Sobre a cumplicidade entre análise visual e tortura: um relato corte-por-corte das fotografias de lingchi (凌遲)

James Elkins*

Como citar: ELKINS, James. Sobre a cumplicidade entre análise visual e tortura: um relato corte-por-corte das fotografias de lingchi (凌遲) 19&20, Rio de Janeiro, v. XIX, 2024. https://doi.org/10.52913/19e20.xix.10

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1. O que se segue não é a análise costumeira de um determinado material visual, mas uma análise que pretende dizer algo sobre o próprio procedimento de análise. É também uma contribuição para o estudo das imagens relacionadas ao lingchi (凌遲, em chinês), um método de execução chamado em inglês de “death by a thousand cuts” (literalmente, morte por mil cortes). Mas, nesse sentido, oferecerei apenas um tipo de contribuição muito parcial e limitada. Outros escreveram sobre os contextos sociais e políticos das imagens de lingchi, e eu mesmo escrevi sobre a inquietante influência que elas tiveram na compreensão do Surrealismo.[1] Penso que esses tipos de investigação são importantes para a compreensão histórica do lingchi e para a questão mais recente do que contava como transgressivo para certos espectadores no início do século XX. As imagens de lingchi são complexas e envolvem um elenco diversificado de personagens, desde os carrascos que originalmente executaram o procedimento, até os fotógrafos franceses que o registraram, os surrealistas, os psicólogos e, mais recentemente, os críticos de diferentes estirpes, de Giorgio Agamben a Georges Didi-Huberman.[2]

2. Minha contribuição para o estudo histórico das imagens de lingchi é estritamente empírica: pretendo descrever, da forma mais sucinta possível, o que realmente aconteceu – momento por momento, e até o desmembramento final do condenado – no curso de uma execução lingchi. Isso não foi feito antes, e indiquei alguns pontos em que minha análise é especulativa. A análise também é limitada às três sequências de fotos que são conhecidas com suficiente detalhe, o que significa que ela se aplica apenas a alguns dos últimos lingchi que foram feitos na China, em 1905.[3] Além disso, resumi minha análise para respeitar as limitações relativas ao número de reproduções por capítulo do livro onde ela foi originalmente publicada. Uma análise completa do método exato do lingchi demandaria cerca de quarenta imagens, mais do que poderia ser acomodado neste livro. O que estou apresentando é, portanto, apenas uma amostra de uma discussão que necessitaria ser mais ampla.[4]

3. Também estou interessado em dizer algo sobre o método de análise visual em si mesmo. Gostaria de estudar o efeito de olhar para imagens excruciantes, como as imagens de lingchi, de maneira lenta e cuidadosa que torne possível reconstruir cada corte do procedimento. Percebi, no congresso que precedeu o livro onde esse texto foi publicado [N. do T.: realizado na University College Cork, Irlanda, em 2005], que a maioria dos meus colegas comunicadores olhou apenas muito brevemente para suas imagens, e vários as tiraram de projeção quando queriam falar longamente, a fim de poupar a audiência da necessidade de vê-las por muito tempo. O mesmo pode ser dito dos escritores e artistas bem conhecidos que primeiro disseminaram essas imagens, em particular Georges Bataille. Essas imagens têm sido tradicionalmente vistas em lampejos, em vislumbres. Você olha, você recua, você desvia o olhar. Eu queria compreender o que aconteceria se eu as olhasse com a atenção detida de um médico ou de um carrasco.

4. Por que fazer isso? Quando as imagens são vistas com um olhar detido, elas perdem algo de seu poder original, mas ganham de outras maneiras. Bataille necessitava que as imagens que possuía fossem transgressivas, e (como argumentei em outro ensaio) a transgressão se tornou um termo central na arte pós-surrealista. O que acontece, então, quando essas imagens deixam de ser transgressivas, ou se tornam transgressivas em um sentido inesperado?

