Guadalupe Lucero*
Como citar: LUCERO, Guadalupe. O picassismo de Documents. 19&20, Rio de Janeiro, v. XX, 2025. DOI: 10.52913/19e20.xx.05. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/19_20/artigo/o-picassismo-de-documents/
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1. Se considerarmos em conjunto os dois volumes da revista Documents, descobrimos que, com mais de 50 reproduções, Pablo Picasso é talvez o artista mais debatido no âmbito da publicação, além de ser o único a ter uma edição especial dedicada à sua obra. Neste trabalho, propomos problematizar o que chamamos de fator picassiano em Documents, que consideramos não somente um tema entre outros dos diversos discutidos na revista, mas também uma espécie de catalisador para muitas das inquietações que ocupavam seus integrantes. Tentaremos, portanto, explicar não apenas o lugar de Picasso na revista, mas também como outros problemas – inicialmente não relacionados a sua obra – encontram em suas pinturas um canal apropriado de expressão. As imagens reproduzidas em Documents correspondem a um período da obra de Picasso de estilo indefinido, onde coexistem obras frequentemente classificadas como “neoclássicas” com algumas do período anterior, “cubista,” e também muitas do período conhecido como “surrealista.” Este termo deve, no entanto, nos colocar em guarda, como veremos a seguir, pois em nosso contexto ele funciona como um obstáculo: a revista, de forma geral, o rejeitou, e as leituras ali publicadas encontraram eco em exposições posteriores que também buscaram relativizar o termo. Isso fica visível no catálogo da exposição retrospectiva de Picasso em Londres, em 1931, onde o adjetivo criado por André Breton não condiz com a produção do pintor espanhol. Gostaríamos então, neste trabalho, de lançar luz sobre uma dupla marca: aquela que a figura de Picasso deixou na identidade da revista e, também, aquela que Documents imprimiu na leitura da obra de Picasso.
Picasso como documento
2. Documents põe em cena um estranho duelo entre discurso e imagem. É claro que esta não era a primeira vez que uma revista publicava um grande número de imagens, especialmente fotografias e reproduções de obras de arte. A divulgação de obras era uma prática comum em publicações periódicas desde pelo menos meados do século XIX. A própria fotografia tinha como um dos seus objetivos iniciais a reprodução adequada de obras de arte que não podiam ser transportadas: primeiramente a arquitetura, mas depois também pinturas, esculturas etc. Entretanto, desde o primeiro número da revista, observamos que o uso da imagem não tem a finalidade de divulgação, nem de ilustração do texto, nem, inversamente, de explicação de uma imagem. As imagens acompanham textos que, em sua maioria, não se referem a elas diretamente, gerando assim uma máquina semiótica complexa e heterodoxa. Como acontecerá um pouco depois com as imagens publicitárias, se trata aqui de uma montagem que articula texto e imagens no mesmo plano, e onde não há tradução nem explicação mútua de qualquer tipo. Antes, como no cinema, o texto e a imagem coexistem em uma unidade não sintética.
3. Podemos então afirmar que Documents problematiza implicitamente a relação imagem-palavra.[1] No entanto, é a respeito de Picasso que parece necessário explicitar o que a revista conjuraria com a ajuda da montagem: a saber, a possibilidade de que a palavra venha a ocupar o lugar da imagem. Curiosamente, em relação a Picasso, até Georges Bataille (com as nuances que veremos mais adiante) parece afirmar a necessidade de sublinhar o caráter inefável da obra picassiana. Michel Leiris parece avançar nesse sentido quando afirma que “sendo próprio do gênio suspender todo o tipo de comentário, se já é absurdo escrever sobre pintura, a fortiori o é ainda mais no caso particular de Picasso.”[2] Essa referência ao gênio parece distinguir, de forma estrita, as imagens que seriam obras de arte moderna de outros tipos de imagens. E ela deveria nos surpreender, pois, no primeiro texto que Leiris publica na revista, ele comenta duas reproduções de manuscritos medievais sem fazer maiores menções à distância entre imagem e texto. No mesmo sentido, Robert Desnos afirma: “Recusar-me-ei a contribuir para a glosa mais ou menos grotesca de sua obra”.[3] Isso pressupõe ao mesmo tempo que não se pode codificar a pintura, que não existe algo como uma linguagem pictórica que teria sua possível tradução em linguagem articulada, como Carl Einstein antecipou em suas “Notas sobre o Cubismo”.[4]
