Pablo Schneider*
Como citar: SCHNEIDER, Pablo. Ordem sustentada. O Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIX, 2024. https://doi.org/10.52913/19e20.xix.11
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1. Em 1929, o cientista da arte, da cultura e das imagens Aby Warburg (1866-1929) definiu o objetivo de sua pesquisa como o estabelecimento “[d]os fundamentos […] para o desenvolvimento de uma nova teoria da memória humana das imagens” [die Grundlagen […] für die Entwicklung einer neuen Theorie des menschlichen Bildgedächtnisses].[1] Ele compreendia tais fundamentos como válidos tanto em uma perspectiva histórica, quanto na contemporaneidade. Os artefatos visualmente tangíveis eram de importância central em sua empreitada. Para abordar seus tipos de formas, significados e efeitos de modo analítico, Warburg reuniu diferentes reproduções e as dispôs sobre quadros cobertos com tecido preto. Os arranjos das diversas pranchas de imagens eram gerados a partir de um conjunto gerenciável de 1.500 a 2.000 fotografias. A ideia de que o conhecimento científico poderia ser obtido através de combinações do gênero não era, a princípio, uma abordagem incomum na história da arte do início do século XX. A pesquisa artístico-científica da época era determinada por uma abordagem que focava na ordem e na seleção de um inventário de objetos. Pinturas, desenhos e gravuras eram, sempre que possível, vinculados a artistas identificáveis. As obram podiam então ser agrupadas nas chamadas Escolas, definidas geograficamente. Para a formação destes agrupamentos, era fundamental descrever as maneiras individuais de trabalho dos artistas e conectá-las a um estilo mais geral. Esse proceder era acompanhado de julgamentos de valor, uma vez que certas épocas e certas regiões eram tidas como mais relevantes que outras. Portanto, eram importantes as opções de demarcação, que construíam relações de competitividade e incorporavam conclusões valorativas. As interações entre os estilos não constituíam o foco dessas investigações.
2. Já o círculo em torno da Kunstwissenschaftliche Bibliothek Warburg (KBW) seguia uma abordagem diferente, que também integrava formas de organização, mas as pensava de outro modo. Nesse sentido, diferentes documentos não só eram interligados uns aos outros, mas também eram entendidos como fatores capazes de estabelecer entre si relações ativas. O medium de criação do conhecimento na KBW consistia na combinação de imagens em quadros [Tafel] e da linguagem. Com base na exposição intitulada “Proto-palavras da linguagem afetiva dos gestos” [Urworte leidenschaftlicher Gebärdensprache][2] na sala de leitura da biblioteca, em 1927 [ Figura 1 ], já se podia antever que as apresentações ali feitas não seguiam uma abordagem meramente estética.
3. Várias formas de reprodução foram ali combinadas entre si e, à primeira vista, não revelavam quaisquer estruturas em comum. Um detalhe da supracitada exposição de janeiro de 1927 também enfatiza a opção por dinamizar os objetos.[3] Os livros – a despeito de serem, alguns deles, do final do século XVI – eram presos apenas com cordões, para facilitar, em particular, a abertura de outras páginas pelo leitor. Mesmo após esta curta explanação, torna-se evidente que a compreensão da ordem perseguida na KBW não tinha como objetivo uma conclusão fixa, mas pretendia ser dinâmica. Neste contexto, o conjunto de ilustrações não era orientado normativamente. No entanto, a sua limitação era construtivamente importante pois permitia calcular, de modo produtivo, a energia das possibilidades de conhecimento. A redução delimitava o material relevante para projetar um espaço de pensamento [Denkraum][4] a partir dos diversos arranjos produzidos.
Atlas Mnemosyne
4. O foco de considerações seguintes é, de modo exemplar, o projeto do chamado Atlas Mnemosyne, sobre o qual foi realizado intenso trabalho na KBW entre 1924 e 1929, o ano da morte de Warburg.