5. Em última análise, esta é uma questão que coloco a mim mesmo e a todos que estudam representações de dor. Por que olhamos para essas imagens? Quais efeitos elas têm sobre nós e sobre os outros? Na mesa redonda final do referido congresso, levantei a questão da autorreflexividade. Por que, eu queria saber, o Grupo Turandot[5] estuda essas imagens? O que significa estudar tais imagens agora, no início do século XXI? A maioria de nós, no congresso, estava familiarizada com a história das imagens de lingchi – feitas na China há pouco mais de 100 anos, mas coletadas e disseminadas na França pré-guerra. Alguns membros do grupo disseram que estudam as imagens para desconstruí-las, para entender o que elas significavam para os espectadores na França e na China. Outros, como Jérôme Bourgon – que publicou mais do que qualquer outra pessoa sobre essas imagens -, disseram que estavam interessados nas imagens como evidência do fim de uma longa tradição de estudos jurídicos chineses. Nós tínhamos vários motivos. Mas, havia, pensei, uma carência geral de reflexão sobre nossos próprios papéis: as razões pelas quais nós, individualmente e como grupo, estávamos interessados precisamente naquelas imagens, precisamente naquele momento histórico. Na mesa redonda que concluiu o congresso, não houve muita reflexão sobre essa questão, e pensei que nossa relação fixa com essas imagens poderia ser abalada ao olhá-las de forma diferente – neste caso, de forma mais sistemática e lenta.

6. Há também um terceiro propósito para este ensaio, e é um que eu não esperava, e que não desenvolvi, até que eu tivesse escrito o seu primeiro rascunho. Eu acho que o processo lento, às vezes excruciante, de olhar para as imagens de lingchi, passo a passo, tem paralelos com a costumeira análise visual, como é praticada sobre qualquer imagem, em salas de aula de história da arte ao redor do mundo. Na “close reading” de uma imagem – seja uma análise formal, uma análise composicional, um inventário iconográfico, ou algum tipo não nomeado de olhar cuidadoso -, o olho do aluno ou do acadêmico deve viajar lenta e sistematicamente sobre a imagem, não negligenciando nada, notando tudo, classificando e sistematizando os seus significados fundamentais. Só então, se diz na pedagogia das imagens, é possível prosseguir e construir interpretações sérias. O que eu notei ao realizar minha “close reading” das imagens de lingchi é que a dissecação dos corpos nas fotografias é estruturalmente semelhante à dissecação de qualquer imagem por qualquer olhar que visa a ser sistemático, racional e completo. A conclusão que tiro é que a análise visual não é uma etapa neutra, heurística e preparatória na compreensão das imagens. Ela pode ser uma dissecação fria e a sangue-frio, por assim dizer, da imagem: uma operação poderosa, invasiva e destrutiva que separa a imagem de si mesma, corta-a em pedaços, e a deixa desmembrada, indefesa e pronta para interpretação. Tenho pouco a dizer sobre isso aqui, por causa do espaço limitado deste artigo. Todavia, expando a análise em um livro chamado What Photography Is, em relação ao meio específico da fotografia[6] (com efeito, foi outro tema da conferência o fato de passarmos relativamente pouco tempo ponderando sobre a mídia que estávamos estudando, como se a mensagem substituísse a sua expressão material).

Análise do procedimento de lingchi

7. O procedimento começa com a retirada do peito esquerdo da vítima [ Figura 1 ]. Este momento específico foi documentado em fotografias estereográficos de grande formato. A imagem maior, abaixo, é um desses pares estereográficos.

8. O corte é muito limpo, retirando a pele, a gordura superficial e o músculo peitoral, em uma área de forma ovalada. O procedimento aqui seria muito semelhante ao de esfolar um animal, e é razoável supor que a perícia do carrasco veio de sua prática como açougueiro. A fáscia brilhante que cobre as costelas e os músculos intercostais ainda está intacta, o que também é típico da esfola de um animal. Vemos apenas um filete de sangue. Se a esfola for bem-feita, há pouca perda de sangue.

