Benjamin Binstock*
Como citar: BINSTOCK, Benjamin. Primavera para Sedlmayr? O futuro da história da arte nazista. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIX, 2024. DOI: 10.52913/19e20.xix.06. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/primavera-para-sedlmayr/
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E agora é primavera para Hitler e a Alemanha,
Deutschland está feliz e risonha.
Marchamos em um ritmo de rapidez maior.
Cuidado, aí vem a raça superior!
– Os Produtores
1. Ao reconsiderar a Escola de Viena e o papel que ela pode desempenhar no futuro da história da arte, vou me concentrar na figura controversa de Hans Sedlmayr. Para alguns, Sedlmayr pode parecer um nó górdio na história da história da arte, que seria melhor cortar e descartar. No entanto, reservar um tempo para desembaraçar os fios que se atam em sua obra é crucial para entender o significado da Escola de Viena. Sedlmayr foi um seguidor de Alois Riegl e um talentoso historiador de arte, escrevendo, entre outras coisas, o que é sem dúvida o melhor comentário dedicado à Arte da Pintura de Johannes Vermeer em Viena [ Figura 1 ]. Ele também foi um nazista fanático, cujas ações inquestionavelmente contribuíram para a destruição assassina causada pelo regime nazista, apesar dos comentários de alguns participantes do congresso em Viena – à qual é dedicado o volume onde o presente texto foi originalmente publicado – de que suas convicções políticas eram inofensivas.[1] Não é meu objetivo condenar Sedlmayr, mas sim avaliar a significância de sua obra em relação à sua perspectiva política, especificamente com relação ao seu ensaio sobre Vermeer e minha própria interpretação da pintura de Vermeer. Para resumir minhas conclusões: Sedlmayr foi um poderoso teórico e close-reader na tradição formalista de Viena, da qual Riegl foi o pioneiro, mas ele também perverteu essa tradição em uma direção unilateral que coincidia com suas ilusões ideológicas. Tanto suas ambições sem igual para a história da arte quanto um certo aspecto ridículo de suas aspirações eram características dos nazistas, e são qualidades bem capturadas em Os Produtores [The Producers], o clássico filme cult de Mel Brooks e musical de sucesso da Broadway. Entender os erros de Sedlmayr é crucial para progredirmos a partir dos fundamentos essenciais de Riegl e, portanto, para o futuro da história da arte.
Sedlmayr sobre História da Arte & Vermeer
2. O texto mais conhecido de Sedlmayr sobre teoria da história da arte é provavelmente seu estudo de 1931, originalmente chamado Rumo a um estudo rigoroso da arte, que ele posteriormente reimprimiu sob o título enfático: História da arte como história da arte.[2] Ele abordou muitos dos mesmos pontos de forma mais sucinta e inspirada em um subestimado texto de 1957, Obra de Arte e História da Arte, que ele reimprimiu sob o título Problemas de Interpretação. No início desse último ensaio, Sedlmayr afirma que “As obras de arte não estão simplesmente lá, elas não estão presentes. Para estar lá, elas têm que ser tornadas presentes, despertadas e re-despertadas.” Este conceito poderia ser chamado de motivo da “Bela Adormecida” ou de “Brunhilde,” um autêntico Leitmotiv no texto de Sedlmayr e provavelmente um motivo wagneriano autoconsciente, já que ele frequentemente invoca maestros – e Wilhelm Furtwängler em particular – como um paralelo para o historiador da arte em sua tarefa de re-despertar a obra de arte. O motivo também sugere uma dimensão místico-católica relacionada à ressurreição de Cristo, não estranha a Wagner, que corresponde especificamente à perspectiva conservadora-nostálgica (reacionária) de Sedlmayr.
3. Sedlmayr insiste que nem todos são capazes de despertar uma obra de arte, enquanto aqueles que assumem que as obras de arte estão simplesmente ali, diante de nós, enganam-se a si próprios:
4. Esse mal-entendido é um obstáculo tanto para uma recepção mais dinâmica da arte quanto para o desenvolvimento interno de nossa disciplina. Tal “re-criação através da visualização” não tem nada a ver com a explicação ou derivação histórica. O que não quer dizer que o conhecimento histórico pode ser dispensado para que o despertar se dê […] Mas somente onde esse conhecimento é investido na visualização e resulta na capacidade de re-experimentar, isto é, de re-criar, o conteúdo visual fundamental das obras de arte, é que o caminho para o re-despertar se torna claro. […] Esta re-criação de obras de arte a partir das “coisas” artísticas é a pré-condição para qualquer preocupação académica posterior com questões relativas à “arte” […] É também uma pré-condição para a construção de uma teoria da obra de arte […] já que para saber o que as obras de arte podem fazer, é preciso saber o que é uma obra de arte. Acima de tudo, tal re-criação é uma pré-condição para qualquer verdadeira história da arte. Caso contrário, o ponto de partida e o objetivo estariam faltando. Se não houvesse mais pessoas capazes dessa re-criação, haveria apenas uma história de formas mortas, não uma história da arte.[3]
5. Em sua conclusão retumbante, Sedlmayr retorna ao motivo de Brunhilde, transformado em um tesouro submerso recuperado pelo historiador da arte, pensado como um aventureiro-arqueólogo intelectual:
6. Apenas alguns indivíduos foram capazes de restaurar a visão correta e transmitir isso aos outros. Mas, com esses poucos, a arte da interpretação atingiu nos últimos vinte anos um ponto alto, que é algo único e previamente desconhecido para a história […] Como reanimadores das obras de arte submersas, os historiadores da arte tornaram acessíveis tesouros imensuráveis para a nação e o mundo. Essa recuperação altruísta de tesouros submersos será considerada no futuro uma das verdadeiras realizações da nossa era.[4]