5. Do Atlas, sobreviveram três registros fotográficos de suas condições entre 1928 e 1929. As séries compreendiam cada dezenas de pranchas, apresentando um total de até 2.000 ilustrações. O que caracterizava o Atlas era a sua densa combinação de imagens, de variados tamanhos e qualidades, bem como seu arranjo, que inicialmente não seguia nenhuma estrutura ou direção de leitura imediatamente óbvia: trata-se de uma forma radical de ordem, que talvez só pudesse ter desenvolvido todo o seu potencial na efetiva discussão diante das pranchas negras, como aponta uma nota de Warburg, datada de outubro de 1929: “Maciço conjunto pressionado por Ghirlandaio: [Edgar] Wind o apresentou como função no espaço de desejo [Wunschraum][5] da corte dos Médici. Rembrandt como imagem final (A cura pela sombra de Masaccio, a Conspiração de Claudius Civilis de Rembrandt, e Leonardo).”[6] O colega mais próximo de Warburg, Fritz Saxl, fez algumas reflexões sobre o Atlas antes de 1928. O seu tom não era de forma alguma entusiasmado, e pode-se perceber que, em particular, a ordenação incessante do material representava um problema para Saxl: “[A prancha] VI seria certamente uma das melhores, caso fosse acompanhada por um texto que tornasse compreensível essa comparação entre o combate cotidiano e monumental de cavalaria, e que Gozzoli fosse tão lindamente colocado na metade secular. […] Me parece que esse efeito seria atingido com a integração de alguma explanação impressa. Mas tudo depende do texto.”[7] Saxl também descreveu a técnica de adição de Warburg, embora a tenha claramente criticado. Mas o que se torna aparente na sua avaliação cética é a fundamental orientação dinâmica do Atlas. Neste sentido, uma forma de ordem se perdia para Saxl, pois o espectador não seria mais capaz de produzir insights. O que restava era uma situação difícil.
6. Em 1937, alguns anos depois da KBW ter emigrado para Londres, Ernst H. J. Gombrich tentou produzir uma versão do Atlas [ Figura 2 ], que mostra, com impressionante nitidez, as dificuldades associadas à abordagem metodológica do original.
7. Nesta variante, as obras eram organizadas, estruturadas e rotuladas de uma maneira óbvia. Ali é mostrada uma interpretação visual do material, o que faz com que o conceito do Atlas Mnemosyne – ainda que involuntariamente – claramente se destaque em uma direção oposta. Warburg e o círculo KBW perseguiam explicitamente uma ideia muito diferente, que visava a, em última análise, uma espécie de laboratório de imagens, e não uma coleção de imagens iconográfico-normativas.[8]
Constelação conceitual da comunhão
8. Nas três versões documentadas do Atlas Mnemosyne, datadas de 1928 e 1929, Warburg tratou do tema da comunhão, que ele via como uma situação moral.[9] Ele observou em 1927:
9. Fórmula de pathos [Pathosformel][10]
10. cristã trágico-passiva
11. da comunhão[11]
12. O motivo combina diferentes camadas de significado, que se desenvolvem no contexto da situação específica da comunhão. Esta mostra pessoas do sexo masculino em uma mesa. A cena estava firmemente ancorada na memória coletiva dos espectadores europeus. O que era visível não precisava ser analisado, mas podia ser apreendido imediatamente. O que se vê é um ato social: a refeição compartilhada. Mas o acontecimento não é de forma nenhuma neutro, uma vez que evoca o iminente sacrifício de Cristo. Portanto, a fórmula de pathos da comunhão não se expressa apenas visualmente, mas está inseparavelmente ligada a considerações morais que se apresentam no ato de ver. O motivo só pode ser entendido até certo ponto como um fato iconográfico, e este não representa o principal critério de ordenação das pranchas. Pelo contrário, a estrutura da ordenação das imagens abre a opção de abordar discursivamente áreas emocionais fronteiriças como a despedida, a traição, a morte sacrificial e a redenção.
13. Passividade e tragédia descrevem os polos da situação à mostra, visível, e do evento futuro. A calma do momento se baseia na execução do ato, que se transmuta em um ritual. Para incluir esse aspecto em suas considerações, Warburg integrou à prancha uma pintura de Rembrandt, A Conspiração de Claudius Civilis, criando assim uma forte ligação entre a comunhão e a cena da conspiração. A passividade em relação ao destino na comunhão cristã gera a fórmula de pathos trágico, que continua viva na pintura. Isto não deve ser entendido prioritariamente em termos visuais, mas sim em um sentido abrangente, em termos de conteúdo, ou de humanismo. O material e as formas de organização pretendiam lançar as bases para uma teoria da memória coletiva da imagens.