9. No próximo par de fotos estereográficas, pode-se perceber que dissecação adicional foi feita [ Figura 2, acima ]. A fáscia foi retirada, revelando as costelas, e o braço foi aberto acima da articulação do cotovelo.

10. Uma abertura em forma de lente indicada, pela seta, foi feita. Esta mesma forma aparece em fotografias de outros lingchi. A quinta e a sexta costelas curvam-se para cima neste ponto, e o ápice do coração estaria logo abaixo delas, coberto apenas por uma fina camada de fáscia. É possível que o objetivo desse corte fosse revelar as batidas do coração do homem. O ápice do coração pode ser a forma indicada pela seta.

11. Nesta mesma fotografia [ Figura 2, acima ], a parte frontal do braço do condenado foi cortada. Fotografias de outras execuções mostram como isso era feito: o carrasco aperta o bíceps para levantá-lo, e depois corta por baixo dele. Neste caso, o braço do homem foi amarrado tão perto do corpo que o carrasco cortou a sua lateral em dois lugares (observe os dois pequenos cortes ao lado do corte no braço).

12. O úmero (osso do braço) pode ter sido cortado no meio de seu comprimento e arrancado. Abaixo, são visíveis os côndilos redondos do rádio (um dos ossos do antebraço), indicados pela seta. Esse tipo de corte seria fácil de fazer com um cutelo grande. Os livros de receitas chineses recomendam rotineiramente a quebra até mesmo de ossos grandes com cutelos; e, uma vez quebrado o úmero, não seria difícil puxar a parte inferior para a frente e quebrar as cartilagens na articulação do cotovelo. Em outras fotografias de lingchi, é evidente que isso foi feito tanto nos braços quanto nas pernas. A vítima seria, então, incapacitada sem amputação.

13. O objetivo tanto da excisão da parte inferior do úmero e do fêmur, como também da prossecção (dissecação demonstrativa) do ápice do coração, poderia ter sido permitir à vítima ver seu próprio corpo em processo de literal desmontagem. O mesmo poderia ser dito de outras sequências nas quais o úmero e o fêmur aparentemente não foram excisados [ Figura 4 ].

14. Com os espaços intercostais limpos, a vítima poderia ter visto as batidas de seu coração e também os movimentos de seus pulmões. Em outras sequências do lingchi, há também um corte inferior no lado direito (nosso lado esquerdo) que pode ter sido pensado para revelar o fígado. Um deles é visível em Figura 2, abaixo. Este corte fica abaixo das costelas e, como outros cortes, parece delinear uma área específica.

15. A essa altura a vítima teria sangrado mais, mas ainda assim muito menos do que o necessário para causar uma perda de consciência. Um dos propósitos das facas muito afiadas e dos cortes limpos parece ter sido prolongar a consciência da vítima.

16. (Não estou afirmando que o objetivo destas ações fosse prolongar o sofrimento da vítima. Foi amplamente assumido pelos ocidentais que o lingchi era uma operação destinada a produzir dor. Não há provas disso nos textos chineses. Pelo contrário, parece que o objetivo era garantir que o executado não pudesse ocupar o seu lugar com os antepassados, porque lhe seria dado um enterro impróprio. Nesse contexto, é possível que quanto mais tempo o homem estivesse consciente, mais ele percebesse o seu destino eterno. A diferença entre as percepções ocidentais e as intenções não-ocidentais foi um dos temas do congresso, e também o discutimos na sua mesa redonda final. Menciono essa diferença aqui, embora não faça parte da análise que estou apresentando neste momento, porque quando apresentei este material aos membros do Grupo Turandot que investiga estas imagens, foi dito que eu estava a jogar com as expectativas ocidentais e a reavivar mal-entendidos perniciosos. Tudo que faço, no entanto, é reportar sobre o que as fotografias parecem mostrar).