4. Sendo assim, nos perguntamos: por que Picasso desperta essa espécie de unanimidade a respeito do alerta sobre a impossibilidade de falar sobre sua obra? A figura de Picasso será um espelho deformante para uma revista de vanguarda do tipo de Documents, pois ela vincula o que talvez pudéssemos apontar como um resquício romântico a respeito da construção da imagem do artista, ao mesmo tempo em que antecipa o papel particular que ele terá a no mundo da arte contemporânea a partir do segundo pós-guerra. Um texto polêmico de John Berger, publicado na década de 1960, talvez possa explicar essa afirmação. Trata-se de Fama e solidão de Picasso, um livro de tom hostil, mas que, não obstante, nos ajuda com alguns dados concretos que permitem contextualizar a figura do artista. Berger data de 1930 a compra de um castelo por Picasso, para servir como sua residência de verão.[5] Este fato, que visa claramente assinalar o quanto o patrimônio do pintor já era elevado em 1930, permite compreender sua singularidade entre os pintores de sua geração. Contra o estabelecimento de sua figura como gênio, Berger se preocupa em sublinhar a relevância da obra de Picasso em termos de seu trabalho coletivo, ou seja, em situá-lo na série dos pintores cubistas e, assim, relativizar o valor do restante de sua obra (que constitui a maior parte dela). Essa interpretação a contrapelo é, antes de tudo, uma indicação do fascínio que a figura de Picasso gerava. Para a crítica da época, e também para Documents, a obra de Picasso se destaca entre a de seus contemporâneos e permite acertar, por meio de sua figura, as contas pendentes com a vanguarda e a arte moderna. Longe da equivalência documental entre obras, textos e quaisquer imagens, a obra de Picasso parece abrir uma espécie de corte no número 3 do segundo volume da revista, uma brecha moderna por onde a Arte se esgueira. No que se segue, faremos uma revisão de duas leituras de Picasso presentes em Documents, e arriscaremos um possível exorcismo para a ameaça estetizantemente romântica.
Alucinação
5. Devemos então pensar profundamente sobre esse oásis moderno, através de sua lógica propriamente alucinatória. O primeiro artigo dedicado a Picasso que encontramos na revista – o de Carl Einstein, intitulado “Pablo Picasso. Alguns quadros de 1928” – cunha uma série de conceitos críticos que configuram o ponto de partida para a interpretação da obra de Picasso. Einstein afirma primeiro que esses quadros são construídos sob a lógica de uma “alucinação tectônica,” alcançada através de uma “disciplina da alucinação.”[6] Poderíamos arriscar que essa disciplina da alucinação implica também em uma reflexão sobre a própria revista, na qual as disciplinas da vigília são ofuscadas por um trabalho rigoroso, indisciplinado ou indisciplinário. Estranha dobra que esmaga a etnografia sobre o surrealismo: o surrealismo se torna uma disciplina focada na observação e sistematização de documentos culturais; a etnografia, por sua vez, se torna uma prática perdida nos labirintos dos sonhos e do inconsciente. Picasso parece desempenhar um papel comparável aqui. Por um lado, carregando ainda a experiência cubista, participara da vanguarda pictórica que soube aproximar-se – para além de ter sido esse o seu objetivo – das ciências da época, como se fosse ela própria um estudo rigoroso da decomposição do movimento. Por outro lado, na época da publicação da revista, Picasso estava em um processo de pesquisa estilística entre o que se conhece como seu período “neoclássico” e o chamado período “surrealista,” onde a erupção do clássico se via interferido e tensionado pela gramática cubista e, ao mesmo tempo, pelo vetor inorgânico de seu período surrealista.