7. Sedlmayr acompanhou a reimpressão de seu ensaio metodológico com outro intitulado Dois Exemplos de Interpretação, que começa com seu ensaio sobre Vermeer. Ele prefacia sua interpretação citando Heidegger: “O último, mas também o mais difícil passo de toda interpretação consiste em suas explicações desaparecerem diante do puro ser-aí do poema”. Ele também descreve sua tarefa em termos da metáfora convencional da Odisseia de Homero, conduzindo o navio da interpretação entre Cila – que mata a obra de arte para dissecá-la conceitualmente – e Caríbdis – que perde sua objetividade em uma interpretação puramente subjetiva.[5] Sedlmayr propõe interpretar a pintura de Vermeer em três níveis: a composição ou significado literal; o significado alegórico; e o que ele chama de “terceiro significado,” equivalente ao significado anagógico ou tropológico na tradicional quádrupla exegese bíblica, adaptada por Dante para sua Divina Comédia. A análise formal da composição de Vermeer começa com seus três planos, a distribuição de horizontais, verticais e diagonais, e diferentes valores de cor e de tom, que estão interligados de maneiras complexas. Em termos de significado alegórico, Sedlmayr identifica a cena como um pintor pintando uma modelo vestida como “Fama,” que serve como um motivo para a “quietude ao olhar e [a] quietude ao ser olhado” [ Figura 1, detalhe ]. Ele identifica os objetos sobre a mesa como atributos da pintura, erroneamente identifica o mapa na parede ao fundo como uma representação das sete províncias (do norte) dos Países Baixos e, consequentemente, resume o significado alegórico de toda a composição como: “pintura-fama-Holanda:”
8. A imagem não anuncia em voz alta esses elementos, como na maneira clara das alegorias barrocas. Pintura não está sendo coroada com louros como a principal arte, à maneira da página-título de [Giovanni] Baglione [ Figura 2 ]. Em vez disso, a obra alude de forma lúdica a uma alegoria disfarçada, de um modo que teria sido evidente para os contemporâneos eruditos [de Vermeer] […] Fama nunca foi representada de forma tão estática: ela não toca sua trombeta, seu livro está fechado, assim como sua boca, suas pálpebras estão abaixadas… Todos os atributos da fama, com exceção da coroa de louros, estão ausentes, quase como se de uma paródia se tratasse, e alguns, erroneamente, quiseram ver a imagem como levemente cômica.[6]
9. De acordo com Sedlmayr, o terceiro significado “anagógico” é espiritual e atemporal. Consiste na experiência visual do todo do quadro, que pode ser descrita da seguinte forma:
10. O imperturbado (hermético); calma; quietude; o celebratório; luz […] Embora estejamos próximos da imagem e a cortina esteja aberta, o interior que nos é permitido espiar sugere algo inacessível, como um santuário sagrado […] A calma da contemplação pura, o momento mais elevado […] Celebratório como a quietude do interior de uma igreja, para dentro da qual a luz flui. Esta luz, como tem sido frequentemente observado, é o verdadeiro “tema” da pintura. Sem anular a luz solar natural, ela tem, no entanto, o caráter de uma luz sobrenatural, que permite que todas as coisas apareçam em uma misteriosa clareza e se entrelaça a essas coisas, animadas e imóveis. A luz suaviza as sombras, permite que as cores sejam vivenciadas em uma pureza inesperada, mostra o ser puro das coisas e transfigura o mundo, o microcosmo do interior cheio de luz. […] A luz era no século XVII um atributo das belas artes e da pintura em particular […] Mas neste caso ela se transformou de um atributo na essência espiritual da pintura. Ela se reúne na figura imóvel da Fama: ela carrega a luz mais brilhante e as cores do céu e da claridade, azul-celeste e amarelo-claro; uma luz “interior” irradia de seu rosto, com a indicação de um sorriso abençoado, que é assim transfigurado em uma beleza sensual e espiritual mais elevada. Suas pálpebras abaixadas a caracterizam como pura […] Este é certamente o comentário mais engenhoso e iluminado que qualquer pintor já pintou sobre a arte da pintura, cheio do maior orgulho e da mais profunda modéstia. Pois a “fama da pintura” não é a trombeta soprando a Fama do mundo, mas pura interioridade.[7]
Sedlmayr versus Riegl
11. Sedlmayr foi aluno de alunos de Alois Riegl e se considerava o sucessor desse último. Ele introduziu um volume póstumo de ensaios reunidos de Riegl com um texto intitulado A Quintessência do Pensamento de Riegl. Mais especificamente, Sedlmayr se apresentava como o líder da “mais jovem Escola de Viena” e um praticante da “análise estrutural.” Existem conexões fundamentais entre Riegl e Sedlmayr, mas também diferenças fundamentais, que nunca foram claramente elucidadas. Na minha opinião, os insights mais fortes de Sedlmayr eram mais profundamente devedores a Riegl do que ele reconhecia, enquanto os componentes mais fracos da perspectiva de Sedlmayr coincidem amplamente com sua divergência do precedente de Riegl.
12. A grande contribuição de Riegl foi ser o pioneiro na compreensão dos elementos formais ou visuais das obras de arte, começando com seus estudos de padrões em tapetes e nas artes decorativas, que ele gradualmente estendeu para abranger o arco mais amplo da arte ocidental. Na sua Gramática Histórica das Artes Visuais, publicada postumamente, Riegl apresentava a sua perspectiva em oposição à preocupação predominante, na história da arte de então, com a função histórica ostensiva das obras de arte:
13. Se um catálogo de leilão rotula cada obra primeira e principalmente de acordo com sua intenção funcional, isso é justificável na medida em que um comprador potencial, que não precisa ser um amante da artes particularmente perspicaz ou conhecedor, desejará principalmente saber como pode colocar a coisa em uso. Mas é questionável se a disciplina da história da arte deve ficar satisfeita com tal justificativa.[8]
14. Em seus vários textos, Riegl usa termos diferentes para descrever o caráter visual e o conteúdo das obras de arte, como pensamento artístico (Kunstgedanke), propósito da arte (Kunstzweck) e Kunstwollen. Ele finalmente escolheu este último termo, mas nos lembra, em seu livro sobre a arte romana tardia, que ele já o havia usado antes:
15. Defendi em Stilftagen, e até onde sei fui o primeiro a fazê-lo, uma visão teleológica segundo a qual via na obra de arte o resultado de uma Kunstwollen específica e conscientemente proposital que prevalece na luta [do artista] contra a função, a matéria-prima e a técnica.[9]
16. A expressão Kunstwollen é frequentemente deixada sem tradução como acima, enquanto traduções anteriores do termo em inglês variam na direção de um mystical “spirit” [“espírito” místico] agindo através da arte, até o fato dado da artist’s intention ou will [intenção ou vontade do artista]. Eu argumentei que o termo deveria ser traduzido literalmente como “the will of art” [“a vontade da arte”], no sentido de “o que a arte quer,” para onde a arte está indo, o que a arte está fazendo.[10] A atenção de Riegl à vontade da arte gerou seus insights radicais sobre a arte romana tardia como o desenvolvimento de novas preocupações pictóricas e intelectuais, em vez de um declínio bárbaro como os estudiosos anteriores presumiram. Da mesma forma, ela lhe ofereceu novas maneiras de entender os objetivos e realizações distintivos da pintura holandesa em relação à arte italiana.