17. O carrasco amputou as pernas da vítima cortando primeiro a parte carnuda da parte superior da perna, acima do joelho [ Figura 3, acima ]. Nessa foto, o carrasco posa para a câmera, segurando seu cutelo imóvel (Isso acontece em várias outras fotografias. As poses parecem ser mantidas em momentos especialmente importantes da execução). Acima do cutelo, podem ser vistos em três camadas distintas, o fêmur, os músculos acima deste, a pele e a gordura. Um efeito do corte dos músculos e outros tecidos é que ele libera a tensão e os músculos se retraem.

18. Parece que a sequência de amputação das pernas era a mesma que a dos braços. Em seguida, o carrasco abriria a perna até a articulação do joelho, limparia os músculos e a fáscia, cortaria o fêmur e o puxaria pela articulação do joelho. Isto é mostrado em Figura 3, abaixo.

19. Abaixo do limpo corte inicial há um segundo corte, mais irregular, nos músculos grossos do quadríceps. A irregularidade indica que o corte foi o produto de várias tentativas. O lado direito da ferida é especialmente irregular e parece rasgado, indicando pelo menos oito outros cortes separados.

20. A seta superior mostra as camadas de pele, gordura e músculo do primeiro corte; a seta do meio indica a massa do grupo muscular denominado quadríceps femoral; e a seta inferior mostra a extremidade cortada do fêmur (Outra fotografia desta mesma execução mostra a extremidade do fêmur da perna esquerda do homem projetando-se dos músculos cortados na ferida.) Assim como fez com os braços, o carrasco evitou cortar a grande artéria femoral e a veia safena, que poderiam ter causado perda maciça de sangue.

21. Nesse momento, os braços e as pernas do homem seriam amputados, o que poderia se fazer facilmente, mas causaria perda significativa de sangue, levando à perda de consciência [ Figura 4 ]. Neste caso, os ossos do úmero não foram cortados, como mostrado na foto, onde os dois côndilos arredondados do osso são visíveis na extremidade do coto do braço esquerdo. A articulação do braço direito foi preparada para amputação por um corte em forma de V.

22. Nesse ponto, a cabeça do homem seria inclinada para a frente e cortada entre as vértebras cervicais nas costas. O corpo desmembrado seria jogado no chão ou suas partes seriam recolhidas em cestos.

23. Seria possível aprofundar cada uma das etapas que descrevi, incluindo a amarração inicial da vítima, que era em si um procedimento complexo. Mas isso é suficiente para revelar a sequência de eventos. Com essas informações, é possível olhar atentamente para qualquer fotografia de lingchi e dizer aproximadamente que estágio da execução ela representa.

Três conclusões

24. Este é um resumo breve e incompleto dos fatos que compõem o procedimento de lingchi, conforme registrado em diversas séries de fotografias tiradas na China. Disto extrairei três conclusões, igualmente breves.

25. (a) Dos três propósitos deste ensaio, a contribuição para o estudo do lingchi em si é o mais fácil de avaliar. Mesmo dentro do corpus restrito de fotografias existentes – todas tiradas nos últimos anos antes da abolição da prática -, há variedade na sequência e, ao longo dos séculos anteriores, teria havido, naturalmente, uma variação ainda maior. E, no entanto, no que diz respeito às fotografias, há também uma consistência surpreendente. Proponho que a sequência que estabeleci aqui, de forma abreviada, dê conta de praticamente todas as fotografias da prática que sobreviveram. Isto implica a existência de um procedimento conhecido ou esperado, e sugere que apenas um pequeno grupo de algozes foi responsável pelo lingchi nos últimos anos em que foi praticado. O elemento mais especulativo da minha análise é a suposição de que o úmero e o fêmur foram cortados e suas extremidades arrancadas. Em algumas fotografias isso parece muito plausível, mas em outras isso é menos claro.[7] Penso que uma resposta definitiva terá que esperar por novo material fotográfico, ou – algo que nunca está fora das possibilidades na investigação histórica – por textos.

