Héroe en la Venezuela de 1870-1899, p. 1-2. Disponível em: https://docta.ucm.es/rest/api/core/bitstreams/4e74bd78-9dae-4e1d-bacf-26acadf29367/content Acesso em 18 set. 2024.
[31] PUGLIESE, Vera. A Proposta de Revisão Epistemológica da Historiografia da Arte na obra de Didi-Huberman. I Encontro de História da Arte – IFCH / UNICAMP. 2005, p. 476. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2004/PUGLIESE,%20Vera%20-%20IEHA.pdf Acesso em 18 set. 2024.
[32] Ibid., p. 476
[33] SALVADOR-GONZÁLEZ, op. cit., p .22.
[34] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Triunfo_da_Morte Acesso em 18 set. 2024.