17. Riegl refletiu muito e profundamente sobre arte. Em sua Gramática Histórica, ele discordou da visão convencional em seu período, ainda prevalente na história da arte hoje, de que a “arte pela arte” era uma invenção do século XIX:
18. Frequentemente ouvimos a afirmação de que a dicotomia entre arte industrial – i. e., arte funcional – e arte erudita – i. e., arte feita por si mesma – é uma característica exclusiva da nossa própria era moderna, e que períodos anteriores estavam felizmente inconscientes de tal contraste. Nossa investigação histórica da relação de desenvolvimento entre arte e função objetiva prova claramente que essa afirmação é falsa. As paisagens marítimas holandesas do século XVII eram certamente “arte erudita;” mas o mesmo vale para os relevos Grimani e os retratos imperiais romanos.[11]
19. Por outro lado, em seu ensaio tardio sobre O Culto Moderno dos Monumentos, Riegl observou que as pessoas criam obras de arte “principalmente para satisfazer suas próprias necessidades práticas e ideais […] sem, via de regra, pretender deixar testemunho de sua vida artística e cultural para os séculos posteriores.” Consequentemente, “quando chamamos tais obras de arte de ‘monumentos’, esta é uma designação subjetiva e não objetiva.”[12] O mesmo princípio se aplica à palavra “arte.” Não apenas o estatuto, mas também o valor das obras de arte é uma construção cultural dinâmica. Em seu ensaio sobre os monumentos, Riegl, entre outras coisas, distinguiu entre o que ele chama de “valor histórico” e “valor artístico,” correspondendo aproximadamente o primeiro a um monumento de uma era passada e o segundo a uma ruína no presente. Ele também observou que
20. […] sabemos por experiência que obras criadas há séculos podem frequentemente ser muito mais valorizadas do que as modernas. Algumas obras, particularmente aquelas que encontraram pouca apreciação em seu próprio tempo ou que provocaram vivas controvérsias (e. g., pinturas holandesas do século XVII) parecem-nos hoje uma revelação sublime das belas-artes.[13]
21. Com base nos fundamentos de Riegl, Walter Benjamin declarou que as alegorias são ruínas que sobreviveram ao seu contexto histórico e existem apenas pela sua verdade estética, uma noção elaborada por Jacques Derrida, que declarou que todas as obras de arte são desde o início ruínas.[14] Pelo que entendo do argumento de Derrida, as obras de arte são necessariamente sempre mediadas ou “arruinadas” por algum tipo de representação ou enquadramento. A compreensão da obra como “arte” envolve uma perspectiva tardia, mas não existe acesso à história da arte sem esse conceito ou o enquadramento da história da arte. Assim, embora as pinturas de Vermeer possam estar em perfeitas condições físicas, elas são ruínas no sentido de que as observamos de uma perspectiva diferente da de seus contemporâneos, perspectiva que apesar de ser “anacrônica,” não é necessariamente imprecisa. Por exemplo, Vermeer foi pouco reconhecido em sua época, morrendo falido e não sendo mencionado por escritores contemporâneos que trataram de pintura, enquanto ele é hoje, sem dúvida, um dos artistas mais famosos de todos os tempos ou, nas palavras de Riegl, uma “revelação sublime.”
22. Quando Sedlmayr insiste que a interpretação histórica da arte “não tem nada a ver com explicação ou derivação histórica,” mas sim com “a capacidade de re-experimentar, isto é, re-criar, o conteúdo visual fundamental das obras de arte,” quando ele insiste na “história da arte como história da arte,” ele está seguindo os passos de Riegl. A análise formal de Sedlmayr da pintura de Vermeer, correspondente ao seu “primeiro significado,” é exemplar nesse sentido, e por essa via ele se mostra um verdadeiro discípulo de Riegl. Seu reconhecimento da importância de Vermeer – que não foi reconhecido por Riegl -, apenas confirma o ponto deste último sobre (a vontade da) história da arte como reconhecimento tardio, reformulado na ideia de Sedlmayr de que as obras de arte “precisam ser tornadas presentes, despertadas e re-despertadas.” No entanto, Sedlmayr não aborda a sua própria relação com Riegl ou a mudança na recepção de Vermeer; também lhe falta a sensibilidade de Riegl (e de Benjamin e Derrida) com relação ao complexo processo de “tornar presente.” O que Sedlmayr chama repetidamente de “atemporal” é mais precisamente caracterizado como “extemporâneo,” um objeto histórico que foi “afundado” na história, uma ruína, cuja ressurreição e reanimação são uma função de nossos interesses e métodos tardios e mutáveis. Devemos ter consciência do caráter construído da história da arte se quisermos evitar projeções delirantes sobre a obra de arte.
23. Essa falta de complexidade é refletida no ensaio de Sedlmayr sobre a quintessência do pensamento de Riegl, no qual ele, reducionista e repetidamente, afirma que o conceito de Kunstwollen de Riegl “foi introduzido para esclarecer o fenômeno bastante concreto do estilo.” Seu “significado positivo” reside “em um aprofundamento do conceito de estilo.”[15] “Estilo” dificilmente é adequado para abranger as interpretações de Riegl sobre a arte romana tardia, a pintura holandesa ou suas recepções que evoluem. O relato unilateral de Sedlmayr sobre Riegl encontra um corolário curioso em Erwin Panofsky. Em um precoce ensaio de 1920, Panofsky também procurou situar sua perspectiva em relação à Kunstwollen de Riegl. Como Sedlmayr, Panofsky concorda com Riegl que a arte “necessariamente exige consideração de outro ponto de vista que não o puramente histórico,” mas propõe limitar o conceito de Riegl à “intenção artística” objetiva e ao “significado imanente” de uma única obra de arte.[16] Os dois estudiosos mais jovens, brigando pelo legado ou manto de Riegl, não só não conseguem desenvolver a partir de seu termo, mas acabam por excluir a palavra “arte” em suas interpretações do conceito, dilacerando o manto de Riegl, por assim dizer, na dicotomia entre significado e estilo.