26. (b) No entanto, estou menos interessado na sequência empírica em si do que nas duas consequências que dela podem ser extraídas. Os atos de observação que produziram as conclusões que esbocei aqui levaram vários dias. Minha ideia, a princípio, era olhar de uma maneira diferente da que as pessoas olhavam para essas imagens no passado, e de uma maneira também diferente da que os participantes do congresso olhavam quando mostravam as imagens projetadas na tela. Minha esperança era de que, ao instituir um tipo diferente de olhar, nós – aqueles que estudam essas imagens, e você, como leitor deste artigo – pudéssemos perturbar nossa relação habitual com o material e encontrar maneiras de questionar nosso envolvimento.

27. Já se passaram mais de dez anos desde o primeiro congresso sobre o tema, realizada em Toronto, e quase sete desde o congresso que deu origem a este artigo. Nesse intervalo surgiram várias publicações importantes que parecem resumir adequadamente o que se sabe sobre o lingchi. Mas não tenho certeza de que os estudiosos envolvidos neste material – e, por extensão, com outros arquivos como os descritos em outras partes do livro em que esse artigo foi incialmente publicado – sempre pensaram nas fontes de sua própria atração. Nas conferências em que participei, alguns estudiosos afirmaram que o seu interesse pelas imagens vinha do desejo de compreender o contexto histórico da China no início do século XX; outros afirmaram ter interesse em compreender a história das práticas punitivas chinesas, ou a história das atitudes coloniais francesas no fim do século. Não duvido desses motivos: parece razoável afirmar que, sempre que um historiador se concentra num único assunto, o seu interesse principal é descobrir o que então aconteceu e porquê aconteceu.

28. O material histórico é normalmente fascinante por si só: aparentemente fornece o motivo e a fonte do interesse. E ainda assim digo “aparentemente,” porque há sempre mais coisas envolvidas. A escrita histórica, como disseram seus teóricos, desde Friedrich Nietzsche e Wilhelm Dilthey até Hayden White, é um empreendimento recíproco: o historiador é atraído para o material por causa de algo em sua própria vida. A escrita e a pesquisa histórica são necessariamente um diálogo entre a experiência do historiador e os acontecimentos que ele procura compreender, e a compreensão em si é sempre mútua: escrever história pode ser uma forma de compreender a si mesmo. Estas são banalidades da teoria histórica reflexiva, pressupostas em alguns de seus melhores relatos, como o de Walter Benjamin. No decurso quotidiano da investigação histórica, a iluminação recíproca da vida do historiador pelo material histórico nem sempre é articulada, ou mesmo notada. Creio que se torna um problema persistente quando os estudiosos decidem estudar material extremamente desagradável ou doloroso. Nesses casos, as razões convencionais que poderiam ser dadas para estudar o material podem não ser convincentes. Se Stephen Eisenman diz que estuda as fotografias de Abu Ghraib para compreender melhor o atual momento político,[8] ou se Valentin Groebner diz que está interessado no fotojornalismo para lançar luz sobre a compaixão e a identificação,[9] então essas explicações são certamente verdadeiras. Mas eles só podem compor parte de um conjunto de motivações maior. Eu esperava que, ao olhar lenta e deliberadamente para essas imagens, pudesse perceber como é estranho passar tempo estudando tal assunto: e por estranho quero dizer, potencialmente, toda uma série de conceitos que teriam de ser desvendados por cada historiador individual – perverso, masoquista, sádico, sociopata, racista.