14. Na sequência das três versões da prancha, pode-se observar como os mesmos motivos se aproximam e depois se afastam. Na segunda versão, por exemplo, o afresco milanês da Última Ceia, de Leonardo da Vinci, aparece espremido entre as obras de Rembrandt, apenas para depois mover-se para baixo na prancha. A constelação formada por pintura e desenho desloca-se inicialmente do centro para a esquerda, mas seu caráter comparativo permanece na justaposição. As duas imagens também pertencem ao grupo daquelas que foram inseridas em todos os estados documentados do Atlas. Uma mudança radical ocorre na prancha 72 de 1929 [ Figura 3 ]. Aqui, a cena da conspiração foi reproduzida em tamanho bem maior e posicionada diretamente ao lado da cena da Última Ceia. A combinação parece dominar a prancha. Contudo, uma ordem iconográfica e cronológica, que seria estruturada horizontalmente, não deveria de forma alguma ser aceita como critério de ordenação. Ao contrário, as pranchas geram espaços de pensamento dentro dos quais um conjunto condensado de material visual é repetidamente inserido em contextos de significado.[12] O número limitado de associações visuais ajuda a dar suporte às opções de visualização, sem isolar a sua energia intelectual. O objetivo era, em primeiro lugar, analisar a memória imagética humana e, em segundo lugar, descrever processos dinâmicos no ato de construção da civilização. Isso exigiu imagens de artefatos visuais que provaram ser fontes de energia nesses desenvolvimentos. Uma compreensão normativa das imagens não entrou em jogo aqui, e teria prejudicado o sistema em rede das pranchas de imagens. Isto porque estas constituem uma forma de pensar que organiza motivos e níveis de conteúdo de maneira flexível, permitindo que interconexões surjam temporariamente. Nesse sentido, as pranchas não representam o conhecimento, mas sim geram um espaço no qual o conhecimento pode emergir discursivamente. A importante combinação imagética da Última Ceia e da cena da conspiração mostra que a orientação metodológica do Atlas Mnemosyne não era iconográfica ou enciclopédica. Warburg estava mais preocupado com uma abordagem da vida após a morte na comunhão como uma ação social de construção comunitária. A orientação discursiva básica das pranchas também pode ser entendida como uma indicação da sua ordenação mutável. Trata-se de uma dinâmica que pode ser entendida como um momento extremamente produtivo das constelações de imagens. Estas constelações configuram as vizinhanças mais próximas e mais amplas das imagens, que, embora fixadas na prancha, originavam movimentos potenciais – mutáveis, referentes, pulsantes – que tiveram de ser pensados e vistos.
Conclusão
15. As pranchas do Atlas Mnemosyne foram criadas por um motivo específico. Elas deviam transmitir conhecimentos, apresentá-los, se necessário, e desenvolvê-los ainda mais. Warburg concebeu a rede gerada a partir da ordem das imagens como dinâmica e comunicativa. Ele perseguiu um método de combinação pensado estritamente a partir das imagens, que colocava a questão da materialidade destas últimas em segundo plano. A importância dos artefatos como obras de arte era, portanto, secundária, e o Atlas configurou-se como elemento de uma “ciência das imagens” [Wissenschaft vom Bilde], como disse o próprio Warburg em 1926.[13] O ato e o momento dessa ordem eram de importância central. Isso podia ser documentado fotograficamente, mas não deveria ser interpretado como algo fixo, como um resultado último. A ordem era o processo em si, e não um ponto final. Neste contexto, a limitação da coleção de imagens do Atlas Mnemosyne parece extremamente sensata. Sua intenção não era formar um cânone, nem uma abordagem normativa. A incessante ordenação é o núcleo metodológico, com o qual se pretendia apreender os atos fundamentais, as condições para o surgimento da cultura humana. Nesse sentido, a ordem não visava fixar o material, mas sim preservar o seu dinamismo. O Atlas Mnemosyne fornecia a estrutura organizadora para isso.
Tradução do alemão por Arthur Valle e Daniel Rincon Caires
* Pablo Schneider é historiador de arte e trabalha atualmente na Deutscher Kunstverlag. Suas investigações se centram no início do período moderno, na iconologia política e no círculo da Kunstwissenschaftliche Bibliothek Warburg, com foco em questões metodológicas. O presente artigo foi originalmente publicado como: SCHNEIDER, Pablo. Anhaltende Ordnung. Der Mnemosyne-Atlas Aby Warburgs. In: VON ENGELBERG DOCKAL, Eva; HEROLD, Stephanie (org.). Ordnungssysteme. Auswählen, Werten, Sortieren. Siegen, 2024, p. 84-90.