24. Christopher Wood propôs provocativamente, no citado congresso de Viena, que a Escola de Viena foi “uma invenção estadunidense das décadas de 1980 e 1990,” referindo-se à enxurrada de traduções e comentários sobre o tópico nos Estados Unidos naquela época, em parte como resistência ao domínio do campo pela iconografia “panofskiana.” Na ocasião, reagi violentamente contra a afirmação aparentemente ultrajante de Wood, mas, refletindo mais profundamente, percebi que Riegl não fundou uma “Escola de Viena.” Em vez disso, essa invenção é mais precisamente creditada a Sedlmayr, que assim conquistou para si a autoridade de Riegl e, ao mesmo tempo, estabeleceu sua própria direção, como líder de uma escola “mais jovem.” Wood chama Sedlmayr de “gêmeo maligno de Panofsky,” mas ele poderia ser mais bem descrito como o Lúcifer (ou Judas) de Riegl, já que ele estava mais próximo deste último, mas, por arrogância, voltou seu método para um propósito diferente e mais sombrio.[17]
Sedlmayr versus Badt
25. Não sou o primeiro a discordar da interpretação de Sedlmayr da pintura de Vermeer. Kurt Badt já o fez em um prolixo “Streitschrift,” ou texto polémico, dirigido contra o ensaio de nove páginas de Sedlmayr, ao qual Sedlmayr respondeu, por sua vez, de forma sucinta e irônica.[18] Embora Badt apresente objecções importantes, os seus ataques a Sedlmayr e a sua descrição de Vermeer são muitas vezes pouco convincentes, como o próprio Sedlmayr salienta na sua resposta. Sedlmayr observa, ainda, que os ataques de Badt são claramente motivados por uma intensa irritação pessoal, embora ele nunca a explique.[19] Badt ficou obviamente perturbado pelo fato de Sedlmayr ser um nazista, mas mesmo assim ter conseguido estabelecer-se depois da guerra em Munique, em uma posição de amplo poder em todo o mundo acadêmico alemão. No entanto, Badt nunca aborda abertamente esta questão, e enfraquece a sua crítica ao recusar reconhecer as ideias de Sedlmayr e não fornecer uma alternativa preferível.
26. Badt questiona particularmente o terceiro significado, “anagógico,” de Sedlmayr, como historicamente injustificado, e objeta que o interior pintado por Vermeer é simplesmente um aposento comum com uma cena de gênero da vida cotidiana, como em suas outras pinturas.[20] Badt segue um artigo de Karl Hulten de 1949 que identifica o modelo de Vermeer como Clio, a musa da história – uma identificação adotada por todos os estudiosos subsequentes. Hulten enfatizou que a modelo é retratada como uma jovem que segura desajeitadamente os seus atributos pesados e, consequentemente, interpretou a pintura de Vermeer como “uma zombaria modesta, mas incisiva, contra a pintura de história regulamentada do Barroco cortês.”[21] Badt argumenta da mesma forma que a franca exibição de seu modelo por Vermeer exibe humor e ironia, como “uma pequena invectiva” contra alguns de seus colegas pretensiosos, e interpreta a cena especificamente como “uma glorificação do real, do óbvio, do sem importância, que de outras modos servia bem à sua arte.” Ele ainda compara a cena a uma novela ou conto, relacionando-a com cenas semelhantes de Gerard ter Borch – uma ideia derivada de Riegl -, e propõe que o pintor tenha dito algo para flertar com sua modelo, que abaixa os olhos em resposta.[22]
27. Em sua réplica a Badt, Sedlmayr diz que não teve acesso em 1951 ao artigo de Hulten e muda significativamente o título da pintura de “Der Ruhm der Malkunst” (A Fama da Pintura) para “De Schilderkunst.” Ele também procura defender sua intepretação na medida em que fama e história estão intimamente relacionadas.[23] Ironicamente, estudiosos recentes usaram argumentos semelhantes para defender a agora convencional identificação da figura como Clio – o que representa um problema, uma vez que Vermeer não era um pintor de história, muito menos um historiador. Clio é especificamente a musa da escrita da história.[24] Sedlmayr afirma que o intercâmbio entre pintor e modelo proposto por Badt seria inadequado e violaria a quietude e o silêncio da cena, enquanto os olhos abaixados da modelo simbolizam a sua castidade. Ele insiste que a cena é distinta de outras pinturas de Vermeer e tem algo além da mera pintura de gênero, citando a interpretação (não muito convincente) de Wilhelm Rudolph da Mulher segurando uma balança de Vermeer [ Figura 3 ] como uma alegoria da “vanitas” e o (também não muito convincente) conteúdo religioso da Alegoria da Fé de Vermeer [ Figura 4 ] como evidência de um “significado mais profundo” em suas pinturas.[25] Sedlmayr retruca, ainda, que ele nunca afirmou que a pintura era mística, como acusa Badt, mas apenas que ela sugere uma secularização de um evento místico. Outros estudiosos compararam a cena às de São Lucas pintando a Madona, e uma imagem sagrada secularizada não é o mesmo que uma imagem sagrada.
28. O resultado de todos estes equívocos é minar a força do argumento de Sedlmayr, que consistia precisamente em um misticismo implícito e em uma retórica elevada: as palavras “puro,” “espiritual,” “secreto,” e assim por diante, embora reduzidas à linguagem simples e ao argumento comum, tornam estas ideias menos originais ou inspiradas. Badt afirmou isso. Mas algo valioso também se perde no processo. A caracterização alternativa feita por Badt da cena de Vermeer como “felicidade atemporal” dificilmente é preferível. Ele é igualmente pouco convincente em suas afirmações de que qualquer associação com ideias religiosas seria um sacrilégio por parte de Vermeer como um (suposto) católico, na sua insistência na normalidade da cena, que ele chama de “Modell und Maler” (Modelo e Pintor), e de que não há contemplação, nada de comemorativo ou incomum na luz de Vermeer.[26] Sedlmayr parece incapaz de reconhecer a ironia ou o humor, ou apenas se entrega ao sarcasmo contra Badt, enquanto este parece insensível à seriedade da cena de Vermeer e às suas qualidades pictóricas excepcionais. O significado da pintura de Vermeer se articula nesses pontos delicados, ilustrando o estreito canal entre o que Sedlmayr chama de Cila, que mata a obra de arte para dissecá-la conceitualmente (Badt), e Caríbdis, que perde completamente sua objetividade em uma interpretação puramente subjetiva (Sedlmayr).