6. A variável alucinatória é então direcionada, em primeiro lugar, aos objetos como correlatos do que é representável e à organicidade biológica. Ela se dirige àquele vetor inorgânico que contamina toda a normalidade: o “cânone biológico” que se abandona em favor de uma “composição direta e humana.”[7] Mas, ao mesmo tempo, esse fluxo em princípio “subjetivo” – já que Einstein afirma que ele é dirigido pelo artista – corresponde a um inconsciente que, no entanto, só é fundamental no sentido do caráter arcaico que tem a geometria das formas.[8] Embora Einstein rejeite rapidamente qualquer relação com o primitivo, é essa mesma consideração da geometria inconsciente das formas que lhe permitirá pensar afirmativamente sobre esse vínculo. Se trata, antes de tudo, de uma “telepatia imaginária”, de imagens vindas do além, ou de um mundo interno que está fora da realidade. Como se o pintor questionasse “o próprio mundo exterior,”[9] que só retorna na forma de um assédio espectral filtrado pela subjetividade da alucinação liberada. “Podemos acreditar que ele perdeu o contato com outros homens e que sozinho, perdido naquela terra primitiva, ela lhe impõe uma série de metamorfoses.”[10] Se trata, por acaso, do índice hispânico que se põe implicitamente em jogo aqui, como acesso privilegiado ao mundo primitivo? Aquele que já fascinava Nietzsche, um amante de Bizet? Privilégio oblíquo de pertencer a uma terra vista como não moderna e, portanto, tão mais moderna. Assim o mundo retorna, mas apenas como um mundo primitivo, talvez uma nova maneira de pensar sobre a telepatia imaginária.
7. Essa alucinação explica a variação contínua do estilo. O poder não vem do olho como órgão sensorial, mas de outra parte, de um fora que “se revela com uma alucinante diversidade,” e assim transforma a pintura em uma “armadura de fantasmas a ser dominada, e não apenas no repouso em aposentos ou no cuidado dos marchands.”[11] Trata-se de visões[12] que excedem o visível e se impõem às aparências sensíveis a partir da distância de um inconsciente ou de uma natureza entendida como força primária. Formas arcaicas são reveladas ali, mas como arquétipos pré-individuais. A função documental desta pintura também ganha relevância, e seu sentido não está na renovação estética que uma boa apropriação do exótico traria à vanguarda, mas em seu poder de revelar uma tectônica pré-subjetiva. A hispanidade de Picasso não é uma impostura exoticizante, mas sim sua dessubjetivação essencial. No retrato de Picasso feito por André Malraux, encontramos o significado dessa possessão colocado na boca do próprio artista:
8. [Braque] gostava de esculturas africanas, mas, como eu disse, porque eram boas esculturas. Ele nunca teve o mínimo medo delas. Os exorcismos não lhe interessavam. Isso porque ele não sentia o que eu chamava de todo, ou de vida – não sei, talvez a terra? – O que nos rodeia, o que não é nós, não lhe parecia hostil.[13]
9. Vemos aqui a enorme distância entre Braque e Picasso, que deve ser entendida em termos de uma rejeição da dimensão imaginária da escultura africana em favor da sua dimensão fetichista, em sintonia com o pensamento de Documents. Para alcançar a visão é necessário destruir o real [14], esgotá-lo[15], assassinar a natureza e alcançar o real como aquilo que já está morto. O esgotamento abre assim a referida geometria das formas, que têm uma génese “psicográfica.”[16] O inorgânico, portanto, assemelha-se ao antigo conceito de Wilhelm Worringer. Diante do real, trata-se de uma fuga imaginário-subjetiva. O inorgânico é o passo que se segue ao movimento de negação e destruição do orgânico, para assim se tornar pura invenção humana: “a convenção da coluna vertebral acabou.”[17] A operação alucinatória que Einstein descreve queria se afastar do devaneio surrealista porque o sujeito da alucinação não é o pintor, não é o inconsciente do indivíduo que ali se desenrola, mas uma certa lógica de possessão formal. A rejeição do fundamento inconsciente é explícita: “deixamos para trás a alucinação fatalista e estável de Freud.”[18] Não obstante, entre fantasmas e alucinações, como desvendar a verdade? F for Fake, de Orson Welles, parece ecoar os versos finais da intervenção de Jacques Prévert no número de Documents em homenagem a Picasso. Na cena, um especialista se aproxima de uma pintura de Picasso e diz: “É um Picasso, mas é falso, e ainda assim foi ele quem o fez, sem dúvida.”[19] O jogo de constantes metamorfoses e alucinações chega ao seu limite: isso é realmente sério?