29. Quando as imagens são tão carregadas histórica e emocionalmente como estas, então as motivações que poderiam ter sido a preocupação privada do historiador ganham uma dimensão pública. Eu esperava que, ao dilatar o tempo gasto nas imagens, se tornasse mais difícil para os acadêmicos dizerem que estão apenas estudando a prática jurídica chinesa, ou a história do colonialismo, ou a história do Orientalismo. Ao desacelerar a visão, eu esperava tornar possível que qualquer pessoa que se sentisse atraída, mesmo que temporariamente, por essas imagens, perguntasse por que elas lhe são tão atraentes. Em particular, em relação ao Surrealismo, duvido que Bataille pudesse ter mantido o seu interesse pelas imagens ou tomá-las como momentos exemplares de transgressão, se as tivesse olhado de forma mais lenta e cuidadosa. Eles teriam se tornado… outra coisa. Neste contexto, posso apenas apontar na direção desta afirmação, mas o assunto se aplica geralmente a imagens que são dolorosas de ver: se você se sentir atraído por algumas dessas imagens, ou pelas questões que elas levantam, então você pode considerar uma forma radicalmente alterada de encontrá-las – um encontro muito lento, por exemplo – como um modo de perturbar a sua relação com as imagens, e facilitar um encontro reflexivo com as suas próprias motivações e fontes de interesse.

30. (c) A minha terceira conclusão é sugerir que os tipos usuais de análise que são ensinados aos estudantes que se iniciam nas artes não são os veículos neutros de compreensão que parecem ser. A análise formal, a análise composicional, o inventário iconográfico, a reconstrução narrativa – todas as formas de olhar supostamente preparatórias, elementares e rudimentares – estão longe de ser encontros neutros com objetos visuais. São, penso eu, dissecações frias e, muitas vezes, cruéis desses objetos. Uma lista de símbolos iconográficos, um relato semiótico dos signos de uma imagem, um inventário formalista das formas e cores de uma pintura, compartilham o mesmo olhar deliberado, sistemático e disciplinado que experimentei em relação às imagens de lingchi. As abordagens formais, semióticas e iconográficas podem ser frias e até cruéis. Eles criam a sensação de que uma imagem foi dominada, pegando dela um elemento de cada vez, retirando-o do seu contexto, e prosseguindo para o próximo, até que todos os elementos do objeto visual tenham sido distinguidos uns dos outros. Os elementos, sinais ou símbolos da imagem são então controlados e a imagem fica disponível para estudos posteriores. Para mim, este era um dos principais interesses: olhar para mim mesmo e ver como o olhar comum (para objetos “comuns” como pinturas) pode começar com atos sustentados de crueldade, e como a clareza de um bom relato de história de uma pintura, por exemplo, pode ser possibilitada e sustentada por um tipo de análise visual deliberada, fria, repressiva e dissecativa – uma análise que dá a ilusão de um controle essencial.

31. A análise visual comum, pedagogicamente incutida, mecânica e rotineira produz dor na imagem analisada. Ela revela e articula o desejo de compreensão do espectador como um desejo doloroso. E isso, por sua vez, permite que a análise histórica ou crítica da arte avance e crie o seu próprio prazer. Há uma dialética entre interpretação dolorosa e prazer interpretativo na história, na teoria e na crítica da arte, e seu movimento inicial implica na imobilização e na dissecação da imagem visual. A dor e o prazer alimentam-se um do outro: a análise formal ou iconográfica alimenta o desejo do espectador, aumentando qualquer prazer que possa ser encontrado na dor de uma imagem: ou, para dizer com rigor, em uma máxima, a análise produz a dor da interpretação como se fosse o prazer da imagem.

32. Para mim, esta terceira conclusão é o mais intrigante e potencialmente a de maior alcance. Ainda estou pensando nela, tentando decidir até que ponto ela é aplicável. Na medida em que o lingchi pode fornecer um modelo de visão histórica da arte em geral, ele pode também oferecer uma crítica profunda dos protocolos institucionais da disciplina da história da arte: a sua frieza, a sua propensão para controlar o visual, o seu interesse dissimulado em produzir dor.