Clio versus Pictura
29. Uma objeção crucial a todas as interpretações anteriores é a identificação equivocada da modelo de Vermeer como Clio. Hulten citou uma passagem na tradução holandesa de 1644 da lconologia de Cesare Ripa que descreve Clio como coroada com uma guirlanda de louros, segurando uma trombeta na mão direita e um livro na esquerda. Mas ela também deveria usar uma túnica branca esvoaçante e o livro deveria levar o nome TUCÍDIDES, conforme prescrito pela tradução holandesa, ou HERÓDOTO no original italiano. A correspondência parcial de atributos entre a figura de Vermeer e a Clio de Ripa é, na minha opinião, apenas uma coincidência, embora a interminável repetição deste erro pelos estudiosos revele algo das limitações da iconografia tal como é comumente praticada, ou mesmo sirva como uma alegoria da história da arte. O dicionário iconográfico de Ripa não deveria nos preocupar excessivamente, pois era, no máximo, um auxílio desnecessário para os melhores pintores e, ousamos dizer, para os melhores eruditos. As imagens devem fazer sentido por si mesmas, e deveríamos olhar primeiro para a pintura de Vermeer, e não para o texto de Ripa.
30. Afirmo que a figura feminina é uma personificação de Pictura ou “Pintura.” Como observado por Sedlmayr e a maioria dos outros estudiosos, a esposa de Vermeer, Catharina, ao tentar manter a pintura após sua morte, referiu-se a ela em um documento como “de Schildercons” – o que é geralmente traduzido como “a arte da pintura,” embora signifique simplesmente “Pintura”. Mais especificamente, ela se refere a “een stuk schilderie, geschildert by den voorgenaamd haeren man: waerin wert uytgebeelt ‘de Schilderconst’.” A mãe de Catharina mais tarde repetiu exatamente a mesma frase.[27] No holandês do século XVII, como no holandês moderno, uytbeelden pode significar “retratar; prestar [um papel]; personificar [um personagem no palco],” como no subtítulo da tradução holandesa de Ripa, Uitbeelding des Verstands – personificação de conceitos. A frase de Catharina poderia, portanto, ser traduzida como “uma pintura, pintada por seu falecido marido, em que ‘Pintura” está [sendo] descrita [ou prestando um papel, ou personificando um personagem].” A jovem está vestida como a personificação alegórica de Pictura, Pintura, de schilderconst; ela representa a Pintura como um papel teatral ou a personifica como uma personagem, e o pintor a retrata como Pintura. De fato, toda a frase que descreve a pintura corresponde à tela em questão, na qual o falecido marido de Catharina, vestido com o mesmo traje “borgonhês” que usa em sua precoce obra A alcoviteira, de 1656 [ Figura 5 ], retrata a Pintura.
31. O próprio Sedlmayr forneceu um dos argumentos mais significativos para esta identificação. Ele citou os objetos sobre a mesa como atributos da pintura: o livro ao fundo como as boas regras, a máscara como a imitação, o caderno e pequeno pedaço de papel como desenho ou projeto, e a seda azul e amarela na borda da mesa com decoro.[28] Badt contestou a última destas identificações, à qual Sedlmayr respondeu: “depois de doze anos não consigo mais rastrear de onde tirei esta observação.”[29] Presumo que ele simplesmente a inventou. A seda azul e amarela significa, mais provavelmente, um atributo de Pictura, sua “vestimenta de cor mutável,” também mencionada por Ripa.[30] A máscara da imitação é o atributo mais comum de Pictura nas imagens da época de Vermeer. Em pelo menos uma pintura (perdida) de Frans van Mieris de 1663, ele mostra Pictura segurando naturalisticamente sua máscara com um dedo, como se fosse uma mulher fazendo uma pausa em um baile à fantasia.[31] Na página-título de Giovanni Baglione mencionada por Sedlmayr [ Figura 2 ], a máscara está aos pés de Pictura. Vermeer simplesmente inclui a máscara sobre a mesa como um dos vários atributos dentre os quais Pictura pode escolher, e também se distancia da convenção antinaturalista de pendurar tal atributo em seu pescoço, transformando-o em um face (clássica) esculpida, em consonância com as representações convencionais dos ateliês de artistas e as associações tradicionais da imitação com a escultura. Os outros atributos-padrão de Pictura são a coroa de louros, que ela usa na página de título de Baglione, como observa Sedlmayr, e que a modelo de Vermeer também usa, e o pincel e a paleta, que Vermeer transfere para o pintor, sendo a paleta invisível, pois está escondida em sua mão esquerda.
32. O livro e a trombeta – causas das primeiras identificações de Clio e Fama – também estão ligados a uma série de outras personificações: eles estão razoavelmente associados à Fama e à História (ou Poesia), e são comumente relacionados a Pictura em imagens da época de Vermeer. Fama sempre sopra sua trombeta e Historia sempre escreve em seu livro, enquanto a modelo de Vermeer não toca sua trombeta e seu livro está fechado, o que Sedlmayr interpreta como “negação” desses atributos. Sedlmayr está correto no sentido de que Vermeer não era famoso em sua época nem um pintor de temas históricos ou literários, então ele retrata sua Pictura portando esses atributos com um distanciamento humorístico, como “ornamentos” emprestados (que não aparecerão integralmente na pequena tela do pintor), e não como parte integrante de sua identidade. A trombeta não utilizada e o livro fechado, assim como a quietude e o isolamento da cena que Sedlmayr se esforça para enfatizar, sublinham ainda Pintura como poesia muda, em consonância com a inversão convencional do famoso dictum de Horácio. A luz é também um atributo de Pictura, como observado por Sedlmayr e listado por Ripa, e em certas partes ela transforma de tal modo o panejamento azul-celeste da modelo que esta poderia ser outra versão naturalista da “vestimenta de cor mutável” de Pictura.
33. O mapa ao fundo mostra as dezessete províncias das terras do norte e do sul dos Países Baixos, e não as sete províncias da Holanda, como Sedlmayr afirma erroneamente em seu ensaio original. Na sua resposta a Badt, ele propõe, em vez disso, que o mapa e o traje borgonhesco do pintor indiquem a fórmula: “Pintura, a fama da velha Holanda.”[32] Mais especificamente, estas alusões, juntamente com a águia dupla dos Habsburgos no lustre e a tapeçaria holandesa, são relevantes para pensar a modelo como uma personificação da Pictura holandesa, de Schilderconst, encarnando uma tradição gloriosa que não terminou com a “velha Holanda,” mas continuou na época de Vermeer. As vistas de cidades em ambos os lados do mapa – entre as quais Delft está notavelmente ausente – sugerem que Vermeer colocou a sua própria cidade no mapa da tradição pictórica holandesa. Sedlmayr reconhece corretamente “o maior orgulho e a mais profunda modéstia” expressos na pintura. De costas, Vermeer sugere seu relativo anonimato em sua época. No entanto, a sua notável autoconfiança sobre o significado da sua arte antecipa tudo o que a história da arte reconheceu e articulou desde a sua época, e continua a fazer. Este paradoxo está de acordo com a natureza da obra de arte como ruína, um objeto histórico cujo significado é elucidado tardiamente.