[1] Carta a Karl Vossler, 12 out. 1929, citada em: SCHOELL-GLASS, Charlotte. Superlative der Gebärdensprache. Kindermord. In: HELAS, Philine (org.): Bild/Geschichte. Festschrift für Horst Bredekamp. Berlim, 2007, p. 155.
[2] [N. do T.] Interessado na maneira pela qual a Antiguidade havia sobrevivido (ou deixado vestígios de sua existência) em elementos visuais que eram reassimilados pelas pessoas do presente e reintroduzidos continuamente em novos objetos visuais, Warburg concebeu o conceito de Urworte – literalmente “palavras ancestrais” – ou talvez, melhor, “proto-palavras” -, que pode ser definido como o elemento base dessa transmissão cultural, como uma espécie de código genético cultural, ou, nas palavras de Isabella Woldt, como “original significant visual elements as gestures preserved in concepts and in cultural artefacts, which have been transferred to the later cultures.” A ideia é a de que experiências emocionais de alta potência podem se consubstanciar em “gestos,” ou formas, que se tornam como que símbolos dessa emoção e, como proto-palavras, ingressam no cabedal de dados culturais e são transmitidos para as gerações futuras, que os reatualizam. Ver: WOLDT, Isabella. Ur-Words of the Affective Language of Gestures: The Hermeneutics of Body Movement in Aby Warburg. Interfaces – Image-Texte-Language, n. 40, 2018. Disponível em: https://journals.openedition.org/interfaces/605 Acesso em 1 nov. 2024.
[3] FLECKNER, Uwe; WOLDT, Isabella (org.). Aby Warburg. Bilderreihen und Ausstellungen. Berlim, 2012, p. 83.
[4] [N. do T.] Denkraum (também referido como Wunschraum ou Zwischenraum), simplificando ao extremo a definição que Warburg oferece, é o espaço abstrato e artificial, construído pelo homem, onde se torna possível estabelecer uma separação entre aquele que observa e o objeto que é observado. Esse espaço pode ser mental, erigido na esfera do pensamento, mas pode também se concretizar no laboratório, no museu ou na Wunderkammer, a depender do momento histórico que se observe. A esse respeito, ver: JOHNSON, Christopher D. Memory, metaphor, and Aby Warburg’s Atlas of images. Ithaca: Cornell University Press and Cornell University Library, 2012; e RECHT, Roland. Introduction. In: LUGLI, Adalgisa. Naturalia et Mirablia – les cabinets de curiosités en Europe. Paris: Adam Biro, 1998, p. 23-29.
[5] [N. do T.] Ver nota 4.
[6] MICHELS, Karen; SCHOELL-GLASS, Charltte (org.). Tagebuch der Kulturwissenschaftlichen Bibliothek Warburg. Berlim, 2001, p. 549.
[7] Warburg Institute Archive, WIA III.104.2.1. Mnemosyne.
[8] ZÖLLNER, Frank. “Eilig Reisende” im Gebiet der Bildvergleichung. Aby Warburgs Bilderatlas “Mnemosyne“ und die Tradition der Atlanten. Marburger Jahrbuch, v. 37, p. 279–304, 2010.
[9] WARNKE, Martin; BRINK, Claudia (org.). Aby Warburg. Der Bilderatlas Mnemosyne. Berlim, 2000, p. 119.
[10] [N. do T.] Pathosformel é um termo cardeal para Warburg. Pathos em alemão tem o sentido de forte emoção. Pathosformel indica assim, no vocabulário de Warburg, uma espécie de forma canônica – imutável, recorrente, que atravessa o tempo – de manifestar uma emoção pela forma. Para Cristopher D. Johnson, essa ideia anula a possibilidade de separar forma e conteúdo: “[…] the literal pathos of a grieving mother becomes a formula when it appears on a Greek funeral urn, in a quattrocento painting of the Deposition, or in a Hamburg newspaper photograph” (JOHNSON, op. cit., p. 14).
[11] Nota, 20 abr. 1927. Warburg Institute Archive, WIA III.102.2.1. Mnemosyne.
[12] Ver as contribuições em: TREML, Martin; FLACH, Sabine; SCHNEIDER, Pablo (org.). Warburgs Denkraum. Formen, Motive, Materialien. Munique, 2014.
[13] Em uma carta a Moritz von Geiger, 17 nov. de 1926, citada em: Hensel, Thomas: Wie aus der Kunstgeschichte eine Bildwissenschaft wurde. Aby Warburgs Graphien. Berlim, 2011, p. 12.