Tradução do inglês por Arthur Valle

 


* Nota aos leitores: Esse artigo é o Capítulo 6 em: DI BELLA, Maria Pia; ELKINS, James (ed.). Representations of Pain in Art and Visual Culture. New York: Routledge, 2013, p. 75-87. O contexto mais amplo de estudos sobre a “morte por mil cortes” aparece em outros lugares. Ver o material em: ELKINS, James. The Very Theory of Transgression: Bataille, lingchi, and Surrealism. Australian and New Zealand Journal of Art, v. 5, n. 2, p. 5–19, 2004; ELKINS, James. The Most Intolerable Photographs Ever Taken. In: BROOK, Timothy; BOURGON, Jérôme (ed.). The Ethics and Aesthetics of Torture: Its Comparative History in China, Islam, and Europe. London: Rowman and Littlefield [não-publicado]; e em português como: ELKINS, James. As fotografias mais intoleráveis já tiradas. In: GREINER, Christine; AMORIM, Claudia (ed.). Leituras do Corpo. São Paulo: Annablume, 2003. Este ensaio foi originalmente publicado em https://www.academia.edu/ e no site do autor, www.jameselkins.com O texto foi escrito em c. 2005, revisado em 2010-12 e uploaded em 14 de julho de 2013. Por favor, envie todos os comentários, críticas etc., para jelkins@saic.edu

[1] Cfr. os textos citados na nota acima. A publicação mais extensa sobre o lingchi é: BROOK, Timothy; BOURGON, Jérôme; BLUE, Gregory (ed.). Death by A Thousand Cuts. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2008.

[2] Nada do que tenho a dizer aqui pretende suplantar ou alterar esse material, e peço a todos os leitores interessados no lingchi que consultem o livro que cito na nota 1, e pelo menos algumas das muitas fontes que ele por sua vez cita. Preciso dizer também, logo de início, que as imagens que aqui reproduzo foram todas coletadas pelo grupo de pesquisa francês Turandot, do qual fui um membro satélite. Devo a eles, e especialmente a Jérôme Bourgon e à minha coeditora Maria Pia Di Bella, o conhecimento que tenho das imagens.

[3] O resumo mais sucinto que encontrei é o verbete “Slow Slicing” da Wikipedia, acessado 16 jan. 2012.

[4] Ao fazer esta análise, fui ajudado por um cirurgião plástico e artista-fotógrafo, David Teplica.

[5] [N. do T.] O Grupo Turandot se dedica a investigações sobre o que seus integrantes designam, com uma expressão bilingue, “Chinese torture/Supplice chinois.” Trata-se de “uma equipe internacional e interdisciplinar, incluindo especialistas em história chinesa, literatura comparada, iconografia ocidental e chinesa, fotografia, etc.” Disponível em: https://vcea.huma-num.fr/Projects/Turandot_en.php Acesso em 1 nov. 2024.

[6] ELKINS, James. What Photography Is. New York: Routledge, 2011.

[7] Prevejo que outros membros do Grupo Turandot vão discordar do que aqui propus. O cirurgião plástico que consultei diz que é possível que as fotografias mostrem algo diferente da excisão do úmero e do fêmur. Parece claro que as dissecações dos braços e das pernas tinham como objetivo aleijar a vítima e demonstrar o seu desmembramento incipiente, ao mesmo tempo que limitavam a perda de sangue. A área em forma de lente no lado esquerdo do peito parece ter a intenção de demonstrar as batidas do coração da vítima, embora também seja possível que, com os músculos intercostais removidos, a respiração da vítima se torna-se muito mais evidente.

[8] EISENMAN, Stephen. The Abu Ghraib Effect. London: Reaktion, 2007.

[9] Ver: GROEBNER, Valentin. A Feeling for Images Medieval Personae in Contemporary Photojournalism. In: DI BELLA, Maria Pia; ELKINS, James (ed.). Representations of Pain in Art and Visual Culture. New York: Routledge, 2013, p. 150-156.