Materialidade
10. O Picasso alucinante nos leva, em última análise, à área que o tornaria menos interessante. Se considerarmos que, como indica Berger, Picasso se tornará, graças ao culto à sua personalidade, o artista privilegiado do século XX, aquele que ganha dinheiro desenhando-o, devemos separar cuidadosamente o que, na análise da revista, nos leva precipitadamente à excepcionalidade pessoal daquilo que Picasso produz em termos de indisciplina, no cruzamento diferencial entre hiperrealismo e alucinação.
11. É necessário examinar o caminho contra-alucinatório. ou deveríamos também dizer anti-surrealista: um caminho realista. Poderíamos deduzir daqui a tensão sub-reptícia que separa Einstein de Bataille e Leiris. Com efeito, o caminho escolhido pelo historiador de arte alemão ainda era muito surrealista. O caminho realista, que tentaremos pensar aqui a partir de uma perspectiva materialista, é aquele que descobre, nas pinturas de Picasso, uma nova aparência do real. “Separada da representação, a arte só pode optar por uma alternativa de pureza ou de força?”[20] Pureza ou força são caminhos que evitam, por serem extremos, a queda na subjetividade. Picasso seria aquele que decide não escolher e tomar os dois caminhos; e, portanto, o que se interpreta como uma evolução de estilos seria antes a acumulação formal das vias de acesso não subjetivas a um real que se enriquece sob a mão do pintor.
12. Se esse real aparece, não é graças a uma visão alucinatória ou a uma análise científica (como se poderia pensar a respeito da decomposição cubista dos planos) do real. Trata-se, antes, de tratar o real da “maneira mais familiar possível,” na qual “nada de humano – ou desumano – lhe é estranho.”[21] Ou seja, o pintor está entre as coisas, humanas e inumanas. Não se trata de corrente inconsciente ou visões mágicas. Ele não é, portanto, um pintor surrealista. Leiris considera que este é um mundo humano, demasiado humano, que em última análise se identifica com as coisas e com a natureza. Mas essa humanidade profunda não é também o que Einstein afirma sobre Picasso? Vemos então que é necessário deter-se na caracterização do humano para compreender a profunda distância que encontramos entre essas duas leituras de Picasso.
13. No caso de Einstein, a natureza humana surge ao se opor às forças da natureza. A natureza deve ser morta para que a visão alucinatória possa abrir seu caminho. Essa concepção do alucinatório como profundamente humano reaparece em muitos dos artigos já citados. A alucinação, em sintonia com a época, implica o acesso ao inconsciente como um reverso oculto da superfície consciente e cotidiana. Contudo, do ponto de vista de Leiris, essa interioridade profunda nada mais é do que o próprio corpo despojado,[22] a matéria viva abaixo da superfície da pele, os órgãos também desorganizados, mas aqui por uma força que surge de seu vínculo vital íntimo com a natureza. O organismo esfolado é desorganizado em imagens que se afastam do preconceito da coluna vertebral, como queria Einstein, não para afirmar além da organização natural, mas, ao contrário, para mostrar o poder que subjaz e excede tal organização. No caso de Picasso, a própria ideia de um “inimigo do mundo” parece estranha: “Para ele, trata-se muito menos, creio eu, de refazer a realidade com o único objetivo de refazê-la, do que da questão incomparavelmente mais importante de expressar todas as suas possibilidades, todas as ramificações imagináveis, com o objetivo de apertá-la cada vez mais, de realmente tocá-la.”[23] Expressar as possibilidades da realidade implica em abraçar o vetor inorgânico, para semear potências expressivas que estão no real e que, no entanto, devem ser empurradas para que se tornem visíveis. É necessário, para usar uma linguagem bergsoniana provavelmente conhecida pelos autores, atualizar as potências virtuais do real. “Em vez de ser um vínculo difuso, um panorama distante de fenômenos, o real se esclarece, assim, em todos os seus poros, nós o penetramos, ele se torna então pela primeira vez uma REALIDADE.”[24] É desse modo que Leiris mantém o termo organismo, contra a ideia de fantasma, para pensar as figuras de Picasso. “A sua ordenação do belo tem pouco a ver com as relações pelas quais os nossos órgãos estão agrupados, eles não são fantasmas nem monstros.”[25] Este organismo não afirma a organização estrutural biológica, mas sim seu caráter vivente,[26] aquilo que nos dá “o peso exato das coisas, a escala do seu valor, a sua materialidade.” A materialidade é justamente o acesso ao real como vivo, cujo índice vital radica no poder da matéria. Assim, os objetos podem ser vivos e, desse ponto de vista, humanos. A humanidade não reside na organização formal, mas, ao contrário, na força do peso material. Os objetos são semelhantes, são criaturas “como nós,” ainda mais evidentes. Neste ponto entendemos que a noção de humanidade foi profundamente tergiversada.