34. Na minha opinião, Sedlmayr chega mais perto da essência da pintura de Vermeer na sua insistência na quietude, na luz, na cor e na aparência, precisamente por causa da sua compreensão do “primeiro significado” formalista, que corresponde à descrição de Riegl da qualidade óptica da pintura holandesa, da perspectiva aérea como luz e ar intervindo entre as coisas na experiência perceptiva e subjetiva do espectador. No entanto, ele simplesmente repete o primeiro significado como um terceiro significado “espiritual,” acompanhado por uma retórica vazia. A sua comparação com imagens religiosas é justificada, mas ele desliza facilmente dessa imaginária para a própria religião. O que há de místico e mágico na cena de Vermeer não é qualquer conteúdo sagrado ou resíduo de uma tradição sagrada anterior, mas antes a própria arte e o resquício de uma tradição anterior de arte sacra ou religiosa. Os elementos naturalistas assumem uma qualidade sobrenatural, sem ter qualquer relação necessária com a religião.[33] Sedlmayr diverge aqui significativamente de Riegl, que insiste em distinguir entre a “vontade da arte” como inovação formal ou estética e sua função histórica (religiosa). Por outro lado, Badt enfatiza corretamente as qualidades realistas da cena, mas as chama de óbvias e sem importância, enquanto eu as descreveria como familiares, mas misteriosas, e não há contradição entre o ambiente comum e um tom de celebração ou contemplação. O humor de Vermeer também não é simplesmente uma crítica negativa ao que Badt chama de “colegas pretensiosos” ou que Hulten chama de “o Barroco cortês.” Vermeer certamente zomba do simbolismo estereotipado, do italianismo opressivo e das hierarquias convencionais de gênero ou tema na forma como sua Pictura porta seus atributos. Mas ele também emprega a sua própria iconografia naturalista, ideais formais e esquemas conceituais para afirmar a dignidade da Pintura e da sua tradição pictórica nativa
35. Para afirmar minha compreensão em termos da exegese multinível de Sedlmayr (em si uma possível paródia “maligna” dos três níveis de interpretação iconográfica de Panofsky): o livro, a trombeta, os louros e o panejamento correspondem no nível literal (o nível pré-iconográfico de Panofsky) a objetos específicos e, no nível alegórico (ou iconográfico), aos atributos de Pictura, enquanto em um terceiro nível, Vermeer frisa seu caráter de objetos reais e particulares, afirmando sua pintura de gênero como descrição formal em uma contra-alegoria (ou contra- iconografia). Não três níveis de significado, mas um, não alegoria anagógica ou mensagem didática, mas estilo e significado. Em termos da relação do pintor com a sua modelo, a invocação da castidade de Sedlmayr parece mais pertinente do que o flerte de Badt, embora os olhos baixos de Pictura, como tantos outros elementos da cena, sejam característicos das obras de Vermeer. Mais importante ainda, a relação entre pintor e modelo corresponde à descrição de Riegl da pintura holandesa como “atenção,” não apenas uma descrição de objetos e modelos, mas a sua coordenação com o espectador. Em 1942, Elizabeth Neurdenberg identificou pela primeira vez – na minha opinião com razão – o modelo de Vermeer como sendo sua filha mais velha, Maria.[34] Vermeer pinta a sua virginal filha Maria como modelo e musa, que o inspira e personifica a Pintura, não só pelos atributos que possui, mas também pela sua relação lúdica com o pintor atento, que Vermeer permite ao espectador por seu turno vivenciar. Vermeer criou sua imagem sabendo que ela afundaria no tempo como um tesouro precioso, e colocou sua filha para dormir como Brunhilde, para ser despertada novamente como uma ruína através do que Sedlmayr, seguindo Heidegger, chamou de “a interpretação correta,” que desvanece “diante do puro ser-aí do poema.”[35]
Sedlmayr e Hitler
36. Desde 1939, Adolf Hitler manifestava interesse em comprar a Arte da Pintura de Vermeer do Conde Czernin em Viena, mas achou o preço pedido de dois milhões de Reichsmarks muito alto. Ele inicialmente proibiu a venda ao industrial de Hamburgo Philipp Reemtsma em 1940 e eventualmente comprou a obra no final daquele ano por 1.400.000 Reichsmarks, incluindo uma generosa redução de impostos, considerada após a guerra uma transação legal e vinculativa. Um fator atenuante foi a intenção de Hitler de estabelecer um museu público em Linz, embora el pareça ter guardado a pintura na sua residência privada em Berchtesgaden.[36] Os nazistas tinham uma relação ambivalente com as artes, promovendo um kitsch reacionário e, ao mesmo tempo, abraçando o modernismo em muitos aspectos da sua cultura visual. Hitler, em particular, era um pintor fracassado que tinha dificuldade com figuras, que acabou deixando sua marca ao literalmente remover pessoas da paisagem europeia. Obviamente, ele valorizava a obra-prima de Vermeer pelas suas qualidades formais, mas talvez também se identificasse com o pintor sem rosto da cena, especialmente se presumisse que o artista se inspirava na Fama como sua musa.
37. Conforme referido acima, Sedlmayr afirmou que a arte da interpretação atingiu um ponto alto “nos últimos vinte anos,” remontando de 1957 a 1937, o ano anterior ao Anschluß ou a anexação da Áustria ao “Reich dos 1000 anos,” que, no raciocínio de Sedlmayr, presumivelmente inaugurou uma nova era. As suas notas ao ensaio de Vermeer deixam claro que este foi concebido pela primeira vez em um seminário de 1937, precisamente no início do que ele chama de período de grandes realizações na interpretação da arte. Não há evidências de que ele tenha ensaiado seu artigo para o Führer, diante da pintura de Vermeer. Mas será este evento tão implausível? Hitler era um pretenso conhecedor e dono da pintura de Vermeer; Sedlmayr era o equivalente ao “papa” da história da arte em Viena, era obcecado pela pintura, adorava Hitler e sonhava em arrasar o bairro judeu de Viena para substituí-lo por uma “Hitlerstadt.” Mesmo que não assumamos que Hitler era o público-alvo ou o “leitor ideal” do ensaio de Sedlmayr na sua forma original, a sua interpretação corresponde certamente ao ideal nazista de classicismo germânico. Ao divergir do precedente de Riegl, enfatizando unilateralmente o estilo e violando a dialética histórica com a obra de arte, Sedlmayr empurrou a pintura de Vermeer de volta na direção do nostálgico, do atemporal/medieval e do germânico, sublinhado por seu relato excessivamente simples de “re-despertar.” Ele reprime precisamente as qualidades modernas e extemporâneas de humor e ironia da pintura. O falsificador holandês Han van Meegeren encontrou uma combinação igualmente feliz de gênio e kitsch nessa mesma época, quando vendeu seus primeiros Vermeers falsificados, caracterizados por um pathos religioso e um estilo pesado, para Hermann Goring. Os líderes nazistas eram oficialmente seculares, mas, como Sedlmayr, apreciavam um resíduo de misticismo sagrado e implícito.