14. Bataille leva essa tergiversação ao extremo em “Sol podre” [Soleil pourri, no original], artigo que publicou na edição em homenagem a Picasso. O artigo começa com uma referência oblíqua a Hegel. Recordemos que, na introdução às Lições de Estética, a propósito da necessidade de explicar a superioridade da beleza artística sobre a beleza natural, Hegel afirmava que “segundo o seu conteúdo, o sol, por exemplo, certamente aparece como um momento absolutamente necessário, enquanto uma ocorrência desatinada desaparece como contingente e efêmera; mas, tomada por si só, uma existência natural como o sol é indiferente, não é em si livre e autoconsciente.”[27] Bataille nos diz que o sol é o mais alto e. ao mesmo tempo. o mais abstrato. Porém, a natureza abstrata do sol não reside na sua falta de determinação, na sua falta de mediação ideal, mas é, ao contrário, um problema físico: não se pode olhar fixamente para ele. Essa impossibilidade material remete à elevação espiritual: o sol como um análogo da elevação espiritual, aquilo que faz ver, mas que não pode ser visto. Não obstante, o sol também pode ser visto a ponto de arruinar os olhos, trespassados por uma certa loucura: tornar os “olhos vermelhos”, como diz Gilles Deleuze, devido à força de uma visão cegante. Bataille a caracteriza como uma “ejaculação mental” que se opõe à beleza perfeita do sol, que não se olha de frente. Essa ejaculação mental implica uma associação particular entre a ideia e o corpo. A mente que ejacula é aquela que se materializa no gozo, ou também aquela que produz espuma no surto epilético. O humor corporal invade, assim, toda dimensão ideal, e o sol hegeliano afunda em um olhar humano, mas como corporalidade exposta. Essas duas maneiras de abordar o sol são comparáveis aos modos de representação pictórica. Picasso encarnaria aquela pintura moderna que olha para o sol de frente, até que seus olhos se queimem.
O surrealismo é um humanismo
15. A figura humana, para Hegel, foi o momento verdadeiro da imagem. Em sua perfeita adaptação, a figura humana na arte clássica alcançava a melhor representação sensível do divino. Claramente, o humano se expressa nessa relação selada sob a forma de imagem e semelhança. Se esta imagem se mostrava insuficiente, era precisamente porque a semelhança não radicava na imagem, mas sim no não-imaginário, que era propriamente divino. É no espírito que a divindade humana se revela, ao passo que a imagem nada mais é do que o semblante que deve expressar um interior sem imagem. A dialética entre interior e exterior, entre o fundo inimaginável e a imagem falsificadora, havia encontrado seu avatar secular na recepção que, tanto na arte quanto nas ciências humanas, a psicanálise freudiana teve. O surrealismo de Breton ecoou particularmente no anseio pela vinda dos “filósofos adormecidos,”[28] e na consideração do estado de vigília como uma interferência. Necessariamente, os olhos bem fechados do sonho abrem uma corrente interior que, agora livre de suas restrição racional, se permite retornar a um interior fundamental.