38. Sedlmayr afirmou que a arte da interpretação tinha alcançado “um ponto alto” no seu tempo como “algo único e previamente desconhecido para a história” e que, “no futuro [seria] considerada uma das verdadeiras realizações da nossa era.” A sua ambição é comovente, na medida em que ninguém se preocupou tanto com a história da arte. Ele compartilha com Vermeer o maior orgulho, mas não a mais profunda modéstia, e sua contribuição não é tão “altruísta” quanto propõe. Na verdade, em retrospecto, o entusiasmo ilusório de Sedlmayr soa patético, pois ele parece reviver o seu próprio ponto alto durante a guerra, a “primavera” da sua imaginação, com os seus alunos a recebê-lo em uníssono, com a saudação nazista, nas suas palestras. Patético também é o seu ilusório orgulho sobre a sua vocação, como se a sua nação – quem dirá o mundo – se preocupasse com o fato de os historiadores da arte alemães tornarem acessível a arte alemã (ou holandesa) do passado. Os nazistas serão sempre lembrados principalmente pelo Holocausto e, secundariamente, por prejudicarem a Alemanha e os alemães. No entanto, Sedlmayr não pode escolher quem tentará despertá-lo ou reposicionar o seu pensamento em um novo contexto, separar os elementos valiosos da sua teoria ou da sua própria prática de seus componentes equivocados ou ridículos. O futuro da história da arte nazista pode, portanto, estar nas mãos dos judeus. Em última análise, não temos que escolher entre Sedlmayr e Badt, Sedlmayr e Panofsky, Sedlmayr e Riegl ou mesmo Sedlmayr e Binstock, porque a história da arte é um projeto cumulativo e contínuo, cujos pontos altos ainda estão no futuro diante de nós.
Tradução do inglês por Arthur Valle
* Quero agradecer aos professores Michael Viktor Schwarz e Friedrich Polleross por me convidarem para seu maravilhoso congresso, e aos participantes por suas discussões fascinantes. Olaf Peters se envolveu em uma animada conversa comigo sobre o assunto. Como sempre, a leitura de Marek Wieczorek melhorou o texto. Tenho o prazer de reconhecer o apoio do National Endowment for the Humanities enquanto membro do Institute for Advanced Studies, Princeton, onde escrevi este ensaio. [N. do T.] Esse artigo foi originalmente publicado como: BINSTOCK, Benjamin. Springtime for Sedlmayr? The Future of Nazi Art History. Wiener Jahrbuch für Kunstgeschichte, v. 53, n. 1, p. 73-86, 2004.
[1] Sobre as atividades nazistas de Sedlmayr, ver: AURENHAMMER, Hans H. Zäsur Oder Kontinuität? Das Wiener Kunsthistorische Institut Im Ständestaat Und Im Nationalsozialismus. Wiener Jahrbuch für Kunstgeschichte, v. 53, n. 1, p. 11-54, 2004.
[2] SEDLMAYR, H. Zu einer strengen Kunstwissenschaft. Kunstwissenschaftliche Forschungen, v. 1, 1931; reimpresso como: SEDLMAYR, H. Kunstgeschichte als Kunstgeschichte. In: SEDLMAYR, H. Kunst und Wahrheit. Munique, 1978, p. 49-80. O texto é traduzido em inglês como SEDLMAYR, H. Toward a Rigorous Study of Art. In: WOOD, C. (ed.), The Vienna School Reader. Politics and Art Historical Method in the 1930’s. Nova Iorque, 2000, p. 133-179.
[3] SEDLMAYR, H. Kunstwerk und Kunstgeschichte. Hefte des Kunsthistorischen Seminars der Universitat München, v. 1, 1957; reimpresso como SEDLMAYR, Kunst und Wahrheit, p. 96-98 (WOOD, cit. nota 2).
[4] Ibid., p. 128.
[5] H. SEDLMAYR, H. Jan Vermeer van Delft, Der Ruhm der Malkunst. Festschrift fur Hans Janzten, Berlin, 1951; reimpresso como: SEDLMAYR, H. Zwei Beispiele der Interpretation. In: SEDLMAYR, op. cit., p. 133 (WOOD, cit. nota n. 3). Deixo aqui de lado o segundo exemplo de Sedlmayr, que apresenta problemas diferentes, mas não constitui um obstáculo à minha argumentação.
[6] SEDLMAYR, H. Ruhm der Malkunst. In: SEDLMAYR, op. cit., p. 135-136, 138-139. (WOOD, cit. nota n. 2).
[7] Ibid., p. 139-140, 142.
[8] RIEGL, A. Historical Grammar of the Visual Arts. Nova Iorque, 2004, p. 121 – ênfase minha; SWOBODA, K. M., PACHT, O. (ed.). A. Riegl. Historische Grammatik der bildenden Kunste. Graz, 1966, p. 73.
[9] RIEGL, A. Die Spätrömische Kunstindustrie nach den Funden in Osterreich-Ungarn. Vienna, 1901, p. 9; como traduzido por: OLIN, M. Forms of Representation in Alois Riegl’s Theory of Art. University Park PA, 1992, p. 71.
[10] Apresento brevemente esta tradução e interpretação de Kumtwollen em: BINSTOCK, B. I’ve Got You under my Skin: Riegl, Rembrandt and the Will of Art History. In: WOODFIELD, R. (ed.). Framing Formalism: Riegl’s Work. Amsterdam, 2001, p. 232. Uma argumentação mais extensa é oferecida na minha introdução em: BINSTOCK, B. Alois Riegl, Monumental Ruin. Why we still need to read Historical Grammar of the Visual Arts. In: RIEGL, Historical Grammar, p.11-36 (cit. nota 8).