16. Se olharmos para o tipo de peça que Documents constitui no partido de vanguarda, fica claro que a revista é uma arma que aponta furiosamente contra o surrealismo. Essa rivalidade – que poderia ser explicada biograficamente como parte da novela de intrigas que Breton protagonizou durante aqueles anos – ultrapassa os personalismos para encontrar seu específico campo de batalha na própria ideia de realidade. Contra o surrealismo, a noção de documento repousa sobre um realismo excessivo, que, com relação ao imaginário, arruína não apenas à deriva onírica, fantasmática ou inconsciente, mas também a tradicional deriva “figurativa,” que fazia a imagem brotar da raiz da semelhança formal. Contra a surrealidade onírica, Documents apelará a um realismo que exige que se mantenha o olhar e não se fechem os olhos, ali onde a figura humana encontra com o seu interior visceral – mais do que inconsciente -, e onde a sua exegese exige, à maneira de Nietzsche, comparar cada irrupção do eu nos corpos com a aparição de uma mosca.[29] A figura se revela menos como o índice de uma essência ou de uma natureza humana, e mais como o monstro informe que encontramos se olharmos fixamente para as imagens. Sem qualquer teleologia da forma, o informe será a única figura possível do real. Ainda que distante da filiação batailleana, encontramos no conceito de figura, tal como elaborado por Deleuze em Francis Bacon. Lógica da sensação, os elementos para compreender a função que Picasso desempenhará em Documents. Ali lemos:
17. A figura não é apenas o corpo isolado, mas o corpo deformado que escapa. […] Assim como o esforço do corpo é sobre si mesmo, a deformação é estática. todo o corpo é atravessado por um movimento intenso. Movimento deformadamente disforme, que deposita a cada momento a imagem real no corpo para constituir a Figura.[30]
18. Se o informe é o movimento do real, então a realidade separada do figurativo é encontrada nos espasmos que, antes de Bacon, Picasso aplicou às suas figuras. Nada mais apropriado do que o conceito de atletismo deleuziano, que nos permite pensar o estiramento e o espasmo. Trata-se de um movimento que já não é mais o da decomposição cubista do movimento, que teria sua obra paradigmática no Nu descendo uma escada nº 2, de Marcel Duchamp. É um movimento que iria de dentro para fora, um movimento cuja realidade é baseada no interior do corpo, mas onde esse interior é revelado como visceral, não como espiritual. Essa exposição absoluta de corpos sem interioridade imaterial é o que parece guiar a seleção de cabeças que acompanha o texto “Pinturas recentes de Picasso,” de Leiris. Figuras que apenas assinalam os orifícios do rosto (olhos, dentes, orelhas), mas que sugerem, na dobra de um tecido, um exterior que o atravessa e uma interioridade completamente desdobrada. É junto com essas cabeças que podemos compreender o movimento dos corpos contorcidos, a desorganização de um movimento que não sincroniza o diacrônico, mas que expressa o intensivo. As cabeças que encontramos nas pinturas publicadas na edição de homenagem a Picasso parecem necessariamente estar ali para dialogar com um texto de Bataille que os leitores de Documents haviam lido na edição anterior: “Os desvios da natureza.” As cabeças dos gêmeos, construindo um rosto duplo onde, como indica Georges Didi-Huberman, a semelhança se realiza materialmente[31] – ou seja, sem mediação, sem recorrer ao modelo implícito na forma normal, aquela que geramos ao sobrepor os rostros uns sobre os outros –, nos remetem diretamente a essas cabeças que Picasso pintou entre 1926 e 1927.
19. Abrir os olhos para o monstro como um desvio íntimo e essencial da figura humana é, de certa forma, o que a obra de Picasso proporia, para os colaboradores de Documents. Daí que seu realismo radical seja, ao mesmo tempo, um anti-humanismo, se o observarmos através da lente anti-idealista que a revista propõe. Berger se detém em seu livro sobre Picasso no caráter impenetrável de seu olhar, como se seus olhos não fossem o buraco do rosto que revela a interioridade, mas uma espécie de “diamante negro”, de um brilho escuro que reflete em seu fundo negro tudo aquilo que ele olha. Picasso como um ídolo, como uma peça escultórica, fechada em sua presença absoluta. Esses olhos, no entanto, não estão fechados, estão bem abertos, embora sem reverso, queimados, como indica Bataille. Olhos que viram demais, para usar a expressão de Deleuze, e que abandonaram toda a imaginária do símbolo.
20. Em 2005, Anne Baldassari fez a curadoria de uma exposição no Museu Picasso de Paris dedicada à conexão Picasso-Bacon. Essa exposição foi intitulada “A vida das imagens.”[32] Encontramos no catálogo a referência e a marca que as obras de Picasso do final dos anos 1920 e início dos anos 1930 receberam das leituras de Documents. Entre Bacon e Picasso, o realismo deixa de ser o da representação para se tornar a vida das imagens, aquela que finalmente deslocará o olhar e a vida humana.
Tradução do espanhol por Arthur Valle
* Doutora e Professora em Filosofia (Universidad de Buenos Aires), e Mestre em Estética e Teoria da Arte Contemporânea (Universidad Autónoma de Barcelona). É docente de Estética na Universidad de Buenos Aires e na Universidad Nacional de las Artes, e Investigadora Adjunta de CONICET. O presente artigo foi originalmente publicado como: LUCERO, Guadalupe. El picassismo de Documents. In: COLECTIVA Materia (coord.). Indisciplina: estética política y ontología en la revista Documents. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: RAGIF Ediciones, 2018, p. 183-196.
[1] Nesse sentido, cfr.: FISGATIVA, Carlos. Ensamble de imágenes y escrituras en la revista Documents. In: COLECTIVA Materia (coord.). Indisciplina: estética política y ontología en la revista Documents. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : RAGIF Ediciones, 2018, p. 167.
[2] LEIRIS, Michel. Toiles récentes de Picasso. Documents, n. 2, 1930, p. 57. Nesse artigo, se citam os textos da revista Documents de acordo com a edição facsimilar com prólogo de Denis Hollier: Documents: doctrines, archéologie, beaux-arts, ethnographie. Paris: Jean-Michel Place, 1991, 2 v.
[3] DESNOS, Robert. Bonjour Monsieur Picasso. Documents, n. 3, 1930, p. 113.
[4] Cfr. EINSTEIN, Carl. Notes sur le cubisme. Documents, n. 3, 1929, p. 146.
[5] Cfr. BERGER, John. Fama y soledad de Picasso. Madrid: Alfaguara, 1994, cap. 1.
[6] EINSTEIN, Carl. Pablo Picasso. Quelques tableaux de 1928. Documents, n. 1, 1929, p. 35.
[7] Ibid., p. 38.
[8] Ibid., p. 35.
[9] PIERRE-QUINT, Léon. Doute et révélation dans l’œuvre de Picasso. Documents, n. 3, 1930, p. 134.
[10] Ibid., p. 135.
[11] RIBEMONT-DESSAIGNES, Georges. Picasso Météore. Documents, n. 3, 1930, p. 142.
[12] Cfr. EINSTEIN, Pablo Picasso. Quelques tableaux …, p. 35; PIERRE- QUINT, Doute et révélation …, p. 135 ; e EINSTEIN, Carl. Picasso. Documents, n. 3, 1930, p. 156.
[13] MALRAUX, André. La cabeza de obsidiana. Buenos Aires: Sur, 1974, p. 19.
[14] EINSTEIN, Picasso, p. 156.
[15] Ibid., p. 157.
[16] Idem.
[17] EINSTEIN, Pablo Picasso. Quelques tableaux …, p. 38.
[18] Ibid., p. 35.
[19] PREVERT, Jacques. Hommage-Hommage. Documents, n. 3, 1930, p. 151
[20] PUECH, Henri-Charles. Picasso et la représentation. Documents, n. 3, 1930, p. 122.
[21] LEIRIS, Toiles récentes…, p. 62.
[22] LEIRIS, Michel. L’homme et son intérieur. Documents, n. 5, 1930, p. 261-266.
[23] LEIRIS, Toiles récentes …, p. 64.
[24] Idem.
[25] Ibid., p. 70.
[26] Nesse sentido, a noção de objeto vivo, conceito central da exposição realizada por Christopher Green no Museu Picasso de Barcelona em 2009, torna-se interessante.
[27] HEGEL, George W. F. Lecciones sobre la estética. Madrid, Akal, 2007, p. 8.
[28] BRETON, André. Manifeste du surréalisme. In : BRETON, André. Œuvres complètes. Vol. 1, Marguerite Bonnet (ed.), París : Gallimard, 1988.
[29] Cfr. BATAILLE, Georges. Figure humaine. Documents, n. 4, 1929, p. 194-200.
[30] DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica de la sensación. Madrid: Arena, 2005, p. 28.
[31] DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou Le Gai Savoi visuel selon Georges Bataille. Paris: Macula, 1995, p. 141. Cfr. também: DIDI-HUBERMAN, Georges. Notas sobre antropomorfismo en Documents. In: COLECTIVA Materia (coord.). Indisciplina: estética política y ontología en la revista Documents. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : RAGIF Ediciones, 2018, p.78.
[32] BALDASSARI, Anne. Bacon. Picasso: La vie des images. Paris: Flammarion, 2005 (Catálogo de exposição).