[11] RIEGL, op. cit. p. 126; ibid, p. 122.
[12] RIEGL, A. Der Moderne Denkmalkultus, sein Wesen, seine Entstehung (1903). In: SWOBODA, K. M. (hg.), Gesammelte Aufsatze. Augsburg/Wien, 1929, p. 147-148; RIEGL, A. The Modern Cult of Monuments; its Character and its Origin. Oppositions, v. 25, 1982, p. 23.
[13] RIEGL, The Modern Cult of Monuments, p. 47.
[14] BENJAMIN, W. The Origin of German Tragic Drama. Nova Iorque, 1977, p. 182; DERRIDA, J. Memoirs of the Blind. The Self-Portrait and Other Ruins. Chicago, 1993, p. 68-69: “A ruína não sobrevive como um acidente sobre um monumento que ainda ontem estava intacto. No começo há a ruína. Ruína é aquilo que acontece com a imagem desde o primeiro olhar.” Ver também ROSEN, C. The Ruins of Walter Benjamin. In: SMITH, G. (ed.). On Walter Benjamin: Critical Essays and Recollections. Cambridge MA, 1988, p. 151: “Benjamin acreditava que toda obra de arte, para manter sua natureza essencial, deveria se tornar uma ruína. Isso poderia acontecer – e geralmente acontecia – na história, mas é um potencial de todas as obras de arte […] Como ruína, o Trauerspiel é uma alegoria da arte em geral.”
[15] SEDLMAYR, H. Die Quintessenz der Lehren Riegls (Kunstgeschichte als Stilgeschichte). In: SEDLMAYR, op. cit., p. 33, 36, 38. – SEDLMAYR, H. The Quintessence of Riegl’s Thought, in: WOODFIELD, op. cit., p.13-15, 17.
[16] PANOFSKY, E. Der Begriff des Kunstwollens (1920). In: OBERER, H.; VERHEYEN, E. (ed.), Aufsarze zu Grundfragen der Kunstwissenschaft. Berlin, 1964, p. 38, 41. PANOFSKY, E. The Concept of Artistic Volition. Critical Inquiry, v. 8, n. 1, 1981, p. 25, 30.
[17] WOOD, C. Introduction. In: WOOD, op. cit., p. 47.
[18] BADT, K. Modell und Maler von Jan Vermeer: Probleme der Interpretation. Eine Screitschrift gegen Hans Sedlmayr. Cologne, 1961. SEDLMAYR, H. Jan Vermeer, “De Schilderkunst.” Hefre des Kunschiscorischen Seminars der Universicac Miinchen, v. 7-8, 1962. A extensão excessiva e a relevância duvidosa da intervenção de Badt são ampliadas em um estudo do tamanho de um livro sobre as interpretações de ambos os estudiosos, que, embora competente, não lança nova luz sobre nenhum dos estudiosos ou sobre a pintura de Vermeer. MENGDEN, L. v. Vermeers De Schilderconst in den lnterpretationen von Kurt Badt und Hans Sedlmayr. Frankfurt, 1984.
[19] SEDLMAYR, op. cit. n. 19, p. 63-64.
[20] BADT, op. cit., p. 24; Mengden (op. cit., p. 63, 55) aponta que o próprio Dante observa, em sua carta a Can Grande, que sua aplicação secular do esquema exegético de quatro níveis deveria ser vista como uma exceção singular, embora Von Mengden em outro lugar observe que os emblemas de Jacob Cats operam em três níveis (amoroso, social, religioso). A evocação de diferentes níveis de significado ou mesmo de uma dimensão religiosa não é em si historicamente injustificada.
[21] HULTEN, K. Zu Vermeers Atelierbild. Konsthistorisk Tidskrift, v. 18, 1949, p. 92
[22] BADT, op. cit., p. 104, 111, 121, 125; RIEGL, A. Das holländische Gruppenporträt. Vienna, 1931, p. 272.
[23] SEDLMAYR, op. cit., p. 48-49.
[24] Ver, por exemplo: SWIJTER, E. J. Vermeer, Fame and Female Beauty: The Art of Painting. In: GASKELL. I.; JONKER, M. (ed.), Vermeer Studies (Studies in the History of Art Series), v. 55, 1998, p. 267.
[25] SEDLMAYR, op. cit., p. 41, 45-46, 57, 58.
[26] BADT op. cit., p. 122, 123, 124.
[27] Documentos datados de 24 fev. 1676 e 12 mar. 1677, citados em: BLANKERT, A. et al. Vermeer. Nova Iorque, 1988, p. 208-209.
[28] SEDLMAYR, Ruhm der Malkunst, p. 138.
[29] SEDLMAYR, Jan Vermeer, “De Schilderkunst,” p. 50.
[30] RIPA, C. lconologia. Amsterdam, 1644, p. 452.
[31] Em outra pintura de 1661, agora no Museu Getty [ cfr. link ], Van Mieris retrata Pictura como o busto de uma jovem, assim como o pintor do quadro de Vermeer está fazendo. BADT (op. cit., p. 110) invoca essa obra, mas refere-se erroneamente a esta como Klio als Gottin der Malerei oder Pictura, um “lapso freudiano” decorrente da identificação errônea predominante da modelo de Vermeer.
[32] SEDLMAYR, op. cit., p. 43, 46, 51, desavergonhadamente critica Badt pelo mesmo erro.
[33] Um problema crucial aqui, não apenas no discurso de Sedlmayr, mas que remonta a Hegel, é apresentado pela palavra Geist, que geralmente é traduzida como “spirit” [espírito], mas também significa “mind” [mente].
[34] NEURDENBERG, E. Johannes Vermeer. Eenige opmerkingen naar aanleiding van de nieuwste studies over den Delftschen Schilder. Oud Holland, v. 59, 1942, p. 71.
[35] As ideias aqui apresentadas são desenvolvidas mais detalhadamente em: B. BINSTOCK, B. Vermeer’s Family Secrets: Genius, Discovery, and the Unknown Apprentice. Londres: Routledge, 2008.
[36] SMOLA, F. Exkurs: Der Fall des Bildes van Vermeer aus der Sammlung Czernin. Rechtshistorische Reihe, v. 197, 1999, p. 209-211. Sobre a coleção de arte de Hitler, ver: B. SCHWARZ, B. Hitler’s Museum. Vienna, 2004.